211178866 Lucio Costa a Arquitetura Dos Jesuitas No Brasil (1)

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  • Fig. 1: Plpito da igreja jesutica de Emb, no Estado de So Paulo.127

    palavras-chave: arquitetura no Brasil; Companhia de Jesus;

    barroco no Brasil; arte no Brasil dos scu-

    los XVI XVIII; igrejas; traados urbansticos

    keywords: brazilian architecture;

    Society of Jesus; Baro-que in Brazil; brazilian

    art of the sixteenth to the eighteenth centu-

    ries; churches; urban design

    Lcio Costa

    A arquitetura dos jesutas no Brasil*

    Lcio Costa aborda neste artigo as singularidades das construes jesuticas no

    contexto brasileiro, defendendo que essas obras constituram verdadeiramente nossa

    antiguidade. O autor afirma que enquanto na Europa a Companhia se associava

    exuberncia das construes barrocas, aqui, suas intervenes eram marcadas por

    uma profunda sobriedade, no obstante deixando entrever um sabor popular, que

    desfigurava desde sempre os padres eruditos, configurando-se como experincias

    legtimas de recriaes. O autor no deixa de atentar para o fato de que no Brasil as

    caractersticas arquitetnicas empreendidas nas obras dos jesutas extrapolavam a esfera

    das edificaes religiosas, repetindo-se nas demais construes do traado urbano.

    Lcio Costa approaches, in this article, the singularities of the Jesuitical buildings in the

    Brazilian context, stating that such works constituted our true antiquity. The author

    argues that, if in Europe the religious order was associated with the exuberance of

    Baroque, here its interventions were marked by a deep sobriety, nonetheless revealing a

    popular flavor that has been, since the beginning, transfiguring the classical canons,

    and, thus, becoming legitimate experiences of reinvention. The author pays attention

    to the fact that, in Brazil, the architectural features in the Jesuitical works surpasses the

    religious sphere, appearing in other urban buildings.

  • ARS Ano 7 N 16 128

    O considervel acervo de obras de arte que os padres da Com-panhia de Jesus nos legaram, fruto de dois sculos de trabalho penoso e constante, poder no ser, a rigor, a contribuio maior, nem a mais rica, nem a mais bela, no conjunto dos monumentos de arte que nos ficaram do passado. , contudo, uma das mais significativas.

    A circunstncia de se ter iniciado a ao da Companhia em fins do Renascimento, quando os primeiros sintomas do barroco j se faziam sentir, e de se desenvolverem, depois, os dois movimentos paralelamente, levou alguns crticos a pretenderem englobar sob a denominao comum de arte jesuti-ca todas as manifestaes de arte religiosa dos sculos XVII e XVIII. Ora, as transformaes por que passou a arquitetura religiosa, juntamente com a civil, durante esse longo perodo, obedeceram a um processo evolutivo normal, de natureza, por assim dizer, fisiolgica: uma vez quebrado o tabu das frmulas neoclssicas renascentistas, gastas de tanto se repetirem, ela teria mesmo de percorrer independentemente da existncia ou no da Companhia de Jesus o caminho que efetivamente percorreu, at quando o barroco, por sua vez impossibilitado de renovao, teve de ceder o lugar nova atitude classicista e j o seu tanto acadmica de fins do sculo XVIII e comeo do XIX.

    Atribuir-se, pois, designao de arte jesutica uma to grande amplitude , evidentemente, incorreto. Mas no se trata tampouco de uma expresso furta-cor e vazia de sentido, como muitos supem, s porque as manifestaes de arte dos jesutas apresentam formas diversas, de acordo com as convenincias e recursos locais e com as caractersticas de estilo prprias de cada perodo. Apesar dessas diferenas, por vezes to sensveis, e mesmo das aparentes contradies que se podem observar, diferenas e contradies que se acentuam medida que as obras se vo afastando dos padres mais definidos de fins do sculo XVI e da primeira metade do s-culo XVII, apesar das mudanas de forma, das mudanas de material e das mudanas de tcnica, a personalidade inconfundvel dos padres, o esprito jesutico, vem sempre tona a marca, o cachet que identifica todas elas e as diferencia, primeira vista, das demais. E precisamente essa constante, que persiste sem embargo das acomodaes impostas pela experincia e pela moda ora perdida no conjunto da composio, ora escondida numa ou noutra particularidade dela essa presena irredutvel e acima de todas as modalidades de estilo porventura adotadas, que constitui, no fundo, o verdadeiro estilo dos padres da Companhia.

    Tratando-se de uma ordem nova e diferente, livre de compro-missos com as tradies monsticas medievais, e, por conseguinte, em situao particularmente favorvel para se deixar impregnar, logo de incio, do esprito moderno, ps-renascentista e barroco, natural que tenha sido mesmo assim.

    *Texto originalmente publicado na Revista do

    Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, Rio de Ja-

    neiro, n. 5, p. 105-169, 1941.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil129

    Se isto verdade com relao obra internacional dos jesutas em seu conjunto, para ns brasileiros, porm, a expresso estilo jesu-tico tem um sentido mais limitado e preciso.

    Com efeito, enquanto para os europeus, saturados de renascimen-to, o falar-se em estilo jesutico traz logo lembrana, alm das formas com-passadas iniciais, as manifestaes mais desenvoltas do barroco; enquanto para os hispano-americanos, onde a ao da Companhia prosseguiu ininter-ruptamente durante todo o sculo XVIII, a ideia da arte jesutica abrange o ciclo barroco completo; para ns, no Brasil, onde a atividade dos padres, j atenuada na primeira metade do sculo, foi definitivamente interrompida em 1759, as obras dos jesutas, ou pelo menos grande parte delas, representam o que temos de mais antigo. Consequentemente, quando se fala aqui em estilo jesutico, o que se quer significar, de preferncia, so as composies mais renascentistas, mais moderadas, regulares e frias, ainda imbudas do es-prito severo da Contra-Reforma.

    A ideia de coisa decadente, de aberrao, andou tanto tempo associada noo de arte barroca, que, ainda hoje, muita gente s ad-mira tais obras por condescendncia, quase por favor.

    Se algumas vezes os monumentos barrocos merecem realmente essa pecha de anomalias artsticas, a grande maioria deles inclusive daqueles em que o arrojo da concepo ou o delrio ornamental atingem o clmax constituda por autnticas obras de arte, que no resulta-ram de nenhum processo de degenerescncia, mas, pelo contrrio, de um processo legtimo de renovao.

    Com efeito, desde que os vrios elementos de que se compe cada uma das ordens gregas as colunas, o entablamento, os frontes perderam as suas caractersticas funcionais primitivas, isto , deixaram de constituir a prpria estrutura do edifcio, passando a representar, para os romanos, simplesmente elementos construtivos complementares e, para os artistas do Renascimento, apenas elementos de modenatura, in-dependentes das necessidades construtivas reais, nenhuma razo mais justificava o apego intransigente s frmulas convencionais e vazias de sentido ento em vigor. Se o fronto j no era mais to somente uma empena, a coluna um apoio, a arquitrave uma viga, mas simples formas plsticas de que os arquitetos se serviam para dar expresso e carter s construes por que no encarar de frente a questo e tratar cada um desses elementos como formas plsticas autnomas, criando-se assim novo alento de vida ao velho receiturio greco-romano bout de forces?

    No se trata, por conseguinte, de uma arte bastarda, como pre-tendem alguns, mas de uma nova concepo plstica, liberta dos pre-conceitos anteriores e fundada em princpios lgicos e sos.

  • ARS Ano 7 N 16 130

    Passando-se por alto sobre as interessantes teorias mais recentes que atribuem ao fenmeno barroco maior amplitude, definindo-o como ati-tude anticlssica permanente interpretao que, a par da vantagem de acentuar o que h de fundamental na maneira barroca de ver e sentir, apre-senta o grave inconveniente de estender desnecessariamente o campo de estudo, tornando-o difuso e complexo demais , deve-se aqui entender por barrocas, dentro do critrio histrico habitual, a maior parte das manifesta-es de arte compreendidas entre a ltima fase do Renascimento e o novo surto classicista de fins do sculo XVIII e, no Brasil, princpios do XIX.

    A expresso arte barroca no significa, assim, apenas um es-tilo. Ela abrange todo um sistema, verdadeira confederao de estilos uma commonwealth barroca, poder-se-ia dizer. Estilos perfeitamente diferenciados entre si, mas que mantm uma norma comum de conduta em relao aos preceitos e mdulos renascentistas.

    No caso particular brasileiro, na composio e talha dos retbulos de altar que se pode observar com nitidez essa extraordinria variedade de estilos peculiar ao barroco. Ser melhor, porm, comearmos pelo exame do aspecto mais propriamente arquitetnico e construtivo dos monumentos, para depois ento abordarmos a sua arquitetura interior.

    Em vez de uma classificao sistemtica por edifcios, por regies, ou rigorosamente cronolgica, as fotografias que acompanham este traba-lho foram distribudas conforme as afinidades de estilo ou de partido de composio. Esse critrio apresenta, sobre os demais, a vantagem de grifar livremente as caractersticas prprias de um determinado perodo, de uma determinada tcnica ou de uma determinada regio, o que no caso, pare-ceu prefervel. Vo tambm, fora do texto, numerosos pequenos desenhos esquemticos que no tm outro objetivo seno o de procurar esclarecer e precisar melhor o sentido das palavras, a fim de tornar tanto quanto possvel clara, mesmo aos leigos no assunto, a exposio da matria.

    Quando se estuda qualquer obra de arquitetura, importa ter pri-meiro em vista, alm das imposies do meio fsico e social, consideradas no seu sentido mais amplo, o programa, isto , quais as finalidades dela e as necessidades de natureza funcional a satisfazer; em seguida, a tcni-ca, quer dizer, os materiais e o sistema de construo adotados; depois, o partido, ou seja, de que maneira, com a utilizao desta tcnica, foram traduzidas, em termos de arquitetura, as determinaes daquele programa; finalmente, a comodulao e a modenatura, entendendo-se por isto as qualidades plsticas do monumento.

    O programa das construes jesuticas era relativamente simples. Pode ser dividido em trs partes, correspondendo cada uma destas a uma determinada utilizao: para o culto, a igreja com o coro e a sacristia; para o

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil131

    trabalho, as aulas e oficinas; para residncia, os cubculos, a enfermaria e mais dependncias de servio, alm da cerca, com horta e pomar.

    Sendo o objetivo da Companhia a doutrina e catequese, a igreja devia ser ampla, a fim de abrigar nmero sempre crescente de convertidos e curiosos e localizada, de preferncia, em frente a um espao aberto um terreiro onde o povo se pudesse reunir e andar livremente, no se preven-do, o mais das vezes, a construo ordenada de casas em volta dessa praa. que, ao contrrio do que se observa nas misses do sul, onde, como se ver depois, cada ncleo jesutico constitua por si mesmo o povo, isto , a cidade, os nossos principais colgios faziam parte de organizaes urbanas distintas, ou ento, quando sucedia a algum dos numerosos aldeamentos formados pelos padres, tomar corpo como foi o caso de So Paulo de Piratininga, por exemplo ele era logo repartido com as demais ordens reli-giosas e as autoridades civis. Assim, mais modesto e menos independente, o programa jesutico brasileiro no comportava os traados urbansticos inte-grais to caractersticos das misses da Provncia do Paraguai, das quais nos ficaram, por bem dizer, de quebra, os chamados Sete Povos das Misses.

