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COLETÂNEA 2

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A

CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

Bibliotecária responsável: Sônia Bernini – CRB 9/1210

Centro Universitário Curitiba.

Hermenêutica Constitucional e a Concretização dos Direitos Fundamentais. / Coordenação:

Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr, Eloete Camilli Oliveira; organização: José Mário Tafuri,

Sandro Mansur Gibran. Curitiba: Centro Universitário Curitiba, 2015. – (Coleção pesquisando

direito; v.2)

ISBN 978-85-87875-26-6

1. Direito. 2. Hermenêneutica. 3. Direitos fundamentais. I. SÉLLOS-KNOERR, Viviane

Coêlho. II. OLIVEIRA, Eloete Camili. III. TAFUTI, José Mário. IV. GIBRAN, Sandro

Mansur.

CDD (20. ed.) – 340

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Coordenadores

VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR

ELOETE CAMILLI OLIVEIRA

Organizadores

JOSÉ MARIO TAFURI

SANDRO MANSUR GIBRAN

COLETÂNEA 2

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A

CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

AENA

2015 | Curitiba

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Campus Milton Vianna Filho: Rua Chile, 1.678 - Rebouças - CEP 80220-181

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11

O DIREITO À SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL DA CRIANÇA E A

INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA OBESIDADE INFANTIL NO BRASIL

AMANDA MARCELLINO BENFEITA E MARIA DA GLORIA COLUCCI ..............................................19

A MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO COMO CONSAGRAÇÃO DA PROTEÇÃO

CONSTITUCIONAL DA FAMÍLIA MONOPARENTAL

ANA LIGIA BORTOLOCI MARTELLI E CAMILA GIL MARQUEZ BRESOLIN .....................................45

CIDADANIA: A POLISSEMIA DE UM CONCEITO E SUA RELAÇÃO COM A

EDUCAÇÃO

ANDRE BAKKER DA SILVEIRA E MARIA LUISA SCARAMELLA ......................................................73

ANÁLISE DA MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO EM FACE DO DIREITO

COMPARADO SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO INGLÊS

CAMILA FRANCINI DE SOUZA E CAMILA GIL MARQUEZ BRESOLIN ..........................................107

A COEXISTÊNCIA DAS RELAÇÕES FILIAIS BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA

COMO PRESSUPOSTO DE ADMISSIBILIDADE À MULTIPARENTALIDADE

GABRIELLE SINISKI FRAÇÃO E TATIANA DENCZUK ....................................................................139

A QUESTÃO DA MORADIA: HISTORICIDADE DA PROPRIEDADE,

DESIGUALDADES SOCIAIS E O DIREITO À MORADIA DIGNA NO CONTEXTO

URBANO BRASILEIRO

GERMANO AUGUSTO PEREIRA SURECK E MARIA LUISA SCARAMELLA .................................163

A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS DO PORTADOR

DE TRANSTORNO MENTAL

LAURA CAROLINA DE CARVALHO ROSA SOLER E MARIA LUISA SCARAMELLA ......................187

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VIOLAÇÃO DE DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS: DEMARCAÇÃO DE

TERRAS

LIDIANE HARUE FUGIMOTO E HELOISA FERNANDES CAMARA .................................................205

A SUPREMACIA DO ESTADO NOS DOMÍNIOS DE FAMÍLIA VERSUS A

ONIPOTÊNCIA DOS QUE ASSUMEM O PODER DE DIREÇÃO FAMILIAR

MARIA EDUARDA BARLETTA DORIA GUIMARAES E LUIZ GUSTAVO DE ANDRADE ................227

A (IM)POSSIBILIDADE DE INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO: ANÁLISE

À LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AFETIVIDADE

MICHELE LOUISE VIDOTTO E LUIZ GUSTAVO DE ANDRADE ......................................................251

A (IN)EFICÁCIA DA ILEGALIDADE DA GUERRA NO ÂMBITO INTERNACIONAL:

O CASO DA GUERRA DO IRAQUE DE 2003

NAYRA DE LIMA PORTELA E VIOLETA SARTI CALDEIRA ............................................................275

AS NOVAS RELAÇÕES DE FILIAÇÃO NO DIREITO DE FAMÍLIA

NICOLE PANGRACIO VIEIRA E ADRIANA MARTINS SILVA ...........................................................307

O VAZIO DE PENSAMENTO COMO PREMISSA DO ANTISSEMITISMO

GENERALIZADO NA ALEMANHA NAZISTA

RAISSA MARIANA DA SILVA ROSA E MARCELO BUENO MENDES ..............................................341

O GÊNERO COMO INFLUÊNCIA NA ELABORAÇÃO E APLICAÇÃO DAS

NORMAS JURÍDICAS

TEMIS CRISTINA KOGA E MARIA LUISA SCARAMELLA.................................................................365

LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA: CONFLITO ENTRE OS

DIREITOS FUNDAMENTAIS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO E

O DIREITO À HONRA E PRIVACIDADE

THATIANNA FREITAS DE SOUZA E LUIZ GUSTAVO DE ANDRADE ..............................................397

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PROMOÇÃO DA QUALIDADE DE VIDA PELA PRÁTICA DESPORTIVA (LEI Nº

9.615 DE 24 DE MARÇO DE 1998)

WESLLEY FERNANDO DO NASCIMENTO E MARIA DA GLORIA COLUCCI .................................423

A QUESTÃO DA POLIGAMIA ISLÂMICA EM FACE DOS DIREITOS ADQUIRIDOS

NO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO

YASMIN IBRAHIM CHARCHICH E FRANCIELLI MOREZ GUSSO ...................................................441

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INTRODUÇÃO

A Coletânea “Hermenêutica Constitucional e a Concretização dos Direitos

Fundamentais” é uma obra coletiva, resultante da pesquisa realizada por alunos e

professores do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, destinada a

elaboração dos Trabalhos de Curso dos acadêmicos no ano de 2014. Os artigos

foram selecionados por afinidade ao tema “direitos fundamentais” envolvendo

diversas áreas do Direito.

Primeiramente, Amanda Marcellino Benfeita e Maria da Glória Colucci

demonstram a relevância do direito à alimentação para a pessoa humana, para a

manutenção da própria vida, com ênfase no direito fundamental à alimentação, de

forma a discorrer brevemente sobre os direitos sociais na Carta Magna de 1988. Os

estudos apresentados se reportaram à segurança alimentar e nutricional das

crianças, que estão em plena fase de desenvolvimento, diante da influência da mídia

no comportamento alimentar das pessoas, com ênfase no problema da obesidade

infantil. Ainda, estabeleceram uma relação entre o direito à segurança alimentar e

nutricional e a matemática, através de dados coletados acerca da alimentação das

crianças, ou seja, por intermédio da Jurimetria.

Ana Lígia Bortoloci Martelli e Camila Gil Marquez Bresolin, apresentam

estudos a respeito da maternidade de substituição como a consagração da proteção

constitucional da família monoparental, se reportando ao biodireito. Constataram,

então, que há uma lacuna jurídica em relação à reprodução humana assistida

heteróloga e a maternidade de substituição, verificando que sob essa perspectiva

que não há criminalização jurídica para mães substitutas, além daquelas previstas

na Resolução nº. 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina que ficam adstritas

ao médico. Apontam o que vem a ser a mãe substituta, e como deve ser aplicada a

questão da filiação no caso da gestação em útero alheio.

A temática envolvendo “cidadania: plasticidade e arbitrariedade” é abordada

nos estudos apresentados por André Bakker da Silveira e Maria Luísa Scaramella,

ao explorar como as instituições de ensino de educação básica têm compreendido e

praticado a cidadania. Buscaram dialogar com alunos, diretores, coordenadores e

professores para compreender como o tema vem sendo abordado. Ressaltam que

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as escolas, como centros de desenvolvimento e socialização dos indivíduos,

possuem um papel fundamental na formação de cidadãos, sendo esse um dever

constituído nos artigos 205 da Constituição Federal e 2º da Lei de Diretrizes e Bases

da Educação. Destacam que a importância desta análise, diante de significados

diversos da palavra cidadania, que abre espaço para conceituações arbitrárias por

parte dos educadores, podendo dar à cidadania um caráter excludente.

Camila Francini de Souza e Camila Gil Marquez Bresolin, apresentam

estudos a respeito do reconhecimento jurídico da maternidade de substituição,

observando a regulamentação já existente em demais localidades, como o Reino

Unido. Apontam que a regulamentação deste tema mostra-se imprescindível uma

vez que a prática deste método é recorrente e as condutas são regidas apenas pela

Resolução nº 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina, de caráter ético, não

existindo portanto qualquer normatização e respaldo legal, podendo causar a

corrupção de valores, princípios e garantias do cidadão, bem como impossibilitando

a resolução de conflitos decorrentes, como a determinação da paternidade e da

filiação, a permissão ou proibição do critério de onerosidade, além de debates

éticos, sociológicos e psicológicos. Para o desenvolvimento da análise da

maternidade de substituição em face do direito comparado, é necessária

inicialmente a compreensão dos novos paradigmas e contornos da família e sua

relação com a reprodução assistida, com a seguinte identificação do que é a

maternidade de substituição, quais são seus desafios e a consequente necessidade

de elaboração de respostas aos novos questionamentos e conflitos.

A possibilidade jurídica de múltipla filiação registral, é a temática desenvolvida

por Gabrielle Siniski Fração e Tatiana Denczuk, ao retratar as mais diversas facetas

que, ao longo da história, foram se incorporando às relações parentais. Partindo do

pressuposto de que não há qualquer prevalência de um critério sobre o outro, visto

que todos são igualmente importantes, buscam identificar casos onde há efetiva

colisão de dois ou mais critérios filiatórios sobre a mesma pessoa. À luz do princípio

da dignidade da pessoa humana e, no intuito da preservação de direitos, urge-se à

necessidade de adesão do instituto da Multiparentalidade, ao ordenamento jurídico

brasileiro.

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O direito à moradia no tocante ao déficit habitacional na região metropolitana

de Curitiba e a construção do "Modelo-Curitiba", é objeto de estudo realizado por

Germano Augusto Pereira Sureck e Maria Luisa Scaramella, ao estudar sobre a

produção dos espaços informais de moradia na Região Metropolitana de Curitiba

(RMC) nas últimas décadas e da construção do "mito da cidade-modelo", que atribui

à capital do Estado do Paraná o status de "cidade que deu certo", em decorrência de

suposto processo de planejamento urbano bem-sucedido. Apresentam a origem do

denominado "Planejamento Estratégico", suas principais características e a

implementação de seus postulados no município de Curitiba, bem como a formação

da periferia metropolitana e a dinâmica do mercado imobiliário da "RMC".

Buscando observar a medida de segurança, como uma violação aos direitos

humanos e fundamentais do portador de transtorno mental, Laura Carolina de

Carvalho Rosa Soler e Maria Luisa Scaramella, apontam que o Ordenamento

Jurídico Brasileiro e a própria sociedade não conseguem zelar pelo interesse das

minorias não privilegiadas, agravando-se quando se reporta aos direitos de

portadores de transtorno mental que cometeram algum tipo de infração. Analisam a

sociedade, que condena e recrimina todo sujeito que pratica algum tipo de ilícito,

atrelado a isto, o fato desta pessoa ter um transtorno mental apenas agrava a

situação, isolando-se tal cidadão, fundamentando tal conduta na necessidade de

proteção da sociedade e do próprio sujeito infrator.

O conflito que se configura no judiciário brasileiro referente ao

reconhecimento indígena no tocante à demarcação de terras, é apresentado por

Lidiane Harue Fugimoto e Heloisa Fernandes Câmara. Analisam a situação pela

qual as comunidades indígenas têm passado, tendo como foco principal a questão

referente às terras ocupadas por esses povos. Também exploram algumas

concepções jurídicas e culturais acerca da identidade indígena, cujo entendimento

se faz importante para as atuais discussões relativas à demarcação de terras

indígenas, visando explorar o tratamento dado juridicamente à terra perante a sua

importância na cultura indígena e algumas consequentes violações sofridas de

direitos indígenas assegurados constitucionalmente. Desmistificam alguns pré-

conceitos relacionados ao índio e a observância mais atenta aos problemas

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enfrentados pelas comunidades indígenas, apontando que os tribunais brasileiros

tratam muitas vezes com descaso as comunidades indígenas em risco.

A supremacia do estado nos domínios de família versus a onipotência dos

que assumem o poder de direção familiar, é enfatizada através das considerações

apresentadas por Maria Eduarda Barletta Doria Guimarães e Luiz Gustavo de

Andrade. De um lado apresentam, a insurgência estatal por meio das chamadas

liberdades positivas, para coibir eventuais abusos por parte dos particulares nas

relações privadas, mais precisamente no que toca às crianças e adolescentes em

situação de vulnerabilidade perante os pais. De outro, enfatizam o respeito à

autonomia, intimidade e liberdade do indivíduo de conduzir as questões particulares

que condizem à vida privada sem a interferência estatal, tal como as relações

familiares, de igual modo mostra-se imperioso. Buscam o meio adequado para

encontrar o ponto de equilíbrio entre a supremacia estatal versus a onipotência do

particular, em especial no que se refere ao exercício da autoridade parental por

intermédio do poder familiar, por intermédio da utilização do método de ponderação

dos bens jurídicos e princípios constitucionais.

Com o intuito de demonstrar quais são os deveres dos pais para com seus

filhos e como o Judiciário brasileiro vem atuando nas causas do Direito de Família

tendo como principal foco as causas de indenização por abandono afetivo, Michele

Louise Vidotto e Luiz Gustavo de Andrade, analisam os principais nortes de tal

temática, bem como destacam os argumentos para justificar a possibilidade ou

impossibilidade de indenização por abandono afetivo. Com isso, o objetivo principal

do trabalho visa identificar uma solução cabível para tal impasse a partir das

próprias decisões proferidas pelos Tribunais brasileiros, concluindo-se que a

indenização por abandono afetivo é inviável tendo em vista todas as consequências

que dela poderão resultar.

Analisando se a proibição do uso da força tem ou não eficácia no âmbito

internacional, Nayra de Lima Portela e Violeta Sarti Caldeira, desenvolvem estudos

tendo por base o caso da guerra do Iraque de 2003, através da compreensão do que

seria a guerra, em especial sob os seus aspectos de legalidade e legitimidade.

Abordam a discussão acerca da eficácia da ilegalidade da guerra e da atuação das

Nações Unidas frente a maior potência mundial.

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A multiparentalidade enquanto nova relação de filiação no direito de família, é

a temática de estudos produzidos por Nicole Pangracio Vieira e Adriana Martins

Silva, ao investigar as novas relações de filiação dentro da família contemporânea,

com base no princípio da afetividade, diante das diversas modificações do conceito

de família. Diante dessa perspectiva, analisam a família tradicional, suas funções,

perspectivas e a maneira como era tratada a filiação nesse contexto familiar,

ressaltando, as principais mudanças que se deram no âmbito do Direito de Família,

com a queda do patriarcalismo, a emancipação feminina, a igualdade entre os filhos,

a pluralidade familiar, o reconhecimento da união homoafetiva e a popularização do

uso das técnicas de reprodução humana assistida.

Tendo como objeto de abordagem o vazio de pensamento como premissa do

antissemitismo generalizado na Alemanha nazista, Raissa Mariana da Silva Rosa e

Marcelo Bueno Mendes, analisam o vazio de pensamento conceituado pela autora

Hannah Arendt, o qual não teve desde a sua concepção uma definição clara,

exigindo dos leitores uma ampla pesquisa e leitura de várias de suas obras a fim de

identificar o que a autora queria explicar com tal conceito. Relacionam a banalidade

do mal que se encontra nos seres humanos desde os primórdios da vida em

sociedade, questionando até que ponto este vazio influencia a sociedade alemã a

seguir as ideias de Hitler é possível também entender a sociedade moderna e seus

anseios.

A elaboração e aplicação da Lei Maria da Penha e a influência exercida pela

categoria gênero, é objeto de análise por parte de Temis Cristina Koga e Maria Luisa

Scaramella, as quais apresentam uma breve exposição sobre a função do direito

como responsável para promover a regulação das condutas humanas, atestando

ainda seus aspectos sociais, tendo em vista ser fruto da sociedade que está inserido

e por ser instrumento que confere legitimidade a determinados grupos e demandas

sociais. Demonstram assim que, por vezes, no momento da aplicação da lei, pode

haver a influência de valores e pensamentos preconceituosos emanados pela

sociedade. Enfatizam a influência do movimento feminista no Brasil, bem como das

Convenções Internacionais Ratificadas pelo Brasil para elaboração da Lei Maria da

Penha. Por fim, a partir da análise de dados concretos, fornecidos pelo Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), bem como pelo Mapa da Violência 2015,

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verificar a eficácia da nova legislação no combate à violência de gênero e na

redução da desigualdade entre os sexos, concluindo que, apesar dos avanços

trazidos pela legislação resta evidente que para a sua plena eficácia se faz

necessária a progressiva mudança nas formas de compreender as categorias

masculino e feminino.

O conflito entre os direitos fundamentais à liberdade de expressão e

informação e o direito à honra e privacidade, é apresentado por Thatianna Freitas de

Souza e Luiz Gustavo Andrade, diante da necessidade de assegurar tais direitos,

por serem essenciais em um Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal

Brasileira de 1988 protege ambos os direitos e desta forma não há preponderância

de um sobre o outro, uma vez que pode haver proteção de mais de um direito

concomitantemente. No que diz respeito aos meios de comunicação, o artigo 5º, X,

CF, traz que é livre a expressão da atividade de comunicação, independentemente

de censura ou licença. Este respaldo constitucional é importante, pois a Lei de

Imprensa (Lei nº 5.250/67) foi declarada inconstitucional no ano de 2009. Por meio

do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF

130/STF, os Ministros do Supremo Tribunal Federal entenderam que a Lei de

Imprensa não foi recepcionada pela atual Constituição, visto que foi criada na época

de ditadura militar no país, concluindo que a liberdade de expressão propicia aos

jornalistas, e também ao público leitor, ouvinte e telespectador, autonomia para

debater sobre os principais acontecimentos, sendo de extrema importância em um

país democrático, onde prevalecem as diferentes formas de liberdades.

Weslley Fernando do Nascimento e Maria da Glória Colucci, enfatizam

aspectos importantes a respeito Direito Desportivo, abordando a importância do

regime jurídico com análise das legislações antecedentes, a correlação com os

diversificados ramos do Direito Positivo, demonstrando de tal forma os princípios

quer fundamentam o Direito Desportivo. Destacam a importância do Direito

Desportivo na tutela de direito dos praticantes de desportos em todas suas

manifestações, elencando-se os princípios constitucionais que visam a

uniformização da matéria para análise dos casos concretos, observado as

peculiaridades das diferentes regiões.

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O reconhecimento da existência de uniões poligâmicas pelo direito de família

brasileiro é enfatizado no estudo realizado por Yasmin Ibrahim Charchich e Francielli

Morêz Gusso, tendo em vista que ordenamento jurídico brasileiro veda a

constituição de uniões de cunho poligâmico. No entanto, a existência desse tipo de

união matrimonial é cada vez mais comum, considerando-se a flexibilização do

conceito atribuído à família contemporânea, bem como, a necessidade de

organização familiar diferente do que ocorria antigamente. As uniões matrimoniais

atuais não se pautam apenas com base na monogamia, tendo em vista que a

sociedade contemporânea apresentou significativa evolução e se depara com

situações que ultrapassam os limites previstos no ordenamento jurídico brasileiro.

Os artigos apresentados nesta Coletânea, e escritos a partir do trabalho de

pesquisa conjunta dos acadêmicos e professores do UNICURITIBA, foram indicados

para publicação, por comissão examinadora formada por docentes da citada

Instituição de Ensino.

Sem a pretensão de esgotar os temas abordados, mas de trazê-los para

reflexão e instigar o prosseguimento das pesquisas a partir deles, desejando que a

leitura desta Coletânea Hermenêutica Constitucional e a Concretização dos Direitos

Fundamentais chame a atenção de todos para este tripé indispensável para a

sociedade.

ELOETE CAMILLI OLIVEIRA

Doutora pela UFPR. Mestre pela PUCPR. Professora adjunta nível III da Pontifícia

Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE -

UNICURITIBA, professor titular – UNICURITIBA, Supervisora do setor de Registro

dos Trabalhos de Conclusão de Curso do UNICURITIBA.

JOSÉ MARIO TAFURI

Mestre e Especialista pela PUCPR. Professor Adjunto do UNICURITIBA,

Representante dos Coordenadores no CONSEPE- UNICURITIBA, Coordenador do

Curso de Direito – UNICURITIBA.

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O DIREITO À ALIMENTAÇÃO E A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA SEGURANÇA

ALIMENTAR E NUTRICIONAL DA CRIANÇA NO BRASIL

THE RIGHT TO FOOD AND THE MEDIA INFLUENCE ON ALIMENTARY AND

NUTRITIONAL SECURITY OF CHILD IN BRAZIL

Amanda Marcellino Benfeita1

Maria da Glória Colucci2

SUMÁRIO

RESUMO 1 INTRODUÇÃO 2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONCEITO 2.1 DIREITOS SOCIAIS NA

CONSTITUIÇÃO DE 1988 2.2 DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO 3 LEI DE SEGURANÇA

ALIMENTAR E NUTRICIONAL 3.1 ESTRUTURA E PRINCÍPIOS 4 HIPERVULNERABILIDADE DA

CRIANÇA 4.1 INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA ALIMENTAÇÃO INFANTIL 4.2 INFLUÊNCIA DA MÍDIA:

SUBSÍDIOS DA JURIMETRIA 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.

