240

33
INTRODUÇÃO À SEMIÓTICA A semiótica, disciplina cujo nascimento relativamente recente explica sua pouca difusão no contexto das ciências humanas, tem como projeto científico descrever, analisar, construir um modelo teórico, o fenômeno da significação em todos os lugares onde ele se manifesta. Greimas escreve em 1966, em Sémantique structurale : “O mundo humano é o mundo da significação”. A semiótica se distingue, por conseguinte da semiologia, que no stricto sensu se ocupa dos fenômenos da comunicação com apoio de sistemas de sinais, mesmo que, geralmente exista uma tendência de interpretar os termos semiótica e semiologia como sinônimos. A semiótica também se distingue da semântica que estuda (em oposição à fonologia e morfo-sintaxe) a organização dos significados manifestos pelos signos de uma língua natural. Mesmo o termo semiótica reenvia a numerosas escolas, correntes, diversas tradições cuja história se confunde com o século XX: a semiótica americana de C.S,. Peirce é um pouco mais contemporânea da lingüística de F. de Saussure (o mesmo que cria o conceito de semiologia, concebido como ciência dos sistemas de signos); a semiótica russa nasceu com os trabalhos de V. Propp (1928: a Morfologia do Conto), e foi seguida pela corrente do formalismo depois, entre outros, com Lotman,; a semiótica italiana se desenvolveu, essencialmente, em torno da obra de U. Eco; quanto à semiótica francesa, a da Escola de Paris a qual 1

description

...

Transcript of 240

Page 1: 240

INTRODUÇÃO À SEMIÓTICA

A semiótica, disciplina cujo nascimento relativamente recente explica sua pouca

difusão no contexto das ciências humanas, tem como projeto científico descrever,

analisar, construir um modelo teórico, o fenômeno da significação em todos os lugares

onde ele se manifesta.

Greimas escreve em 1966, em Sémantique structurale : “O mundo humano é o

mundo da significação”.

A semiótica se distingue, por conseguinte da semiologia, que no stricto sensu se

ocupa dos fenômenos da comunicação com apoio de sistemas de sinais, mesmo que,

geralmente exista uma tendência de interpretar os termos semiótica e semiologia como

sinônimos.

A semiótica também se distingue da semântica que estuda (em oposição à fonologia

e morfo-sintaxe) a organização dos significados manifestos pelos signos de uma língua

natural.

Mesmo o termo semiótica reenvia a numerosas escolas, correntes, diversas tradições

cuja história se confunde com o século XX: a semiótica americana de C.S,. Peirce é um

pouco mais contemporânea da lingüística de F. de Saussure (o mesmo que cria o

conceito de semiologia, concebido como ciência dos sistemas de signos); a semiótica

russa nasceu com os trabalhos de V. Propp (1928: a Morfologia do Conto), e foi seguida

pela corrente do formalismo depois, entre outros, com Lotman,; a semiótica italiana se

desenvolveu, essencialmente, em torno da obra de U. Eco; quanto à semiótica francesa,

a da Escola de Paris a qual pertencemos, ela deve seu nascimento à Algirdas Julien

Greimas (1917-1992), a partir dos anos 60.

Nossa introdução limitar-se-á a esta corrente, semiótica francesa, cujo

desenvolvimento tivemos a oportunidade de seguir de 1965 até os nossos dias.

A semiótica da Escola de Paris se constituiu sob a influência de Greimas

ultrapassando os limites e a lexicologia e a semântica, se caracteriza por dois aspectos

complementares:

- Por um lado pela extensão progressiva – e considerável – de seu campo de

investigações: partiu da análise da literatura denominada oral (mitos, contos e

mesmo rituais), ela rapidamente se interessou pela literatura escrita e pelo

conjunto de discursos verbais ( histórico, jurídico, filosófico, científico, etc.),

enfrentando ao mesmo tempo os discursos não verbais como a imagem

1

Page 2: 240

fotográfica, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música bem como os

discursos sincréticos (organizando vários sistemas semióticos

simultaneamente): cinema, teatro, comunicação publicitária e mesmo

comportamentos ( constituídos pela linguagem, gestualidade e proxêmica).

Observação: Vemos portanto, que a semiótica, neste último exemplo, pretende adotar como objeto não somente as produções verbais e não verbais atribuíveis aos enunciadores - criadores, mas também às produções espontâneas que são os comportamentos humanos da vida cotidiana.

- Por outro lado o projeto de construção de um modelo teórico conduz da significação

com ajuda de um modelo necessariamente estratificado em níveis que vão do mais

abstrato ao mais concreto: o percurso gerativo da significação. Este modelo deve

apresentar um tal nível ideal de generalidade, que possa abordar toda produção

humana significativa, verbal e/ou não verbal.

A semiótica da Escola de Paris se constituiu sob a influência de Greimas, no campo

epistemológico do estruturalismo (culmina nos anos 1965), na confluência entre a

lingüística, a antropologia e a lógica formal, sem esquecer a influência, menos explícita

mas bem real, da psicanálise.

Mas sabemos que, desde os anos 80 se impôs a necessidade de uma ruptura

epistemológica, ou seja, a reintrodução do sujeito de enunciação, que havia sido

eliminado pelo estruturalismo stricto sensu. E. Benveniste havia por outro lado, bem

antes dos anos 60, lançado as bases de uma lingüística da enunciação. Seu discípulo

Jean Claude Coquet, retomando a lição da fenomenologia, edificaria uma semiótica dita

subjectale que colocou em debate os problemas epistemológicos do estruturalismo que

são o formalismo e o imanentismo: ele restabelecerá assim o vínculo entre a linguagem

e a realidade, (ré) afirmando, por exemplo, que o corpo é a instância de base do

discurso, que prima sobre a língua. O sujeito, em seu corpo e carne, é então

ressuscitado.