    A conhecida descrio quinhentista do colgio construdo pelo arquiteto Francisco Dias, na Bahia, mostra claramente o programa se-guido e indica com mincia o contedo de cada um dos quartos da quadra e a respectiva orientao:

    Tem de novo feito um claustro de pedra e cal e no quarto da parte de Leste, fica a igreja e a sacristia; a igreja razovel, bem acabada, com seu coro, bastante por agora para a terra, e bem ornada de ricos ornamentos [...] O outro quarto da parte do Sul tem por cima a capela e enfermaria de boa grandura, por baixo despensa e adega. O quarto da parte do Poente tem 19 cmaras: nove por cima e por debaixo dez com as janelas grandes que fazem cruz nos corredores. O quarto da parte de Nordeste tem sete cmaras por cima e seis por debaixo: todas so forradas de cedro, e amplas mais que as de Coimbra, os portais de cantaria, e edifcio bem acomodado, exce-to que est por aperfeioar e forrar os corredores e guarnecer.

    J se deu impropriamente a essa expresso forradas de cedro, re-ferente s cmaras, o sentido de revestimento de paredes, guisa de boiserie, quando, na verdade, no pode seno significar a forrao comum dos tetos.

    Quanto tcnica, excludas as primeiras construes sumrias de cobertura vegetal, de pouca dura como diziam, ento, os padres houve uma primeira srie de edificaes ainda provisrias, estruturas de madeira e barro de mo, quase sempre assobradadas, com compartimentos forrados e cobertura de telha. As referncias a umas e outras, nas cartas, nas crnicas etc., so numerosas e muitas delas j pareciam velhas quando, de 1583 a 1585, o padre Cristvo de Gouveia as visitou. No eram, porm, tais cons-

  • ARS Ano 7 N 16 132

    trues to precrias como se tem dado a entender. Anchieta, por exemplo, referindo-se rea cultivada do primitivo Colgio de Olinda, diz o seguinte: ainda que grande est toda cercada de parede de tijolo...; e tem duas ruas de pilares de tijolo com parreira, acrescenta Ferno Cardim. Por onde tambm se conclui, fato este importante, que o emprego do tijolo em Pernambuco, ao contrrio do que se tem afirmado, anterior, de muito, ao domnio holands.

    As instrues de Roma com referncia a construes eram, porm, no sentido de se atender perpetuidade porque ainda que custe mais, sai mais barato. Aquelas estruturas provisrias foram, pois, substitudas, logo que as circunstncias o permitiram e muitas vezes ainda no primeiro sculo, por construes j de carter definitivo, de taipa de pilo ou de pedra e cal, dependendo a preferncia dos recursos e das convenincias locais. As duas tcnicas eram empregadas contemporaneamente. Onde houvesse bom bar-ro e pedra e cal fossem difceis de obter, recorria-se taipa de pilo. Em So Paulo, por exemplo, fora do litoral.

    Essas estruturas, em que as paredes so formadas por camadas su-cessivas de barro apiloado, distinguem-se das de alvenaria de pedra pelos contornos menos definidos e precisos e pelo aspecto acachapado, conforme se pode observar no oito da preciosa capelinha paulista de Santo Antnio, no Municpio de So Roque (fig. Ia). O espesso prancho, fazendo de verga sobre a janela, soluo peculiar s construes de terra socada, embora tambm empregada nas de alvenaria de pedra, quando o enquadramento dos vos no pudesse ser de cantaria, como ocorre, por exemplo, na porta travessa da igreja de Reritiba, hoje cidade de Anchieta, no Esprito Santo.

    Na capela to simptica de So Miguel, daquela mesma regio de So Paulo (fig. 17), o aspecto mais leve e gracioso resulta do altea-mento da nave com paredes de adobe, material muito empregado nas reformas e acrscimos do sculo XVIII, e escoramento interno de ma-deira. O feitio primitivo desta velha capela de 1622 contemporneo do portal e da pea valiosa que a grade de separao do presbitrio (fig. 17) seria, acrescida de alpendre, o das capelas tpicas de aldeia, como a de Carapicuba (fig. 12), construo tambm de taipa, embora poste-rior de um sculo, pois data de 1735, e onde ainda se conservam, na tera decorada da sacristia, vestgios de mo de obra indgena (fig. 12).

    Outro trao caracterstico imposto pela tcnica so os grandes beirais, precauo esta indispensvel j que no havia calhas para evitar que a gua despejada dos telhados fosse aos poucos desagre-gando o barro das paredes e comprometendo assim, com o tempo, a estabilidade do edifcio.

    Quanto s construes ditas de pedra e barro, como, por exemplo, a igreja do Colgio de So Paulo (fig. 28), representavam, de

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil133

    certo modo, um compromisso entre essa tcnica e a de pedra e cal.Ao contrrio do que se tem categoricamente afirmado, as edifica-

    es em alvenaria de pedra tanto religiosas como civis j eram bastante comuns na segunda metade do primeiro sculo. Foram vrias as constru-es jesuticas, igrejas e colgios, ento feitas com essa tcnica.

    Tom de Sousa, em sua carta de 1 de junho de 1553, descreve So Vicente com hua igreja muito honrrada e honrradas casas de pedra e call com um collegio dos Irmos de Jhesus, o que faz presumir fosse a igreja, ela tambm, de pedra e cal. Ora, essa igreja no podia ser outra seno a do prprio colgio, concluda no ano anterior e to boa que, no dizer do padre Nbrega, at em Portugal no possuam ainda ento os Jesutas outra melhor, porquanto a construo da nova matriz, edificada em substituio da primitiva, que o mar destruiu em 1542, s foi iniciada em 1559. E como, ainda hoje, a igreja do colgio atual matriz conser-va, tanto externa como internamente, as propores e o aspecto geral das igrejas mais antigas (fig. Ib), embora os vos e o fronto datem do sculo XVIII, e o revestimento, a cobertura, o coro etc. tenham sido recentemen-te desfigurados bem possvel que o seu arcabouo ainda seja o mesmo daquela primeira igreja referida pelo governador geral e assim descrita em carta do dia 20 de junho de 1552, pelo padre Nunes: a igreja a mais devota que h agora nesta costa. A capela mui bem forrada e formosa, e um tero da igreja, por causa dos altares, tambm forrado. Mormente se levarmos em conta que muito antes do coup de grce do aventureiro Cavendish, j So Vicente se estava despovoando e a decair e que ainda agora se conservam na igreja, conforme teremos ocasio de referir depois, quatro colunas e um sacrrio, trabalhados no estilo caracterstico dos al-tares jesuticos do primeiro perodo.

    A igreja de pedra e cal mandada construir por Mem de S, em Salvador, para o mosteiro de Jesus, com capela-mor forrada de pai-nis para se poder pintar de figuras com leo avendo bom pintor que o saiba fazer, j estava concluda havia cinco anos quando ali chegou, em 1577, o irmo arquiteto Francisco Dias, com a incumbncia de projetar e dirigir a construo do novo colgio, o mesmo descrito por Cardim, nove anos depois, todo de pedra e cal de ostra, que to boa como a de pedra de Portugal. Os cubculos so grandes, os portais de pedra, as portas dangelim forradas de cedro.

    Era tambm construo do primeiro sculo e de pedra e cal a igreja destruda com o arrasamento do morro do Castelo, nesta cidade, igreja inaugurada em 1588, em substituio da primitiva, e que ainda conservava, quando demolida demolio feita com desamor e sem os cuidados que no caso se impunham o aspecto original (fig. 2).

  • ARS Ano 7 N 16 134

    Nesta pgina, Fig. 2: Frontespcio da igreja do antigo Colgio do

    Rio de Janeiro e foto do sacrrio de um dos

    altares colaterais da mesma igreja.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil135

    Fig. 3: Sacrrio e porme-nores do retbulo do altar-

    mor da antiga igreja do Colgio do Rio de Janeiro

  • ARS Ano 7 N 16 136

    Fig. 4: Retbulo de um dos altares colaterais da

    antiga igreja do Colgio do Rio de Janeiro.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil137

    Fig. 5: Retbulo de um dos altares colaterais da

    antiga igreja da Graa, do antigo Colgio de Olinda e pormenor de um quadro de Franz Post, onde se v

    o estado em que ficou a igreja depois do incndio.

  • ARS Ano 7 N 16 138

    Finalmente, a nova igreja de N. Sra. da Graa, do Colgio de Olinda, cuja construo foi iniciada, em pedra e cal, logo aps a inspeo do visitador, j em 1592 estava coberta e pronta s faltava caiar, obedecendo o seu estilo, segundo informa o padre Pero Rodrigues, em 1597, traa de S. Roque.

    Essa igreja quinhentista tem sido dada como reduzida a cinzas pelos holandeses, considerando-se o edifcio atual uma reconstruo de fins do sculo XVII, destituda de maior interesse. Os estudos efetuados pelo Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional mostram, entretanto, de forma inequvoca, que essa igreja , de fato, a primitiva. Com efeito: 1) os altares colaterais so contemporneos da construo de fins do sculo XVI, conforme se poder constatar adiante, quando tratarmos com mais vagar da arquitetura interna das igrejas jesuticas; 2) o risco da igreja, tanto pelo seu interior como pela fachada, baseia-se, efetivamente, na traa da igreja de So Roque, da Casa Professa dos Jesutas, em Lisboa, cujo fron-tispcio a nica parte do prdio que sofreu com o terremoto foi, ao que parece, reconstrudo com aproveitamento do material primitivo (fig. Ic); 3) no panorama de Olinda, de Franz Post, aqui reproduzido (fig. 5), observa-se muito claramente que os danos causados pelo incndio da mesma forma que em Lisboa com o terremoto no foram de molde a desmantelar o edifcio. O fogo, ateado, de presumir-se, no altar-mor, que, este sim, desa-pareceu, teria passado ao forro e ao madeiramento da cobertura; da ao coro e s janelas da fachada principal, janelas cujos vos foram recompostos j em desacordo com o estilo da construo quinhentista. A preservao dos altares colaterais explica-se muito naturalmente, porquanto, pela disposio da planta, ficam isolados do altar-mor e resguardados ao fundo de dois arcos de alvenaria de pedra com ps-direitos e arquivoltas de cantaria (fig. 5).

    Esta igreja de Olinda, projetada pelo arquiteto jesuta Francisco Dias, um dos colaboradores de Filipe Tersi o arquiteto levado de Roma para Lisboa pelos jesutas, especialmente para construir a igreja de So Roque , pois, a nica igreja jesutica quinhentista, com pedigree, ainda existente no Brasil, uma vez que a autenticidade do arcabouo da de So Vicente, que de qualquer forma no ter filiao to definida, ainda no est, apesar dos indcios, comprovada1.

    Passemos agora a considerar, tanto no conjunto dos monumentos como nos seus pormenores, o partido, ou melhor, os partidos de preferncia adotados quando no, criados pelos arquitetos jesutas, ou arquitetos leigos a servio da Companhia de Jesus.