RESUMO

O presente Artigo objetivou demonstrar a relevância do direito à alimentação para a pessoa humana, para a manutenção da própria vida. Fez-se mister adotar a denominação direitos fundamentais, com ênfase no direito fundamental à alimentação, de forma a discorrer brevemente sobre os direitos sociais na Carta Magna de 1988. Procurou-se, também, estabelecer a maneira como a Constituição Brasileira de 1988 dispõe sobre o direito em questão. Ademais, pontuaram-se no artigo algumas considerações sobre a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional, buscando-se esclarecer a referida Lei através dos princípios nela estabelecidos. Além disso, visou-se destacar a importância da educação alimentar e nutricional para a sociedade, evidenciando a educação como um meio efetivo de conscientização para uma boa alimentação. A pesquisa demonstrou um olhar especial quanto à segurança alimentar e nutricional das crianças, que estão em plena fase de desenvolvimento. Outro assunto discorrido na pesquisa foi a influência da mídia no comportamento alimentar das pessoas, principalmente das crianças, com ênfase no problema da obesidade infantil. E, por fim, objetivou-se estabelecer uma relação entre o direito à segurança alimentar e nutricional e a matemática, através de dados coletados acerca da alimentação das crianças, em outras palavras, estabeleceu-se uma relação com a Jurimetria.

Palavras-chave: direitos fundamentais, segurança alimentar e nutricional, influência da mídia.

1 Acadêmica de Direito do Unicuritiba e integrante do Grupo de Pesquisas em Qualidade de Vida - Direitos Humanos Fundamentais nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS – ONU, 2015-2030). [email protected] 2 Mestre em Direito Público (UFPR); Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); Titular de Teoria Geral do Direito (Unicuritiba), Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae do Unicuritiba. [email protected]

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ABSTRACT

This article aimed to demonstrate the relevance of the right to food for the human person, for the maintenance of life itself. There was mister adopt the fundamental rights denomination, with emphasis on the fundamental right to food, so that the objective was to briefly discuss the social rights in the 1988 Constitution. It also sought to establish how the Brazilian Constitution of 1988 provided for the right in question. Furthermore, it scored in the research some considerations on Alimentary and Nutritional Security Law, seeking to clarify this law through the principles set out therein. In addition, it tried to highlight the importance of food and nutritional education to society, highlighting education as an effective means of awareness for good nutrition. The article showed a special look on the alimentary and nutritional security children, who are in full phase of development. Another issue discoursed in this study was the influence of media on eating behavior of people, mainly children, with emphasis on the problem of childhood obesity. And finally, aimed to establish a relationship between alimentary and nutritional security right and mathematics, through data collected about child nutrition, in other words, it was established a relationship with the Jurimetrics. Keywords: fundamental rights, alimentary and nutritional security, media influence.

1 INTRODUÇÃO

O tema escolhido para a pesquisa, O Direito à Alimentação e a Influência da

Mídia na Segurança Alimentar e Nutricional da Criança no Brasil, é de grande

relevância, pois é essencial que a sociedade em geral passe a conhecer melhor os

seus direitos, bem como a perceber a real situação brasileira, no que diz respeito à

alimentação de qualidade.

Pode-se dizer que muitas pessoas ainda não pararam para pensar sobre a

essencialidade da alimentação em suas vidas, ou melhor, sobre a importância de ter

acesso aos alimentos, mas não a qualquer alimento, alimentos de qualidade,

capazes de suprir as necessidades do corpo humano, em quantidade e qualidade.

O artigo será desenvolvido de forma a analisar a magnitude da efetivação do

direito fundamental à alimentação para a vida humana. Pretende-se demonstrar a

relevância desse direito quanto ao desenvolvimento da pessoa, mostrando como o

direito em questão pode vir a colaborar com sua própria saúde corporal e mental,

tendo em vista que, sem ele, é impossível o indivíduo desenvolver-se plenamente.

Além disso, procurar-se-á demonstrar a necessidade de um novo olhar para o

ato de se alimentar, pois a alimentação do ser humano está diretamente ligada ao

direito à vida de cada um, e sem o direito à vida não há sobre o que se refletir. Só há

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respeito ao direito à vida, que é a base de todos os demais direitos, quando há

direito à alimentação adequada.

Para tal propósito investigativo, haverá a necessidade de abordar a

compreensão dos direitos fundamentais como direitos inerentes a todos os seres

humanos, sem nenhum tipo de distinção, vislumbrando que o direito à alimentação,

que será tratado no caminhar da pesquisa, é um direito fundamental reconhecido na

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no rol dos Direitos Sociais.

Além disso, sem o direito que será estudado, não é possível à pessoa

humana desenvolver-se plenamente, atingindo suas mais amplas e completas

capacidades para a vida.

Destarte, será necessária a análise da Lei de Segurança Alimentar e

Nutricional, tendo seus princípios como luz para a correta interpretação e

entendimento da própria Lei, que possibilitou ao cidadão exigir do Estado o

atendimento desse direito, que consiste no próprio direito fundamental à vida.

Ainda, cabe ressaltar que a pesquisa dará um enfoque especial às crianças,

que estão em plena fase de desenvolvimento e crescimento, tanto físico como

mental, merecendo, portanto, a proteção de todos. Isto porque, as crianças possuem

direitos e merecem ser tratadas com prioridade pela sociedade, ante a sua condição

de hipervulnerabilidade.

Em decorrência dessa hipervulnerabilidade, outro assunto que será tratado é

sobre a mídia, no que diz respeito à sua grande influência no comportamento das

pessoas, em especial no das crianças, que estão hoje em dia, e cada vez mais, em

contato com os meios de comunicação em geral.

Outrossim, o Trabalho destacará que a mídia influencia as crianças a terem

uma alimentação exagerada de produtos nocivos à saúde, que vem causando um

grave problema de saúde pública, a obesidade infantil.

Por fim, pode-se dizer que o tema pesquisado é atual e oportuno, pois,

observa-se diariamente, no cotidiano das pessoas, que as crianças estão comendo

mal, que as propagandas estão influenciando no comportamento alimentar, de modo

a atingir diretamente a saúde e o desenvolvimento da população.

Cabe esclarecer que o artigo adotará como metodologia a análise de textos,

livros, obras relacionadas ao tema pesquisado, pesquisa de campo com aplicações

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de questionários, sendo utilizados também dispositivos legais e notícias sobre o

tema.

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONCEITO

A concepção moderna quanto aos direitos fundamentais é resultado de uma

trajetória no tempo. O reconhecimento desses direitos essenciais, apresentados de

forma escrita, é algo recente e está muito distante de alcançar o fim de suas

possibilidades. Conforme exposto por José Afonso da Silva (2014, p. 151), cada

passo na história da humanidade gera uma nova conquista de direitos fundamentais.

A doutrina constitucional contemporânea discute se as expressões “Direitos

do Homem”, “Direitos Humanos” e “Direitos Fundamentais” pertencem à mesma

categoria jurídica ou se há uma diferenciação em seu conteúdo, uma distinção

terminológica. É notório que todas as denominações se referem, embasam-se, na

dignidade da pessoa humana.

Ingo Wolfgang Sarlet (2008, p. 36-39) entende que há distinção entre direitos

do homem, direitos humanos e direitos fundamentais:

[...] cumpre traçar uma distinção, ainda que de cunho predominantemente didático, entre as expressões “direitos do homem” (no sentido de direitos naturais ou ainda não positivados), “direitos humanos” (positivados na esfera do direito internacional) e “direitos fundamentais” (direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado). [...] reconhecer a diferença, contudo, não significa descon-siderar a íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam.

Desse modo, entende-se que a distinção feita entre direitos humanos e

direitos fundamentais é de natureza teórica, tendo em vista que a essência desses

direitos é a mesma, ambos buscam a proteção da dignidade humana em sua

integralidade, sendo a única diferença apenas no grau de concretização,

materialização positiva.

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Quanto aos direitos humanos, a positivação é no âmbito do Direito

Internacional, já no que diz respeito aos direitos fundamentais, a positivação está no

âmbito do Direito Constitucional de cada Estado.

Sendo assim, nos dizeres de Juliane Caravieri Martins Gamba e Zélia Maria

Cardoso Montal (2009/2010, p. 38) “[...] os direitos humanos são aqueles considera-

dos indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma

existência com dignidade, igualdade e liberdade. ”

A terminologia a ser adotada no texto é no sentido de tratar como sinônimos

os conceitos de direitos humanos e direitos fundamentais, optando-se, todavia, por

uma questão de uniformidade, pela denominação de direitos fundamentais.

Ainda, vale lembrar que o conceito a ser utilizado no presente trabalho leva

em consideração a denominação escolhida pelo legislador constituinte de 1988,

podendo ser observada no Título II da Carta da República, Dos Direitos e Garantias

Fundamentais. No próximo tópico será analisado sobre os direitos sociais na

Constituição de 1988, de forma a situar o direito à alimentação como um dever de

prestação do Estado.

2.1 DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

No Brasil, antes de ser promulgada a atual Constituição de 1988 que, de acordo

com Gilmar Ferreira Mendes (2012, p. 691), “[...] adotou o mais amplo catálogo de

direitos sociais da história do nosso constitucionalismo [...]”, houve a Constituição de

1967, que refletiu pouca presença dos direitos sociais, tendo em vista o contexto

histórico do Regime Militar vivido no Brasil (1964 – 1985).

Os direitos sociais não possuíam um capítulo em separado, esses direitos

estavam inseridos dentro de um título específico à ordem econômica e social (Título III,

artigos 157 a 166 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1967)

(COMPANHOLE, 1984, p. 175-179).

Cabe aqui ressaltar que os direitos econômicos e sociais passaram a estar

presentes, em nível constitucional, a partir da Constituição da República dos Estados

Unidos do Brasil, promulgada em 1934 (Título IV, artigos 115 a 143) (COMPANHOLE,

1984, p. 539-544).

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A Constituição de 1988 tem uma técnica moderna quanto aos direitos

fundamentais (SILVA, 2014, p. 173). A Carta Magna inicia-se com o Título I sobre os

princípios fundamentais, logo após o Título II, dos direitos e garantias fundamentais,

nele incluindo os direitos sociais (Cap. II).

É de grande importância, para a presente pesquisa, o Título VIII, que trata sobre

a ordem social, onde se localizam conteúdos dos direitos sociais, mencionados no

Capítulo II, do Título II. Sendo assim, o direito que está sendo tratado por este trabalho

é fundamental para todo o ser humano, um direito social, o direito à alimentação.

Quanto à Constituição vigente, promulgada em 1988, proceder-se-á mais

detalhadamente na sua análise em tópico posterior, ocasião em que será estudado

sobre o direito fundamental à alimentação.

2.2 DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO

O direito fundamental à alimentação está diretamente vinculado à dignidade

da pessoa humana. Nos dizeres de Flávia Piovesan (2006, p. 31), deve-se

compreender a dignidade da pessoa humana como um “superprincípio”, como um

instrumento de interpretação e aplicação das normas do Direito, viabilizando a

construção de um ambiente mais justo e solidário.

Este pensamento deve se refletir no entendimento, interpretação, proteção e

respeito quanto ao direito à alimentação, que é um direito humano e fundamental,

conforme exposto nos tópicos antecedentes:

Somente com a valorização do homem, enquanto ser que sobrevive, trabalha e interage com outros indivíduos e com o respeito das suas diferenças pelo direito e pela sociedade, será possível compreender o alcance e o significado do direito humano à alimentação adequada. (GAMBA; MONTAL, 2009/2010, p. 40)

A alimentação adequada é um direito humano básico, reconhecido no Pacto

Internacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (1966)

(RAMOS, 2015, p. 155). Sem este direito não há possibilidades de se discutir os

outros direitos. Só há direito à vida, que é a base de todos os direitos, quando há

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direito à alimentação adequada, tanto na esfera da quantidade quanto na esfera da

qualidade.

Flávio Luiz Schieck Valente (2002, p. 37) afirma que: “Sem uma alimentação

adequada não há o direito à humanidade, entendida aqui como direito de acesso à

vida e à riqueza material, cultural, científica e espiritual produzida pela espécie

humana. ”

A alimentação no sistema jurídico brasileiro é tratada de diversas formas, pode-

se perceber que o direito à alimentação é assegurado constitucionalmente, sendo a

base de todo o direito.

Ademais, constata-se que este direito é assegurado, também,

infraconstitucionalmente, através de leis ordinárias, que regulamentam o fornecimento

dos alimentos, sua distribuição, a qualidade, entre outros.

A alimentação foi incluída entre os direitos sociais a partir de 2010, prevista

no artigo 6º da Constituição (Emenda Constitucional nº 64, de 2010). Até este

momento, o direito à alimentação não estava explícito na Carta Magna.

A Lei de Segurança Alimentar e Nutricional, Lei 11.346/06, abriu um caminho

para que o direito à alimentação adequada fosse adicionado à Constituição de 1988,

através da EC 64, que veio para alterar o texto constitucional, com o objetivo de

incluir expressamente a alimentação no rol dos direitos sociais. Quanto à Lei

11.346/06 será tratada em tópico específico.

Com essa Emenda Constitucional, o direito à alimentação passou a se reger

como uma norma fundamental, possuindo, portanto, as características das normas

fundamentais, quais sejam: universalidade, inalienabilidade, indisponibilidade,

indivisibilidade, historicidade, de aplicabilidade imediata, etc. (BRANCO, 2012, p.

161).

Paulo Gustavo Gonet Branco (2012, p. 161) destaca que o direito à

alimentação adequada, ao ser explicitado pela emenda constitucional de 64, assume

natureza de cláusula pétrea, tamanha a importância do direito em comento para a

vida humana:

[...] segundo a concepção neoconstitucionalista, o Direito à Alimentação Adequada, que é um direito fundamental, concretizado pela Emenda Constitucional 64 e como tal assume o caráter de cláusula pétrea, logo faz parte do núcleo intangível da Constituição Federal, deve ser concretizado

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independentemente das barreiras econômicas. Em sendo assim, constitui como parte integrante do conceito do mínimo existencial (BISPO, 2014, p. 77-78).

Portanto, passando a ser norma constitucional, tem-se que o direito à

alimentação assume uma posição de hierarquia em relação às demais normas

infraconstitucionais.

Cabe ressaltar que, o direito à alimentação possui natureza de direito social e,

por consequência, deve ser tratado como uma condição material mínima de

sobrevivência, tem-se que tal direito tem um conteúdo essencialmente prestacional,

podendo-se exigir uma ação do Estado e da sociedade para que seja concretizado,

possibilitando uma vida com dignidade (RAMOS, 2015, p. 64).

Além de prever a alimentação no artigo 6º, o Pacto Social de 1988 garante o

direito à alimentação a começar por seu artigo 1º, inciso III, ocasião em que dispõe

sobre os Princípios Fundamentais da República Federativa do Brasil (Título I), expondo

como fundamento a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988).

Pode-se dizer que o direito à alimentação está “conectado”, “entrelaçado” de

forma inseparável, à dignidade da pessoa humana. Há esta íntima relação, pois, é no

direito constitucional à vida digna que os alimentos são percebidos.

Maria da Glória Colucci e Marta Marília Tonin (2009, p. 362) afirmam que: “[...] só

se pode falar em “dignidade da pessoa humana” se seus direitos fundamentais forem,

de fato, plenamente assegurados. ”

Além dos artigos supracitados, constata-se que o direito à alimentação é

pressuposto lógico da realização do direito à saúde, conforme dispõe o artigo 23,

inciso II, da Constituição Federal de 1988.

Ainda, o direito por ora discutido é disciplinado na ocasião em que a

Constituição dispõe acerca da educação. Dentro do Título VIII (Da Ordem Social),

Capítulo III (Da Educação, da Cultura e do Desporto) há os artigos 205 e 208, inciso

VII, que relacionam a educação à alimentação.

Tem-se que, conforme estabelecido pelo doutrinador José Afonso da Silva

(2012, p. 315), são três os objetivos básicos da educação, a saber: a) o pleno

desenvolvimento da pessoa; b) o preparo para o exercício da cidadania e c) a

qualificação da pessoa para o trabalho.

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Assim, quando se afirma que a “educação é direito de todos”, afirma-se

também que é um direito universal (princípio da universalidade). O direito à

educação alimentar e nutricional da criança é um dos diversos caminhos que o

direito à educação pode tomar. Diga-se que é um dos mais importantes.

Sem uma boa educação alimentar é impossível uma pessoa se desenvolver

totalmente, tornar-se preparada para o exercício da cidadania, e se qualificar para a

aquisição de um emprego digno. A educação alimentar e nutricional será

tratada nos próximos tópicos, a partir da Lei de Segurança Alimentar e Nutricional.

3 LEI DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL

A Lei 11.346 de 2006, Lei de Segurança Alimentar e Nutricional, foi

promulgada dia 15 de setembro de 2006, criando o Sistema Nacional de Segurança

Alimentar e Nutricional (SISAN), com vistas a assegurar o direito humano à

alimentação adequada, além de outras providências.

Tem-se que tal Lei elevou o direito à alimentação a um direito que possui

várias outras dimensões, não apenas a alimentar e a nutricional. Desse modo, cabe

ao poder público, de acordo com as diretrizes estabelecidas pela lei, garantir o

direito à alimentação conforme estabelecido em lei, ou seja, em todas as suas

dimensões:

[...] a Lei 11.346/06 enfatizou o caráter amplo do direito à alimentação e elencou em seus artigos as dimensões que integram o conceito de alimentação. Nessa perspectiva o conceito de alimentação vislumbra as dimensões do acesso, do consumo, da utilização biológica, e da disponibilidade. Não há, pois, a possibilidade de se falar em efetividade do direito à alimentação adequada enquanto uma ou mais dessas dimensões não forem contempladas (BISPO, 2014, p. 73)

Assim, todas essas dimensões: acesso, consumo, utilização biológica,

disponibilidade, etc., irão exigir postura definida do Estado, seja de defesa, seja de

prestação, ou melhor, seja de um atuar estatal ou apenas sua abstenção de agir.

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3.1 ESTRUTURA E PRINCÍPIOS

A Lei em comento contém 13 artigos dispostos em três capítulos. O primeiro

Capítulo disciplina as Disposições Gerais, o segundo regula o Sistema Nacional de

Segurança Alimentar e Nutricional e o terceiro estabelece Disposições Finais e

Transitórias.

O foco neste tópico será no Capítulo I, das Disposições Gerais. A Lei prevê,

em seu artigo primeiro que o Poder Público, juntamente com a sociedade civil “[...]

formulará e implementará políticas, planos, programas e ações com vistas em

assegurar o direito humano à alimentação adequada. ” (BRASIL, 2006).

A Lei estabelece, no mesmo artigo, definições, princípios, diretrizes, objetivos,

bem como a organização do SISAN, Sistema Nacional de Segurança Alimentar e

Nutricional. Nota-se que o que se quer garantir não é apenas o direito à alimentação

e sim a uma alimentação adequada.

É direito fundamental do ser humano, relacionando-se com a dignidade da

pessoa humana, a alimentação adequada, que é indispensável para a concretização

dos direitos dispostos na Constituição. Sendo assim, o Poder Público deve adotar

ações com o objetivo de garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

O artigo segundo, caput, conceitua a alimentação como um direito

fundamental de todos, afirmando que tal direito é inerente à dignidade da pessoa

humana, bem como é indispensável para a realização dos demais direitos dispostos

na Constituição Federal.

Ademais, o parágrafo segundo do artigo acima dispõe que é obrigação, dever,

do poder público “[...] respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar,

fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem

como garantir os mecanismos para sua exigibilidade” (BRASIL, 2006).

No parágrafo terceiro, nota-se que o legislador disciplinou a concretização do

direito à alimentação e à nutrição, tendo em vista que é um direito de todos terem

acesso regular e permanente aos alimentos de qualidade e em quantidades

suficientes de modo que supra as necessidades do ser humano.

Um dos componentes do bem-estar é a saúde, que é um direito fundamental

do homem. A Organização Mundial da Saúde, conforme estabelecido no Preâmbulo

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de sua Constituição, conceitua a saúde, como não sendo apenas a ausência de

doenças, mas um estado completo de bem-estar físico, mental e social do homem. 3

A garantia desse direito deve ter como base práticas alimentares que

promovam a saúde, respeitando a diversidade cultural, sendo, também, mecanismos

sustentáveis de natureza cultural, ambiental, econômica e socialmente.

Delson Lyra da Fonseca e Alexandra Beurlen (2007, p. 29) afirmam que o

conceito de segurança alimentar e nutricional, focado na ideia de alimentação

adequada, engloba a adequação de suprimento alimentar, a estabilidade desse

suprimento, bem como o acesso a ele.