Enfim, os trabalhos de Jean Petitot, na interface de uma moderna teoria matemática

(a teoria das catástrofes de René Thom, que lhe valeu a medalha Fields, equivalente ao

prêmio Nobel de matemática), os desenvolvimentos das ciências cognitivas (análise, por

exemplo, da percepção humana) e de uma semiótica orientada para processos dinâmicos

que chegasse a criar um novo campo epistemológico denominado estruturalismo morfo-

dinâmico, onde a noção de forma é central.

2

Page 3: 240

Mas esta evolução do quadro epistemológico da semiótica inevitável e tão esperada

não colocou em questão suas características essenciais, seja a extensão contínua de seu

objeto de investigação e da inquietação com a construção de um modelo teórico como

valor geral do próprio processo de revelar a significação: assim esta «caixa preta»

temida tornou a ligar percepção e enunciação verbal, hoje no centro das pesquisas em

ciências cognitivas.

Nós temos, de nossa parte, contribuído para a semiótica da literatura (poesia

contemporânea) da pintura (Dali, Ayme, Cranach l’Ancien) e da escultura (Michel-

Angel) mas, sobretudo, nossa contribuição específica consistiu na edificação de uma

psicossemiótica e suas aplicações em psicoterapia e, mais recentemente, uma

ethossemiótica visando a análise dos comportamentos animais e humanos, normais e

patológicos.

A SEMIÓTICA DE GREIMAS

O modelo semiótico de Greimas pode aparecer como um tipo de síntese notável entre

as pesquisas, sobretudo sintagmáticas, de Propp a partir da análise do maravilhoso conto

russo (Morfologia do conto, 1928) e dos trabalhos de Cl. Lévi-Strauss (Antropologia

estrutural, tomos I & II) que insistiam no paradigmático revelando o sentido dos mitos

analisados.

Do lado do paradigmático, Greimas foi além das pesquisas concernentes à dimensão

narrativa do discurso, mostrando que, do ponto de vista morfológico, as invenções

narrativas as mais diversas mobilizam um número muito limitado dos actantes, papéis

narrativos abstratos que se incorporam infinitamente nos personagens múltiplos de tal e

tal relato.

Ele distingue

- o actante-sujeito, que se define pela “junção” (disjunção ou conjunção) com

o actante-objeto: reencontramos aqui a noção central de falta, da qual Propp

havia descoberto a função de impulsionar o conto. Ponto possível do relato se

3

Page 4: 240

não falta alguma coisa a alguém e o relato sob sua forma mínima, com “happy

end”, pode aparecer como a série de transformações que ligam a falta inicial a

sua liquidação final.

- o actante-objeto, reciprocamente, somente pela relação com o actante-sujeito,

conjunta ou disjunta; ele é por outro lado o continente de valores: o actante-

objeto procurado pelo actante-sujeito pode ser representado, por exemplo, por

um «automóvel», figura que manifesta, entre outras, o valor de «poder» ou de

«virilidade». Falaremos do objeto de valor.

- O actante-destinador ligado ao actante-destinatário muitas vezes fusionado

com o actante-sujeito. O destinador é o actante hierarquicamente superior ao

sujeito, que lhe comunica os valores em jogo no relato e, veremos também os

elementos dessa competência modal (destinador dito manipulador). É também

a estância actancial que avalia as performances do sujeito (destinador dito

judicador).

Greimas propõe uma noção central, aquela do esquema narrativo, estrutura

sintagmática que põe em ação central os actantes do relato, esquema potencialmente

caracterizado como forma universal da organização narrativa.

O relato humano se apresenta, com efeito, como a sucessão de três provas:

qualificante, decisiva e glorificante. Esta sucessão estável, recorrente é uma forma de

conferir «um sentido à vida» que a priori não teria nenhum: inicialmente, a primeira

etapa do esquema, a «qualificação» do sujeito-herói que o introduz na vida; e segunda

etapa, sua «realização» por alguma coisa que ele faz; enfim, a «sansão», retribuição e

reconhecimento, última garantia do sentido de seus atos e de sua identidade.

Retomemos, para ilustrar, esta importante noção de esquema narrativo, do qual as

três etapas constituem a fórmula sintáxica permanente.

Nós tomaremos para isso o exemplo de um conto universalmente conhecido, aquele

da Cinderela, cujas numerosas variações foram recolhidas não somente na Europa, mas

também, fora de toda comunicação possível, mesmo em uma etnia indígena da América

do Norte onde o herói é um rapaz e não uma moça, como nas variantes européias, mas

sempre ligada à cinza.

4

Page 5: 240

A primeira etapa do esquema narrativo é então constituída pela qualificação

progressiva do sujeito. Notamos que no começo do conto, que Cinderela não é, no

sentido semiótico, um actante-sujeito: ela não quis nada, não é inscrita em nenhuma

busca de um objeto-valor. Em certas versões francesas ela é mesmo designada

vulgarmente como uma mendiga: ela está nua, suja e arrasta-se em torno da lareira «se

beurrant tout le jour le cul de cendres» ( designação popular do gesto masturbatório).