    O partido arquitetnico tradicionalmente empregado pelas ordens religiosas nos seus mosteiros e conventos, ou seja, o de dispor os vrios cor-pos da construo em quadra, como ento se dizia, formando-se assim um ou mais ptios, foi mantido tambm pelos jesutas. Convm, entretanto,

    1. J se achava em provas este trabalho, quando

    dona Maria de Lourdes Pontual funcionria do SPHAN, incumbida pelo diretor do Servio de es-tudar mais de perto esse

    caso da igreja da Graa , submeteu aprecia-o da Seo Tcnica a

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil139

    desde logo notar que, em consequncia talvez da vida ativa dos padres, ati-vidade esta decorrente do esprito mesmo da Companhia e da sua Regra, faltam quase sempre nesses ptios nos colgios brasileiros, pelo menos aquela atmosfera de sossego e de recolhimento, peculiar aos claustros dos conventos das demais ordens religiosas.

    Alm do antigo Colgio da Bahia, de que j tratamos, e do de Be-lm do Par, descrito por Bettendorf, so tambm dispostos em quadra, entre outros, o Colgio de Olinda, os do Esprito Santo e do Estado do Rio, o de Embu este com ptio bem modesto e, ainda, diferente de todos os demais pelo seu aspecto sombrio e pesado de praa-forte, o de Paranagu.

    Um dos quartos da quadra era sempre ocupado pela igreja, cujo frontispcio, mantido no alinhamento do quarto contguo, formava com este, em elevao, um plano s, correspondendo ao colgio uma linha horizontal contnua e ao corpo da igreja um fronto de empena, com a torre servindo de remate composio (fig. Id). Essa disposio, clara e coerente, era geral-mente adotada quando, de incio, no fazia parte do programa a construo de uma segunda torre. O bem composto conjunto de Reis Magos (fig. 18) uma das poucas excees a esta norma.

    Quando os planos previam a possibilidade de se vir a construir, fu-turamente, uma segunda torre, aquela que primeiro se fazia era a de ligao entre a ala do colgio correspondente ao terreiro e a igreja, como nos colgios do Castelo, no Rio de Janeiro e de So Paulo. Torres que, na maior parte das vezes, no foram concludas ou nem mesmo sequer iniciadas, ou que s se fizeram depois da expulso, muito mais tarde, sem se atender ento, de qual-quer forma, s caractersticas da construo primitiva; j no diremos quanto ao estilo o que, alis, nunca sucedia mas quanto ao equilbrio plstico da composio, como, por exemplo, na igreja j demolida do Colgio de Vitria (fig. Ie).

    No que se refere planta baixa das igrejas, o partido aqui adotado pelos jesutas foi, quase exclusivamente, o de uma s nave. Apenas em dois casos, a documentao at agora coligida mostra soluo diferente. Na igre-ja de So Pedro dAldeia (fig. 32), construo muito pura, tanto do ponto de vista tcnico como plstico, onde se v, na sua forma mais rudimentar, o partido de trs naves to apropriado s igrejas missioneiras (os esteios centrais, aliviando o peso da cobertura, permitem maior amplitude e da a possibilida de de abrigar um maior nmero de fiis) (fig. If) e na da antiga Reritiba. Nesta, a sustentao do madeiramento da cobertura e consequen-te separao do corpo da igreja em trs naves ou pseudonaves feita por duas ordens de arcadas, disposio que parece ser a original; no s porque as colunas apresentam caractersticas de trabalho muito antigo, como tam-bm porque, considerando-se a largura desusada do corpo da igreja, a pouca

    admirvel descrio da igreja de So Roque, de

    Lisboa, contida no tomo 2 da Cronica da Companhia

    de Jesus, de Baltazar Teles. Verifica-se, por esse

    valioso documento, que na igreja de Lisboa havia

    nichos laterais destinados aos confessionrios e

    encimados por janelas ou tribunas, semelhantes,

    portanto, aos existentes na igreja de Olinda, nichos

    que foram mais tarde (Baltazar Teles escreve

    antes de 1642) desman-chados, embora alguns a julgassem dantes por

    mais engraada para se abrirem no lugar

    deles mais quatro capelas profundas, naturalmente j por influncia da igreja

    de So Vicente de Fora, ento em construo. Consequentemente, a

    igreja da Graa correspon-de ainda feio original da nova igreja de So Ro-que o que mais acentua

    a importncia histrica desse monumento , ao passo que a do Salvador j corresponde verso

    ampliada seiscentista.

  • ARS Ano 7 N 16 140

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil141

    Fig. 6: Retbulo do altar-mor da igreja de

    So Loureno dos ndios, em Niteri.

    Fig. 7: Castiais da primiti-va banqueta do altar-mor

    da igreja de So Loureno dos ndios.

    Fig. 8: Sacrrio e uma das colunas do retbulo do

    altar-mor da igreja do antigo Colgio de

    So Vicente.

  • ARS Ano 7 N 16 142

    espessura das paredes dos oites parece indicar no terem sido feitas para resistirem, sozinhas, aos esforos laterais resultantes do sistema de armao adotado na cobertura (fig. Ig). O que, alis, no seria de estranhar tratan-do-se, ao que parece, de uma igreja seiscentista porquanto as trs naves da velha Matriz de So Sebastio, no antigo morro do Castelo, aqui no Rio, embora j estivessem reformadas por ocasio da demolio, correspondiam, ainda descrio da igreja quinhentista de Mem de S: Fiz a S de trs naves, tambm telhada e bem consertada.

    O partido geral de uma s nave inclui, no caso das igrejas jesu-ticas brasileiras, plantas de quatro tipos diferentes.

    Primeiro o tipo mais singelo, que teria sido o das capelas rudi-mentares dos primeiros tempos e no qual a capela-mor e a nave consti-tuem um mesmo corpo de construo dividido convencionalmente em duas partes por um arco cruzeiro (fig. IIa). Essa forma primria, hoje muito rara, a que vamos encontrar na j referida capela de Santo An-tnio, do segundo sculo, que, apesar da invocao e do fato de ser uma capela particular, no deixa contudo de ser, tambm, uma capela de inspirao e de gosto jesuticos, conforme teremos ocasio de verificar depois. E ainda, possivelmente, na de Voturuna, de que s resta a parte correspondente capela-mor, cujo retbulo uma verso de sabor po-pular dos nobilssimos retbulos jesuticos do primeiro perodo , por essa mesma razo, uma pea de valor excepcional (fig. 13).

    Depois o partido to generalizado, prprio das igrejas mais an-tigas e daquelas que, embora relativamente recentes, obedeceram a um programa mais modesto de construo: igrejas onde aparecem perfeita-mente diferenciadas a nave e a capela-mor propriamente dita, de largu-ra e p-direito menores (fig. IIb), partido claro e franco de composio, que depois se desenvolve em Minas Gerais.

    O terceiro grupo rene as igrejas cujo traado corresponde a uma acomodao entre essa forma singela mais geral e o partido j o seu tanto complexo das igrejas maiores do sculo XVII. Nessas igrejas, mantm-se ain-da os trs altares usuais do modelo anterior, com a particularidade, porm, de se criarem, tambm para os colaterais, pequenas capelas apropriadas, de maior ou menor profundidade, como no caso da igreja de Olinda, onde tais capelas formam conjunto com a capela-mor (fig. IIc). Nesta igreja, os dois nichos localizados acima dos arcos dessas capelas (fig. IId) parecem acrs-cimos ao traado primitivo, contemporneos da reforma do segundo sculo e, possivelmente, criados com o objetivo de nele se colocarem as imagens de Santo Incio e So Francisco Xavier, j ento canonizados, porquanto esse mesmo tema ocorre por vrias vezes em igrejas jesuticas desse perodo. Va-mos, por exemplo, encontr-lo na importante igreja do Seminrio de Belm

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil143

    de Cachoeira, onde os nichos so em nmero de quatro, dois de cada lado do altar-mor (fig. IIe), e tambm em igrejinhas modestas, como a de Vinhais, no Maranho (fig. IIf). Na igreja de Socorro, em Sergipe, os padres adotaram o partido, bem mais frequente, de dispor as duas capelas no sentido transver-sal, repetindo-se, assim, a velha norma de planta em cruz latina (fig. IIg). O arco de uma dessas capelas, em cantaria e ricamente ornamentado, parece nico, no seu estilo, em todo o pas (fig. 31).

    Na do Colgio de So Lus, no Maranho, o partido o mesmo, embora, pelas propores, esta igreja talvez se enquadrasse melhor entre as do ltimo tipo o das igrejas maiores seiscentistas, j influenciadas pelo padro de planta ento corrente da igreja jesutica romana de Ges. Perten-cem ou pertenceram a esta categoria, alm da igreja do Colgio do Salvador, espcie de matriz da Companhia, as de So Paulo de Piratininga e de Belm do Par. Em vez dos trs altares caso mais geral nas igrejas do tipo anterior contam-se aqui numerosos altares dispostos em capelas laterais, sendo que as duas mais prximas da capela-mor faziam-se quase sempre mais largas e mais altas, quando no tambm mais profundas, com aquele mesmo objetivo de marcar, em planta, o cruzeiro (fig. IIh).

    Consideremos a seguir o aspecto propriamente plstico e de modenatura desses monumentos.

    Na construo de suas igrejas os padres, embora acompanhassem, como os demais religiosos, a evoluo normal do estilo de cada poca, atua-ram em numerosos casos como autnticos renovadores, apoiando e adotan-do as concepes artsticas mais modernas e avanadas; no somente com o barroco ainda classicista da primeira fase da Contra-Reforma, quando, fora da Itlia, as formas ornadas do primeiro Renascimento ainda prevale-ciam, como depois, na poca de maior eloquncia do estilo barroco, com as inovaes, nem sempre aceitveis, de alguns artistas, mesmo jesutas.

    Correspondendo grande parte das construes jesuticas brasilei-ras definitivas ao perodo do domnio espanhol, quando a personalidade obstinada e sombria de Filipe II j se desenhava, com tamanha nitidez, na arquitetura austera e despojada, quase penitente, do seu palcio-convento desmedido nada mais natural que as construes da Companhia, conheci-das as ligaes dela com o monarca, refletissem, nessa fase melhor que nas demais, tambm aqui, pelas suas propores e modenatura, o gosto severo e frio prprio do estilo de Herrera, tanto mais que as dificuldades locais impu-nham mesmo nossa arquitetura um certo comedimento.

    Essas afinidades no se limitaram, porm, a influncias de natu-reza assim to vaga: tiveram uma origem bem mais precisa. que Filipe II encontrara tambm em Portugal, na pessoa de Terzi o arquiteto dos jesu-tas um artista da nova escola, capaz de lhe traduzir, de forma condigna,

  • ARS Ano 7 N 16 144

    Fig. 9: Retbulo da capela dos Santos Mrtires

    e das Virgens Mrtires, na igreja do antigo Colgio

    da Bahia.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil145

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  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil147

    tanto a altivez e orgulho congnitos, como o puro ideal de paladino tenaz da Contra-Reforma. Confiou, efetivamente, o rei a esse artista, as obras dos Paos da Ribeira e aps, em 1590, o seu visto s famosas plantas da igreja de So Vicente de Fora, na mesma cidade de Lisboa.

    Ora, foi precisamente esse estilo sbrio e de formas geomtricas definidas, de Herrera em Madri e de Terzi em Lisboa, estilo ali, ento, ultra-moderno e que destoava violentamente da atmosfera local, saturada ainda de reminiscncias manuelinas e platerescas, que veio para o Brasil quinhen-tista, trazido de primeira mo novo em folha pelo arquiteto Francisco Dias, colaborador de Terzi na construo de So Roque, conforme ficou dito anteriormente. Estilo cujas caractersticas aristocrticas ainda se podem ob-servar nos trs arcos de pedra, o da capela-mor e os colaterais, da igreja do antigo Colgio de Olinda, infelizmente recobertos com obra de talha mais recente, e que, at h pouco, tambm aqui no Rio podamos apreciar no elegante portal da igreja do Castelo (figs. 5 e 2).