Já o artigo quarto da Lei 11.346/06 dispõe sobre a abrangência da tão

buscada Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). No inciso I é estabelecida a

importância da ampliação do acesso aos alimentos para que seja garantida a

segurança alimentar e nutricional, seja através da produção, da industrialização, da

comercialização, bem como da distribuição, etc.

Cabe ressaltar que o legislador incluiu dentre as condições de acesso aos

alimentos a geração de emprego e a distribuição de renda. O inciso II do referido

artigo esclarece que a segurança alimentar e nutricional abrange, também, a

conservação da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos disponíveis no

meio ambiente.

Além disso, conforme o inciso III, a segurança pretendida engloba a

promoção da saúde, da nutrição e da alimentação, neste ponto o legislador separou

a alimentação da nutrição, no sentido de considerar a diferença entre os dois

conceitos, com a inclusão de grupos populacionais específicos e as pessoas que se

encontram em situação de vulnerabilidade social.

Na sequência, em análise do inciso IV, verifica-se que a segurança alimentar

e nutricional consiste, também, na garantia da qualidade dos alimentos, quer seja da

qualidade biológica, sanitária, nutricional, quer da qualidade tecnológica dos

alimentos. Também é prevista a garantia do aproveitamento dos alimentos, de forma

3 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO). 1946 (Constituição adotada pela Conferência Internacional da Saúde, realizada em New York de 19 a 22 de julho de 1946 e assinada em 26 de julho de 1946 por representantes de 61 Estados). Disponível em: < http://apps.who.int/gb/bd/PDF/bd47/EN/constitution-en.pdf?ua=1> Acesso em: 16 set. 2015.

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a proporcionar estilos de vida saudáveis em suas práticas alimentares, garantindo o

respeito à diversidade étnica, racial e cultural da população.

Por fim, o artigo 4º, em seus últimos incisos, V e VI, da Lei em comento,

dispõe como abrangência da segurança alimentar e nutricional o acesso à

informação a respeito dos alimentos e a implementação de políticas públicas e

estratégias sustentáveis na produção, na comercialização e no consumo dos

alimentos. Cabe ressaltar que além de sustentáveis, as estratégias expostas serão

também participativas, em outras palavras, com a colaboração da população em

geral.

Tem-se, portanto que o artigo quarto e seus incisos corroboram para um

entendimento de que a garantia da segurança alimentar e nutricional visa desde a

agricultura, passando pela industrialização dos alimentos, pela conservação da

biodiversidade, bem como a promoção da saúde da população, chegando à

educação, no momento em diz respeito ao conhecimento e informação (BISPO,

2014, p. 74)

Outrossim, ao fim do Capítulo I da Lei em comento, há os artigos quinto e

sexto, o primeiro trata sobre a soberania alimentar, que significa que o Brasil deve

ter primazia em suas decisões no que diz respeito à produção e ao consumo dos

alimentos. O segundo dispõe sobre a realização do direito à alimentação adequada

no plano internacional.

Desta sorte, A Lei procura contemplar todas as questões de alta importância

para o desenvolvimento pleno da pessoa, seja esta criança, adolescente, adulto ou

idoso.

Por fim, na interpretação do Direito, de uma Lei, por exemplo, deve-se ter em

vista, primeiramente, os princípios que os regem, para, aí sim, bem interpretá-los e

aplicá-los de maneira mais coerente com o sistema existente. Dessa maneira, para

uma boa análise da Lei que está sendo tratada neste trabalho, devem-se entender

os princípios que a própria Lei traz explicitamente.

Os princípios que regem a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional,

conforme o artigo oitavo, são: a universalidade e a equidade no acesso à

alimentação adequada; a preservação da autonomia e o respeito à dignidade

humana; a participação social sobre as políticas públicas e sobre os planos de

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segurança alimentar e nutricional, controlando, acompanhando, monitorando, etc.; a

transparência dos programas adotados, das ações e dos recursos aplicados.

4 HIPERVULNERABILIDADE DA CRIANÇA

Após as considerações acima expostas, sobre o direito à alimentação, mais

especificamente do direito à segurança alimentar e nutricional, passa-se a

estabelecer a relação existente entre a mídia no comportamento alimentar das

crianças.

Para tanto, faz-se necessária a análise do estado de vulnerabilidade da

criança e da incapacidade de resistência crítica às informações e hábitos que estão

sendo impostos a esta parcela da população.

A partir deste tópico, tratar-se-á apenas em relação às crianças, que é o

objeto de estudo do presente Trabalho de Conclusão de Curso. É sabido que muito

se discute nos dias atuais sobre os direitos da criança e sobre sua proteção, assim,

é necessário entender sua condição em relação à sociedade em geral, sua condição

de vulnerabilidade.

O conceito de vulnerabilidade está inserido no contexto das relações de

consumo, do consumidor frente aos fornecedores (artigos 2º e 3º, do CDC). Tem-se

que grande parcela dos consumidores são do público infantil, sendo a eles, muitas

vezes, direcionadas as campanhas publicitárias.

No que diz respeito à inserção da criança no mercado de consumo, Monica

Monteiro da Costa Boruchovitch (2006, p. 19) afirma que a sociedade atual privilegia

o ter, e cada vez mais são oferecidos diversos produtos, como forma de incentivo ao

consumo:

Vivemos numa sociedade urbana que privilegia o ter e nos oferece, a cada momento, novas opções de vestuário, diversão, alimentos, bebidas, carros, etc. As novidades são passageiras, pois logo surge um substituto e elas deixam de ser novidades. Privilegia-se a satisfação imediata. (Grifou-se)

Neste contexto da sociedade de consumo, o ordenamento jurídico brasileiro,

no Código de Defesa do Consumidor, estabeleceu no inciso I, do artigo 4º que os

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consumidores são vulneráveis perante o mercado de consumo, consiste no Princípio

da vulnerabilidade.4

Claudia Lima Marques (2014, p. 104) ensina que a vulnerabilidade pode ser

uma situação tanto permanente quanto provisória, do indivíduo ou da coletividade

que causa um desequilíbrio na relação de consumo:

Vulnerabilidade é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo. Vulnerabilidade é uma característica, um estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção.

Assim, a vulnerabilidade é identificada quando o consumidor não tem

condições de avaliar os produtos e serviços que estão sendo constantemente

oferecidos nos diversos veículos de comunicação.

O Superior Tribunal de Justiça reconhece as classificações existentes nas

doutrinas, acerca das vulnerabilidades, sendo elas: vulnerabilidade técnica, jurídica,

fática e informacional. Além disso, o STJ afirma que podem existir outros tipos de

vulnerabilidades, de acordo com a situação em concreto, conforme abaixo se

observa:

[...] 4. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). 5. A despeito da identificação in abstracto dessas espécies de vulnerabilidade, a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo. Numa relação interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da Lei nº 8.078/90, mitigando os rigores da teoria finalista e

4 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; [...]. BRASIL, Lei 8.078/90. Brasília, DF: Casa Civil, 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm> Acesso em: 30 ago. 2015.

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autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora [...] (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, AgREsp 4525.725-RS, Relator Min. Marco Buzzi, 2015) (Grifou-se).

Cabe ressaltar que quando se trata de crianças na relação de consumo, todos

esses tipos de vulnerabilidades são agravados, haja vista que são pessoas em

desenvolvimento. Neste sentido, a doutrina e a jurisprudência brasileiras têm

reconhecido a “hipervulnerabilidade” de alguns consumidores, seja pela idade ou

pela condição de saúde em que se encontram, ou, até mesmo, necessidades

especiais (MARQUES, 2014, p. 101).

Portanto, as crianças são consideradas hipervulneráveis, haja vista que não

estão prontas para compreender adequadamente a publicidade, ou até mesmo,

prontas para resistir de forma crítica ao que lhes são impostos.

Ademais, tem-se que a criança não consegue exercer sua liberdade de

escolha de forma autônoma, tendo suas escolhas fortemente influenciadas, tendo

em vista que são convidadas ao consumo de forma precoce. Elas são afetadas em

suas capacidades de criar, pensar e criticar (GONÇALVES, 2009, p. 25-26).

Sobre o assunto, o professor Yves de La Taille (2008), da Universidade de

São Paulo, estudioso da área de crianças e adolescentes, elaborou parecer sobre a

publicidade dirigida a este público, a pedido do Conselho Federal de Psicologia,

ocasião em que afirmou que as crianças não possuem a mesma capacidade de

resistência mental que um adulto:

[...] “as crianças não têm, e os adolescentes não têm a mesma capacidade de resistência mental e de compreensão da realidade que um adulto e, portanto, não estão em condições de enfrentar com igualdade de força a pressão exercida pela publicidade no que se refere à questão do consumo. A luta é totalmente desigual.” O texto também lembra do CDC – Código de Defesa do Consumidor, que proíbe se tirar proveito “da deficiência de julgamento e experiência da criança”. [...] é preciso “respeitar a ingenuidade, a credulidade, a deficiência de julgamento e o sentimento de lealdade dos menores”. (Grifou-se)

Assim, diante do reconhecimento de que as crianças são, sim, vulneráveis,

passará a ser analisado sobre a publicidade voltada à criança, bem como sobre os

efeitos que ocasiona na vida dessa grande parcela da população, efeitos estes que

na maioria das vezes são negativos.

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4.1 INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA ALIMENTAÇÃO INFANTIL

Partindo-se da ideia de que a publicidade tem o objetivo de convencer os

consumidores a comprar algo, por exemplo, algum produto ou serviço, paira a

seguinte questão: Como a publicidade influencia as crianças de modo geral? Sabe-

se que a mídia tem sido um importante meio de socialização entre as crianças nos

tempos atuais. Muitas das campanhas publicitárias são focadas no público infantil.

Assim, é importante estudar sobre a influência da publicidade infantil, haja

vista que pode influenciar diretamente na formação de valores de toda uma

sociedade. As crianças têm sido expostas à mídia de forma precoce e esta

exposição pode ser muito prejudicial ao desenvolvimento e crescimento saudável:

A mídia, como qualquer outra instituição de socialização, não pode ser analisada de maneira isolada. Suas consequências para o desenvolvimento de crianças e adolescentes são resultado da ação estabelecida em conjunto com todo o amplo contexto social no qual está inserida. Entretanto, na atual era da informação, pais, professores e outros agentes de socialização vêm perdendo para a mídia sua posição de modelos prioritários para os mais jovens. Família, igreja e escola não são mais as principais fontes de conhecimento acerca da sociedade (ANDI, 2015, p. 2) (Grifou-se).

Cabe destacar que as redes de comunicação em geral vêm investindo muito

nas campanhas voltadas às crianças, haja vista que as crianças vêm sendo

consideradas como grandes influenciadoras nas escolhas dos familiares, no que

tange aos produtos e serviços consumidos, ao mesmo tempo que, como acima

mencionado, são grandes consumidoras, fato que tem sido comprovado por estudos

(INSTITUTO ALANA, 2015).

Outrossim, observa-se que o problema da mídia apenas tende a crescer,

porque as crianças têm, cada vez mais, dedicando maior parte de seu tempo à

televisão, à internet, superando, até mesmo, o tempo que passam com os pais ou na

escola (ANDI, 2015, p. 3).

Estudos indicam que a publicidade “manipula” a mente da criança, no sentido

em que se intensificam as campanhas acerca das qualidades das pessoas que

utilizam o produto ou serviço, como a ideia de que o “ter” determinada coisa é

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sinônimo de felicidade, ao mesmo tempo em que a campanha do próprio bem a ser

vendido não é tão intensa (LA TAILLE, 2008, p. 12).

Ainda, interessante saber que ninguém nasce consumista, haja vista que o

consumismo é um hábito implantado no indivíduo, uma espécie de ideologia:

Ninguém nasce consumista. O consumismo é uma ideologia, um hábito mental forjado que se tornou uma das características culturais mais marcantes da sociedade atual. Não importa o gênero, a faixa etária, a nacionalidade, a crença ou o poder aquisitivo. Hoje, todos que são impactados pelas mídias de massa são estimulados a consumir de modo inconsequente (INSTITUTO ALANA, 2015)

Para o mercado, a criança é considerada consumidor em processo de

formação e realmente o é, fato que pode ocasionar grandes mudanças no mundo

contemporâneo. Fato é que o consumidor de hoje, será o de amanhã. A criança

está, desta forma, sendo “educada” para o consumo indiscriminado de alimentos e

outros bens e, mesmo para práticas, que prejudicarão sua saúde no futuro.

As informações que estão sendo implantadas na mentalidade das crianças

acarretarão na formação de adultos com valores, costumes e hábitos diferenciados,

além de causar grande impacto ambiental, no sentido de esgotamento de recursos

necessários para sustentar a sociedade consumidora (MINISTÉRIO DO MEIO

AMBIENTE, 2013, p. 2).

Há autores que afirmam que, com o contato da criança com a publicidade,

ocorre a comercialização da infância, tendo em vista que as crianças são

“bombardeadas” com campanhas publicitárias do acordar ao dormir (SAMPAIO,

2009, p. 14).

Outrossim, tem-se que as crianças tendem a acreditar nas informações que

são passadas na televisão por exemplo, porque a sua autonomia intelectual e moral

não está formada. Assim, não há de se falar em resistência da criança em face da

publicidade, pois a capacidade de crítica é muito menor do que a de um adulto:

As autonomias intelectual e moral são construídas paulatinamente. É preciso esperar, em média, a idade dos 12 anos para que o indivíduo possua um repertório cognitivo capaz de liberá-lo, tanto do ponto de vista cognitivo quanto moral, da forte referência a fontes exteriores de prestígio e autoridade (LA TAILLE, 2008, p. 13).

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Por fim, constata-se que a criança tem dificuldade de discernir o que é real do

que não é, não consegue ter liberdade nas escolhas, porque os produtos e serviços

lhes são impostos de forma contínua, mesmo ante seu estado de

hipervulnerabilidade.

4.2 INFLUÊNCIA DA MÍDIA: SUBSÍDIOS DA JURIMETRIA5

A Jurimetria, nos dizeres de Maria da Glória Colucci (2015) “[...] é um

neologismo jurídico que se refere à técnica de interpretação de fatos jurídicos com

base em dados estatísticos e matemáticos. ” Assim, com o objetivo de analisar a

relação existente entre a mídia e a alimentação das crianças brasileiras, foram

elaborados alguns questionários.

A pesquisa foi realizada na cidade de Curitiba, Estado do Paraná. Para o

estudo, foi tomada como população de referência, os alunos, e pais de alunos, que

estudam em escolas de ensino fundamental das redes: municipal, estadual e

particular.

A amostra foi composta por dois grupos, sendo um de pais e o outro de

alunos. Foram 140 alunos, entre a idade de 5 a 12 anos, matriculados no ensino

fundamental, e 45 pais de alunos participaram da pesquisa.

Foi apresentada a seguinte questão para as crianças: “Quando você vê uma

propaganda na televisão (ou na internet) de uma comida bem gostosa, você pede

para os seus pais comprarem? ” As respostas podem ser verificadas através da

tabela a seguir.

5 As relações entre os dados coletados e a elaboração de gráficos foi elaborada pelo professor Edson Ademir Mantovan, graduado em Engenharia Industrial Elétrica pelo Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (1989), especializado em Matemática pela UNIPAR e mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002).

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COLETÂNEA 2 – HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

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Ilustração 1

Idade Sim Não 5 4 80% 1 20% 6 11 92% 1 8% 7 11 69% 5 31% 8 10 53% 9 47% 9 7 44% 9 56% 10 13 36% 23 64% 11 15 56% 12 44% 12 1 20% 4 80%

TOTAL 72 53% 64 47%

Verifica-se que mais da metade das crianças, 53%, pedem para que seus

pais comprem algum produto, que lhes é oferecido pela mídia, demonstrando que

são influenciados pelas propagandas na televisão ou internet. Observa-se também

que com o aumento da idade o percentual de filhos que pedem para os pais

comprarem algum produto diminui.

Pode-se estabelecer que na medida em que a criança cresce começa a

melhor discernir o que é bom para a saúde e a adquirir resistência à força da

publicidade, bem como que a educação é essencial para que as crianças sejam

conscientizadas a respeito da necessidade de uma alimentação saudável.

Ilustração 2

A ilustração 2 demonstra que 44% dos pais que responderam os

questionários, afirmaram que seus filhos pedem para comprar os produtos

oferecidos na mídia. Porcentagem que diverge da informação trazida pelas crianças,

44%

56%

Sim Não

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pois 53% afirmaram que pedem para que seus pais comprem os alimentos vistos na

grande mídia.

Ilustração 3

Sim/às vezes Não

Frequência % Frequência %

Menos de 2 anos 2 25% 0 75%

De 3 a 4 anos 2 50% 2 50%

De 5 a 6 anos 5 63% 3 37%

De 7 a 8 anos 9 53% 8 47%

De 9 a 10 anos 1 17% 5 83%

De 11 a 12 anos 1 20% 4 80%

De 13 a 14 anos 0 0% 3 100%

TOTAL 20 44% 25 56%

A ilustração 3 diz respeito à relação estabelecida entre a ilustração 2 (Quando

seu(s) filho(s) assistem(s) na televisão ou na internet, propaganda de um, ele(s)

pedem para vocês comprarem?) em função da idade das crianças.

Verifica-se na pesquisa realizada que, a partir dos 5 anos de idade, o

percentual de filhos que pedem para os pais comprarem produtos quando veem na

televisão ou internet, tende a diminuir com o aumento da idade.

Conforme consta na tabela, cerca de 63% das crianças com 5 e 6 anos de

idade pedem para os pais comprarem produtos vistos em publicidades, índice que é

muito menor entre as crianças de 9 e 10 anos de idade, que consiste em 17%.

Ilustração 4

69%

31%

Sim/às vezes Não

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Já a ilustração 4 demonstra que 69% dos pais que responderam “sim” ao

questionamento anterior (que representam 44% do total), quando questionados se

compram os produtos que seus filhos pedem quando veem na televisão ou na

internet, atendem aos pedidos dos filhos em função da insistência.

Por fim, observa-se que não é apenas responsabilidade das escolas

educarem as crianças para adquirirem uma alimentação saudável, mas a maior

responsabilidade encontra-se na família, tendo em vista a influência exercida pelos

pais e responsáveis na educação alimentar dos filhos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observando-se a televisão e o fascínio que este meio popular de

comunicação provoca nas crianças, percebe-se que a credibilidade dos pequeninos

é grandemente comprometida, pelo que lhes é passado pela mídia, de modo que

hábitos alimentares adquiridos na infância lhes são “impostos” subliminarmente

desde a mais tenra idade.

Partindo-se da constatação que a maioria dos bons e, também, dos maus

hábitos são criados na infância, verifica-se que a mídia em geral, quando tem como

público-alvo as crianças, aproveita-se da imaginação infantil fértil, fazendo com que

as crianças sejam altamente influenciadas a agirem de acordo com o que está

sendo transmitido.

Diante desse cenário, surgiu a ideia da pesquisa que foi realizada. Pesquisa

esta que se mostrou multidisciplinar, haja vista que seu tema englobou inúmeras

ciências, como, por exemplo, o Direito, a Psicologia, a Publicidade, a Sociologia, a

Nutrição, a Filosofia, entre outras.

Foi abordado na pesquisa o direito à alimentação e nutrição da pessoa

humana, com ênfase no que respeita aos direitos da criança, entretanto, antes disso,

foram analisados os direitos fundamentais, suas diferentes conceituações, bem

como sua evolução histórica.

Outrossim, apresentou-se a forma como o sistema jurídico brasileiro versa

sobre a alimentação, pode-se perceber que o direito à alimentação é assegurado

constitucionalmente, sendo a base do próprio direito à vida, como também,

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infraconstitucionalmente, através de leis ordinárias, que regulamentam o

fornecimento dos alimentos, sua distribuição, a qualidade, entre outros.

O artigo trouxe à baila o estudo, principalmente, da Lei de Segurança

Alimentar e Nutricional (Lei 11.346/06). Foram expostos os princípios fundadores da

Lei de Segurança Alimentar e Nutricional, como o da universalidade, equidade,

autonomia e dignidade humana. Assim, foi possível perceber que esse direito

fundamental deve ser assegurado a todas as pessoas, sem nenhum tipo de

distinção, para que, aí sim, possa se falar em dignidade humana.

Outra questão estudada na pesquisa foi a influência da mídia na alimentação

infantil. Para isso foi necessário abordar o estado de vulnerabilidade, ou, até mesmo,

de hipervulnerabilidade da criança.

Constatou-se que a vulnerabilidade é identificada quando a pessoa não tem

condições de avaliar os produtos e serviços que estão sendo constantemente

oferecidos nos diversos veículos de comunicação.

Além disso, demonstrou-se que a criança não consegue exercer sua

liberdade de escolha de forma autônoma, tendo suas escolhas fortemente

influenciadas, tendo em vista que são convidadas ao consumo de forma precoce.

Para o mercado, a criança é considerada consumidor em processo de

formação e realmente o é, fato que pode ocasionar grandes mudanças no mundo

contemporâneo. Observou-se que a criança está sendo “educada” para o consumo

indiscriminado de alimentos e outros bens e, mesmo para práticas, que prejudicarão

sua saúde no futuro.