Bem distante de ser constituída como sujeito, ela relembra em seu comportamento o

«sujeito» autista movido por «estereótipos» auto-eróticos.

Nós notaremos que a emergência de Cinderela como actante-sujeito se produz

quando deseja enfim alguma coisa: ir ao baile. Mas a família lhe envia uma mensagem

como se este projeto fosse totalmente incoerente, enquanto que convém perfeitamente a

suas meias-irmãs. Negligenciada, suja, como ela poderia ousar se apresentar no baile?

Em termos semióticos, se ela possui a modalidade da competência pragmática que é

o querer (ela quer ir ao baile), faltam-lhe outras modalidade necessárias para realizar a

performance desejada: o poder e o saber fazer. Acrescentaremos que, vítima de uma

proibição por parte da madrasta, ela deve superar o não deve fazer (= não deve ir ao

baile). Ela aparece então como um sujeito modalmente incompetente: dividida entre

querer fazer e dever fazer, desprovida do poder e do saber fazer.

Sem a intervenção de um Destinador transcendente, superior, Cinderela ficará

provavelmente neste estado de incompetência frustrante. A fada-madrinha (dotada de

um poder mágico, forma de todo poder característico do Destinador), fantasiada de

mendiga, a submete à prova qualificante, testando sua caridade. Cinderela é bem

sucedida na prova e recebe em retribuição as modalidades da competência que lhe

faltam:

- O poder ir ao baile, sob a forma de carruagem, com a restrição de uma

duração limitada: a meia noite o veículo se transformará em uma abóbora,

voltando desta maneira a sua forma original.

- O saber ir ao baile, num belo vestido ( elemento presente em todas as versões)

fantasia estratégica que dissimula a verdadeira identidade de Cinderela.

Sabemos que o belo vestido está igualmente limitado no tempo, como a

carruagem.

5

Page 6: 240

Assim, dotada das modalidades da competência, Cinderela pode ir ao baile,

enfrentando a proibição familiar, neste anonimato protetor que lhe confere seu status de

princesa.

A segunda etapa é aquela da realização da performance central do conto, a prova

decisiva: acolhida triunfalmente no baile, ela perde sua identidade original e é designada

no conto como a bela princesa desconhecida. O encontro com o príncipe se realiza

plenamente, interrompido pela necessidade de partir antes da hora fatídica.

Constataremos que, nas numerosas versões deste conto, a performance de ir ao baile

é triplicada: ela vai, por exemplo, com um vestido de cor de prata, e de ouro, e de cor

do tempo, por exemplo. A triplicação narrativa e muito freqüente no conto, em geral:

frequentemente veremos que as duas primeiras tentativas fracassam e somente a

terceira é bem sucedida. «Jamais dois sem três», diz a sabedoria popular.

A terceira etapa do esquema narrativo: apresenta-se então o problema difícil da

prova glorificante, o da sanção final do relato. Felizmente, na sua pressa, Cinderela

perdeu um sapato de «vair» (feito de pele de cores variadas). E a prova de

reconhecimento daquele que efetivamente realizou a performance se resume em poder

calçar o sapato.

As meias-irmãs de Cinderela, sabemos, mutilam o pé para poder calçar o sapato

muito pequeno para elas, mas são traídas pelo sangue! Aqui, nós vemos, como sublinha

Greimas, que o conto é ao mesmo tempo o relato do herói, mas também o relato do

traidor, representado neste conto pelas irmãs.

Cinderela calça facilmente, perfeitamente o sapato, a pantufa de pele, é reconhecida,

glorificada pelo Príncipe, mudando para a mesma identidade, aquela que a autoriza a se

unir ao príncipe no casamento e a mudar radicalmente de status.

O percurso de Cinderela é exemplar no plano denominado da veridicção em

semiótica:

- Inicialmente, Cinderela é o registro da falsidade: ela nem parece nada, ela não

é nem mesmo um sujeito, como nós vimos.

- Dissimulada pelas roupas boas, Cinderela está numa posição mentirosa, ela

parece o que ela não é, usurpando uma identidade que não é a sua.

- Cinderela, em seguida, adota a posição do segredo: ela é mais não parece, não

se manifesta, não é encontrada.

6

Page 7: 240

- Enfim, a prova da glorificação final, Cinderela atinge um status semiótico de

verdade: ela se torna, é o que ela parece.

Estas diferentes posições veredictórias, tudo ao longo do conto, podem tomar lugar

num modelo lógico central de Greimas, o quadrado semiótico:

verdade

ser parecer

segredo mentira

não-parecer não-ser

falsidade

- verdade = ser + parecer (posição 4, final)

- falsidade = não-ser + não-parecer (posição1, inicial)

- mentira = parece + não-ser(posição 2)

- segredo = ser + não-parecer (posição 3)

Nós permanecemos aqui sobre a dimensão narrativa do discurso do conto, ilustrando

a análise semiótica das três provas constituintes do esquema narrativo.

Uma das grandes descobertas semióticas em análise do discurso da literatura oral é a

demonstração de caráter muito geral, ou seja, talvez universal, desta organização

7

Page 8: 240

sintagmática da narrativa humana, cuja função, repetirmos de novo, é de dar senso à

vida, sem o qual o puro processo de crescimento/decrescimento seria apenas biológico.