    A presena de um arquiteto profissional de sua categoria no Brasil daquele tempo foi sem dvida decisiva, no s no sentido de fixar, de forma definitiva e logo de incio, as caractersticas de estilo prprias da nossa arquitetura jesutica, como tambm no de influir nas constru-es contemporneas no jesuticas.

    Alis, a prpria igreja seiscentista atual do Colgio da Bahia, cuja planta obedece igualmente de So Roque, deve ser baseada em risco de autoria dele, porquanto, vindo ao Brasil especialmente para projetar e dirigir a construo daquele colgio, e j encontrando, fei-ta de novo por Mem de S para os padres, uma igreja relativamente modesta, que ficou formando um dos corpos da quadra desse colgio definitivo isto provisoriamente, pois que era apenas grande bastante por agora por certo ter includo no seu plano de conjunto, como no podia deixar de o fazer, o risco da nova igreja, aquela que deveria ser, juntamente com o colgio, definitiva. Tanto assim que em 1604 j se estava providenciando a obteno de material para a construo dessa nova igreja que ainda no havia sido iniciada, e que ele, Francisco Dias, ficou definitivamente no Brasil, onde morreu aos noventa anos de idade, em 1632, aqui no Rio de Janeiro. S o benemrito jesuta, Dr. Se-rafim Leite, no desenvolvimento da sua obra notvel, poder esclarecer-nos convenientemente essa importante questo2.

    Torna-se ainda necessrio observar que a composio da fachada dessa igreja baiana denota ter havido, da parte do arquiteto que a projetou ou dos que o sucederam durante o andamento das obras uma certa hesitao na escolha do partido definitivo. Hesitao resultante do desejo, alis mal sucedido, de conciliar a soluo tradicional de duas torres, com o

    2. vista das informaes do padre Baltazar Teles,

    referidas na nota anterior, conclui-se no ter sido

    ainda esse primeiro risco, que presumimos houves-se feito o irmo Francisco Dias para a igreja baiana,

    o da igreja atual e sim outro, mais conforme com

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    traado erudito em voga desde que Vignola e Giacomo della Porta, e depois Maderna, nas igrejas de Jesus e de Santa Susana, respectivamente, fixaram o novo padro de frontispcio sem torre, geralmente conhecido por jesuti-co (fig. IIIa). Assim, por exemplo, (fig. IIIb) enquanto as volutas da empena desenvolvem-se livremente (1), o fronto que remata o corpo central ficou reduzido a propores exguas (2) e as torres, vistas de frente, mal cabem na fachada (3), parecendo mais sineiras que propriamente torres, a ponto de o conjunto reproduzir, feita abstrao dos pormenores e da escala monu-mental, a silhueta das pequenas capelas de duas sineiras, comuns tanto na metrpole como na colnia (fig. IIIc).

    Muito curioso tambm o confronto desse frontispcio com o da igreja de Santo Alexandre, em Belm do Par as duas igrejas jesuticas do Brasil cujas torres foram concludas, de uma s vez, pelos prprios padres da Companhia. Aqui, porm, as volutas descomunais transbordam por sobre as torres atarracadas (fig. IIId) e, embora ambas as igrejas respeitem, em suas linhas gerais, o mesmo partido de com-posio compacta, aquilo que na do Salvador medida, apuro e distin-o, no Par se traduz de uma forma tosca e meio brbara, com certos elementos to fora de escala que chegam mesmo a parecer brutais. O que, entretanto, no deixa de ter a sua beleza, assim como um autntico fruto da terra, em contraste com a arquitetura mais recente da cidade, tanto religiosa como civil, arquitetura j da segunda metade de setecen-tos, toda ela requintada e cem por cento reinol.

    Alis, o que tem confundido, neste particular, os nossos crticos, a ponto de passarem, at hoje, despercebidos os poucos vestgios ainda exis-tentes de monumentos e retbulos dos ltimos decnios do primeiro sculo e comeo do de seiscentos, que as obras desse perodo apresentam geral-mente propores elegantes, mais sobre o alto (fig. IIi), e um apuro maior no desenho e acabamento, o que no lhes d aparncia de coisa muito velha. Podero mesmo parecer, primeira vista, obras relativamente recentes, em todo caso, mais modernas que outras reconhecidamente da segunda me-tade de seiscentos ou de comeo do sculo XVIII, cujas propores sobre o quadrado consequentemente mais pesadas (fig. IIj) e o aspecto tosco da ornamentao, impressionam como coisa primitiva.

    Assim, embora no se possa fixar, a rigor, um critrio cronolgico uniforme para a apreciao das nossas obras de arte jesuticas, pode-se con-tudo esclarecer, desde logo, que esse ar excessivamente primitivo , muitas vezes, indcio de trabalho menos antigo j do segundo perodo.

    Anotemos ainda, antes de concluir, mais algumas das particula-ridades das igrejas jesuticas aqui documentadas.

    Quando a cobertura das torres era feita com tijolo como nas igrejas

    aquela traa de So Roque que lhe era familiar. O que,

    ainda assim, no exclui a hiptese de esse mesmo

    arquiteto ter elaborado, mais tarde e j ento

    convenientemente infor-mado do novo partido de composio em voga na

    Europa, um segundo risco projeto que teria servido de base para a construo

    definitiva.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil149

    do Esprito Santo e do Estado do Rio: Reritiba, Reis Magos, Santiago, So Pedro dAldeia, Campos, Itagua etc. ficava sempre mostra, pelo lado de fora, o acabamento natural do extradorso caiado, em forma de meia laranja, indicando-se assim, sem rebuos, a boa influncia da tcnica morabe (fig. IIIe). Quando era feita com pedra e cal, como na igreja carioca do Castelo, prevalecia geralmente o acabamento em forma de pirmide (fig. IIIf). Na igreja de So Paulo, conservou-se esse mesmo acabamento agudo, mas com telhado, por se tratar ali de uma estrutura de pedra e barro a exigir proteo adequada (fig. IIIg). Na curiosa torre sineira, to atarracada, da capelinha do Municpio de So Roque, a cobertura tambm de telha e no mesmo estilo, porque as-senta sobre esteios de madeira, independentes do corpo inferior da torre, que de pedra (fig. IIIh). Soluo esta transferida depois, pelos prprios paulistas, para as capelas e igrejas matrizes de barro e madeira, de Minas Gerais.

    S mais adiante, j em pleno sculo XVIII, aparece, nesses coroa-mentos de torre, o perfil bulboso, alis, como simples corolrio barroco e no por um artifcio de inspirao oriental, como tantos supem (fig. IIIi).

    Apesar dos exemplos importantes de Salvador, de Belm do Par, de So Lus do Maranho, e mais alguns outros, de igrejas j da primeira metade do sculo XVIII, o fronto reto (fig. IIIj) o que melhor caracteriza as igrejas jesuticas brasileiras, pois que elas no alcanaram o pleno de-senvolvimento do barroco em meados e na segunda metade de setecentos. O tipo de transio entre essa forma regular e a forma livre barroca o que apresenta volutas rampantes sobrepostas ao fronto clssico primitivo, mantendo-se assim, apesar da nova silhueta, a rigidez da empena retilnea, como nos mostra a igreja de So Pedro dAldeia (fig. IIIk).

    No caso do Seminrio de Belm de Cachoeira, o fronto capricho-so e bem lanado data j da segunda metade do sculo XVIII (fig. IIIl). O consolo existente em frente ao culo do tmpano, e que teria servido de su-porte a alguma antiga imagem, o nico vestgio do fronto reto primitivo, contemporneo da porta e dos demais elementos seiscentistas ainda exis-tentes. Enquanto em So Paulo, o fronto mais baixo do que a empena (fig. 28) era mesmo seiscentista, correspondendo ao ponto do telhado primitivo, cujo alteamento fora feito anteriormente a 1810, data em que j aparece alteado, na planta da imperial cidade de So Paulo, levantada pelo Capito de Engenheiros Rufino Jos Felizardo da Costa.

    Quanto s portadas, tanto se encontram frontispcios de uma porta s, como conjuntos formados por cinco vos, partido que, depois da constru-o da igreja nova do Salvador, repetiu-se no Recife, em Belm do Par e em numerosas igrejas de menor interesse, j de meados do sculo XVIII, inclu-sive na grande igreja inacabada do Castelo, com portais de mrmore de Lioz, enquanto a igreja velha tinha apenas a porta central, com uma cercadura de

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  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil151

    granito do pas, de risco severo, ainda com fronto inteiro, de fins do sculo XVI. Tambm, nas igrejas menos pretensiosas do sculo seguinte, era comum a porta nica, como na do antigo Colgio de Vitria, j com fronto partido, de acordo com o estilo da poca, e nas demais igrejas jesuticas do Rio de Janeiro e do Esprito Santo, ou ento, numa tcnica diferente, o modesto mas importante portal de madeira, com inscrio de 1622, da capela paulista de So Miguel, que ainda conserva a porta e a ferragem primitivas (fig. 17).

    Convm observar, entretanto, que no desenho de todas essas portadas, com exceo talvez das de Santo Alexandre, prevalece a linha elegante e o pormenor apurado e que so muitas vezes delicadamente ornamentadas, como ocorre com as da igreja do Esprito Santo, no Reci-fe (fig. 31), prejudicadas pelas portas de um estilo muito mais moderno, que j no condiz com a da cantaria de 1689. Decorao classicista que vamos encontrar em outras portadas jesuticas, como, por exemplo, na bela cercadura de pedra do chamado Engenho Retiro, em Sergipe (fig. 31), ou ainda, aberta na madeira, com boa tcnica e muito gosto, no portal da capelinha do Municpio de So Roque, em So Paulo, conser-vado em bom estado porque a capela era alpendrada (fig. 31). E tudo sempre em completo desacordo com a ideia errnea, mas to genera-lizada, dos que pensam descobrir no aspecto mais pesado, no menor apuro e na ausncia de ornamentao dos elementos arquitetnicos, a caracterstica das obras de procedncia jesutica.

    Importa, ainda, chamarmos ateno aqui para a interessante casa de residncia dos padres no antigo engenho hoje denominado do Colgio, em Sergipe, que, pelas particularidades do seu estilo, exemplar talvez ni-co no pas e, por esse motivo, est sendo estudada pela Seo Tcnica do SPHAN, juntamente com a arquitetura civil (fig. 32). Estudo em que se analisa tambm a parte que coube, de fato, aos jesutas, no propriamente na criao de uma nova tcnica ou de solues novas, mas na divulgao pelo interior do pas, atravs dos seus colgios e aldeias, das solues e das tcnicas de uso corrente, apreendidas primeiro por eles do prprio elemento civil e ajustadas, depois, s necessidades particulares do seu programa, tam-bm em grande parte residencial.

    Da mesma forma no que se refere a obras de natureza espe-cial, como, por exemplo, a to conhecida ponte-represa jesutica no rio Guandu, em Santa Cruz, obras que, conquanto de iniciativa de certo modo privada, foram, em razo do seu carter utilitrio, includas, como as demais pontes, aquedutos, galerias subterrneas e chafarizes, num estudo parte sobre obras pblicas.