A criança deveria ter a maior prioridade, tendo em vista o Princípio do Melhor

Interesse da Criança, haja vista que se encontra vulnerável e em desenvolvimento,

sem a plena capacidade de julgamento do que lhe é passado pela mídia, pela

família, pela população em geral.

Tornou-se evidente que, hoje, no Brasil, há um estado de insegurança

alimentar e nutricional. Assim, já que, atualmente, não há muitas regulamentações a

respeito, e que a obesidade infantil está se tornando uma epidemia, caberá à

população educar a criança para o consumo consciente e saudável, enquanto

providências, muitas vezes, não são tomadas pelo Estado.

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Por fim, percebeu-se que o tema pesquisado tem um amplo campo de

assuntos e enfoques, e quanto mais aprofundado, mais conduzirá à conclusão de

que deve estar constantemente em análise, pois seu objeto de investigação ainda

está longe do fim.

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A MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO COMO A CONSAGRAÇÃO DA

PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAMÍLIA MONOPARENTAL

THE REPLACEMENT OF MOTHERHOOD TO THE CONSECRATION OF THE

CONSTITUTIONAL PROTECTION OF THE SINGLE-PARENT FAMILY

Ana Lígia Bortoloci Martelli6

Camila Gil Marquez Bresolin7

SUMÁRIO

Resumo. 1 Introdução. 2 Monoparentalidade e as Procriações Artificiais. 2.1 Família Monoparental. 2.1.1 Dos Possíveis Fatores Determinantes da Monoparentalidade. 2.1.1.1 Celibato. 2.1.1.2 Mães Solteiras. 2.2 O Biodireito e as Procriações Artificiais. 2.2.1 Reprodução Humana Assistida. 3 A Maternidade de Substituição e a Questão da Filiação no Brasil. 3.1 As Mães de Substituição. 3.2 Das Várias Maneiras Encontradas para a Filiação. 3.2.1 Filiação Resultante da Procriação Assistida. 3.2.2 Filiação Biológica. 3.2.3 Filiação Afetiva. 3.2.4 Filiação Jurídica. 4 Conclusão. Referências.

RESUMO

O presente texto objetiva construir uma entidade familiar monoparental a partir da maternidade de substituição. Para que chegássemos a esse objetivo foi preciso compreender o que vem a ser a família monoparental, determinando alguns dos possíveis fatores para a sua consagração. Após, para gerar essa monoparentalidade com a instituição da maternidade em útero alheio, foi preciso falar sobre o biodireito. Constata-se, então, que há uma lacuna jurídica em relação à reprodução humana assistida heteróloga e a maternidade de substituição, verificando que sob essa perspectiva que não há criminalização jurídica para mães substitutas, além daquelas previstas na Resolução nº. 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina que ficam adstritas ao médico. Foi preciso compreender o que vem a ser a mãe substituta, e como deve ser aplicada a questão da filiação no caso da gestação em útero alheio. Palavras-chave: direito de família, família monoparental, maternidade de substituição, filiação.

ABSTRACT

This work was carried out in order to build a single-parent family unit from the replacement of motherhood. For us to reach this goal it was necessary to understand what has to be the single parent

6 Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba, Faculdade de Direito de Curitiba. 7 Mestre em Mestre em Direitos Humanos e Democracia (UFPR) tendo como linha de pesquisa, Cidadania e Inclusão Social. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos e Direito Civil, membro do Núcleo Docentes Estruturantes – NDE.

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family, determining some of the possible factors for its consecration. After, to generate that single parenthood with the institution of motherhood in alien womb, it had to talk about the biolaw. It appears, then, that there is a legal gap in relation to assisted human reproduction and heterologous surrogate motherhood, finding that from that perspective there is no legal criminalization for surrogate mothers, in addition to those set out in Resolution nº. 2.013/2013 the Federal Council of Medicine that are attached to the doctor. It was necessary to understand what comes to be the surrogate mother, and how it should be applied to the issue of membership in the case of pregnancy in other people's uterus. Keywords: family law, single-parent family, replacement of motherhood, membership.

1 INTRODUÇÃO

A compreensão da família que temos hoje passou por um processo histórico

de conquista de liberdades constitucionais.

Além da questão constitucional, o Código Civil de 1916, o Código de 2002, e

as demais leis que tratavam de matérias específicas (reconhecimento dos filhos

ilegítimos, estatuto jurídico da mulher casada e a lei do divórcio), também ajudaram

a proclamar a evolução da família patriarcal. A sociedade familiar brasileira evoluía e

o ordenamento não poderia ficar para trás.

A grande revolução ocorreu com o advento constitucional de 1988. A

Constituição Cidadã, pautada na dignidade da pessoa humana e no fato de atribuir

ao indivíduo a liberdade suprimida pelo regime ditatorial.

A Carta Magna de 1988 ao falar sobre a família introduziu duas novas

modalidades de entidade familiar: a união estável e a entidade monoparental que

surgiram para acompanhar a evolução da sociedade. Ademais, o artigo 226 do

ditame constitucional permitiu uma interpretação extensiva das entidades familiares,

criando assim, novas modalidades de família.

Pois bem, a partir dessa evolução, depreende-se que a maternidade de

substituição se estabelecerá a partir da reprodução humana assistida heteróloga,

com um ou os dois materiais genéticos doados. A regulamentação dessa técnica, e

as informações de como e quem pode ser mãe substituta estarão contidas nas

normas da Resolução nº. 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina, normas que

vinculam o copo médico e não o indivíduo comum.

Uma das problemáticas que afloraram com a lacuna jurídica pela não

regulamentação da maternidade de substituição foi a questão da filiação. Para que

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isso não fosse um impedimento para a construção da família monoparental, foi

preciso aprofundar em quais tipos de filiação, dentro das possíveis, a criança gerada

irá ter em relação à mãe substituta e o pai ou mãe idealizadores dessa nova família

monoparental.

2 MONOPARENTALIDADE E AS PROCRIAÇÕES ARTIFICIAIS

2.1 FAMÍLIA MONOPARENTAL

A monoparentalidade sempre existiu na nossa sociedade, principalmente nos

casos de mães solteiras (LEITE, 2003, p. 21), entretanto ela não era concebida e

protegida dentro do ordenamento jurídico. Com a alteração da Carta Magna de

1988, o seu preceito constitucional foi colocado no artigo 226, parágrafo 4º, o que

revelou uma nova visão do legislador em relação aos fatos corriqueiros advindos da

formação da família contemporânea.

Deste modo, podemos dizer que a família composta por somente um dos pais

e seus descentes recebeu um rótulo, uma denominação, e todos que estavam nessa

condição passaram a serem concebidos como entidades familiares monoparentais

(DIAS, 2013, p. 54).

Este tipo de entidade não é um fato recente, como já foi dito, assim sendo,

explana Leite que “os especialistas descrevem a ascensão ininterrupta das famílias

monoparentais como o fenômeno mais marcante da evolução da cédula familiar”

(LEITE, 2003, p. 31), ou seja, a monoparentalidade com o passar dos anos incorreu

em uma constante ascensão, na qual deve ser observada pelo legislador para não

deixar o ordenamento ficar obsoleto.

Podemos dizer que a monoparentalidade era mais comum em situações de

viuvez e das mães solteiras, entretanto, esse quadro alterou-se e nesse conceito de

família monoparental foram agregadas as situações que surgiram com a separação

dos cônjuges, divórcio (LEITE, 2003, p. 31), ou pelo simples fato de uma pessoa

optar por ter um filho sem ao menos ter constituído nenhum tipo de relação carnal,

como, por exemplo, nos casos de reprodução humana assistida heteróloga.

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Atualmente verificamos que a monoparentalidade não é somente uma

situação que surgiu por situações regressas, mas podendo ser, também, uma

escolha (LEITE, 2003, p. 31).

Esse novo núcleo familiar não tem regulamentação própria, ou seja, não há

leis que lhe digam como devem se organizar, ao contrário, por exemplo, do

casamento e da união estável que são tuteladas pelas regras do Direito Civil, no

campo de atuação do direito de família, onde os principais preceitos utilizados serão

aqueles que dizem respeito à filiação, parentesco e o exercício do poder familiar

(LÔBO, 2011, p. 89).

Sabemos que uma das maneiras de formação da entidade monoparental

surge com as chamadas mães solteiras, o que não foi especificado e deve ser, é se

essa mulher optou por ser solteira e consagrar o seu direito a gerar uma criança ou

se ela é mãe solteira por uma conjunção carnal momentânea. Indagaremos acerca

da primeira opção, ou seja, essa nova família que surge pode incorrer do fato que

essa mulher decidiu pelo celibato e mesmo assim quis desempenhar o seu papel de

mãe, então ela recorreu a uma produção independente (GAGLIANO; PAMPLONA,

2013, p. 512), pela reprodução humana assistida heteróloga, e se houver algum

impedimento biológico a maternidade de substituição poderia ser a sua opção.

Considerando que a família deixou de ser hierarquizada/patrimonial e a

comunidade feminina evoluiu a passos largos, com a mulher saindo de casa e indo

trabalhar e conquistando o seu espaço econômico na sociedade, declara-se por

muitos como que essa marca principal da evolução criou também um novo fator

intrigante, as mulheres postergaram a maternidade em prol do seu sucesso

profissional e para conceber o seu desejo de ser mãe recorreram a técnicas de

inseminação artificial (TEIXEIRA; PARENTE; BORIS, 2009, p. 27), sendo que em

alguns casos a maternidade de substituição teve que ser considerada como o meio

para a consagração do seu direito constitucional da formação da família

monoparental.

Atestando os estudos praticados até agora e conferindo os dados fornecidos

pelo IBGE8, na sua Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do ano de 2012,

8 IBGE, sigla para Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, onde a sua missão é "retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento da sua realidade e ao exercício da cidadania". IBGE. Disponível em:

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comprovamos que num total de 41.788 lares pesquisado, 25,7% das famílias

formadas são apenas com um dos cônjuges e sua prole, tendo como referência

pessoa do sexo feminino e apenas 3,4% tem como referência pessoa do sexo

masculino9, sendo que na região metropolitana de Curitiba, na totalidade de 706

famílias entrevistas esses dados se confirmam, tendo os mesmo 3,4% para

referência pessoa do sexo masculino e 22,4% a pessoa de referência é do sexo

feminino10.

A pesquisa não informa o motivo pelo qual ocorreu a monoparentalidade, mas

comprova uma realidade constante no nosso mundo atual.

Outro dado que chama à atenção está no Censo Demográfico de 2010

realizado pelo IBGE, onde a composição de 2.342.003 de famílias é por mulheres

sem cônjuges e com filhos, ou seja, uma entidade familiar monoparental, e cerca de

991.872 são compostos por casais sem filhos e 1.047.381 são de casais com

filhos11.

As informações, mais uma vez, só tendem a comprovar que no referido ano

da pesquisa os lares com monoparentalidade eram maiores do que aqueles

compostos por casais sem e filhos e com filhos em conjunto.

Ainda a respeito da coleta de dados de 2010, temos que 87,2% (50 milhões)

das unidades domésticas pesquisadas são compostas por duas ou mais pessoas

com grau de parentesco, essa consulta foi realizada em 53 milhões de unidades

domésticas12.

Os elementos que foram trazidos com as pesquisas realizadas pelo IBGE não

apontam detalhadamente os fatores que levaram parte dos lares serem compostos

pela monoparentalidade, mas comprovam, de maneira acertada, o que a

Constituição de 1988 elencou no seu artigo 226, parágrafo 4º, abrangendo e

legitimando esse novo modelo social de família.

<http://www.ibge.gov.br/home/disseminacao/eventos/missao/default.shtm>. Acesso em: 11 out. 2014. 9 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do ano de 2012. p. 11. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/mapa_site/mapa_site.php#populacao>. Acesso em: 11 out. 2014. 10 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do ano de 2012. p. 11. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/mapa_site/mapa_site.php#populacao>. Acesso em: 11 out. 2014. 11 IBGE. Censo Demográfico do ano de 2010. Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/popul/default.asp?t=2&z=t&o=25&u1=1&u2=1&u3=1&u4=1&u5=1&u6=1>. Acesso em: 11 out. 2014. 12 IBGE. Censo demográfico: 2010 - famílias e domicílios. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=797>. Acesso em: 11 out. 2014.

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A entidade familiar monoparental, sendo composta principalmente pela mãe

como pessoa de referência acarreta ao Estado outras problemáticas. Algumas de

natureza jurídica e outras de natureza econômica.

Em relação as implicações jurídicas seriam os litígios sobre alimentos,

regulamentação da guarda e visita, bem como a questão do divórcio, e a de

natureza econômica compreenderia o entendimento de que em muitos os casos as

mulheres não têm capacitação para o mercado de trabalho (LEITE, 2003, p. 25), ou

não conseguem sustentar a casa sozinha, procurando o poder público para prestar

assistência (DIAS, 2013, p. 224-225).

A monoparentalidade tem várias origens, sendo elas o celibato, o divórcio ou

separação, a união livre, as mães solteiras e a viuvez, apresentaremos e

especificaremos duas modalidades dessa entidade familiar, o celibato e as mães

solteiras (LÔBO, 2011, p. 88 – 89).

2.1.1 Dos Possíveis Fatores Determinantes da Monoparentalidade

2.1.1.1 Celibato

O celibato é a condição de vida atual adota pelos jovens brasileiros, onde

casa-se cada vez menos (LEITE, 2003, p. 33). A explicação para tal fato decorre da

ordem econômica, segundo Leite (LEITE, 2003, p. 33). Cerca de 12,1% das

unidades domésticas, de uma totalidade de 57 milhões de lares pesquisados, são

compostos por unidades unipessoais, ou seja, de pessoas que viviam sozinhas,

esses dados foram extraídos do Censo Demográfico de 201013. Na realização de um

comparativo do Censo Demográfico do ano 2000 vemos que o número de lares

nessas condições apresentou um crescimento expressivo, tendo em vista, o número

de apenas 9,2%14 em 2000 para 12,1% em 2010.

13 IBGE. Censo demográfico: 2010 - famílias e domicílios. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=797>. Acesso em: 13 out. 2014. p. 65. 14 IBGE. Censo demográfico: 2010 - famílias e domicílios. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=797>. Acesso em: 13 out. 2014. p. 67.

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Partindo da análise dos dados coletados pelo IBGE no ano de 2010, ainda

temos a seguinte situação: 58,9% das unidades domésticas são compostas por

homens solteiros e 38,7%15 por mulheres com o mesmo Estado Civil. Verifica-se,

também, que 16% dessas mulheres que compõe os lares unipessoais tem ensino

superior contra 11,9% dos homens16.

A despeito do que foi analisado pelo IBGE, o doutrinador Leite faz uma

observação acerca dessa opção estabelecida pelos brasileiros, em que se constata

que embora solteiros essa parte da população não vive sozinha, aliás, pelo

contrário, a maioria tem parceiros sexuais com os quais vive em uniões livres, mas

que não gerem compromisso em longo prazo, caracterizando uma não obrigação

(LEITE, 2003, p. 35). Dias ainda complementa argumentando que não há sequer a

configuração de união estável, pois apesar do pouco comprometimento que a união

livre gera, ainda sim não configuraria vínculo legal (DIAS, 2013, p. 222).

Outro fator que vem a causar a opção pelo celibato está fundamentado na

nova opção escolhida em relação aos estudos em que produziria,

consequentemente, uma melhora no posicionamento do mercado de trabalho. As

pessoas estão estudando mais e acabam por adiar um possível matrimônio (LEITE,

2003, p. 36).

O celibato como opção de vida e fundamento da família monoparental, vai

respaldar um novo advento da modernidade, a procriação a partir de produções

independentes (DIAS, 2013, p. 222), a mulher teria total liberdade para procriar e

permanecer solteira, este fato só foi possível porque a ciência revolucionou o mundo

feminino com a criação da pílula anticoncepcional acarretando a liberdade sexual e

fornecendo a essa mulher a dissociação do conceito de maternidade e casamento

(LEITE, 2003, p. 72).

Consagra-se aqui, a monoparentalidade feminina com a sua efetivação a ser

escolhida e não imposta.

15 IBGE. Censo demográfico: 2010 - famílias e domicílios. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=797>. Acesso em: 13 out. 2014. p. 88. 16 IBGE. Censo demográfico: 2010 - famílias e domicílios. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=797>. Acesso em: 13 out. 2014. p. 89.

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Além disso, a entidade familiar monoparental formada por mulheres, destaca-

se também pela sua consagração a partir da reprodução humana assistida

heteróloga.

Nesses casos não há a identificação do sêmen doado e a mulher não

necessitaria de uma relação sexual casual para ter o seu direito à maternidade

alcançada (DIAS, 2013, p. 223). Mais uma vez, estaríamos diante da aplicação do

artigo 226, parágrafo 4º da Constituição Federal de 1988.

A maternidade de substituição estabelecida na Resolução nº. 2.013/2013 do

Conselho Federal de Medicina17 elenca as possibilidades da reprodução humana

assistida ocorrer em útero alheio, criando mais uma maneira da família

monoparental e o método para a sua formação.

Os preceitos que irão conduzir e fundamentar a possibilidade do celibato

feminino e a constituição da monoparentalidade de forma assexuada será as

premissas já expostas nesse trabalho, sendo elas, a dignidade da pessoa humana, a

pluralidade das formas familiares, afetividade e a paternidade responsável. Os

esclarecimentos já apresentados sobre cada um desses princípios só formalizam e

garantem a sua aplicação, confirmando que o modelo tradicional de família não cabe

no novo contexto social do Brasil.

Atingido a todas essas premissas não tem o porquê não contemplar a

formação a futura mãe solteira como formadora da entidade monoparental.

2.1.1.2 Mães solteiras

A entidade familiar monoparental se revela como composta por mães solteiras

(LEITE, 2003, p. 71). No tocante a essa composição temos que anteriormente essas

famílias surgiam por causa de atos realizados por jovens de modo imaturo.

Entretanto, segundo Leite, as mães solteiras dos tempos modernos exprimem uma

característica diversa daquela descrita como imatura (LEITE, 2003, p. 71-72).

Essa afirmativa, porém, não implica em dizer que os filhos concebidos a partir

de uma prematuridade não existam mais, aliás, implica em dizer que para essas

mulheres a família monoparental existente é mais sacrificante do que em

17 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.013/2013. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/images/PDF/resoluocfm%202013.2013.pdf>. Acesso em: 13 out. 2014.

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comparação àquelas que planejaram e independem do ônus atribuído com essa

situação (LEITE, 2003, p. 72).

À medida que verificamos as formas que a monoparentalidade foi conferida

para as mulheres, constata-se que enquanto uma categoria feminina optou de modo

consciente para essa formação (LEITE, 2003, p. 72), seja por meio de inseminação

artificial (DIAS, 2013, p. 222), outra parte formadora da entidade familiar

monoparental aflorou por circunstâncias alheias (divórcio ou separação, viuvez,

relação carnal ocasional).

Para Leite (LEITE, 2003, p. 72), a utilização dos métodos anticoncepcionais

com a sua expansão e conscientização populacional diminuiu a grupo de mães

solteiras. Este fato fez com que autor concluísse que a monoparentalidade tornou-se

uma opção para a mulher, optando por ela em formar essa família ou não.

Semelhante ao acontecimento da escolha, a pílula permitiu à mulher realizar a

dissociação da maternidade e do matrimônio (LEITE, 2003, p. 72) e a partir da

revolução sexual a maternidade foi diferenciada da sexualidade. Não era mais

necessário constituir um casamento para ter filhos, aliás, a possibilidade da

gestação e da criação autônoma da sua prole reafirmou mais uma mudança no

corpo social atual, as mulheres têm capacidade de educar um filho sozinho, bem

como sustentá-lo financeiramente, sem a necessidade da presença masculina

(LEITE, 2003, p. 73).

Com a libertação feminina do matrimônio para a constituição da sua prole que

agora passa a ser de maneira independente, uma das opções ofertadas para a

mulher consiste na reprodução humana assistida heteróloga (aquela em que o

esperma é doado por terceira pessoa, segundo Dias) (DIAS, 2013, p. 223), gerando

uma situação em que essa futura mãe possa a vir exercer o seu direito

constitucional protegido de construir uma família (DIAS, 2013, p. 223) e que será

alcançado na ótica dos princípios, principalmente da afetividade e da pluralidade das

formas familiares.

Em algumas ocasiões a mulher que deseja ter o seu filho tem algum

impedimento biológico que faz com que o seu corpo não possa gestar a gravidez

desejada. Nesses casos, a medicina avançou e concedeu a essas mulheres o direito

de ser mãe pela Reprodução Assistida. Deste modo, com impedimentos biológicos a

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futura mãe solteira necessitará de uma doação temporária do útero e para tal deverá

elencar uma das possibilidades da Resolução nº. 2.013/2013 do Conselho Federal

de Medicina18.

Devemos lembrar que é direito fundamental o bem-estar e a dignidade da

pessoa humana, ambos elencados na nossa Carta Magna de 1988 e na Declaração

Universal dos Direitos Humanos (ESPÍNDOLA, 2003, p. 91-108). Pois bem, não

podemos negar a essa mulher a sua dignidade constitucional, suprimindo a

construção de uma família elencada no artigo 226, parágrafo 4º da Constituição

Federal, somente pelo modo como ela irá ser constituída.