Os trabalhos de Greimas e da Escola de Paris mostraram, por outro lado, que todo

discurso, e não somente os contos e os mitos, eram de uma narrativa componente,

incluindo os discursos menos figurativos, os mais abstratos, como os discursos

filosóficos, por exemplo.

Além disso, nosso próprio trabalho, fundando uma etossemiótica, a análise dos

comportamentos, da ação humana, reafirma que a narratividade é um componente

central, constituindo e regulando o comportamento humano.

Para completar funcionalmente esta apresentação rápida da semiótica de Greimas,

nós devemos acrescentar ao esquema narrativo, às provas sucessivas e aos actantes o

percurso gerativo da significação, do qual nós acrescentamos somente uma noção

parcial, mesmo que importante, aquele da dimensão narrativa.

Este modelo, como nós indicamos no começo, é um modelo estratificado, composto

de níveis distintos, repetindo o processo mesmo de clarificar a significação nos

discursos (verbais e não verbais).

8

Page 9: 240

Veja a representação que dão Greimas e Courtés no Sémiotique : dictionnaire

raisonné de la théorie du langage, tome 1, Hachette, Paris, 1979:

PERCURSO GERATIVO

componente sintáxico

componente semântico

Estruturas Semio-narrativas

nível SINTAXEprofundo FUNDAMEN- TAL_______________________ Nível de SINTAXE superfície NARRATIVA DE SUPERFICE

SEMÂNTIQUE FUNDAMENTAL

______________________ SEMÂNTIQUE NARRATIVA

Estruturas

discursivas

SINTAXE

DISCURSIVA

Discursivização

- actorialização

- temporalização

- espacialização

SEMÂNTIQUE

DISCURSIVA

Tematização

Figurativização

Este quadro, recapitulação esclarecedora da significação (seu «percurso gerativo»),

apresenta uma sucessão de níveis, desde o mais profundo e mais abstrato (sintaxe e

semântica fundamentais formalizadas pelo quadrado semiótico) até o mais superficial e

concreto, aquele dos discursos manifestos nas diferentes linguagens verbais e não

verbais.

A passagem de um nível a outro se faz graças à operação fundamental de conversão:

assim um valor profundo da dêixis positiva do quadrado (onde se inscrevem os valores

9

Page 10: 240

procurados e aqueles rejeitados) irá se investir num actante-objeto procurado por um

actante-sujeito (sintaxe e semântica narrativa de superfície). A sintaxe e a semântica

discursivas, graças à sustentação da enunciação (que vai colocar em discurso as

estruturas semio-narrativas de superfície), vão acrescentar uma valorização de

significação convertendo os actantes em atores, introduzindo o tempo e o espaço. A

operação semântica central é aquela da figurativização: assim um valor profundo, como

dizíamos, a /potência/ pode se tornar um actante-objeto procurado e investir-se

finalmente numa figura, um automóvel, por exemplo.

DA SEMIÓTICA À PSICOSSEMIÓTICA

Nós vamos agora brevemente reconstituir o percurso que interliga a semiótica dos

primeiros tempos (aquela ainda ligada ao corpus dos mitos e dos contos) à

psicossemiótica que se ocupa do comportamento global do sujeito.

Que fique bem claro que a psicossemiótica é um ramo, bem recente da semiótica,

aquela - A.J. Greimas muitas vezes evocou - é paradoxalmente proveniente de um

fracasso devido a toda sua dimensão heurística a uma notável confluência: decepção

pelas perspectivas limitadas da lexicologia restrita à unidade-palavra, e da semântica

lingüística fràstica, o fundador da Escola de Paris edificou a semiótica, como um ponto

sinérgico dos estudos folclóricos (V. Propp), da mitologia comparada (G. Dumézil), da

antropologia estrutural (Cl. Lévi-Strauss) e da lógica formal. Sempre e ainda o encontro,

mas com uma esquiva bem sucedida e da ilusão interdisciplinar e do ecletismo (veremos

de que maneira): nascimento de um novo projeto científico descortinando no horizonte

um vasto espaço a ser descoberto, um pouco a maneira do auguro delimitante no céu o

campo de futuros eventos.

A edificação da semiótica greimassiana se fez assim, depois da constatação de uma

dupla falha, aquela de uma lexicologia e de uma semântica respectivamente fechadas

nos limites exíguos da palavra, da frase. A abertura para a dimensão do discurso era

desde então necessária, na direção das pesquisas situadas fora da lingüística, instalada

há muito tempo, nos vastos domínios discursivos constituídos, por exemplo, pelos

mitos e contos.

10

Page 11: 240

O perigo deste ecletismo era então muito grande, era necessário delimitar com rigor

o objeto da empreitada semiótica, e tentar integrar os aportes destas diversas disciplinas

em um modelo teórico coerente, o que não era óbvio, mas que, no entanto foi realizado.

Como?

Graças à elaboração de uma teoria da significação (aparecendo desde a Semântica

Estrutural, 1966) que garantisse a homogeneidade e a coerência dos modelos e

procedimentos elaborados. A esta teoria da significação deu-se rapidamente  uma forma

gerativa (Du Sens, 1970) representando a criação da significação nos discursos, segundo

um percurso dito, precisamente, gerativo ( ver esquema anterior).

Mesmo se o termo percurso não aparece que tardiamente (no Dicionário, em 1979),

a concepção de um modelo disposto em níveis sucessivos é então bem anterior, e

permite a integração, com coerência, dos aportes fundamentais, entre outros, de V.

Propp e de Cl. Lévi-Strauss.