    V-se pelo exposto que a arquitetura da Companhia, no Brasil, foi quase sempre inimiga dos derramamentos plsticos, despretensiosa, muitas

    Na pgina anterior, Fig. 10: Igreja do antigo

    Colgio da Bahia. Porme-nor do retbulo

    que teria pertencido capela-mor da igreja

    construda por Mem de S para os padres da

    Companhia.

  • ARS Ano 7 N 16 152

    vezes pobre, obedecendo, em suas linhas gerais, a uns tantos padres uni-formes. E se devssemos resumir, numa s palavra, qual o trao marcante da arquitetura dos padres, diramos que foi a sobriedade. Sobriedade presente tambm nos retbulos, mesmo os mais ricos. Sobriedade que se impe, ape-sar do gongorismo da obra de talha de um determinado perodo, como nos plpitos esplndidos de Santo Alexandre. Sobriedade que ainda souberam manter no mais pretensioso de seus templos, a atual S da Bahia.

    Passemos a apreciar, agora, a composio das igrejas jesuticas do ponto de vista de seus elementos de arquitetura interior, principalmente no que diz respeito s obras de talha. Antes, porm, vejamos qual foi, em suas linhas gerais, a evoluo do risco dos nossos retbulos, considerados in-dependentemente das caractersticas prprias ou das preferncias de cada comunidade religiosa, de cada irmandade ou de cada regio.

    Do primeiro estilo o mais caracterizadamente jesutico at ao estilo mineiro da ltima fase, cuja obra-prima a capela-mor da igreja de So Francisco de Assis, em Ouro Preto, estilo apenas alcanado pelos pa-dres, as transformaes sucessivas repetem, curiosamente e na mesma ca-dncia, as vrias etapas que percorreu o conjunto da arte europeia, na sua evoluo da Idade Clssica Renascena, atravs dos estilos medievais romnico e gtico.

    Assim, por exemplo, encontramos de incio os belssimos retbulos, to bem compostos e eruditos, de fins do sculo XVI e primeiros decnios do sculo XVI, a nossa antiguidade retbulos que, conquanto ainda no sejam propriamente barrocos, tambm j no so mais exclusivamente obras do Renascimento. Pertencem fase de transio em que os traos renascentistas e barrocos se justapem e confundem. Ps-renascentistas ou protobarrocas, as obras dessa fase formam, entre os dois movimentos, uma espcie de terra de ningum. Pareceu-nos assim mais razovel, uma vez que a nossa arte colonial se enquadra dentro do ciclo barroco, considerar-mos aqui tais obras como um comeo desse ciclo, de preferncia a classific-las como sobras ou resto de renascena (fig. IVa).

    Depois do perodo inseguro, confuso e sombrio de lutas e invases, va-mos encontrar retbulos de um estilo completamente diferente dos primeiros, tanto na composio como na talha, e cujo partido de colunas torsas repetidas em planos reentrantes, com arquivoltas concntricas, recorda muito de perto o das velhas portadas romnicas, apresentando ambos, apesar da distncia no tem-po, a mesma mistura de tradio romana e de inspirao oriental. O que talvez se explique por serem esses retbulos mais comumente franciscanos ordem que tem a seu cargo, desde longa data, a guarda do Santo Sepulcro.

    Esse estilo, rico, severo e bonito, generalizou-se e, muito embora tenha perdurado at comeos de setecentos, pode ser considerado o estilo

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil153

    seiscentista por excelncia. Inclusive da Companhia de Jesus (fig. IVb).J para fins do sculo, porm, a trama regular que serve de fundo

    opulenta ornamentao desses retbulos vai perdendo a sua conciso. As colunas se afastam para dar lugar s imagens, os arcos se abrem para rece-ber o dossel sobre o trono; multiplicam-se os anjos, as volutas, os flores e as linhas mestras do desenho quase que se perdem, levadas pelo mpeto e pela profuso de formas que irrompem, uma a uma, por toda parte (fig. IVc).

    Ainda se conservam magnficos exemplares desse estilo, carac-terstico principalmente, da primeira metade do sculo XVIII.

    Estilo tambm das grandes matrizes mineiras, e j tratado pela nova gerao modernista da segunda metade daquele sculo, isto , dos artistas que ergueram as igrejas de irmandades como antigo e de gosto gtico, conforme se v, entre tantos outros documentos, na importante memria feita pelo 2 vereador da Cmara de Mariana, em 1790, e que, transcrita na sempre citada biografia de Antnio Francisco Lisboa, de Rodrigo Bretas, passou mui-to tempo despercebida, tendo mesmo confundido certos crticos.

    Esse novo etilo, moderno, como ento se dizia, data da segun-da metade do sculo XVIII, e j no quase mais, portanto, contem-porneo dos jesutas. Corresponde a um verdadeiro renascimento, com a volta s composies mais claras e arrumadas da primeira poca. O lindo desenho e a primorosa talha, aliviados de tanto ornato e de tanto ouro, desenvolvem-se desafogadamente, elegantes, cheios de inveno e de graa, levando o capricho e a sutileza dos achados muitas vezes at ao requinte, seno mesmo ao enfado (fig. IVd).

    Do exposto, resulta que se pode razoavelmente falar de um clas-sicismo barroco, de um romanicismo e de um goticismo barrocos e, finalmente, de um renascentismo barroco, sem pretender significar com essas expresses semelhana formal, embora ela de fato exista, algumas vezes, nas linhas gerais ou num ou noutro pormenor, seno uma concor-dncia no processo evolutivo muito curiosa e, principalmente, muito til para permitir s pessoas menos familiarizadas com o assunto apreenderem mais facilmente o que h de fundamental nessa evoluo.

    Seja como for no se considerando o estilo neoclssico que su-cedeu, na primeira metade do sculo XIX, dinastia barroca, os subestilos de transio, as variantes de carter local ou a maneira prpria de alguns artistas mais dotados , podem-se distribuir as manifestaes de arte barroca no Brasil, no que se refere talha e composio dos retbulos, por quatro pe-rodos essenciais, correspondendo a cada um deles um estilo determinado:

    1. fins do sculo XVI e primeira metade do sculo XVII;2. meados e segunda metade do sculo XVII e princpios do

    sculo XVIII;

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    Fig. 11: Retbulo que teria pertencido

    igreja construda por Mem de S para os

    jesutas e corpo inferior do retbulo da capela dos Santos Mrtires,

    ambos na igreja do antigo Colgio da Bahia.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil155

    Fig. 12: Frontispcio, retbulo e tera decorada

    da capela da antiga aldeia de Carapicuba, no

    Estado de So Paulo.

  • ARS Ano 7 N 16 156

    Fig. 13: Retbulo da antiga capela de Nossa

    Senhora da Conceio em Voturuna, no Estado de

    So Paulo.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil157

    3. primeira metade e meados do sculo XVIII;4. segunda metade do sculo XVIII e princpios do sculo XIX.Delimitado desta forma o terreno, passemos ento ao exame

    das obras que pertencem s igrejas da Companhia.Graas s pesquisas efetuadas pelo Servio do Patrimnio His-

    trico e Artstico Nacional, foram identificados e devidamente classifi-cados vrios retbulos jesuticos do primeiro perodo, figurando aqui, pela primeira vez, a respectiva documentao fotogrfica.

    O valor dessas peas como raridade e o seu interesse histrico e artstico so de tal ordem que muito de se estranhar acessveis como se encontram no tivessem elas ainda despertado a ateno dos nossos entendidos em arte colonial.

    A relao dos retbulos a seguinte: 1) os que pertencem aos trs altares da igreja do antigo Colgio desta cidade, hoje guardados na igreja da Misericrdia, salvos ltima hora de total destruio, quando do desmonte do morro do Castelo, graas oportuna interveno do ento provedor da Santa Casa, Dr. Miguel Joaquim Ribeiro de Carvalho, e do engenheiro da mesma casa, Dr. Miguel Calmon Du Pin e Almeida; acham-se em perfeito estado de conservao, muito embora no retbulo do altar-mor faltem o arco central e o corpo inferior correspondente ao riqussimo sacrrio e tenham sido discretamente repassados, todos eles, com retoques de pintura e verniz (figs. 3 e 4); 2) o do altar-mor da igreja de So Loureno dos ndios, em Niteri, infelizmente dourado e pintado de novo (fig. 6), mas ainda com a imagem do padroeiro, conservando-se tambm, procedentes dessa mes-ma igreja, conquanto guardados na matriz de igual invocao, oito belssi-mos castiais de prata, quatro deles da primitiva banqueta e cinzelados no mesmo estilo do retbulo (fig. 7), dois grandes tocheiros de madeira e uma valiosa cadeira de braos, com assento e encosto de sola lavrada mate-rial carinhosa e incansavelmente defendido pelo amigo de So Loureno, Sr. Araribia Cardoso, velho e apaixonado pesquisador da histria local, h pouco falecido; 3) quatro colunas e um sacrrio do antigo Colgio de So Vicente, colunas posteriormente dispostas de forma a receber o atual dossel (fig. 8); 4) os dos altares colaterais da igreja da Graa, do antigo Colgio de Olinda, que, apesar de um tanto desfigurados, ainda conservam intactos os elementos identificadores essenciais (fig. 5); 5) dois retbulos os das capelas dos Santos Mrtires e das Virgens Mrtires na igreja do antigo Colgio da Bahia e de que trataremos depois, juntamente com a arquitetura interior desse importante monumento (figs. 9 e 10).

    Todos esses retbulos apresentam as mesmas caractersticas: o trata-mento especial dos capitis corntios, um tanto repolhudos (fig. Va); os fustes estriados de preferncia diagonalmente, vendo-se no tero inferior, ornamenta-

  • ARS Ano 7 N 16 158

    o ainda ao gosto dos grotteschi da primeira Renascena (fig. Vb), ou, ento, cartelas de bordos recortados em tiras que se entrelaam e enroscam (fig. Vc) (motivo muito em voga por toda parte naquela poca, inclusive nos desenhos de arte grfica, como, por exemplo, o da capa da Gramtica de Anchieta, editada em 1595), (fig. Vd); as pinturas enquadradas acima do entablamento, entre mainis recamados de folhas de acanto ou de escamas (fig. V e & f); as volutas de desenho caprichoso (fig. Vg); os pinculos marcando a prumada dos fustes (fig. Vh); os dentculos, os vulos, as caneluras. E tudo, neles, tratado exata-mente no mesmo estilo rico, elegante e bem articulado, dos altares portugueses e espanhis de fins do sculo XVI e comeo de seiscentos, quando a experincia plateresca, banida das fachadas, refugiou-se nas obras internas de talha, con-forme se poder facilmente verificar confrontando-os com os retbulos reco-nhecidamente filipinos, reproduzidos na obra de Alfredo Guimares, Mobilirio artstico portugus, volume II.

    O desenho dessas peas, afinal uma transcrio em madeira do de-senho das portadas quinhentistas espanholas lavradas como prata, baseia ainda, como estas, a sua composio na dos altares sepulcrais do quattrocento italiano, dos quais se contam, entre os mais conhecidos, os de Andrea Sanso-vino, artista que viveu em Portugal no ltimo decnio do sculo XV, a servio de D. Joo II, para quem teria executado, segundo Vasari, entre muitos outros trabalhos de que se no conhecem vestgios, tambm um altar.