Depois do que foi exposto em relação a família monoparental e as suas

modalidades, iremos demonstrar como formar essa entidade familiar a partir da

reprodução humana assistida, para assim contemplar a maternidade de substituição

dentro dos preceitos de monoparentalidade.

2.2 O BIODIREITO AS PROCRIAÇÕES ARTIFICIAIS

O progresso tecnológico inspirou o desenvolvimento no campo da biologia e

da medicina, (LEITE, 2001, p. 102) de modo que através destes avanços surgiram

algumas implicações em relação a este novo comportamento biológico associado

com a evolução da bioética. No campo do sistema jurídico constatou-se a

necessidade de implementação de normas que visavam à garantia (LEITE, 2001, p.

102), em termos de legalidade, das pesquisas realizadas e da ascensão científica.

O florescimento dessa revolução atestou uma nova preocupação social que

nas palavras de Leite “provocou reações em cadeia para as quais o homem não

estava preparado” (LEITE, 2001, p. 102). Assim, diante das interferências realizadas

nos processos de procriações artificiais o ser humano averiguou que essa

manipulação mudaria a maneira de composição da sociedade (BRAUNER, 2003, p.

150-151), gerando alterações nas formações familiares e ampliando a possibilidade

da família monoparental a partir da maternidade de substituição, oriunda da

reprodução humana assistida heteróloga.

18 Verificar o item VII que dispõe sobre a gestação de substituição. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.013/2013. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/images/PDF/resoluocfm%202013.2013.pdf>. Acesso em: 14 out. 2014.)

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Algumas das implicações que surgiram com a biotecnologia estão presentes

nas inseminações artificiais, onde para o corpo médico e científico não acarreta

maiores transformações, mas no universo da legalidade gera inquietudes ainda não

sanadas (LEITE, 2001, p. 103).

Em decorrência da reprodução humana assistida na modalidade heteróloga, a

concepção da maternidade-filiação necessitaria da intervenção do poder judiciário,

uma vez que a real filiação da criança que foi concebida deverá ser aplicada. Por

exemplo, em casos em que há a maternidade de substituição incorre em erro o

nosso sistema jurídico, pois considera quem gestou como mãe (LEITE, 2001, p.

103).

A necessidade de normas para responder a essa nova mudança de

concepção da prole e ao mesmo tempo a repentina evolução da reprodução

assistida ocasionou a seguinte indagação (LEITE, 1995, p. 139): todos têm o direito

de ter filhos não importando o meio utilizado para a sua criação?

Entendemos que a resposta para esse questionamento é complexa, pois

teremos que resgatar algumas premissas, tais como a dignidade da pessoa humana

e a pluralidade das formas familiares, posto que a sua aplicação deverá ser

analisada em cada caso concreto, já que em cada situação o direito deverá agir

sempre pensando no melhor para a as partes envolvidas nesse processo.

Continuando com o a indagação sobre a legalidade, temos que para que haja

uma maior compreensão do que será abordado em uma lei que envolva os

elementos da procriação e desenvolvimento da biotecnologia, necessitar-se-á contar

com a colaboração de médicos, filósofos, assistentes sociais e juristas (LEITE, 1995,

p. 104), já que cada profissional irá elencar os elementos necessários acerca da sua

construção ideológica e racional no âmbito da sua especialidade.

Essa interdisciplinaridade retira do especialista em criação de leis a carga

axiológica a despeito do tema suscitado, em razão de disseminar para os demais

experts do assunto à responsabilidade de realizar conceitos e principalmente impor

limites éticos para os que irão utilizar desse novo conhecimento conquistado no

âmbito da reprodução assistida. Entretanto, como argumenta Leite “o direito deve,

seguramente, intervir no campo das técnicas biomédicas, quer para legitimá-las quer

para proibir ou regulamentar outras” (LEITE, 1995, p. 107).

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A respeito do que foi explanado sobre a aplicação do biodireito nas

procriações artificiais temos que observar que o tema é consideravelmente vasto e,

como tal, ainda não foi apreciado em sua completude pelo Congresso Nacional

(LEITE, 2001, p. 109-110). No caso, por exemplo, da maternidade de substituição

ainda não há uma lei que regulamente a sua possibilidade, o que verificamos hoje é

a sua aplicação baseada na Resolução nº. 2.013/2013 do Conselho Federal de

Medicina (CFM) (LEITE, 2001, p. 111), que abrange os preceitos biológicos e éticos

para o médico conduzir os meios da reprodução assistida.

Os preceitos elencados na Resolução do CFM não são normas jurídicas, tal

que a sua aplicabilidade, e possíveis consequências, estão limitadas ao contexto

médico, podendo acarretar sanções de ordem disciplinar (LEITE, 2001, p. 110), mas

não estão sujeitas a uma penalidade jurídica, exceto nos casos de danos morais

(LEITE, 2001, p. 110). Conquanto, o judiciário poderá intervir, somente mediante

provocação da parte afetada, independente da condenação no Conselho Federal de

Medicina.

Sob a ótica da construção da entidade familiar monoparental e a partir do

princípio da pluralidade das formas familiares, verificamos que a reprodução

assistida heteróloga cumulado com a maternidade de substituição é uma vertente

possível para a elaboração de um projeto de vida pautado no artigo 226, parágrafo

4º da Carta Magna. Entretanto, o seu possível impedimento estaria na visão

biomédica e não no suporte jurídico, tendo em vista que “o vazio jurídico torna tudo

possível”, conforme argumenta Leite (LEITE, 2001, p. 104).

Outra problemática a ser inserida com a criação da família nos moldes acima

sugeridos estará relacionada com a filiação, dado que o Direito não possui normas

suficientes para arcar com essa nova revolução e deverá buscar nos princípios as

respostas para tais conflitos (LEITE, 2001, p. 104).

2.2.1 Reprodução Humana Assistida

Com a evolução da biotecnologia e as descobertas no ano de 1932 com

Ogino e Knauss sobre a o ciclo reprodutivo feminino e consequentemente a

determinação dos períodos fecundos da mulher e em 1945 com Jean Rostand

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acerca da conservação dos espermas a partir do congelamento, se permitiu a

criação de um banco de conservação de espermas (LEITE, 1995, p. 31-32).

Deste modo, a partir da conservação do esperma com o emprego do glicerol

(LEITE, 1995, p. 31) e das descobertas sobre o momento fértil da mulher foi possível

criar um momento alheio, e assexuado, para a procriação (LEITE, 1995, p. 31).

Neste momento verificamos a solução para problemas que antes eram considerados

um mistério para a humanidade, ou seja, a procriação em laboratório.

A independência acerca da reprodução humana também nos remete a mais

uma revolução que foi baseada no modo como a sociedade passou a viver e

conduzir as suas relações conjugais (DIAS, 2013, p. 375). As filiações e os

relacionamentos tiveram uma nova roupagem e passaram a conceber a

inseminação artificial como novo meio de se reprodução.

O direito teve que se adequar a essa nova forma de filiação e para tal

incrementou no artigo 1.59719 do Código Civil algumas das influências trazidas com

a biotecnologia. Porém, o Diploma Infraconstitucional não é suficientemente

completo, pois deixa de tutelar outras situações onde há a concepção da entidade

familiar a partir do método da inseminação heteróloga, e, como analisa Dias a

“regulamentação tão acanhada encontra como justificativa não estar o tema

suficientemente amadurecido, trazendo problemas altamente técnicos, que ficam

mais bem acomodados em lei especial” (DIAS, 2013, p. 375).

O que estamos mencionando são os casos da família monoparental, onde a

sua concepção/formação será mediante a maternidade de substituição, no qual, o

Código Civil é omisso.

A Resolução nº. 2.013/13 do Conselho Federal de Medicina, embora não seja

lei e não gere ato vinculante à sociedade, mas somente ao corpo médico, anuncia

alguns dos preceitos básicos para as técnicas de reprodução assistida, trazendo

19 “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: (...) III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 03 nov. 2014.)

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58

princípios gerais que devem ser observados pelos profissionais que estarão

envolvidos no procedimento.

A propósito, a supra Resolução também irá legitimar quem pode ser elencado

no rol de pessoas reconhecidas como possíveis pacientes da reprodução assistida.

O grande marco desse item II20 está na possibilidade de pessoas solteiras serem

identificadas como pacientes da RA (reprodução assistida), ou seja, aqui temos a

perspectiva da formação da família monoparental.

Em relação aos gametas e o sistema encontrado pelo Conselho Federal de

Medicina no que tange a doação, temos que alguns critérios devem ser observados.

Sendo eles elencados no item IV da Resolução nº. 2.013/13, tais como a idade do

doador, a obrigatoriedade da não comercialização do material genético, bem como a

garantia do anonimato21.

Dentre reprodução humana assistida, a modalidade de reprodução heteróloga

é a que mais nos interessa, pois ela pode ser definida como aquela em que um dos

materiais genéticos utilizados para a fecundação, o espermatozoide ou o óvulo,

pertencerá a um terceiro, ou seja, a um doador anônimo (LEITE, 1995, p. 34). Pode

ocorrer também que o indivíduo que optar pelo uso dessa técnica sofra de

esterilidade, e neste caso, necessite que os dois materiais genéticos sejam de um

terceiro, conforme Gama “nas técnicas de reprodução heteróloga, são utilizados

gametas de terceiros – tanto na doação de espermatozoides, quanto na doação de

óvulos –, diante da impossibilidade do homem/mulher fornecerem seus próprios

gametas” (GAMA, 2003, p. 274).

Essa modalidade contempla o marco da concepção da família monoparental,

pois consegue estabelecer a proliferação da prole a partir da ausência da relação

carnal e, também, a partir da não necessidade de ter um companheiro/companheira

para fornecer o material genético necessário.

Com essa técnica de reprodução heteróloga nenhum dos materiais genéticos

precisa ser do futuro pai/mãe da criança a ser gerada, Leite nos instrui a respeito do

20 “II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA: 2 - É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência do médico.”. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.013/2013. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/images/PDF/resoluocfm%202013.2013.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2014.) 21 Lembrando que essas são alguns dos critérios utilizados, entretanto, o CFM na Resolução 2.013/13 elenca mais algumas especificações no item - IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES da Resolução anexo.

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59

assunto que “A partir da descoberta da possibilidade de inseminar seres humanos

tornou-se viável o nascimento de uma criança por outros meios, além dos naturais. ”

(GAMA, 2003, p. 149).

Sabe-se que a reprodução humana homóloga também é uma evolução dentro

do direito de procriação, mas não será abordado dentro desta discussão sobre a

família contemporânea, principalmente porque não coaduna com a

monoparentalidade e a maternidade de substituição, sendo a sua concepção pela

inseminação artificial heteróloga.

A ciência consagra a vida a partir da evolução científica e com isso contempla

a sociedade e o Direito com as novas fórmulas distintas de família. Necessário,

agora é entender o que vem a ser a maternidade de substituição e como se dará a

questão da filiação da criança, e o mais importante, quem exercerá a

maternidade/paternidade-filiação.

3 A MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO E A QUESTÃO DA FILIAÇÃO NO

BRASIL

3.1 AS MÃES DE SUBSTITUIÇÃO

Para começar a propagação da concepção da família monoparental a partir

da maternidade de substituição, primeiro devemos entender o que venha a ser essa

mãe substituta e conforme ensina Dias “Gestação por conta de outrem, maternidade

por substituição ou sub-rogação são expressões que nada mais significam do que a

conhecida barriga de aluguel” (DIAS, 2013, p. 379)

Sabemos que essa prática nasceu com a evolução das reproduções

assistidas (GAMA, 2003, p. 744) – reprodução humana assistida heteróloga – em

que há a introdução dos gametas fecundados no corpo de quem se comprometeu a

gestar, de forma onerosa ou não, a criança que vai ser entregue a outrem (LEITE,

1995, p. 187).

As mães substitutas que emprestam o seu corpo para outra pessoa (que pode

ser tanto do sexo feminino quanto do sexo masculino), não devem tentar criar um

vínculo com a criança que está para nascer pelo simples fato a gestou. A doadora

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60

temporária do útero é apenas um meio para atingir o objetivo final, objetivo esse que

não a pertence, mas sim àqueles que tanto sonharam com o projeto de

parentalidade, e Gama, de forma brilhante nos explica que “(...) dissociam-se o

desejo da maternidade e a gravidez (...)” (GAMA, 2003, p. 745).

A maternidade de substituição abalou a premissa que mater sempre certa est

(determinada pelo parto) (DIAS, 2013, p. 380), pois nesse caso a maternidade-

filiação não é certa, já que quem carregou o feto pelos 9 (nove) meses não vai ser a

mesma pessoa que será de modo efetivo a mãe ou pai da criança nascida, mesmo

que quem consta na Declaração de Nascido Vivo seja a mãe substituta.

A partir de agora o que necessitamos saber é qual o tipo de filiação que

deverá ser atribuída a quem optou pela reprodução humana assistida heteróloga e

maternidade de substituição com a doação, em qual classificação se enquadra essa

hipótese.

3.2 DAS VÁRIAS MANEIRAS ENCONTRADAS PARA A FILIAÇÃO

3.2.1 Filiação Resultante da Procriação Assistida

O primeiro elemento que deverá ser observado sobre a filiação resultante da

procriação assistida está na ausência da relação carnal para a constituição da prole.

Essa ausência implicará diretamente na filiação (GAMA, 2003, p. 472) oriunda desse

meio.

A reprodução humana assistida heteróloga é que vai acarretar em maior grau

de complexidade, na questão da filiação, em relação ao filho concebido, pois o

material que será utilizado não pertence a um dos indivíduos envolvidos nessa

técnica, podendo ser o espermatozoide ou óvulo advindo de doação. Portanto, o

caráter biológico do vínculo de paternidade/maternidade será, nas palavras de

Gama “secundário” (GAMA, 2003, p. 473).

À medida que a doação dos gametas existe, os doadores não poderão

reclamar (GAMA, 2003, p. 473) nenhum laço jurídico para com a prole gerada a

partir das técnicas de reprodução (FACHIN, 1999, p. 207). Nota-se que os novos

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61

métodos de reprodução moveram algumas das estruturas consideradas sólidas do

Diploma Civil.

Tendo em vista, que o fator biológico não será determinante para o vínculo

jurídico da paternidade (DIAS, 2013, p. 361), o Direito teve que se aprimorar e

buscar respostas nos seus princípios constitucionais.

A pluralidade das formas familiares e o livre planejamento familiar que está

elencado na Constituição de 1988, artigo 226, parágrafo 7º e confirmado no Código

Civil no artigo 1.565, parágrafo 2º22, fundamentam que o indivíduo tem a livre

escolha para a constituição da sua família, e, a aplicação do método da procriação

artificial influenciaria nessa nova estrutura formada. Neste sentido, define Dias que a

constituição da família pela concepção da monoparentalidade e maternidade de

substituição “também significa a realização de projeto de parentalidade” (DIAS,

2013, p. 366).

Quando ocorre que nenhum dos materiais genéticos que estão sendo

utilizados não está vinculado diretamente com o futuro pai/mãe da criança desejada,

o aspecto da filiação, mais uma vez quando da aplicação do Direito será mitigada, já

que o filho nascido não pertence a nenhuma das pessoas responsáveis pelo

material genético utilizado (consequentemente doado), mas sim aquele/aquela que

pretende formar esse novo modelo familiar - monoparental.

No mais, todos os indivíduos detêm o direito constitucional de compor uma

família, mesmo que ela seja oriunda desse novo modelo reprodutivo criado pela

biotecnologia. O direito não pode deixar de olhar para essa nova realidade de

formação da sociedade e deve consolidar um entendimento acerca deste assunto.

Sabemos que a filiação tem algumas derivações, dentre elas a jurídica,

afetiva e biológica. Neste momento iremos abordar a filiação na sua modalidade

biológica.

22 “Art. 1.565: Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. (...) § 2o O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 25 out. 2014.)

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3.2.2 Filiação Biológica

A filiação decorrente da verdade biológica é também chamada de verdade

real (DIAS, 2013, p. 372). Para se considerar o vínculo biológico dos filhos gerados,

iremos apresentar somente uma das possibilidades que a reprodução humana

assistida heteróloga nos remete: a inseminação com somente um dos materiais

genéticos doados (óvulo ou esperma) e outro material com o vínculo biológico do

indivíduo requerente dessa biotecnologia.

Dentro dessa modalidade de reprodução assistida, devemos considerar que

mesmo sem a constância da relação carnal o indivíduo portador da sua autonomia

da vontade (LEITE, 1995, p. 203) pode e recorrer para a inseminação artificial como

meio de proliferação do seu DNA. Assim, partindo da vontade expressa do sujeito

temos que ele será pai ou mãe biológico dessa criança, exercendo a paternidade-

filiação ou a maternidade-filiação.

A vontade que está estabelecida neste caso é o elemento fundador do sujeito

(GAMA, 2003, p. 693), pois ele opta por querer ter esse filho, o seu desejo fala mais

alto e para tal busca-se pela procriação artificial.

A criança que nasce sob essas condições não causa alguma contestação em

relação ao elo biológico que surgiu, pois se comprova que houve a utilização do

DNA da parte pretendente. Como já foi mencionado anteriormente, o doador não

tem nenhum vínculo jurídico de filiação para com a prole gerada a partir do material

doado.

Na hipótese abordada ainda não foi considerada a questão que envolve os

celibatários masculinos e femininos (mães e pais solteiros por opção) que desejam

constituir uma entidade familiar recorrendo à maternidade de substituição,

ressaltando que o um dos materiais genéticos pertence ao sujeito que anseia pela

formação da família monoparental.

No Brasil não gozamos de lei específica que regulamente o tema da filiação

cumulado com a doação temporária do útero, por conseguinte, invocaremos a

Resolução nº. 2.013/13 do Conselho Federal de Medicina para tentar nos

encaminhar sobre qual o procedimento em relação à filiação deverá ser abordado.

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63

Segundo o item VII da supra Resolução, mais especificadamente no disposto

três23 que trata sobre a documentação e as observações que deverão constar no

prontuário do paciente o conteúdo da a filiação deverá estar no contrato realizado

pelas partes acordantes, ou seja, a mãe substituta e futuro pai/mãe da prole gerada,

qualificando a filiação biológica.

O contrato estabelecendo a filiação se faz necessário devido a Declaração de

Nascido Vivo que o hospital emite para que ocorra o Registro Civil da criança que

acabou de nascer24. Nessa declaração quem irá constar como mãe biológica do

recém-nascido será a mãe substituta, tendo em vista que quem se coloca como

mãe, perante o direito, é quem gestou e deu à luz a criança.

Essa presunção decorreria do artigo 1025, inciso IV do Estatuto da Criança e

do Adolescente, segundo Araújo e Cabral, e, para Gama essa hipótese de

maternidade estaria embasada na premissa mater sempre certa est, em que nas

palavras do autor este acontecimento estaria “diante dos fatos evidentes que

demonstram a maternidade em virtude da gravidez e do parto” (GAMA, 2003, p.

484), ou seja, sendo unicamente o vínculo biológico (GAMA, 2003, p. 484).

Em virtude dos fatos analisado acima, a transação realizada pelas partes se

faz necessária, confiando segurança jurídica para a parte contratante poder exercer

o seu direito de elo biológico com o filho nascido. Caso não haja esse entendimento,

a filiação afetiva que será abordada em sequência deverá ser observada.

23 “VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)

(...) 3 - Nas clínicas de reprodução os seguintes documentos e observações deverão constar no prontuário do paciente: (...) Contrato entre os pacientes (pais genéticos) e a doadora temporária do útero (que recebeu o embrião em seu útero e deu à luz), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança;”. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2013/2013. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/images/PDF/resoluocfm%202013.2013.pdf>. Acesso em: 27 out. 2014.) 24 ARAÚJO, Luiza Costa; CABRAL, Vívian Boechat. A necessária disciplina do útero de substituição, a onerosidade do contrato e a facilitação do registro civil da criança. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, Porto Alegre, v. 35, p. 62, Ago-Set. 2013. 25 “Art. 10. Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicos e

particulares, são obrigados a: (...) IV - fornecer declaração de nascimento onde constem necessariamente as intercorrências do parto e

do desenvolvimento do neonato;”. (BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 27 out. 2014.)

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3.2.3 Filiação Afetiva

A filiação afetiva tomou o espaço que antes era ocupado de forma singular

pela filiação biológica (NOGUEIRA, 2011, p. 84) e nas palavras de Dias “o estado de

filiação deligou-se da verdade genética”, (DIAS, 2013, p. 372) deste modo, o

verdadeiro vínculo a ser estabelecido entre os pais e uma criança não estará

pautado em nenhum momento pelos cromossomos que a formaram, mas sim por

algo que não há identidade e que a lei não consegue dar forma: o laço afetivo.

A verdade consanguínea de paternidade-filiação ou maternidade-filiação gera

uma determinação perante o direito, ou seja, o pai/mãe é obrigado, perante

imposições da lei, contribuir para com a criação do filho (NOGUEIRA, 2011, p. 85).

Entretanto, não existe essa determinação para o elo criado a partir do afeto, o

parentesco se cria com um véu de amor que não há explicações ou predefinições.