Assim, a análise lévi-estrausssiana do mito, num modelo acrônico, não respeitoso da

narratividade, seria ela representável em nível de estruturas profundas (semântica e

sintaxe fundamentais). No entanto, a análise propiana, estritamente sintagmática, da

consecução das funções nos contos, alimenta um outro nível de modelo, aquele da

sintaxe narrativa de superfície, a custa realmente, de um trabalho considerável de

metabolização.

Freud présemioticista

Paremos um pouco sobre esta representação de componentes empilhados do simples

ao complexo, do abstrato ao concreto. E sobre o leque da significação através destes

planos sucessivos, o que supõe tantas conversões dirigidas para a superfície figurativa

dos discursos.

O leitor familiarizado com a lingüística terá percebido aqui, imediatamente, a

referência implícita à gramática gerativa de N. Chomsky que, também, previa estruturas

profundas e estruturas superficiais, mas em um quadro limitado da geração de frases e

não de discursos.

Mas, é uma outra aproximação menos visível, que nós queríamos proceder, pois ela

esclarece a especificidade de nossa empreitada psicossemiótica.

11

Page 12: 240

Trata-se da referência a Freud, à Traumdeutung, brevemente evocado no Dicionário,

no artigo Psicossemiótica :

“... bem que a Traumdeutung de Freud seja um trabalho notável da análise semiótica

antes mesmo da semiótica...”

Comecemos por um primeiro traço, que reaparece “de cara”, a empreitada de Freud,

a do semioticista: este fato metodológico notável consistindo em situar a análise sob a

dimensão do discurso. Freud, como sabemos, está na busca do sentido global de um

todo discursivo, o sonho contado, “lexologia simbólica” que fixa uma “chave dos

sonhos”, um dicionário fixado sobre as criações oníricas, apegando-se exclusivamente

aos fragmentos discursivos.

E se Freud trabalha, de maneira muito sutil, sobre tal ou tal fragmento do sonho, está

sempre a serviço de uma demonstração global, para mostrar que o todo do sonho tem

um sentido permanente, aquele da realização de um desejo. O semioticista reconhece aí

uma unidade narrativa familiar: o sonho, o conto, o mito (e terapia) se reencontram aí,

na colocação em discurso da falta e de sua liquidação.

O segundo traço comum às duas tentativas, a construção necessária de níveis

distintos: Freud considera desde o início que é inútil permanecer no nível manifesto do

sonho (o relato imediato do indivíduo que sonha e que precisa prever um nível mais

profundo, construído para analisar, aquele do conteúdo latente, os pensamentos do

sonho). E é realmente o nível que permite alcançar a inteligibilidade do sonho que se

apresenta primeiramente, no nível manifesto, como enigmático.

Veja então que é colocado um modelo estratificado articulando dois níveis de

naturezas distintas, um perceptível diretamente e incompreensível, outro a construir e se

abrindo sobre o inteligível.

E Freud vai ainda mais longe quando indica “... que um novo trabalho se impõe [a

ele. Ele deve] investigar quais são as relações entre o conteúdo manifesto do sonho e

dos pensamentos latentes e examinar o processo pelo qual esses produziram aqueles...”.

A terceira semelhança como está colocado aqui o problema tão importante em

semiótica, a conversão: como a significação é transferida de um nível a outro, ao

mesmo tempo idêntico e diferente, complexificado, concretizado, figurativizado? Pois

estes pensamentos profundos do sonho estão bem contidos no sonho contado, portanto

diretamente interpretável.

Freud concluiu seu modelo gerativo do sonho estudando (num longo capítulo,

capital, aquele do Trabalho do sonho) os procedimentos de conversão que se percebe

12

Page 13: 240

da passagem do conteúdo latente para o conteúdo manifesto do sonho. Veja um de seus

comentários:

“ Está agora estabelecido que a condensação e o deslocamento são os dois fatores

essenciais que transformam o material dos pensamentos latentes do sonho em seu

conteúdo manifesto.”

E Freud mostra longamente, evocando numerosos exemplos, os quais são as

condições, sobre as determinações do deslocamento e a condensação para que eles

pudessem operar esta passagem entre conteúdo latente e conteúdo manifesto. Assim,

Freud trata da figuração, que supõe a figurabilidade (pensamos aqui na problemática

semiótica da figurativização), processo original que faz do sonho um rébus, produzindo

este fenômeno em que “uma expressão abstrata e descolorida dos pensamentos da lugar

a uma expressão ilustrada e concreta”.

Enfim, Freud faz o projeto de uma construção total de criação da significação no

sonho:

 “Eu bem sei qual seria o modo de demonstração o mais claro e decisivo: escolher um

sonho modelo, a partir disso a interpretação (...) e reunir os pensamentos do sonho

assim descobertos graças a eles e reconstruir o processo que foi aquele da formação do

sonho: eu teria assim completado a análise pela síntese.”

Revelação das diferenças

Essas notáveis semelhanças na tentativa, uma vez reconhecidas, é preciso agora

fazer aparecer as especificidades de uma e de outra abordagem. Para se fazer, nós

tomaremos como objeto, um exemplo próximo de Freud, aquele de um sonho contado

por uma jovem paciente – Béatrice – no decorrer da última sessão de sua terapia:

"Ontem, eu li a Bela e a Fera. A noite, eu sonhei com meu livro, que a Fera era um

príncipe horrível e que a Bela era uma pomba.