    Quanto procedncia daqueles nossos retbulos, parece mais veros-smil os da igreja do Castelo, pelo menos que, muito embora fabricados com madeira do pas, tivessem vindos j prontos da metrpole, pois a anlise dessa madeira, feita pelo Instituto Tecnolgico de So Paulo, revelou tratar-se de freij ou louro amarelo, espcie vegetal abundante na bacia amaznica e, segundo nos consta, desconhecida aqui. Teria sido, na verdade, inadmissvel que, dispondo mo de material de primeira ordem, fossem os padres do Colgio do Rio de Janeiro recorrer importao de madeiras de to longe. Ao passo que a hiptese de os altares terem sido feitos em Portugal fica for-talecida quando se considera que esse comrcio era feito, ento, diretamen-te do extremo norte do pas com a metrpole, utilizando-se os reinis dessa madeira inclusive na execuo de obras de marcenaria e de talha destinadas aos trpicos, pois que a experincia j desaconselhara o emprego das espcies europeias para esse fim.

    Se essas peas, de estilo apurado e de aspecto to scholar verda-deiramente jesuticas parecem com efeito proceder de Portugal, outro tan-to no se poder dizer das interessantssimas verses populares seiscentistas desses mesmos retbulos, agora identificadas pelo SPHAN em So Paulo, Estado que tem fama de ser pobre em arte colonial, mas que ainda conserva despreocupadamente como joias de famlia, sem valor os dois nicos

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil159

    exemplares do gnero existentes no pas. So eles os dois retbulos das capelas j referidas de N. Sra. da Conceio, de Voturuna (fig. 13) e de Santo Antnio, esta no Municpio de So Roque (fig. 16), inventariadas ambas pelo Sr. Mario de Andrade para o SPHAN, desde 1937, mas que s recentemente puderam ser examinadas mais de perto pela Seo Tcnica deste Servio, at ento empenhada no estudo de material de outras regies.

    Na composio do de Voturuna, foi simplesmente aproveitado o desenho dos frontes de coroamento dos retbulos originais, transferindo-se engenhosamente o nicho, do corpo inferior do retbulo, corpo este no caso inexistente, para a parte central do fronto (fig. Vi). Os pormenores de per-filatura e de ornamentao tambm reproduzem, de memria, os ornatos e perfis dos modelos portugueses, vendo-se, porm, entre as frutas amarradas por uma faixa motivo europeu ento na moda e j encontrado no fron-to do retbulo da igreja de So Loureno dos ndios e que encontraremos ainda, mais tarde, nos vestgios da cantaria da igreja de Santo ngelo das Misses, no Rio Grande do Sul, dois minsculos abacaxis (fig. 14).

    O aspecto tosco e vigoroso desta pea, verdadeiramente singu-lar, contrasta, apesar da identidade do estilo, com a maneira mais deli-cada e graciosa em que foi tratado o retbulo do altar-mor da capelinha do Municpio de So Roque, observando-se aqui, no desenvolvimento geral do risco, liberdades maiores, como essa de se ampliar desmedida-mente o clssico painel central que, das propores modestas usuais, passou a dominar toda a composio, desfigurando assim a ideia funda-mental do desenho primitivo e conferindo ao conjunto uma aparncia bem diferente da do seu modelo original (fig. Vj).

    Convm, no entanto, desde logo reconhecer que no so sempre as obras academicamente perfeitas, dentro dos cnones greco-romanos, as que, de fato, maior valor plstico possuem. As obras de sabor popular, des-figurando a seu modo as relaes modulares dos padres eruditos, criam, muitas vezes, relaes plsticas novas e imprevistas, cheias de espontanei-dade e de esprito de inveno, o que eventualmente as coloca em plano artisticamente superior ao das obras muito bem comportadas, dentro das regras do estilo e do bon ton, mas vazias de seiva criadora e de sentido plstico real. No so, pois, estes retbulos paulistas simples cpias inbeis mas, muito pelo contrrio, legtimas recriaes, podendo ser considerados, juntamente com os esplndidos e originalssimos tocheiros antropomorfos que lhes pertencem (fig. 15) e com a banca de comunho de So Miguel (fig. 17b), como das mais antigas e autnticas expresses conhecidas de arte brasileira, em contraposio maior parte das obras luso-brasileiras dessa poca, que se deveriam melhor dizer portuguesas do Brasil.

    Interessa ainda assinalarmos aqui a existncia nessa capela de San-

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    to Antnio de uma velha pintura reputada ininteligvel em virtude do seu estado precrio de conservao, mas que , para ns, no obstante, docu-mento do maior interesse, pois representa um altar cujas colunas, nichos, fronto e mais pormenores do retbulo so em tudo semelhantes aos da-queles altares mais antigos das igrejas do Castelo, de So Loureno, de So Vicente ou da Graa (fig. Vk). Esse retbulo, provavelmente da primitiva capela existente no corpo da casa, teria ento servido de modelo ao retbulo seiscentista atual e, possivelmente em mau estado de conservao, por ser talvez fabricado com madeira europeia, ter sido assim retratado para se guardar a lembrana dele na nova capela.

    Tambm podem ser includos nesse primeiro grupo os dois pe-quenos e elegantes oratrios com acabamento de azul e ouro, existentes na sacristia da capela de So Miguel (fig. Vm), no mesmo Estado de So Paulo, e ainda, conquanto j do comeo do sculo XVIII, o pequeno altar to singelo da igreja de Carapicuba (fig. 12).

    Antes de passarmos a tratar dos retbulos do segundo perodo, in-dicaremos aqui dois exemplares desse novo grupo, onde ainda se observam vestgios do estilo anterior: o do altar-mor da igreja dos Reis Magos, no Esprito Santo (fig. 18), com curiosssimo fronto de risco caprichoso e painel pinta-do, reminiscncia dos retbulos mais antigos, que o alteamento do quadro, originariamente colocado entre as colunas, ainda mais acentua (fig. Vo), e os dos altares da igreja do convento franciscano de Cabo Frio, os quais, a julgar-se pelo estilo, parecem ter sido trabalhados por algum artista familiarizado com o gosto e as preferncias dos jesutas, pois, alm de muitos outros indcios, ainda aparecem, arrematando a composio da talha, de encontro ao forro apaine-lado da capela-mor, volutas no gnero das que, embora de uso generalizado nos fins do sculo XVI e na primeira metade do XVII, caracterizam melhor, no Brasil, os primeiros retbulos da Companhia (fig. Vn).

    Entre os principais exemplares do novo estilo, devem-se des-tacar: o esplndido retbulo da capela-mor da igreja do antigo Colgio de So Lus, no Maranho (fig. 27), de composio clara e perfeita, apenas prejudicada pelo novo camarim, j do comeo do sculo XIX; o elegante retbulo do altar-mor da igreja do Colgio de Campos (fig. 27), hoje completamente desfigurado, mas cujo traado obedecia, em suas linhas gerais, a um desenho semelhante, e que as referncias contidas no Santurio Mariano confirmam datar do sculo XVII; e, ainda, dois dos altares laterais da antiga igreja do Colgio de So Paulo (fig. 28), pe-as de grande valor que, infelizmente, os responsveis pela sua guarda no souberam conservar. muito interessante o confronto destes lti-mos retbulos com os dois pequenos dos altares laterais da muito citada capela paulista de Santo Antnio, no Municpio de So Roque, onde,

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil161

    como ali, se reproduz, em baixo-relevo, maneira de friso, o motivo simblico ornamental da videira, j ento incorporado ao estilo barro-co, mas geralmente tratado em alto-relevo ao redor dos fustes torcidos das colunas salomnicas (fig. 30 e VIa). Resultou dessa interpretao menos erudita do velho tema bizantino-romnico, como que uma volta tcnica dos modelos originais, parecendo, assim, estes nossos dois pequenos retbulos seiscentistas, coisa fabricada no dcimo sculo.

    Outros importantes exemplos desse perodo vamos encontrar nos dois notveis altares colaterais de Embu, mais antigos que o altar-mor e que ainda ostentam a guia dos Filipes (fig. 29). Embora esse em-blema, que tambm se encontra no plpito da capelinha de So Roque, tenha sido algumas vezes empregado, posteriormente Restaurao, como simples motivo ornamental, possvel que, no caso em apreo, ainda corresponda, efetivamente, ao domnio espanhol aos ltimos anos, pois, pelo estilo, os retbulos no podem ser muito anteriores a 1640.

    Exemplar belssimo de transio entre o estilo desse perodo e o seguinte o que se pode admirar no que ainda resta da magnfica igreja de Geru, em Sergipe, infelizmente dilapidada por um padre insensato , obra mestia e vigorosa que se enquadra no importante surto de arte ocorrido de fins do sculo XVIII a meados de setecentos, naquela regio, e que constitui, a bem dizer, uma escola parte (fig. 33). O partido do desenho dos fustes das colunas robustas procede ainda, de certo modo, conquanto diferente, daquele que vimos nos fustes decorados do grande retbulo baiano (fig. VIb), mas os goticismos a que j nos referimos, no comeo deste estudo, repontam aqui de forma inequvoca por toda parte. Observem-se, por exem-plo, as estranhas figuras que dividem em painis, de acordo com as normas usuais do estilo, o espao da empena compreendido entre o arco cruzeiro e o forro, ou seja, o frontispcio da capela-mor (fig. VIc). Observem-se, tam-bm, o aparecimento dos culs-de-lampe entre as colunas para receberem as imagens, dantes colocadas dentro de nichos (fig. VId).

    No antigo altar-mor da igreja do Colgio de So Paulo, o dossel rompendo a arquivolta, sobre o camarim trao caracterstico do etilo do terceiro perodo parece um acrscimo ao risco primitivo (fig. VIe). Ao pas-so que o esplndido retbulo do altar-mor de Embu j pode ser considera-do obra da segunda fase desse novo perodo (figs. 24 a 36). O reticulado preciso, formado pela prumada dos mainis e colunas e pela moldurao horizontal das cornijas, das arquitraves e dos plintos (fig. VIf), permitiu que a talha cobrisse a parede de um extremo a outro, como um tapete, sem pre-juzo de uma boa amarrao, como dizemos na gria profissional.

    So tambm do terceiro perodo, alm do altar do Santssimo na

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    igreja da Bahia, de que trataremos depois, os numerosos altares e principal-mente os plpitos de Santo Alexandre, em Belm do Par. Na composio e na talha de uns e de outros, observa-se o mesmo acento brbaro referido anteriormente, quando aludimos arquitetura dessa igreja. Mas, apesar da tcnica grosseira, de que resultou, por vezes, um aspecto quase grotesco, apesar da falta de escala e de meia-tinta, o arrojo plstico e o sentido apai-xonado da concepo dos plpitos revelam um tal fervor, tamanho arreba-tamento, que a sua anlise no cabe dentro dos limites comedidos de uma crtica objetiva. A impetuosidade com que as formas irrompem pela parede acima tem mesmo qualquer coisa de telrico, fazendo lembrar esculturas hindus talhadas sobre encosta de montanha (fig. 34).

    Pode-se ajuizar melhor das caractersticas, sob certos aspectos an-tijesuticos, dessas peas confrontando-as com os demais plpitos jesuticos, como, por exemplo, o de Embu, talvez o mais belo (fig. 1), ou com outros, mais modestos, simples caixas emolduradas sem sequer a taa de pedra ou madeira, ou mesmo com o elegantssimo plpito, munido de refletor de som, da igreja do Castelo, ou ento, ainda dentro desse mesmo partido, mas em mrmore, com os plpitos de ar europeu, da Bahia.