O Código Civil no seu artigo 1.59326 estipula que a filiação pode ter origem

distinta do natural, ou seja, o embasamento jurídico da nova configuração de filiação

estará pautado no supra artigo. Esse tópico do Diploma Civil contribuiu para a

formação da filiação civil, sendo através da posse de estado de filho com a

denominada “outra origem”, isto é, a socioafetiva (DIAS, 2013, p. 381).

A designação de posse de estado de filho como esclarece Gama “trata-se do

vínculo que decorre da relação socioafetiva constatada entre filhos e pais – ou entre

o filho e apenas um deles – tendo como fundamento o afeto” (GAMA, 2003, p. 482).

Essa posse de estado apresenta para o direito algo que tem a aparência de ser

verdadeiro (LÔBO, 2004, p. 49), ou seja, a convivência familiar entre a criança e o

pai/mãe, sendo ela pautada nos princípios da afetividade e da paternidade

responsável.

O direito de ter um filho que não foi concebido com o seu material genético e

ter o grau de parentesco com ele admitido pelo direito nos remete novamente a

posse do estado de filho, que terá como fator fundante à vontade (LEITE, 1995, p.

205) do sujeito de procriar, mesmo que essa reprodução ser de forma artificial e com

a gestação a partir do útero alheio. Nesse momento, a filiação afetiva estará

26 “Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 28 out. 2014.)

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elencada como o resultado do desejo de ter, criar, amar e ser o responsável pela

prole que está por vir, ou que já nasceu.

Posto isto, temos que a paternidade-filiação ou maternidade-filiação ao ser

exercida sob a ótica da socioafetividade encontrará os seus alicerces na convivência

familiar (LÔBO, 2011, p. 237), respeitando qual a forma escolhida para a entidade

formada, e, a partir das considerações que o filho tem para com seu pai ou mãe.

Quando a criança enxerga na pessoa que a cria como um indivíduo essencial

(NOGUEIRA, 2011, p. 85-86) para a sua formação social e educacional não há o

porquê não aplicar para essa relação o entendimento de formação do instituto da

família socioafetiva, já que os elementos apresentados consubstanciam em um novo

modelo familiar diferente daquele guiado pela hierarquia e tradicionalismo.

A posse de estado de filho passa a ser mais um dos fundamentos para a

resolução dos conflitos resultantes da filiação biológica. Nos casos em que há

maternidade de substituição, onde o Registro Civil irá constar o nome da mulher que

gestou e deu à luz como a mãe da criança e não a mãe afetiva, a sua aplicação

estaria abarcada por esse fundamento.

Conforme dispõe o artigo 1.60327 do Diploma Civil, a certidão de nascimento

faz prova da filiação, sendo assim, será necessário recorrer ao judiciário para a

alteração do nome materno que constar na certidão, uma vez que o alicerce para o

convencimento do juiz será à vontade cumulada com o desejo de ser mãe.

Deste modo, dizemos que a entidade familiar (no caso desse trabalho a

monoparental) que venha a ser formada pelo elo biotecnológico, como no caso da

reprodução humana assistida heteróloga com a utilização da maternidade de

substituição, estaria pautada no afeto como consagração do seu direito de filiação,

bem como, utilizar-se dos princípios da afetividade, da dignidade da pessoa

humana, da pluralidade das formas familiares e paternidade responsável.

Os institutos derivados da lei deverão, também, serem analisados como o

meio de filiação, pois no nosso ordenamento jurídico a filiação legal causa algumas

implicações para a esta sociedade que está em crescente alteração.

27 “Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 28 out. 2014.)

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3.2.4 Filiação Jurídica

A filiação legal é aquela que decorre do Código Civil ou da Constituição

Federal e elenca nos seus artigos os pressupostos jurídicos de paternidade-filiação

ou maternidade-filiação (GAMA, 2003, p. 480), sendo necessária quando da falta do

maior e melhor elo que um pai pode gerar para com um filho, o socioafetivo.

Para iniciarmos esse estudo vamos para a Carta Magna no seu artigo 22728,

parágrafo 6º onde nos remete a uma importante constatação: independentemente da

origem, todos os filhos são considerados iguais perante o direito e qualquer forma de

discriminação referente à filiação deverá ser refutada.

Logo, quanto da aplicação deste dispositivo constitucional, devemos entender

que no quesito “origem” o legislador abriu margem para todos os tipos de filiação,

podendo ser biológica, afetiva, por adoção, derivada da inseminação artificial

heteróloga, e, não podemos deixar de mencionar a maternidade de substituição

como configuração de mais um nascimento e consequentemente mais uma maneira

de originar a filiação (LÔBO, 2011, p. 83).

Outra origem elencada no Texto Supremo está no artigo 22629, parágrafo 4º

em que fundamenta a família monoparental (LÔBO, 2011, p. 84). Nesse caso, não

importa de onde que o vínculo surgiu, o que realmente irá interessar é a formação

do elo familiar que o direito legitimará e conforme os dizeres de Dias “esses núcleos

familiares foram chamados pela doutrina de famílias monoparentais, para ressaltar a

presença de somente um dos pais na titularidade do vínculo familiar” (DIAS, 2013, p.

219). Vale ressaltar que a monoparentalidade tem inúmeros fatores determinantes

de modo que alguns deles já foram tratados no capítulo anterior deste trabalho.

O princípio da dignidade da pessoa humana (LÔBO, 2011, p. 83), elencado

no artigo 1º, inciso III da Constituição da República de 1988 é fundamento

importante para a aplicação da filiação legal pelo poder judiciário. Ao entender que

28 “(...) § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 29 out. 2014.) 29 “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 29 out. 2014.)

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naquele ambiente existe uma família e que a sua origem é diversa daquela

tradicional não podemos dizer que não estamos diante de um núcleo familiar, pois a

supra premissa deve integrar e fazer parte do entendimento que o Estado venha a

ter em relação a essa matéria (LÔBO, 2011, p. 84).

A pluralidade das formas familiares, também elencada na Carta Magna no

artigo 226, parágrafos 3º e 4º,30 nos remete preceitos livres de como as famílias

podem se constituir. Acerca dessa concepção, a filiação como dever jurídico estará

contido sob a circunstância da família que a criança será inserida.

Na família denominada monoparental, que surgiu com a reprodução humana

assistida heteróloga, há a comprovação de que o filho gerado é filho biológico

daquele que concedeu parte do material genético com o intuito de gerar uma família,

mas a outra parte que virá por doação não poderá requerer nenhum direito sob

aquela criança, sob pena de perder a essência da doação: o anonimato e a vontade

de não ser pai/mãe, mas sim auxiliar quem não pode ser (GAMA, 2003, p. 697).

Adentrando o Diploma Civil de 2002 a prova da filiação é tratada de forma

tácita, principalmente nos artigos 1.603 a 1.605.

Para o artigo 1.60331 a filiação se prova com o registro civil de nascimento.

Aqui a problemática se expande, pois, no caso da maternidade de substituição (a

partir da inseminação heteróloga) quem é a mãe na Declaração de Nascido Vivo

(DNV) é aquela que deu à luz e não a biológica (que é aquela que realmente

concedeu o material genético).

A mãe biológica da criança que nascer a partir da doação temporário do útero

(e que incorra em erro no registro civil) deverá recorrer ao artigo 1.60432 do Código

Civil para contestar a filiação, provando erro inescusável por parte daquele que fez a

DNV.

30 “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 02 nov. 2014.) 31 “Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil.”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 01 nov. 2014.) 32 “Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 01 nov. 2014.)

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A demanda judicial será necessária para pleitear a nova situação jurídica de

filiação, tendo em vista que somente com a ordem judicial o Cartório de Registro

Civil irá alterar a certidão de nascimento. O exame de DNA será essencial para a

comprovação dos fatos alegados de parentalidade (DIAS, 2013, p. 390).

Outra forma encontrada pelo Código para comprovar a filiação está no artigo

1.60533 em que não existindo “o termo de nascimento a filiação poderá provar-se por

qualquer modo admissível em direito”. A este respeito, sabemos que o direito admite

o contrato34 como forma de comprovação de relação jurídica existente (desde que

presentes os pressupostos legais relativos ao negócio jurídico35), deste modo, a

transação firmada entre as partes (nos casos de maternidade de substituição) e

exigida pelo Conselho Federal de Medicina, na Resolução 2.013/1336, deverá

constar a questão da filiação da criança e como tal, ensejando meio probatório no

processo de novo vínculo de filiação jurídica e afetiva.

As premissas inerentes à filiação e elencadas na Constituição de 1988

refletem a nova forma de família existente na contemporaneidade, em que a

reprodução artificial faz parte da realidade brasileira. Com a modernidade inerente à

biotecnologia temos que a reprodução assistida heteróloga permitirá uma inovação

na procriação humana.

33 “Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito: I - quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente; II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 02 nov. 2014.) 34 “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 02 nov. 2014.) 35 “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.”. (BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 02 nov. 2014.) 36 “VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO) (...)

3 - Nas clínicas de reprodução os seguintes documentos e observações deverão constar no prontuário do paciente: (...) contrato entre os pacientes (pais genéticos) e a doadora temporária do útero (que recebeu o embrião em seu útero e deu à luz), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança;”. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº. 2.013/2013. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/images/PDF/resoluocfm%202013.2013.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2014.)

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4 CONCLUSÃO

O Direito de Família é contemporâneo e a formação da família integra as mais

diversas modalidades. Esse fato social existe independente do que o legislador

definiu como entidade familiar no ordenamento jurídico brasileiro. Aliás, o legislador

não consegue colocar no nosso sistema jurídico todas as famílias que estão

inseridas na sociedade e os motivos, embora não deveriam ser essas, estão

relacionados com a bancada moralista no Congresso Nacional.

A família não pode ter a sua formação reprimida pela convicção moralista do

legislador. O artigo 226 da Carta Magna amplia o rol de entidades familiares, e mais,

possibilita uma interpretação extensiva para constituição de outras modalidades.

Conquanto o Estatuto da Família ainda seja um projeto, se aprovado pelo

Congresso Nacional deverá ser declarada a sua inconstitucional.

Ao explanar sobre as modalidades familiares, o artigo 226, parágrafo 4º do

ditame Supremo, reconhece a monoparentalidade como entidade familiar, com a sua

formação com um dos pais e seus descendentes.

Pois bem. Destacamos algumas das possibilidades da concepção da família

monoparental, sendo pelo: i) celibato; e ii) mães solteiras. O objetivo primordial aqui

é a concepção da família monoparental a partir do celibato, criando uma família sem

relação carnal. A ciência tornou possível essa possibilidade ao descobrir a

reprodução humana assistida.

Com a liberdade instituída pela Constituição, o indivíduo não pode ser limitado

a compor a sua entidade familiar monoparental somente a partir da relação carnal se

existe a possibilidade da reprodução humana assistida heteróloga e a maternidade

de substituição para gerar a almejada prole.

Na questão da filiação o Direito será mitigado, conquanto a Declaração de

Nascido Vivo insira a maternidade-filiação como da mulher que deu à luz, essa não

é uma verdade real. A mãe substituta apenas ajudou num projeto de

monoparentalidade para outrem, e tal fato não pode ser esquecido. Nestes termos, a

doadora do útero não é mãe, não exerceu a vontade de gerar a criança, ela apenas

a concebeu para outro e a filiação deverá aplicada a partir dos princípios

constitucionais do direito de família.

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CIDADANIA: PLASTICIDADE E ARBITRARIEDADE

CITIZENSHIP: PLASTICITY AND ARBITRARINESS

André Bakker da Silveira37

Maria Luísa Scaramella38

SUMÁRIO

Resumo Abstract 1 Introdução 2 A Plasticidade Do Conceito de Cidadania e sua Aplicação nas Escolas 2.1 Os Múltiplos Sentidos de Cidadania Dentro da Escola 2.1.1 Sobre o que é Cidadania 2.1.2 Sobre o Papel da Escola Ensinando e Educando para a Cidadania 2.1.3 Sobre o que os Alunos Entendem por Cidadão e Onde Aprenderam esse Conceito 2.2 Violência nas Escolas 2.3 Demais Objetivos Constitucionais da Educação 2.3.1 Da Qualificação para o Trabalho 2.3.2 do Pleno Desenvolvimento do Indivíduo 3 Considerações Finais 4 Referências

RESUMO

O presente trabalho pretende explorar como as instituições de ensino de educação básica têm compreendido e praticado a cidadania. Buscamos dialogar com alunos, diretores, coordenadores e professores para compreender como o tema vem sendo abordado. As escolas, como centros de desenvolvimento e socialização dos indivíduos, possuem um papel fundamental na formação de cidadãos, sendo esse um dever constituído nos artigos 205 da Constituição Federal e 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. O termo cidadania possui múltiplas acepções as quais foram construídas ao longo da história, fato que imprime ao conceito grande maleabilidade ou plasticidade de interpretação e definição. Apesar de polissêmica, a cidadania, no decorrer dos séculos, tornou-se cada vez mais inclusiva, referindo-se não apenas a alguns poucos – como ocorria na antiguidade –, mas a todos os sujeitos de direitos civis, políticos e sociais. A importância desta análise decorre da vasta possibilidade de significados da palavra, que abre espaço para conceituações arbitrárias por parte dos educadores, podendo dar à cidadania um caráter excludente. Tal complexidade pode dificultar a apropriação do tema pelos alunos, uma vez que eles podem entender a cidadania como algo condicionado a uma idade, emprego, status social ou caráter. Palavras-chave: cidadania; escola; socialização; formação de cidadãos; educação.

37 Estudante de Direito pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. [email protected]. 38 Professora no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com estágio no "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (ITEM), na "École Normale Supérieure" (2006-2007), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). É pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), na Universidade Estadual de São Paulo (USP). [email protected].

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ABSTRACT

This paper explores how institutions of elementary education have been understanding and practicing the idea of citizenship. We have spoken to students, head teachers, coordinators and teachers in order to understand how this issue is being addressed. Schools are centers of development and socialization of individuals and, therefore, have a key role in forming citizens, as stated on the Articles 205 of the Federal Constitution and 2 of the Law of Directives and Bases of Education. The word citizenship carries a great plasticity of interpretation and definition due to the multitude of meanings that it has acquired throughout history. Even though still polysemic, over the centuries the idea of citizenship has become increasingly inclusive. Now it refers not only to a few individuals, as it did in ancient times, but to all subjects of civil, political and social rights. The importance of the present analysis stems from the extensive meanings of the word, which leaves room for educators to interpret it arbitrarily and, therefore, citizenship may become exclusive for some. Such complexity makes it difficult for students to feel as they own the theme, as they might sense it is conditioned to age, employment, social status or character. Key-words: citizenship; school; socialization; formation of citizens; education.

1 INTRODUÇÃO

A cidadania é um conceito plástico, polissêmico, mutável. Transformou-se

durante os diversos contextos e períodos históricos. Tal característica pode ensejar

uma aplicação totalmente arbitrária da noção de cidadania. Apesar disso, o termo

integra o rol de objetivos da educação, como “preparo para o exercício da cidadania”

(conjuntamente com o “pleno desenvolvimento do indivíduo” e a “qualificação para o

trabalho”), apresentados na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da

Educação (LDB). Assim, é importante entender como a escola vem trabalhando

esse conceito para verificarmos qual a razão de sua vinculação à educação, e quais

são seus efeitos na nossa realidade.

O conceito pode transmutar-se de acordo com a vontade daquele que profere

seu sentido. A escola, como ambiente de construção e socialização, tem papel

fundamental no entendimento que os indivíduos terão do tema. Portanto, é

necessário compreender esta aplicação da palavra e as variáveis que a entornam,

uma vez que pode se tornar arbitrária, ou seja, descrever um ideal individual, do

próprio educador, e perder todo o sentido historicamente construído, o qual deu à

cidadania uma característica de inclusão social.

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Parte deste trabalho consistiu em uma pesquisa empírica, feita em escolas,

com o objetivo de compreender na prática, como esses ambientes entendem e

articulam a noção de cidadania. Há uma conexão constitucional e legal entre

educação, escola e cidadania, por isso, fez-se necessário ir até esses locais para

observar, ainda que de forma limitada, como os agentes e sujeitos da educação

trabalham o tema.

2 A PLASTICIDADE DO CONCEITO DE CIDADANIA E SUA APLICAÇÃO NAS

ESCOLAS

Mencionamos, em caráter introdutório, que a cidadania, expressão central

deste trabalho, é extremamente complexa e tem evoluído ao longo da história.

Ocorre que uma das características mais importantes que o conceito adquiriu foi seu

caráter inclusivo. Nesse sentido Maria José Gonçalves escreveu:

Desde a antiguidade clássica que o conceito de cidadania tem vindo a evoluir, passando de um conceito político para um conceito societário, de um conceito inicial de exclusão para um conceito de inclusão, de um conceito que incluía os deveres do cidadão para com o estado e a comunidade, para um conceito que inclui os seus direitos e a igualdade perante a lei. Tem actualmente (sic) uma vertente política, social, legal e ética e constitui-se como um do pilares da democracia (GONÇALVES, 2012, p. 70).

Considerando isso, tentamos averiguar se esse sentido está sendo

considerando pelas escolas. Além disso, é importante observar como os três

objetivos da educação, elencados pela Constituição Federal em seu artigo 205 –

preparo para o exercício da cidadania, qualificação para o trabalho e pleno

desenvolvimento do indivíduo –, têm se relacionado e se sua aplicação condiz com o

sentido inclusivo de cidadania.

2.1 OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DE CIDADANIA DENTRO DA ESCOLA

Inicialmente, com o objetivo de balizar esta pesquisa, analisaremos o que foi

observado e coletado em pesquisa empírica. Quanto ao método utilizado, fomos

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inspirados pelo modelo etnográfico, ainda que não tenha sido possível dar a este

trabalho toda a profundidade exigida por este modelo de pesquisa. Relatamos que,

dado às limitações de tempo em que esta se estruturou, não foi possível verificar a

atuação pormenorizada das escolas, acompanhando o dia a dia dos profissionais e

dos alunos. Portanto, as informações aqui colocadas são fruto de questionários,

entrevistas e conversas informais com voluntários.

A pesquisa ocorreu em duas escolas, em Curitiba e na Região Metropolitana,

uma particular e outra pública. Ao todo, participaram da pesquisa 17 pessoas, sendo

10 da primeira e 7 da segunda.

As entrevistas foram feitas com os diretores, coordenadores e professores

das instituições. A opção por esses profissionais se deu em razão da lógica

hierárquica desses espaços.

Os diretores foram escolhidos, pois atuam na administração dos colégios,

possuindo um conhecimento global sobre como funciona a instituição. Além disso,

possuem um papel na estruturação pedagógica do colégio, podendo definir como os

temas serão trabalhados, em conjunto com os coordenadores de cada matéria.

Assim, buscamos verificar, com ambos – diretores e coordenadores –, se o conceito

ou a prática da cidadania fazem parte da rotina escolar.

Em relação aos professores, entendemos que são eles que colocam em

prática, na sala de aula, as ideias decididas em conjunto com a diretoria e

coordenações. São os responsáveis por materializar aquilo que é definido.

Considerando essas três funções dentro da escola, podemos apreender como

a cidadania é pensada no todo, como se dá especificamente em cada matéria, e

como se aplica na realidade da sala de aula.

No que tange aos alunos, tentou-se verificar o que entendem por cidadania e

aferir o desenvolvimento desse entendimento, considerando-o a partir do início do

ensino fundamental II (5º ano), até perto do fim da educação básica (2º ano do

ensino médio). Para tanto, foram feitos questionamentos a estudantes do 5º, 7º, e 9º

ano do ensino fundamental, no caso da escola particular, e a estudantes do 8º ano

fundamental e 2º ano do ensino médio, na escola pública. Esta inquirição se deu por

meio de conversas presenciais e questionários abertos (sem repostas objetivas)

respondidos pelos alunos em casa.

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Além da compreensão do aluno, pretendemos descobrir como se deu essa

aprendizagem e se a mesma ocorreu na escola.

2.1.1 Sobre o que é Cidadania

Primeiramente, procuramos entender o que os participantes39 entendem por

cidadania.

Surgiu, repetidamente, a relação entre direitos e deveres, sendo esses termos

utilizados quase que de forma unânime pelos professores de ambas as escolas, e

pelos alunos da escola particular. É interessante apontar que nenhum dos alunos da

escola pública fez menção a essas palavras, contudo, dentre estes, a ideia de

deveres foi levantada por Teresa, 16 anos, estudante do 2º ano do ensino médio.

Esta afirmou que cidadania “É também aquilo de cumprir a sua parte na sociedade,

você ajudar os outros, cuidar da sociedade, essas coisas”40.

Outro aspecto interessante, comum entre os diretores, foi a ligação entre

cidadania e a formação dos indivíduos. Para Juliano, professor de geografia e diretor

de escola particular, refere-se à “Formação de uma pessoa, antes de mais nada,

dentro de seu aspecto moral, intelectual, cognitivo”41. Foi ele, dentre os diretores,

coordenadores e professores entrevistados, o único a escapar do binômio direitos e

deveres. Alexandre, diretor de escola pública, vinculou o termo a uma noção de

autonomia, pois, para ele, relaciona-se ao “cidadão ser sujeito de seus atos, sujeito

da sua vida”42, mas dentro do citado binômio.