A história começou quando a família da pomba ficou pobre. Toda família tinha sido

vítima de uma praga lançada por uma velha bruxa. Eles a tinham encontrado no

bosque. Eles queriam construir na área dela; para ela, a floresta era sua propriedade,

então ela lançou uma praga à irmã primogênita, uma pomba, prisioneira de um

13

Page 14: 240

príncipe horrível que havia dito: “ você me deve uma pomba para que eu liberte a

outra.”

A bela pomba, uma irmã caçula, ela mesma vai para lá. O príncipe comparou as

duas pombas. Quando viu a pomba mais bela, ele soltou a outra. A irmã primogênita é

libertada.

A bela pomba fugiu uma vez para ver sua família, o pai, a mãe, um filho, a irmã

primogênita, mas ela deve voltar, senão o monstro morreria (sic). Ela voltou. A bela

pomba se transforma em princesa e o príncipe horrível em um belo príncipe.”

Deixando de lado, primeiramente as diferenças externas ao discurso em si, que serão

longamente explicitadas, pela própria natureza de opção terapêutica, o que não é no

caso a cura analítica clássica, nenhuma associação não é então solicitada, levando em

conta a globalidade do sentido do sonho, com relação ao conjunto da terapia, que, além

do mais termina (levando em conta que esta sessão seria a última).

Confrontando o discurso de Béatrice, o semioticista se limitará estritamente ao sonho

relatado e isso pela necessidade epistemológica (a preservação da homogeneidade de

seu discurso), sem a interferência das informações retidas pelo sujeito enunciador

(aquelas que permitem frequentemente a Freud interpretar o sonho sem a ajuda do

próprio sonho).

Além do mais, a empreitada semiótica não visa, como a analítica, alguma verdade

cuidadosamente dissimulada, omitida (para enganar a censura, indica Freud) no seio do

nível profundo, latente, mas a construção de um simulacro explicitando a maneira pela

qual a significação nasce no discurso.

A análise semiótica não produz então a descoberta da revelação de um segredo,

como o método analítico de interpretação do sonho. No entanto ela revela, pela

construção, o que não é, por definição, perceptível na superfície do discurso e existe, a

nossa vista, uma articulação possível entre os resultados produzidos pelas duas

disciplinas. Nós voltaremos a este assunto.

Mas o que fazer na lógica da abordagem semiótica do sonho de Béatrice?

Nós ilustraremos muito sucintamente o modelo teórico de Greimas (o percurso

gerativo), sem desenvolvermos, no entanto a análise detalhada, impraticável aqui.

Paradoxalmente, este texto não será considerado a priori como sonho, mas como

simples fragmento discursivo. Na análise, seguinte, demonstramos sua eventual

especificidade pela anexá-la num gênero discursivo preciso. Nós notaremos aqui, en

14

Page 15: 240

passant, que a tipologia não é, para o semioticista, uma dada classificação, mas a

construir. E o “sonho"  de Béatrice, depois da análise, aparece estruturalmente como

pertencendo ao gênero do mito de origem, que era dificilmente legível em função da

máscara (o “sonho”) disposto pelo anunciador.

Assim, a análise semiótica, como a de Freud, vai efetuar um mergulho da superfície

do discurso em direção à profundeza (as estruturas semio-narrativas) para emergir,

pelos planos ( assim aqueles das estruturas discursivas) em direção ao discurso

concreto, manifestado.

Mas a comparação para ai, por exemplo, as estruturas profundas do modelo

semiótico de Greimas não têm nem um pouco a natureza e a função do nível latente

freudiano, aquele dos pensamentos do sonho, do qual a censura bloqueia a manifestação

clara e consciente.

De fato, o semioticista considera o percurso gerativo da significação no discurso

como uma passagem, por planos sucessivos, do abstrato ao concreto e ao figurativo ( na

maioria dos discursos), do simples ao complexo, no modo de uma proliferação regrada,

de um benefício de sentido, a partir de operações lógico-semânticas profundas

elementares.

Estas operações mergulhadas na profundeza do texto são legíveis em superfície

graças à presença de transformações:

-o “casal” inicial, formado pela Fera (“um príncipe horrível”) e a Bela (“uma

pomba”), casal impossível de constituir parcerias que tudo separa, se transforma no fim

do texto em um casal de uma complementaridade ideal (somente a diferença sexual, que

permanece felizmente os distingue).

- a família, inicialmente sob a dependência total da “bruxa” (instância de poder

transcendente que denominaremos “destinador”), libera-se de seu jugo, graças à ação da

pomba caçula, o sujeito-herói do relato. E da mesma forma para o príncipe horrível, sem

dúvida vítima ele mesmo de uma maldição, carcereiro a serviço da “bruxa”. E que

atinge um novo status.

Estas transformações, bem visíveis, espetaculares, são o rastro, em superfície, de

operações profundas situadas em níveis diferentes:

1- Inicialmente nos níveis constituídos pelas ações dos personagens que, num nível

de abstração maior, tornam as performances ligadas aos actantes (papéis narrativos

abstratos). Nós já vimos o actante destinador (representado pela “bruxa”, figura do

Destino implacável que condena para a eternidade a uma falta permanente), o actante-

15

Page 16: 240

sujeito principal ( a pomba caçula) que se constitui prisioneira, que decide agir no lugar

de fugir), o actante-objeto perseguido pelo sujeito (o parceiro ao mesmo tempo idêntico

e complementar).