    Entretanto, num dos altares laterais da igreja do antigo Co-lgio de Campos que a presena do nosso ndio se manifesta, no apenas na maneira mais ou menos tosca de fazer ou de interpretar os modelos europeus usuais, como o caso de Belm do Par, ou mesmo, em parte, os de Voturuna, So Roque, Reis Magos e Geru, mas no pr-prio risco e na inveno do pormenor, seno mesmo at na tcnica da talha (fig. 35). Essa obra brasileira, infelizmente mutilada em alguns trechos faltam as duas volutas do fronto e, possivelmente, uma cornija de remate ao coroamento data tambm do sculo XVIII, mas da segunda metade, e assim no ter sido, ao que supomos, contem-pornea dos padres.

    O bonito altar da sacristia da igreja baiana de Jaguaribe, valori-zado em virtude do contraste com o estilo severo e mais antigo do arcaz e dos armrios, e com o fundo branco da parede caiada, representa a transio entre esse terceiro perodo e o ltimo aquele que os jesutas apenas alcanaram e cujos exemplares mais tpicos so os dois retbu-los das capelas de Santo Incio e de So Francisco Xavier, na igreja do antigo Colgio do Salvador (fig. 37). Antes, porm, de consider-los, tratemos dos demais altares dessa igreja que, por ter sido a catedral dos jesutas na Provncia do Brasil, merece um mais detido exame.

    Importa primeiramente apurar se teriam sido aproveitados na igreja seiscentista atual alguns dos retbulos dos trs altares admirados, em 1583, pelo padre Ferno Cardim.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil165

    O exame das caractersticas de estilo, prprias a cada um dos retbulos das dezesseis capelas dessa igreja, mostra muito claramente que os dois mais prximos da entrada (ambos de purssimo desenho e de composio semelhante, seno mesmo, sob certos aspectos, mais renas-centistas que a dos primeiros altares aqui estudados) so os mais antigos e tambm que foram adaptados ao p-direito altssimo das capelas onde esto colocados (fig. 9), pois o estilo do corpo inferior dos retbulos (fig. 21) j no o mesmo da parte superior mais antiga (fig. 10), e sim con-temporneo da talha das extensas nesgas existentes nas extremidades da parede de fundo da capela-mor, onde se veem os mesmos motivos e a mesma tcnica (figs. 20 e VIg).

    Ora, se no foram feitos especialmente para a atual igreja e se so mais antigos que todos os seus demais altares seiscentistas, de onde poderiam eles ter vindo seno mesmo da igreja primitiva?

    Ocorre, ainda, outra curiosa circunstncia em relao aos be-lssimos painis do corpo inferior desses retbulos, de tanto maior in-teresse quanto neles aparecem representados, pela primeira vez, cajus em substituio s clssicas peras, indcio de terem sido trabalhados no pas (fig. 21). que, embora simulem painis fixos, so, na verdade, de abrir, encobrindo dois preciosssimos relicrios, um dos Santos Mrti-res, outro das Virgens Mrtires, com quinze nichos cada um e outras tantas imagens, meios corpos de barro cozido. Muito embora o estilo da parte interna, isto , dos nichos, parea, de certo modo, contemporneo do estilo do corpo superior dos retbulos, evidente que no fazia parte integrante dele, pois a diviso dos nichos fez-se arbitrariamente, sem se levar na devida conta a prumada das pilastras que decompem aquele corpo em trs partes distintas (fig. VIh).

    Conta, de fato, o padre Cardim, a propsito do Colgio da Bahia, que, por determinao do visitador, se fez ali, em 1585, um reli-crio assim descrito:

    grande, tem dezesseis armrios com suas portas de vidraa, e no meio um grande, para a imagem de Nossa Senhora de S. Lucas; os armrios so todos forrados dentro de cetim carmesim, portas da banda de dentro so forradas de sedas de vrias cores, damasco, veludo, cetim etc. A madeira de pau de cheiro de Jacarand, e outras madeiras de preo, de vrias cores de tal obra que se avaliou, somente das mos, em cem cruzados. F-lo um irmo da casa, insigne oficial. Est assentado na capela dos irmos.

    Por onde se v que no se tratava, ainda, do atual relicrio. Como, porm, no Colgio do Rio, foi colocado na capela domstica dos padres, em fins do primeiro sculo ou, em todo caso, antes de 1609 o Dr. Serafim

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  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil167

    Leite, S. J. infelizmente no precisou a data , um relicrio de mrmore branco, com elegantes embutidos pretos de jacarand e doze esttuas de santos, tendo cada qual, incrustada no peito, uma caixinha de cristal com a respectiva relquia, imagens portanto semelhantes s que nos interessam , de presumir-se que, depois da visita de Cristvo de Gouveia, tambm Bahia outras relquias tivessem chegado, j ento com os meios corpos de terracota, resultando da a necessidade de se fazerem novos relicrios de maiores propores. E possvel que os dois altares mais antigos da sacris-tia, cujo mrmore se mostra inexplicavelmente to gasto, abrigassem inicial-mente, ainda talvez na igreja de Mem de S, os meios corpos com as suas relquias, at que fossem, uns e outros, transferidos para a nova igreja onde tiveram cada qual o seu destino.

    Quanto aos demais altares dessa igreja baiana, podem ser classifi-cados, de acordo com as particularidades de estilo dos respectivos retbu-los, na seguinte ordem cronolgica: 1) o altar-mor (fig. 20), sendo que a parte superior do sacrrio espcie de sobrado (fig. 19) parece ter sido aproveitada de outro sacrrio, pois tanto a sua cornija, friso e arquitrave, como o embasamento, tornejam ligeiramente, uma segunda vez, depois do tornejamento maior correspondente s colunas geminadas, indcio de ter havido ali um fechamento semelhante ao da parte de baixo (fig. VIi); ali-s, esse segundo corpo encobre um grande arco destinado evidentemente a enquadrar a cpula do sacrrio propriamente dito, pois ainda se veem, no tmpanos desse arco, por detrs do referido sobrado, meio escondidas, as clssicas cabeas aladas de querubins (fig. 19 e VIg); 2) os altares de So Francisco de Borja (fig. 25) e de So Pedro (fig. 25), observando-se que a ornamentao corrida dos painis laterais do corpo inferior desses retbulos foi mutilada no intuito de se abrir lugar para os culs de lampe com imagem e dossel (fig VIj); 3) o altar de So Jos (fig. 25), no qual embora ainda se mantenha o mesmo partido de composio em painis e, de um modo ge-ral, o mesmo desenho (fig. VIk), a talha j perdeu no corpo superior aquela fatura mida e delicada, de modelado baixo, com aparncias de coisa cin-zelada, que se observa na talha dos retbulos mais antigos, adquirindo, pelo contrrio, maior largueza e volume, j no estilo generoso mais do agrado dos franciscanos; tambm aqui a ornamentao dos painis do corpo inferior foi arrancada, recebendo eles inovaes grotescas, do mesmo gnero das que foram introduzidas no nicho, onde apenas se conservam, isolados, uns pou-cos elementos primitivos, como as cabeas de querubins, nos tmpanos, e as impostas da arquivolta (fig. VIm); acresce, ainda, que a pintura do painel central tambm recente e de qualidade inferior; 4) os quatro altares, de N. Sra. das Dores, N. Sra. da Conceio, Santa rsula (fig. 26) e Santa Ana (fig. 26), de fins do sculo XVII ou comeo de setecentos, vazados no estilo

    Fig. 14: Pormenor do retbulo da capela

    de Voturuna.

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    opulento e vigoroso caracterstico da talha dessa poca, que j no condiz com o estilo da igreja, e nos quais pode-se observar o abandono do partido de subdividir o retbulo horizontalmente em dois corpos, pelo de tratar-lhe a altura com uma nica ordem de colunas (fig. VIl); 5) o altar colateral do Santssimo Sacramento, da primeira metade de setecentos, povoado de um nmero extraordinrio de anjos, uns sustentando, sem grande esforo, o pesado dossel, outros, maiores, ocupando o lugar das colunas, sem contudo assumirem atitudes de caritide; infelizmente o frontal, o sacrrio e a gra-de de fechamento da capela destoam, pela vulgaridade do seu aspecto, do sentido triunfal que predomina na composio; 6) finalmente, de meados do sculo XVIII j de poca prxima da expulso os dois retbulos, an-teriormente citados, das capelas laterais dedicadas a Santo Incio de Loiola e So Francisco Xavier (fig. 37), cujos entablamentos acompanham extra-vagantemente o arredondado dos fustes das colunas salomnicas (fig. VIn), onde j no mais se enroscam a vinha e os pelicanos, mas to somente rosas, margaridas e palmas (fig. VIo); a silhueta ondulante das imagens, a doura quase excessiva dos gestos e da expresso, a elegncia sofisticada da com-

    Fig. 15: Tocheiros antro-pomorfos, pertencentes, o

    primeiro capela de Voturuna e os dois ltimos de

    So Roque.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil169

    posio, no conjunto e nos pormenores, no possuem ainda o equilbrio, a pureza de formas e a graa envolvente de tantas outras obras do mesmo gnero, existentes no pas. Convm entretanto acentuarmos que o estilo destes retbulos, apesar de to diferente do dos retbulos do primeiro per-odo, tem com ele umas tantas afinidades, como, por exemplo, o modelado baixo da talha, certas delicadezas de tcnica e o apuro bastante precioso e convencional do acabamento.

    Apesar de toda essa prolixidade e riqueza, no se pode conside-rar a igreja do antigo Colgio da Bahia uma obra perfeitamente reali-zada do ponto de vista plstico. Concepo talvez pretensiosa demais, ento, para o meio, nota-se, pela maneira por que foi tratado o seu cor-po, internamente, um certo constrangimento, certa pose, decorrente, ao que parece, da preocupao de manter atitude formalizada e solene.

    Faltou-lhe, assim, um pouco daquela elegncia fcil, daquele ar mais natural e ao mesmo tempo to nobre e to digno que caracteriza a belssima sacristia (fig. 22), j descrita, em 1698, pelo Sieur Froger,

    Fig. 16: Retbulo do altar-mor da capela de Santo

    Antonio, no municpio de So Roque, em So Paulo.

  • ARS Ano 7 N 16 170

    Fig. 17: Frontispcio, verga datada de 1622 e banca de

    comunho da capela de So Miguel, em So Paulo.

    Na outra pgina, Fig. 18: Frontispcio, pormenor

    da torre e retbulo do altar-mor da igreja

    do antigo Colgio dos Reis Magos, atual

    Nova Almeida, no Esprito Santo.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil171

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    Fig. 19: Portada e Sa-crrio do altar-mor da

    igreja do antigo Colgio da Bahia.

    Na outra pgina, fig. 20: Capela-mor da igreja do antigo Colgio da Bahia.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil173

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    com os seus arcazes marchetados de tartaruga, feitos na prpria Bahia, as suas pinturas as pequenas, sobre cobre, de procedncia italiana e os seus trs altares de mrmore portugus. Falta-lhe tambm, apesar da uniformidade do imponente forro em caixotes e do revestimento todo de cantaria, certa unidade. Os vrios retbulos, de estilos diferentes, que guarnecem as capelas laterais, no se vo somando at atingirem aque-le efeito sinfnico total prprio da tcnica barroca, nem se completam harmonicamente conforme a maneira de compor renascentista, mas vo apenas se justapondo, muito bem arrumados, cada qual no seu canto, isolados dentro da frieza do ambiente arquitetnico.