É visível a influência deixada pelo sociólogo T. H. Marshall43 para o tema. A

relação entre cidadania e ser sujeito de direitos e deveres, difundida pelo trabalho do

autor, é bastante comum. Entretanto, os dois últimos depoimentos mencionados

(dos diretores) e os que mostraremos adiante demonstram que essa lógica não

encerra o tema.

39 Os nomes foram alterados para resguardar a identidade dos participantes. 40 Entrevista com Teresa concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 41 Entrevista com Juliano concedida ao autor: Curitiba, jun. 2015. 42 Entrevista com Alexandre concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 43 Em seu ensaio “Cidadania, Classe Social e Status”, de 1950, T. H. Marshall aponta que a cidadania pressupõe a existência de três esferas de direitos: civis, políticos e sociais. Dessa forma, tornou-se comum a definição de cidadão como sujeito de direitos.

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Deive, 14 anos, estudante do 8º ano, quando entrevistado disse que

cidadania é um “Um conjunto de pessoas”44 e que há:

Muito racismo, muitas classes altas e classes baixas. Tem pessoas egoístas, pessoas que pisam nos outros. Pessoas pobres que não conseguem crescer na vida, não podem ter um estudo. Pessoas negras não conseguem...é o racismo, geral.45

Com isso, fica claro que para o jovem, há uma vinculação entre cidadania,

respeito em relações interpessoais e questões referentes a racismo e preconceito.

Nesse mesmo sentido se expressou, de forma mais clara e direta, a aluna do

8º ano, Andrea, 13 anos: “Ah, eu acho que é as pessoas viver (sic) em comunhão. É

não ter muita briga, entre os vizinhos, né? Eu acho que é isso. As pessoas ser (sic)

unidas, né?”46

Já para Agatha, 2º ano, 16 anos, cidadania é a “construção” – talvez no

sentido de contribuição – que cada pessoa faz na sociedade de forma ética e moral.

Para ela, o respeito também é uma questão importante, pois: “cada um tem a sua

crença de cidadania, aquilo que pra você é ético e moral”47.

A professora de geografia, Marisa, em sua resposta também fez menção à

ética e ao respeito, ligando-os, porém, aos deveres. Para ela, o respeito ao meio

ambiente, as ações de jogar um papel no lixo, de não furar uma fila e de respeitar as

leis de trânsito, são deveres advindos da cidadania. Além disso, a honestidade e a

corrupção, colar em uma prova, por exemplo, estão vinculadas à ética e também

decorrem deste conceito.

Paula, também professora de geografia mencionou um ponto ao qual damos

destaque. Mostrou-se preocupada com uma perda do sentido de cidadania nas

famílias:

Olhe o impasse que eu entrei. [...] existe uma desestrutura familiar. Aqui nós temos umas cinco, seis meninas grávidas. Então eu fico pensando, qual é a cidadania que essa menina tem?48

44 Entrevista com Deive concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 45 Entrevista com Deive concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 46 Entrevista com Andrea concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 47 Entrevista com Agatha concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 48 Entrevista com Paula concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015.

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Nesse caso, parece-nos que a professora entende cidadania, também, como

um senso de responsabilidade que fará parte da educação vinda do seio familiar.

Gabriel, coordenador e professor de geografia, apresentou uma definição

vinculada a um caráter territorial e de pertencimento: disse que cidadania tem

relação com ser cidadão, e que este “seria um ser pertencente a um território”49.

Assim como a definição baseada na contribuição de Marshall, o viés de

pertencimento territorial do termo é bastante comum, remontando à Grécia antiga.

Segundo José Rodrigues:

Como se sabe, a idéia de cidadania, referindo-se à qualidade daquele que pertence à 'cidade', isto é, de quem tem a permissão de participar da vida política, floresceu em diversos períodos da história — na Grécia e na Roma Antigas, nos burgos da Europa medieval, nas cidades renascentistas (RODRIGUES, 2006, p. 420).

Porém, o professor entrevistado somou a esse entendimento, dizendo que o

cidadão “tem que se identificar com esse território para poder exercer a cidadania de

acordo com seus direitos e deveres”50. A identificação, como parte da cidadania, foi

levantada apenas por esse professor.

Por fim, observamos uma questão interessante escrita por um aluno. Pedro,

14 anos, 9º ano, afirmou:

Cidadania é um grupo de cidadãos que se enquadram nos direitos e deveres humanos, porque independentemente de sua renda, se você faz o certo por mim (sic) pode se considerar um cidadão, diferentemente do que o capitalismo mostra.51

Sua manifestação corrobora com a ideia de que cidadania não é um conceito

excludente (limitado por gênero, idade, hereditariedade ou raça, a exemplo da

cidadania na antiguidade grega, a qual excluía crianças, mulheres e escravos) como

foi outrora, mas condicionado, no caso por “fazer o certo”.

49 Entrevista com Gabriel concedida ao autor: Curitiba, jun. 2015. 50 Entrevista com Gabriel concedida ao autor: Curitiba, jun. 2015. 51 Entrevista com Pedro concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015.

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2.1.2 Sobre o Papel da Escola Ensinando e Educando para a Cidadania

Para os diretores, coordenadores e professores apresentamos às seguintes

questões: é dever da escola educar para a/ensinar cidadania? Essa matéria está

incluída no projeto pedagógico do colégio? Em que espaço/matéria isso ocorre?

Você acredita que esse conceito deve fazer parte de sua matéria? Se sim, como ele

é abordado, quais são as estratégias de ensino? Se não, em que matéria deve ser

abordado? E aos alunos perguntou-se: a escola lhe ensinou o que é cidadania?

Como? Em que matéria você aprendeu o que é cidadania? Como? Em que série?

Para os primeiros, a cidadania deve sim fazer parte da escola. Apesar de não

existir uma matéria específica para trabalhar o tema – como, segundo os

professores, havia anteriormente, a chamada Organização Social e Política

Brasileira (OSPB) –, ela faz parte do projeto pedagógico das instituições e todos os

entrevistados foram assertivos ao dizer que o tema é transversal, que pode e deve

estar presente em todas as matérias, cabendo ao professor saber aproveitar

oportunidades e realizar links entre o conteúdo, fatos cotidianos e a cidadania. Para

eles, o tema deve ainda ser ensinado no dia a dia da escola.

O diretor Alexandre, citou o regimento escolar, referindo-se a ele como uma

“constituição” que define direitos e deveres:

É um principio que nós temos trabalhado com os alunos, é uma constituição que está ali e precisa ser observada por todos, professores e alunos, então a escola está ensinado ser (sic) cidadão desde o começo. Quer dizer, ele tem que acompanhar se o direito dele está sendo cumprido pela escola. E ao mesmo tempo ele tem que estar ciente que ele vai ser cobrado de suas obrigações definidas em regimento.52

Juliano, também diretor, foi categórico em sua resposta: “Eu acredito que se a

escola não trabalhar na perspectiva da formação da cidadania, ela não é escola”53.

Para ele, o aluno trará alguma base de casa, mas, por passar muito tempo na escola

e por interagir com uma faixa etária próxima, é nesta que ele pode exercitar melhor

este conteúdo. Já os professores e coordenadores da mesma instituição se

52 Entrevista com Alexandre concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 53 Entrevista com Juliano concedida ao autor: Curitiba, jun. 2015.

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manifestaram no sentido de que “É algo, não a ser ensinado, mas trabalhado em

sala de aula [...]. Às vezes tem um fato ocorrendo que não podemos deixar de

passar”54, e que “Não é só a questão do professor puxar para esse lado. Os alunos

também puxam para esse lado. Não existe mais aquele aluno passivo que não

mistura as coisas”55, disseram Gabriel e Marcela – professores e coordenadores de

geografia e ciências, respectivamente –, mostrando que a escola não precisa

trabalhar especificamente sobre o tema, mas, como ambiente que observa a

sociedade e dá a palavra para os alunos, ela acabará invariavelmente tratando

deste, por isso os professores devem estar preparados para relacioná-lo com a

disciplina.

Também dessa instituição, mas divergindo um pouco do que levantaram os

demais, Renata, professora e coordenadora de história ressaltou o papel da

educação familiar: “É tarefa da escola também, mas a base vem antes, apesar de

parecer um pouco positivista [...] tem que começar (em casa) porque ele não se

identifica como um cidadão somente na escola”56.

Professoras de geografia da rede pública, Marisa e Paula concordam quanto

ao ensino do que é cidadania, utilizando espaços e temas de suas matérias. A última

defendeu, entretanto, que é uma formação que deve vir de casa e advertiu sobre o

excesso de funções dos professores:

Nós professores estamos sobrecarregados. Então, a educação da parte teórica nós temos aqui na escola, nós damos essa educação. Mas essa outra educação deveria vir de casa e nós estamos dando também, mas na minha concepção de professora, nós deveríamos estar aqui para ensinar.57

Por outro lado, a percepção dos alunos variou bastante. Ao contrário do que

pensam a maioria dos professores, 5 dos 10 estudantes questionados não

consideram a escola como principal espaço para aprender sobre cidadania,

mencionando que essa noção vem de casa, da família. Joana, com 10 anos, 5º ano,

54 Entrevista com Gabriel concedida ao autor: Curitiba, jun. 2015. 55 Entrevista com Marcela concedida ao autor: Curitiba, jun. 2015. 56 Entrevista com Renata concedida ao autor: Curitiba, jun. 2015. 57 Entrevista com Paula concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015.

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foi a única a dizer que não sabia o que significava cidadania, que não aprendeu na

escola e teve que pesquisar na internet para responder ao questionário.

Daqueles que disseram ter aprendido na escola, sublinhamos duas respostas.

Juliana, 11 anos, 7º ano, sobre em que matéria aprendeu o que é cidadania, disse:

“História, no 4º ano, quando tínhamos um trabalho enorme valendo muita nota e

dependíamos um do outro para conquistá-la”58; Maria, 14 anos, 9º ano “Uma das

principais características da cidadania é a liberdade de expressão. Na escola [...],

discutimos e debatemos nossas ideias e conclusões. [...] em todas as séries sempre

tem uma discussão sobre a cidadania”59. Ambas têm consciência de que o

aprendizado se deu na escola, porém as formas são claramente diferentes. Para a

primeira foi um momento pontual, a necessidade de aprender um conteúdo para

realizar um trabalho. Para a segunda a construção vem ocorrendo de forma

contínua, em todas as séries.

Dentre todas as matérias que estudam, os alunos apontaram que apenas

história, geografia, sociologia e filosofia perpassam pelo tema de alguma forma,

diferentemente de como desejam os professores. Quanto às duas últimas matérias

notamos que foram mencionadas apenas por Teresa e Agatha, as duas

entrevistadas que cursam o ensino médio. Este fato é interessante, pois, para elas

essas matérias trabalharam com o tema, porém de forma insatisfatória: “Sociologia

seria o que estuda mais cidadania, só que eles puxam mais pro passado. Não

puxam o papel do cidadão, essas coisas”60, disse Teresa; “Dá pra falar que em

filosofia você aprende um pouco do que é cidadania, mas é super raso assim (sic),

você não se aprofunda naquilo”61, relatou Agatha. Essas respostas chamam a

atenção, porque a própria LDB vinculava o tema com essas disciplinas até ser

alterada pela Lei nº 11.684/08, a qual suprimiu essa ligação62. Pelas respostas,

concluímos que ainda existe uma relação direta entre elas, mas que é percebida

pelas alunas como superficial.

58 Entrevista com Juliana concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 59 Entrevista com Maria concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 60 Entrevista com Teresa concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 61 Entrevista com Agatha concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 62 Originalmente, o artigo 36, §1º, inciso III da LDB prescrevia que ao final do ensino médio, o educando deveria demonstrar “domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”. Contudo, em alteração feita pela Lei nº 11.684/08, tal conteúdo foi modificado, apontando, agora, apenas que ambas as disciplinas são obrigatórias no ensino médio, não mais as vinculando à questão da cidadania.

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A última pergunta feita aos diretores, coordenadores e professores foi: você

acredita que os alunos terminam a educação fundamental (no caso da escola

particular) ou básica (para a escola pública) compreendendo o que é cidadania?

Para esta questão, a resposta foi, em sua maioria, negativa, porém todos

concordaram que depende muito de cada caso. Crê-se que muitos alunos não

compreendem exatamente o significado de cidadania, mas que alguns saem com

uma boa noção da prática cidadã. Além disso, a ideia de que é uma construção

contínua foi recorrente. Destacamos alguns trechos:

Eu tenho duvida se a escola consegue alcançar de fato esse papel, e às vezes eu acho que até dentro da escola não fica claro para todo mundo da escola essa questão da formação. Eu acho que a escola meio se perde (sic) nesse monte de coisas que ela tem que fazer. Tem que cuidar desde a lâmpada que queima até o aluno que risca a carteira, e tem que ensinar o conteúdo e tem que dar conta da indisciplina do aluno.63 (professor Alexandre)

E ainda:

[...] de maneira geral, os nossos alunos que estão trabalhando, estudando, eles podem assim, até não saber exatamente o significado disso, de ser cidadão. Mas eles trazem para gente, nas entrelinhas: “eu consegui, eu me formei eu estou aqui, estou fazendo parte de uma sociedade, porque eu busquei isso, eu estudei”. Ele entendeu o que é ser cidadão [...] Mas definido o que é ser cidadão, acredito que não.64 (professora Paula)

Além disso: “Eu acho que não. Acho que eles têm uma linha traçada, mas

acho que é uma construção que alguns chegam e têm outros que vão atingir lá na

frente”65 (diretor Juliano); e:

Nós apenas encaminhamos. [...] esse aluno quando ele está pronto e tem uma maturidade, eu acho que talvez nós como professores não sejamos responsáveis por isso, eles já vieram assim, a gente só vai indicar outros caminhos para eles. E aquele outro que não tem maturidade, também vou me eximir da minha culpa de não fazê-lo ficar maduro, porque eu vou dar o

63 Entrevista com Alexandre concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 64 Entrevista com Paula concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 65 Entrevista com Juliano concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015.

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mesmo instrumento para os dois, mas um será completamente maduro e o outro não.66 (professora Renata).

Por fim, o diretor Alexandre, fez uma ressalva que merece ser citada, e que

não foi levantada por nenhum outro participante. Ao ser questionado se a escola

educa para a cidadania, respondeu: “Educa, mas pode deseducar também, quer

dizer, alienar o sujeito ou então dizer que é uma cidadania unilateral, dizer que é

apenas o diretor que tem o direito e que o aluno não tem”67. Esta afirmação

demonstra uma preocupação com a qualidade da informação passada, e revela a

possibilidade da aplicação arbitrária da cidadania. É possível dizer, segundo essa

fala, que, de fato, pode-se dar um tom diferente ao sentido de cidadania, afinal de

contas sua definição é ampla e mutável.

Isso demonstra a fragilidade dessa conceituação, pois, se entendermos que

cidadania é ter direitos e deveres, basta excluirmos quem quisermos deste conceito

para retirar deles essas prerrogativas. Desse modo, o professor, ocupando a

posição de transmissor de conhecimento, pode, deliberadamente, colocar ou retirar

direitos, ampliar ou restringir a cidadania.

2.1.3 Sobre o que os Alunos Entendem por Cidadão e Onde Aprenderam esse

Conceito

Optamos em não só trabalhar com os alunos a questão do que é cidadania,

mas também como eles percebem a ideia de cidadão, na tentativa de ampliar a

discussão. As perguntas foram: o que é um cidadão? Por quê?; Você é um cidadão?

Por quê?; Todos os brasileiros são cidadãos? Por quê?; Todos podem ser

cidadãos?; Onde você aprendeu o que é ser um cidadão? Como? Discorreremos

sobre as respostas para cada uma delas.

As opiniões sobre o que é um cidadão variaram muito, mas, dentro do

contexto da escola particular, seguiram uma linha de raciocínio próxima. Quase

todos os alunos desta instituição retomaram a ideia de direitos e deveres. Entre as

respostas estavam: “Eu acho que cidadão é quem mora na cidade e ajuda cuidar

66 Entrevista com Renata concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 67 Entrevista com Alexandre concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015.

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dela como se fosse (e é) a sua casa”68 e “Cidadão é uma pessoa que tem algo de

bom a oferecer a sociedade”69. Podemos ver na primeira conceituação a lógica de

morar na cidade, pertencer a um território, que geralmente é o primeiro

entendimento que as crianças têm de cidadão, apresentado nas aulas de história

sobre Grécia e Roma antigas. Já a segunda reposta chamou a atenção por divergir

totalmente das outras, uma vez que caracteriza o cidadão como alguém que

contribui positivamente para a sociedade, independente de seus direitos e deveres.

Pela semelhança das respostas de alguns alunos desta instituição, acreditamos ser

possível que tenham pesquisado parte das afirmações apresentadas.

Nenhum dos alunos da instituição pública apresentou o conceito de direitos e

deveres. As respostas foram bem particulares e condizentes com aquilo que já

haviam dito sobre cidadania. Expuseram que cidadão é uma pessoa que “tenta ser

alguém na vida” 70, que “constrói a sociedade, através das suas crenças, aquilo que

a pessoa acredita”71, e também significa “não ir pela cabeça dos outros, é tipo, eu

vou fazer isso para ajudar a mim e para ajudar as outras pessoas também”72. E,

nesta última resposta, destaca-se a ideia de pertencimento: “Se você tá (sic) numa

sociedade você é um cidadão”73.

Sobre serem cidadãos, os dez jovens responderam afirmativamente. As

explicações variaram entre saber conviver, respeitar os outros, não ser racista, fazer

parte da sociedade, contribuir positivamente com a sociedade, ajudar as pessoas,

respeitar as leis e ter direitos e deveres. Apenas uma aluna mencionou ainda não

ser uma cidadã “pronta”, afirmando que “sou uma ‘cidadã em formação’ pois eu

ofereço meu melhor a sociedade”74.

Quando questionados se todos os brasileiros são cidadãos, os alunos

apresentaram respostas bem divididas, entretanto, mantiveram-se coerentes com o

que haviam afirmado anteriormente. Declararam que para ser cidadão é preciso

respeitar o próximo, contribuir com a sociedade e cumprir suas obrigações.

Sustentaram também suas linhas de raciocínio as alunas Teresa e Agatha. Aquela

68 Entrevista com Joana concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 69 Entrevista com Juliana concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 70 Entrevista com Deive concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 71 Entrevista com Agatha concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 72 Entrevista com Andrea concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 73 Entrevista com Teresa concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 74 Entrevista com Juliana concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015.

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respondeu: “De certa forma sim, só que tem uns que, tipo, não são cidadãos do lado

certo, digamos. Mas todos somos cidadãos”75, reafirmando que cidadão é quem está

em uma sociedade (é interessante que a aluna parece separar o agir em prol da

sociedade de ser cidadão, pois, como colocou, o indivíduo pode ser um cidadão que

não está “do lado certo”). Já Agatha disse "Sim, todos tem direitos e deveres”76,

reiterando seu pensamento do que é um cidadão e não criando um juízo de valor

sobre esse status.

Sobre a possibilidade de todas as pessoas se tornarem cidadãs, as respostas

dos alunos, em sua totalidade, foram positivas. Para a maioria, cabe a cada um

decidir agir ou não de forma cidadã, recebendo, a partir de seus atos, a condição de

cidadão.

Finalmente, sobre onde aprenderam o que é ser um cidadão, todos os alunos

da escola pública relataram ter aprendido em casa, com suas famílias. Os demais

disseram ter aprendido na internet, com os pais, no dia a dia ou com professores.

Concluída esta análise, percebemos que a complexidade do tema cidadania

se estende também ao ambiente escolar. Diversas são as fontes de observação e

absorção deste conceito. Cada aluno, dependendo do nível escolar em que se

encontra, do ambiente em que vive e dos professores com quem teve aula,

discorrerá de uma forma diferente sobre o assunto. O mesmo ocorre com os

professores. Parece-nos que à medida que os sujeitos da educação avançam nos

estudos, aproximam-se cada vez mais do conceito de Marshall, ligando à cidadania

aos direitos e deveres dos indivíduos.

Pontuamos também que os professores não parecem estar satisfeitos com o

nível de entendimento dos alunos, ou com suas capacidades de praticarem aquilo

que consideram como cidadania, responsabilizando muitas vezes às famílias, ao

mesmo tempo em que os alunos apontam o ambiente familiar como maior

propagador da cidadania.

Estes dados nos ajudam a perceber que o tema efetivamente circula em

campos próximos, porém distintos, pois se relaciona a conhecer o mundo, ética,

moral, respeito, participação social, pertencimento, identificação, educação familiar,

responsabilidade, racismo, preconceito, liberdade de expressão, igualdade, direitos

75 Entrevista com Teresa concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015. 76 Entrevista com Agatha concedida ao autor: Curitiba, ago. 2015.