Pois a dinâmica do relato repousa (Proop mostrou desde 1928, na Morfologia do

conto) sob a tensão da aparição da falta e da liquidação. Ele também sublinhou que a

falta é consecutiva, na maior parte do tempo, no conto maravilhoso, a transgressão da

interdição. É o caso no texto de Béatrice, mesmo se a transgressão é apresentada como

involuntária, sendo o resultado na verdade desconhecido.

O programa narrativo da “construção de uma casa” se paga então por um fracasso

cruel, a privação da irmã caçula. Querendo preencher a “falta da casa”, a família abre

uma falta infinitamente mais grave e trágica, que a troca proposta pela Fera não pode

senão perpetuar.

Vemos então aqui desenha-se o plano das estruturas semio-narrativas, no qual os

programas narrativos se desencadeiam, e mesmo se inserem, segundo uma lógica

sintagmática (conclusão de Propp): interdição/ transgressão; falta/liquidação da falta.

Este nível particular é o da sintaxe e da semântica narrativa.

2- Em nível mais profundo, se analisamos semanticamente os objetos procurados

pelos sujeitos – todo relato é uma busca – encontramos os valores do texto, que

constituem o nível mais profundo, a armadura de base: é este nível que será

representado, formalizado pelo quadrado semiótico, modelo lógico que coloca na

relação lógico-semântica os valores em questão: relações de contrariedade, de

contradição e de implicação. Mas este modelo não é estático: ele faz ainda aparecer

um dinamismo que consiste em operações de afirmação de denegação de seus valores

(sintaxe e semântica fundamentais). Isso significa que, mesmo em nível de estruturas

profundas, é possível seguir as transformações do relato em termos lógico-semânticos:

/rico/ S1 S2 /pobre/

/não-pobre/ S2 S1 /não-rico/

16

Page 17: 240

Nós damos como exemplo o quadrado semiótico que representa visualmente a

articulação lógica de uma categoria semântica

rico vs(versus) pobre

O quadrado faz aparecer os tipos de relação seguintes:

- relação de contrariedade entre os termos S1 e S2

- relação de subcontrariedade entre os termos S1 e S2

- relação de contradição entre os termos S1 e S1, S2 e S2

- relação de implicação entre os termos S2 e S1, S1 e S2.

Constatamos que as operações de denegação e de asserção atribuem respectivamente

os eixos da contradição e da implicação.

Assim, um relato simples de enriquecimento consistirá, em nível das estruturas

profundas, na sucessão de duas operações lógico-semânticas:

- a denegação da /pobreza/ : S2 > S2 ;

- a asserção da /riqueza/ : S2 > S1.

Na medida onde os termos semânticos do quadrado são também os valores

axiologisados (a /riqueza/ pode ser um valor positivo – no conto tradicional – ou

negativo, assim, por exemplo, nos textos neo-testamentários), eles se associam em dois

dêixis:

- o dêixis positivo : S1 – S2

- o dêixis negativo : S2 – S1.

Esta axiologisação dos valores, repartidos em valores “positivos” e “negativos”,

atrativos e repulsivos pelos sujeitos postos em ação é manifestada no “sonho” de

Béatrice:

- a denegação dos seguintes valores: animalidade, feiúra, pobreza, baixo nível social,

e, em outro nível, a mesma operação sobre os valores de dependência e de diferença.

- a afirmação de valores logicamente contrários de humanidade, de beleza, de

riqueza, de elevação social; de liberdade e de identidade.

17

Page 18: 240

Estes valores e estas operações nos lembram a evidência de um conto bem

conhecido, Cinderela, evocada anteriormente, aconselha-se, na versão que nos dá

Béatrice da Bela e da Fera, às personagens destinadas a constituir um casal que estão as

duas na posição de Cinderela: é necessário, para um e para outro, transformar-se,

mesmo se esta transformação obrigatória não toca a ou ao outro com os mesmos

valores:

- a Fera, o Príncipe horrível, conjugando aos valores de nobreza, de riqueza, de

masculinidade deve adquirir os valores de humanidade e de beleza recusando então os

valores da animalidade e de feiúra.

- A Bela, conjugando a beleza, a feminilidade, deve adquirir humanidade, nobreza e

riqueza.

- Todos os dois, além disso, devem adquirir a liberdade (negar a dependência) e,

resultado de afirmações e denegações precedentes, estabelecer a identidade, às custas da

diferença.

Constatamos então, em nível profundo, a existência de uma reunião de valores.

3- Enfim, último plano do percurso da significação, os valores profundos, pondo em

jogo os programas narrativos realizados para que os actantes representem (encarnem),

em nível das estruturas discursivas, graças à enunciação, operação que então se

encarrega das estruturas semio-narrativas, investindo estas estruturas ainda muito

abstratas nos atores, nos espaços e nos tempos. A sintaxe e a semântica discursivas se

dividem em operações.

- a actorialização: o actante – sujeito abstrato, por exemplo, aparece sob os traços

figurativos de um ator, da “Bela”, uma pomba; trata-se de um “ela” e não de um “eu”;

enfim este ator é obtido pela “debreagem enunciva”: nesta operação, o enunciador

pressuposto pelo anúncio um não-eu que se manifesta como ele e ela; este tipo de

criação produz um discurso de onde o enunciador parece ausente, um discurso que

aparenta se recontar dele mesmo; enfim este ator particular é dotado de qualificações

específicas, cuja animalidade é pura invenção da Beatriz, pois este elemento não se

encontra no autor do conto A Bela e A Fera. O que é semelhante, evidentemente, para

todos os atores do relato, que são os actantes « vestidos » figurativamente.