    Quanto riqussima capela interior do Colgio, instalada em substituio da primitiva segundo se conclui das investigaes efetuadas recentemente pelo SPHAN na prpria igreja de Mem de S, depois de concluda a igreja atual, foi completamente destruda no incndio de 1905. Figura nesta revista (fig. 23) uma fotografia dessa capela que, juntamente com a descrio minuciosa verdadeiro levantamento feita inspiradamen-te, dois anos antes do incndio, pelo ilustre Prof. Brs do Amaral, do-nos

    Fig. 21: Corpo inferior e pormenor do retbulo

    da capela das Virgens Mrtires, na

    igreja do antigo Colgio da Bahia.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil175

    bem uma ideia da preciosidade que se consumiu.A pintura ocupou sempre tambm um lugar importante na arqui-

    tetura interna das igrejas jesuticas. Sem pretendermos entrar na apreciao do mrito dessa pintura, estudo parte, j iniciado pela Seo Tcnica do SPHAN, importa-nos encar-la aqui apenas como complemento e em fun-o do conjunto arquitetnico do qual ela parte integrante.

    Sob esse aspecto as igrejas brasileiras, em geral, e no apenas as jesuticas, podem dividir-se em dois grandes grupos. No primeiro, que abrange desde as igrejas mais antigas at as de comeo do scu-lo XVIII, a pintura ornamental dos tetos, compostas de arabescos flo-rais desenvolvidos simetricamente em torno de um ncleo central (fig. VIIa), sempre se conservou fechada dentro dos limites bem definidos dos grandes caixotes de forro sobrepostos ao vigamento do andar ou ao madeiramento da cobertura, como ocorre no Salvador (fig. 22), em Embu (fig. 24) ou, com desenho mais livre de gosto indo-persa e de bonito efeito, no forro da sacristia da igreja do Seminrio de Belm da Cachoeira. Essa pintura ornamental, tmpera ou a gesso e cola, era,

    Fig. 22: Sacristia da igreja do antigo Colgio

    da Bahia.

  • ARS Ano 7 N 16 176

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil177

    porm, independente dos painis tambm pintados sobre tbua, mas ge-ralmente a leo e emoldurados com talha ou desenho de arabescos, que guarnecem as paredes das capelas, das sacristias e os prprios retbulos, verdadeiros quadros que, muito embora faam parte da composio arquitetnica, apresentam, tanto do ponto de vista formal como de con-tedo, um sentido pictrico autnomo (fig. VIIb).

    Ao segundo grupo correspondem as igrejas de meados e da se-gunda metade do sculo XVIII. Conquanto ainda perdure, ento, a tra-dio dos painis pintados nas capelas e sacristias, inclusive nos tetos, com a nica diferena de apresentarem contornos cada vez mais capri-chosos (o exemplo das capelas baianas de Santo Incio e So Francisco Xavier significativo (fig. VIIc), a pintura dos forros da nave e da capela-mor transforma-se completamente, adquirindo enorme importncia, de conformidade com a nova concepo ilusionista barroca, inaugurada na Europa no sculo anterior.

    As preferncias por esse partido, to engenhoso, que consiste no emprego de elementos arquitetnicos pintados em perspectiva balaus-tradas, colunas, platibanda etc. procurando-se dar assim a impresso de que a nave se abre, da cimalha real para cima, diretamente para o azul do cu, onde aparecem os santos e Nossa Senhora, num resplendor de glria entre as nuvens e os anjos (fig. VIIe), so a melhor prova de que ainda ha-via nos artistas barrocos aquela mesma preocupao que atormentou os arquitetos medievais, isto , a de conseguir exprimir, graas ao recurso de expedientes plsticos e tcnicos apropriados, a ideia de ascenso. Apenas, de acordo com o esprito mais objetivo da poca, em vez de recorrerem a malabarismos de estereotomia para manterem as ogivas equilibradas a uma grande altura, eles recorreram pintura e assim atingiram, num salto, o prprio cu.

    Essa nova pintura de carter monumental, eminentemente de-corativa, no melhor sentido da expresso, evoluiu do tratamento pesa-do e opressivo, onde prevaleciam a representao de formas arquitet-nicas e o colorido sombrio (fig. VIId), at s igrejas claras, de aparncia alegre quase feliz dos ltimos decnios do sculo XVIII em Minas Gerais, nas quais Manuel da Costa Atade revelou-se mestre consu-mado (fig. VIIe). As figuras eram ento empregadas, da mesma forma que os motivos arquitetnicos e ornamentais, como simples elementos plsticos de composio, um pouco no mesmo esprito das criaes, chamadas impropriamente abstratas, da arte moderna. que se trata ali, na verdade, de um complemento da prpria arquitetura. Sem ela, a igreja ficaria por acabar, j que os forros, em vez dos caixotes mol-durados do perodo anterior, eram ento feitos com tabuado corrido

    Na pgia anterior, fig. 23: Capela interior

    do antigo Colgio da Bahia, incendiada em

    1905 e que ainda apro-veitava, ao que parece, o

    arcabouo da primitiva igreja, construda por

    Mem de S.

    Fig. 24: Capela-mor da igreja da

    Companhia em Emb, So Paulo.

  • ARS Ano 7 N 16 178

    especialmente para receber esse gnero de pintura. E justamente por esse motivo, muitas vezes ela atinge o objetivo arquitetnico visado, sem contudo satisfazer do ponto de vista estritamente pictrico; en-quanto noutros casos atende a essa finalidade, mas no corresponde, ou mesmo prejudica, ao partido geral de composio adotado, aquilo que, entretanto, deveria prevalecer, pois, na sua qualidade de pintura ornamental, ela desempenha, no conjunto arquitetnico interno das nossas igrejas da segunda metade do sculo XVIII, funo equivalente da ensamblagem e da talha.

    Alis, os artistas incumbidos da tarefa encarregavam-se tam-bm, geralmente, do douramento, estofagem e pintura dos retbulos e das imagens, assim como do fingimento em faiscado das cimalhas de madeira e dos elementos de cantaria que, por seu aspecto mais grossei-ro, por ventura destoassem da atmosfera ideal convencionada.

    As igrejas da Companhia correspondem principalmente ao pri-meiro grupo, porquanto a expulso impediu que as construes inicia-das no sculo XVIII se conclussem convenientemente.

    No que respeita imaginria, ainda no pde ser devidamente recenseada a numerosa populao de santos e de santas disseminados por todo o pas.

    Os jesutas, particularmente depois da canonizao de Santo In-cio e So Francisco Xavier, tiveram que organizar sob moldes eficientes a fabricao de imagens para atender s exigncias dos seus numerosos es-

    Fig. 25: Retbulo das capelas de So Pedro,

    So Francisco de Borja e So Jos, na igreja

    do antigo Colgio da Bahia.

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil179

    tabelecimentos espalhados pelo mundo. E muito embora as demais ordens tambm produzissem em grande escala, os padres talvez possam ser consi-derados como os precursores dos modernos processos de fabricao: a talha, a encarnao, o estofamento eram ento feitos em srie, o que no exclua, alis, um grande apuro, tanto no feitio como no acabamento, conseguindo-se assim santos bonitos, apesar de copiados e recopiados seguidamente. Mas, se os modelos no mudavam de ano para ano, nem por isso deixaram de evoluir, acompanhando as variaes do estilo, do gosto e da moda, pas-sando gradativamente das atitudes hirtas iniciais (fig. VIIf) s de contornos esvoaantes e sinuosos (fig. VIIg), conforme se pode observar nas imagens dos dois ltimos retbulos baianos de Santo Incio e So Francisco Xavier a que nos temos referido por mais de uma vez (fig. 37).

    Conquanto os padres costumassem, de preferncia, mandar vir as suas imagens da Europa ao contrrio do que sucedeu nos Sete Povos das Misses muitas delas, inclusive, talvez, o belo Cristo morto em barro cozido da igreja de Geru, eram feitas mesmo aqui, por artistas portugueses ou brasileiros natos, como foi o caso do grande escultor seiscentista carioca, frei Agostinho de Jesus, cuja obra est sendo estudada, juntamente com a de outros notveis artistas beneditinos, pelo erudito historiador dom Clemente Maria da Silva-Nigra , O. S. B., por incumbncia especial do SPHAN.

    Ao conjunto arquitetnico interno das igrejas barrocas, constitudo principalmente pela obra de talha dos retbulos e pelas pinturas dos forros e paredes, e acessoriamente pelos demais elementos necessrios ao culto al-

    Fig. 27: Retbulo dos altares-mores dos antigos

    Colgios de So Lus do Maranho e de Campos,

    no Estado do Rio de Janeiro.

    Fig. 26: Retbulo das capelas de Santa rsula e

    de SantAna, na igreja do antigo Colgio da Bahia.

  • ARS Ano 7 N 16 180

    Fig. 28: Frontispcio e retbulo de um dos alta-res das capelas laterais da antiga igreja do Colgio de

    So Paulo.

    Fig. 29: ( direita) Retbulo de um dos altares colate-rais da igreja jesutica de

    Emb.

    Na outra pgina, Fig. 30: Um dos pequenos

    retbulos dos antigos al-tares colaterais da capela paulista de Santo Antnio,

    no municpio de So Roque.

  • ARS Ano 7 N 16 182

  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil183

    Na pgina anterior, fig. 31: Portais decorados

    da capela do chamado engenho Retiro e da igreja

    do Socorro, em Sergipe, e da igreja do Esprito

    Santo no Recife.

    Fig. 32: Frontispcio da igreja jesutica de So Pe-dro dAldeia, no Estado do

    Rio e casa de residncia dos padres no chamado

    Colgio em Sergipe.

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  • Lcio Costa A arquitetura dos jesutas no Brasil185

    faias, imaginria etc. conjunto a que se designa, s vezes, por sunturia, expresso imprpria e antididtica, por isso que atribui a elementos orgnicos fundamentais, tanto do ponto de vista plstico como funcional, da arquitetura interior das igrejas, um sentido de coisa suprflua ou acrescentada a esse conjunto, costuma-se associar a ideia de teatro ou de salo.

    Esta imagem, no fundo, afinal, pejorativa, no deve ser aceita assim sem maior exame, mormente no que diz respeito s nossas igrejas muito particularmente s jesuticas, geralmente concebidas dentro do melhor esp-rito litrgico a fim de restringi-las s suas devidas propores.

    Compreende-se, com efeito, que para o europeu de uma boa parte da Europa habituado com o partido das igrejas medievais, onde o altar-mor fica solto e como que perdido em meio da nave, no

    Na pgina anterior, fig. 33: Retbulo de um

    dos altares colaterais da antiga igreja de Ger,

    em Sergipe.

    Fig. 34: Plpito da igreja de So Francisco Xavier,

    hoje de Santo Alexandre do antigo Colgio

    de Belm, do Par.

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    passando o retbulo de um biombo armado para lhe fazer fundo, pois que a igreja ainda continua, pelo avesso desse altar, com o coro, a absi-de, o deambulatrio e as absidolas a primeira impresso ao