18

Page 19: 240

- da espacialização: o espaço é em efeito organizada graças às localizações (a

floresta, a prisão, a família) e funciona assim como quadro aonde vem se inscrever os

programas de sintaxe narrativa.

- da temporalização: o tempo é organizado no modo de um “então” debreado do

enunciador, como o espaço era um “alhures”. A operação de criação não trás somente

sob a categoria da pessoa (negação do « eu » e produção de um « ela »), mas também

sob a categoria do tempo (negação de um « agora » por um « então »). Este então

contem um ponto-origem: o momento em que a família fica pobre. A partir deste ponto

pode-se construir um “antes” (as causas do empobrecimento) e um depois, que contem

o salvamento operado pela irmã caçula.

Ao lado destes procedimentos de “localização temporal”, se podemos dizer, é preciso

notar a aspectualização, operação que converte as performances da dimensão narrativa

em ações, processos, processus. Assim a morte de um personagem de relato pode ela

receber duas descrições, segundo o nível do modelo:

- em nível das estruturas narrativas, ela consistirá simplesmente na perda (disjunção),

por um actante, do objeto-valor/vida/ ;

- em nível das estruturas discursivas, a aspectualização converterá esta morte num

processo que começará, durará e terminará. Assim os numerosos presentes do indicativo

do texto de Béatrice apresentam as ações (os processos, diria o greimassiano) sob o

modo aspectual do não-terminado.

Sempre no nível de estruturas discursivas, ao lado da sintaxe e que foi brevemente

ilustrada, está a semântica discursava feita pela tematização e figurativização. Por

exemplo, no texto de Béatrice, um dos valores profundos, é aquele da “liberdade”. E

este valor vai constituir “a visão do percurso narrativo do sujeito” da pomba caçula.

Graças à espacialização, este percurso poderá ser tematizado como “evasão”. Mas a

tematização permanecendo abstrata, é necessária, no final das contas, para chegar ao

texto, prever uma conversão num percurso figurativo (uma fuga real, corporal, fora dos

limites da prisão) que faz justamente do discurso de Béatrice uma fala figurativa (por

oposição ao discurso filosófico clássico, por exemplo).

Resta bem entender a escolha de uma linguagem da manifestação para que esta

criação da significação encontre significantes: a linguagem oral, na ocorrência, mas

poderemos também recorrer à escrita, ao desenho, à mímica, etc.

19

Page 20: 240

BIBLIOGRAPHIE  :

BENVENISTE, E., Problèmes de linguistique générale, tomes 1 & 2, Gallimard, Paris,

1966, 1974.

BERTRAND, D., Précis de sémiotique littéraire, Nathan Université, Paris, 2000.

COQUET, J.-C., La Quête du sens, PUF, Paris, 1997.

COURTES, J., Le conte populaire : poétique et mythologie, PUF, Paris, 1986.

COURTES, J., La sémiotique du langage, Nathan Université, Paris, 2003.

DARRAULT-HARRIS, I., Analisis psicosemiotico de las Producciones de los juegos infantiles, Cuadernos, 2, Ed. Fundari, Buenos Aires, 2000, 44p.

(en coll. avec J.-P. Klein) Pour une psychiatrie de l’ellipse. Les aventures du sujet en création, postface de Paul Ricœur, nouvelle édition révisée et augmentée, PULIM, Limoges, 2007, 260 p.

Seminario de psicosemiotica, Cuadernos, 3, Ed. Fundari, Buenos Aires, 60 p.

(en coll. avec Sonia Grubits) :  Psicossemiotica na Construçao da Identidade Infantil. Um estudo da produção artística de crianças Guarani/Kaïowa (Approche psychosémiotique de la construction de l’identité infantile. Une étude des productions artistiques de l’ethnie guarani/kaïowá), Casa do Psicólogo, Livraria e Editora Ltda, Universidade Catolica Dom Bosco, Campo Grande (Brésil), 2000, 266 p.

(en coll. Avec S. Grubits) : « Transculturalité et représentation de l’espace chez les indiens guarani-kaïowa », Visio, vol.6, 2-3, pp. 45-54, Québec, 2001, Canada.

« La sémiotique du comportement », in Hénault, A. (Ed.), Questions de sémiotique, PUF, collection « Premier Cycle » , 2002, 758p., pp. 389-425.

« Semiotica y psicoanalisis. Un modelo etosemiotico de los comportamientos y discursos adolescentes », Topicos del seminario, 11, enero-junio 2004, 151-165.

FONTANILLE, J., Sémiotique du discours, PULIM, Limoges, 1998.

GREIMAS, A.-J., Sémantique structurale, Larousse, Paris, 1966.

20

Page 21: 240

GREIMAS, A.-J., Du sens, tomes 1 et 2, Seuil, Paris, 1970, 1983.

GREIMAS, A.-J., Maupassant : le sémiotique du texte, Seuil, Paris, 1976.

GREIMAS, A.-J. & COURTÉS, J., Sémiotique : dictionnaire raisonné de la théorie du

langage, Hachette, Paris, 1979.

GREIMAS, A.-J. & FONTANILLE, J., Sémiotique des passions, Seuil, Paris, 1991.

PROPP, V., Morphologie du conte, Seuil, Paris, 1965 & 1970.

21