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e deveres. Então, concluímos que na prática escolar o conceito também é

polissêmico, ficando a critério de cada escola, diretor, coordenador e professor,

pensar uma forma de defini-lo e trabalhá-lo, o que acarretará em múltiplos

entendimentos, como demonstrado. Assim, parece existir o respeito à LDB, pois a

cidadania está no pensamento pedagógico das escolas, porém a interpretação e a

prática do conceito podem ser completamente discricionárias.

2.2 VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS E SUA RELAÇÃO COM A CIDADANIA

Dentre todas as questões relativas à cidadania, uma parece ter especial

relevância: a violência. Segundo pesquisa feita com professores (CODO, 1999 apud

SPOSITO, 2007, p. 54), quando se trata desse assunto em meio escolar, abrangem-

se três situações: “depredações, furtos e roubos e agressão física entre alunos e

entre alunos e professores” (SPOSITO, 2007, p. 54).

O tema é importante, pois, dentre os entendimentos abordados a respeito de

cidadania, não apareceu de forma especificada o assunto violência. Contudo, se

dentre as funções da educação estão o pleno desenvolvimento do indivíduo e o

preparo para o exercício da cidadania, parece-nos evidente que a boa convivência

humana está incluída nessas duas esferas. Assim, acreditamos ser relevante

relacionar estes temas. Afinal, a cidadania pressupõe a convivência e o respeito, no

caso entre todos os sujeitos da educação. Para Marília Pontes Sposito:

Se não for levada em conta a relação professor-aluno e a possibilidade de construção de espaços para que estudantes e professores possam ser melhor ouvidos e possam usufruir de condições dignas de convivência, o tema da violência escolar não será equacionado (SPOSITO, 2007, p. 60).

Apesar da enorme relevância, o assunto tem sido abordado de forma leviana,

sem a devida profundidade. A escola, como ambiente educador deve estar atenta e

apta a trabalhar com todas as situações que ocorrem em seu seio, uma vez que

representam fatos que podem ser repetidos fora de seu ambiente. Sobre isso, a

autora coloca:

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[...] é fundamental considerar que este é um fenômeno presente no nosso cotidiano [...], sobretudo para quem trabalha na área da educação como professor, para quem é aluno ou funcionário da escola [...]. Trata-se de uma questão pouco investigada e mal dimensionada, apesar de intensamente vivida pelos atores envolvidos no fazer educativo. [...] é importante situar, ainda que em termos gerais e amplos, o estado da questão e discutir, coletivamente, qual seria o papel possível da escola de modo a contribuir para a superação de uma sociedade que está criando patamares de violência cada vez mais intensos (SPOSITO, 2007, p. 54).

Dentro das dificuldades impostas ao assunto estão as “resistências na escola

pública, mas sobretudo na escola particular, em reconhecer, assumir e declarar

como a questão da violência aparece no seu cotidiano” (SPOSITO, 2007, p. 54).

Essa resistência pode ensejar outra questão: se a escola funciona como uma

representação, em menor escala, da vida em sociedade, fica claro que, havendo

atos violentos em seu interior, os mesmos poderão ser reproduzidos fora dela, caso

não saiba lidar com a situação.

Para a situação recorremos àquilo que Paulo Freire chamou de Práxis:

[...] a educação se justifica como compreensão, reflexão e ação perante a realidade, de modo a escavar o ethos vivido para, se necessário, transformá-lo, norteamento que imprime sentido à prática de ensinar [...]. Nessa perspectiva, o ato pedagógico é compreendido como práxis, em que teoria e prática se unem na ação ativa e libertadora, sempre mediada pela dialogicidade como método e pela horizontalidade como ontologia [...]. O crescimento pelo aprendizado requer o aprimoramento da compreensão do mundo (CORREIA, 2008, p. 56).

Ainda: “A práxis educativa deve assumir um caráter crítico reflexivo” e “[...] a

aprendizagem deve estar intimamente associada à tomada de consciência do

educando” (CORREIA, 2008, p. 62).

Citamos o educador, pois as ações violentas dentro das escolas devem ser

observadas e pensadas de forma crítica. Assim, podem ser trabalhadas com os

alunos para que algo positivo resulte destas ações.

Então, se um aluno agride outro ou depreda de alguma forma a escola, cabe

à mesma rever a atitude, reflexivamente, para permitir aos alunos compreender o

ocorrido.

Ou seja, se existe violência dentro da escola, e ela não é revista, analisada

para ser trabalhada (como na práxis freiriana), mas apenas punida ou ignorada (seja

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por desconhecimento do ato, seja por conveniência da instituição) é possível que

esse ato seja levado para fora da escola, podendo ensejar, dessa forma, em uma

falha no “preparo para o exercício da cidadania”. Sposito aponta que:

Muitas vezes ocorre, de modo paradoxal, uma absoluta tolerância com práticas que são muito violentas como se fossem apenas indisciplina e rebeldia juvenil. Essas questões aparecem em vários episódios relatados por alunos, incluindo observações em escolas particulares destinadas às classes médias e às elites (SPOSITO, 2007, p. 58).

Relata ainda o seguinte fato que ocorreu em uma escola de elite, na cidade

de São Paulo:

Diante dos conflitos decorrentes do trabalho em grupo, em uma classe do ensino médio, uma aluna discutiu com o seu colega e acabou por dar um tapa no rapaz, seu colega de classe, que reagiu com força, batendo nela. O grupo todo de alunos ficou assistindo à briga sem intervir para apaziguar os ânimos, mesmo os professores que presenciaram o episódio nada fizeram. O aluno que relatou essa ocorrência disse, ainda, que ao final do embate, um dos professores observador da cena dissera: “fulano fez bem de dar uns tapas na menina, porque, de fato, ela passou dos limites”. [...] nada foi registrado como episódio de violência, não houve nenhuma atuação educativa da escola para está questão. Pelo contrário, os comentários do professor até apoiavam o tipo de conduta (SPOSITO, 2007, p. 59).

Fica claro então, como concluiu Sposito (2007, p. 59) que “[...] a formação de

condutas violentas entre os alunos é tratada como se fosse prática natural e

banalizada da atitude juvenil cotidiana nas escolas”, e, ainda, que a questão da

violência na escola tem “uma forte ênfase nas medidas de segurança em detrimento

das iniciativas de caráter educativo” (SPOSITO, 2007, p. 59).

Tais fatos vão de encontro àquilo que escreveu Paulo Freire, pois, para o

educador “A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode

temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob

pena de ser uma farsa” (FREIRE, 1999, p. 97).

Exposto isso, observarmos que “A escola foi pensada [...] como espaço de

socialização de novas gerações, operando no sentido da formação e construção de

humanidades capazes de viverem ativamente a vida social” (SPOSITO, 2007, p. 61).

Talvez esta função socializadora esteja representada em nosso ordenamento

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jurídico pela expressão “preparo para o exercício da cidadania”. Se assim for, o

Estado, o qual materializa seu dever de educar por meio das escolas, falharia na

socialização dos indivíduos, uma vez que parece ocorrer um “[...] enfraquecimento

da capacidade socializadora da escola enquanto instituição formadora de novas

gerações” (SPOSITO, 2007, p. 63).

De tal maneira, assim como são feitas duras críticas à função ressocializadora

das prisões, pela criminologia, poderiam ser feitas críticas à função socializadora da

escola.

Outra situação para ilustrar o exposto ocorreu em uma escola pública em que

esta pesquisa foi aplicada.

Ao presenciarmos parte de uma conversa entre um aluno e um funcionário

com relevante cargo na escola pudemos perceber que discutiam sobre o sumiço do

celular do estudante. O funcionário redigia um informativo de busca do celular

mediante uma recompensa de cem reais, segundo o aluno, autorizada por sua mãe.

Aquele escreveu o anuncio e disse que colaria nas salas, mas alertou o aluno que

achava que ele não encontraria mais, pois quem tivesse pegado já teria dado

alguma destinação ao mesmo.

O ocorrido pareceu ser visto como algo comum, corriqueiro. Assim, seguindo

essa lógica, aquele que perdeu o celular, pode se acostumar com o fato de que isso

ocorre e não há nada a fazer ou de que, para recuperar o objeto perdido é preciso

trocar por uma recompensa. Na visão do funcionário, aquele que ou encontrou o

celular ou o furtou, não iria mais devolver, menos ainda se apresentar. Banaliza-se,

então, o fato, pois a realidade já está imposta. Este ato, que para o adolescente que

perdeu o celular representaria uma violência, pode se tornar um assunto esvaziado

de sentido, resolvido com um simples cartaz de “procura-se mediante recompensa”,

que não possui nenhuma função educativa.

Ainda que este tipo de ato violento não tenha sido fomentado pela escola,

como no caso do colégio paulistano, ele também não foi trabalhado de maneira

reflexiva, uma vez que a postura do funcionário representa apenas uma medida

paliativa para tranquilizar o estudante. Acreditamos, contudo, que a medida não foi

tomada por simples displicência daquele, mas por parecer, na prática, a maneira

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mais viável e concreta de resolver a questão, o que não deixa de implicar em uma

conivência passiva.

Com isso, concluímos que a escola não deve simplesmente se acomodar à

violência, mas precisa dar sentido a ela para que possa trabalhá-la de forma

reflexiva e prática, possibilitando ao aluno que se posicione em relação à mesma.

Quanto a isso, repetimos o que escreveu Amélia Vasconcellos:

A aprendizagem faz-se pela percepção, reflexão, elaboração e domínio das emoções. Ao se sentir, comparar, buscar explicações aos fenômenos da natureza e tentar verificar com a própria experiência anterior o que está ocorrendo no momento, a emoção irá favorecer a formação de conceitos que permitem a formação de um juízo de valor (VASCONCELLOS, 200, p. 112).

Aliando essa prática ao seu cotidiano talvez a escola possa materializar, ao

menos quanto ao respeito ao próximo, o sentido de preparo para a cidadania e pleno

desenvolvimento do indivíduo.

2.3 A QUALIFICAÇÃO PARA O TRABALHO, O PLENO DESENVOLVIMENTO DO

INDIVÍDUO E SUAS RELAÇÕES COM A CIDADANIA

Feitas as considerações sobre cidadania, teceremos alguns comentários

sobre a relação desta e com os outros dois objetivos da educação mencionados no

texto constitucional. São eles a qualificação para o trabalho e o pleno

desenvolvimento.

2.3.1 Da Qualificação para o Trabalho

Consideramos que o processo educativo deve ter como objetivo o

empoderamento dos sujeitos, sendo este definido como o:

Processo pelo qual um indivíduo, um grupo social ou uma instituição adquire autonomia para realizar, por si, as ações e mudanças necessárias

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ao seu crescimento e desenvolvimento pessoal e social numa determinada área ou tema. Implica, essencialmente, a obtenção de informações adequadas, um processo de reflexão e tomada de consciência quanto a sua condição atual, uma clara formulação das mudanças desejadas e da condição a ser construída. A estas variáveis, deve somar-se uma mudança de atitude que impulsione a pessoa, grupo ou instituição para a ação prática, metódica e sistemática, no sentido dos objetivos e metas traçadas, abandonando-se a antiga postura meramente reativa ou receptiva. Criado por Paulo Freire, este conceito ficou mais conhecido por sua versão em inglês – empowerment, que significa “dar poder” a alguém para realizar uma tarefa sem precisar da permissão de outras pessoas. Observa-se, no entanto, que o termo em inglês trai o sentido original da expressão: empoderamento implica conquista, avanço e superação por parte daquele que se empodera (sujeito ativo do processo), e não, uma simples doação ou transferência por benevolência, como denota o termo em inglês empowerment, que transforma o sujeito em objeto passivo (SCHIAVO; MOREIRA, 2005, p. 59).

Posto isso, podemos dizer que a noção de empoderameto pode ser

complementar a de cidadania. Porém, se considerarmos uma noção capitalista de

cidadania (de que cidadão é aquele contribui para a sociedade e que o trabalho é a

melhor forma de contribuição), nossa realidade educacional passa a fazer mais

sentido, uma vez que temos hoje uma educação muito mais voltada à produção de

indivíduos preparados para o trabalho do que de sujeitos intelectualmente

emancipados e autônomos.

A pedagoga Maria Luiza Teles expõe esta lógica, quando afirma que a

educação:

[...] como uma máquina de reprodução do sistema, joga no mercado, a cada ano, turmas e turmas de jovens profissionais sem espírito crítico, sem autenticidade, criatividade inventividade ou imaginação. Profissionais que, em sua grande maioria, quando muito, saberão apenas exercer, de forma medíocre e limitada, sua ação em determinada área (TELES, 2014, p. 47).

Continua sua crítica dizendo, sobre os jovens, que “A grande maioria haverá

de enquadrar-se aos interesses de uma classe dominante e passará a viver de

acordo com a lógica capitalista [...]” (TELES, 2014, p. 48). Com isso a cidadania

parece ficar amarrada à ideia de que o trabalho dignifica o homem, independente de

como e de porquê.

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É importante termos em mente que as relações sociais sempre serão

permeadas por ideologias e que, portanto, estas serão reproduzidas também dentro

das salas de aula. O sociólogo Alberto Tosi Rodrigues, atesta que:

As idéias e valores, o mundo da cultura, enfim, o conteúdo que ao fim e ao cabo é ensinado nas relações educacionais, são fruto da luta cotidiana por interesses econômicos e por poder político. O próprio método, a pedagogia com a qual se ensinam esses conteúdos contém, à luz da análise sociológica, um viés ideológico. Os grupos e classes dominantes procuram sempre fazer com que as ideias e os valores aceitos por todos sejam os seus próprios valores e ideias. As práticas pedagógicas, isto é, os princípios e métodos que informam as técnicas educacionais estão sujeitas ao conflito ideológico vigente numa dada sociedade (RODRIGUES, 2011, p. 46).

A nossa prática pedagógica, “excessivamente preocupada em transmitir

somente o saber vazio” (TELES, 2014, p. 46), atende a uma ideologia que se

materializa ao educarmos muito mais por repetição do que por reflexão, bonificando

o saber responder em detrimento do saber perguntar. Este formato é um sintoma de

um sistema que quer reproduzir conhecimentos prontos, já que o melhor:

é que as pessoas não pensem, pois, caso contrário, passarão a tomar consciência do servilismo, da opressão e da injustiça dos sistemas sociais, políticos e econômicos (TELES, 2014, p. 46).

Essa função limitadora da educação é capaz de reduzir o indivíduo e caminha

em sentido oposto à ideia de empoderamento, de forma que só pode levar a uma

cidadania completamente regulada e definida por padrões ideológicos.

O testemunho de Teles é extremamente relevante para entendermos como a

sociedade e, sobretudo as escolas atuam alimentando esse processo:

Nesse sistema castrador, pais, professores e outros sistemas ideológicos procuram , na verdade, colocar os indivíduos dentro de “moldes”, tidos como “normais” em nossa sociedade. Assim, valorizam o “bonzinho”, o que repete o dito, sem pensar, o retinho, o certinho, enfim, aquele que não foge das normas sutil e subliminarmente imbuídas no inconsciente do sujeito humano, sufocando sua própria humanidade e singularidade (TELES, 2014, p. 45).

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Todo o exposto se torna ainda mais alarmante com a leitura do artigo 35,

inciso III da Lei 9.394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996):

Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: [...] III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. (grifos nossos);

Apesar de uma das funções da educação básica ser o desenvolvimento do

pensamento crítico, parece-nos que grande parte das instituições não se utiliza de

metodologias que permitam uma emancipação do individuo, passando boa parte do

tempo discorrendo sobre conteúdos que desde o momento de sua apresentação já

são, paradoxalmente, criticados pelos próprios alunos como sendo assuntos que

não terão utilidade depois.

Considerando essa pedagogia acrítica, resta a dúvida de qual o entendimento

de cidadania que restará nas entrelinhas. Provavelmente uma cidadania ainda

comandada por “uma lógica econômica estritamente privada e guiada pela ênfase

nas capacidades e competências que cada pessoa deve adquirir no mercado

educacional para atingir uma melhor posição no mercado de trabalho” (GENTILI,

2002, p. 51).

O trabalhador é cidadão, pois contribui. Mas quem se beneficia com o

trabalho? Onde ficam os questionamentos sobre igualdade, respeito e luta por

direitos? Para algumas aulas, filosofia, sociologia? E o restante? Serve para

capacitar-nos? Para que nos tornemos bons técnicos, mas que atuam sem

questionar? Existem tantos sentidos possíveis para a cidadania, será que todos são

trabalhados de forma equilibrada?

Paulo Freire colaborou para elucidar essas questões na obra “Pedagogia da

Autonomia”, na qual diz que “Do ponto de vista dos interesses dominantes, não há

dúvida de que a educação deve ser uma prática imobilizadora e ocultadora de

verdades” (FREIRE, 2009, p. 99).

Por isso entendemos como José Bleger que:

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Os sistemas educativo e pedagógico são [...] instituições que se modelam na luta de interesses de classes sociais, e os métodos antiquados de ensino são instrumentos de bloqueio e controle que, nesse sentido, preenchem amplamente seus objetivos políticos, sociais e ideológicos (BLEGER 1989, p. 59).

Finalmente, uma vez que a Constituição faz menção expressa à qualificação

para o trabalho, acreditamos que esta deva se dar no sentido de tornar-se capaz de

identificar-se com este e também de escolhê-lo, e não apenas ser definido por um

mercado que necessita de uma mão de obra específica e devidamente qualificada.

Como escreveu Freire, para que os indivíduos possam:

[...] inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficiência técnica, mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana (FREIRE, 2009, p. 102).

Assim, concluímos que nossa educação, para o educador, não deve possuir

um caráter “bancário”, como explicou Zatti:

A concepção bancária distingue a ação do educador em dois momentos, o primeiro o educador em sua biblioteca adquire os conhecimentos, e no segundo em frente aos educandos narra o resultado de suas pesquisas, cabendo a estes apenas arquivar o que ouviram ou copiaram. Nesse caso não há conhecimento, os educandos não são chamados a conhecer, apenas memorizam mecanicamente, recebem de outro algo pronto. Assim, de forma vertical e antidialógica, a concepção bancária de ensino ‘educa’ para a passividade, para a acriticidade, e por isso é oposta à educação que pretenda educar para a autonomia (ZATTI, 2007).

Os educandos não podem ser vistos apenas como “depósitos” de

conhecimentos, sem que haja uma preocupação em ensinar como usar a ferramenta

a seu bel prazer, mas apenas em ensinar o que é certo e a se conformar com a

resposta. Isso, pois: “Para os manipuladores do poder autoritário, quanto menos

indivíduos conscientes da política que fazem em todas as dimensões da vida, mais

fácil será a manipulação” (ARAÚJO, 2007 apud TELES, 2014. p. 62).

A cidadania formulada por esse formato pedagógico se afasta do ideal que

procuramos, qual seja, a cidadania em que é preciso cooperar e não mais competir

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e em que devemos abrir mão do gozo do ódio, para incluir todos aqueles que são

diariamente afastados de seus papéis de cidadão.

2.3.2 Do Pleno Desenvolvimento do Indivíduo

O pleno desenvolvimento da pessoa é a primeira das três finalidades da

educação, mencionadas no artigo 205 da Constituição. Da mesma forma como

ocorre com a cidadania, não há uma noção única e universal do que é ser uma

pessoa plenamente desenvolvida, pelo contrário, acreditamos que, assim como

parece ocorrer com aquela, é uma construção contínua. Não tentaremos discorrer

sobre as variadas formas de se compreender o que é desenvolvimento, assim, para

imprimir maior didática, podemos utilizar as palavras de Maria Luiza Teles (2014, p.

61) e dizer que “A verdadeira educação, em seu processo de conscientização,

liberta o ser humano que passa a ser dono de seu destino e sujeito de sua história e

da história da coletividade”. A autora completa seu discurso, acrescentando que o

pleno desenvolvimento é um direito de todos e um dever da educação:

A verdadeira educação é aquela que estimula todo o rico potencial de que o ser humano é dotado, ao nascer. Respeitar: isso é a base de todo o processo educacional. Ninguém nasce “pleno”, mas com o sagrado direito de desenvolver essa plenitude. E esse é o trabalho da educação (TELES, 2014, p. 62).

Novamente questionamos se o modelo educacional atual está promovendo o

que diz o texto constitucional. Se a educação reproduz o modelo econômico vigente,

será que esse modelo busca indivíduos plenamente desenvolvidos, dentro do

sentido que apresentamos? No contexto atual, estar apto para trabalhar pode ter se

tornado sinônimo de ser uma pessoa plena. Assim, podemos dizer que a escola está

seguindo o modelo reprodutivista de educação.

Essa pedagogia reprodutivista, que aplica a teoria do capital humano, é

explicada por Dermeval Saviani como:

[...] a subordinação da educação ao desenvolvimento econômico significava torná-la funcional ao sistema capitalista, isto é, colocá-la a serviço dos

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interesses da classe dominante: ao qualificar a força de trabalho, o processo educativo concorria para o incremento da produção da mais-valia, reforçando, em conseqüência, as relações de exploração (SAVIANI, 2015, p. 19).

Nesse modelo, o ideal educacional de Teles dificilmente será alcançado. A

autora escreveu que “O homem cria, ama, renova, transcende a realidade concreta.

Somente ele é capaz de tal feito. O processo educacional só é verdadeiro quando

incentiva nos indivíduos essas suas capacidades mais nobres” (TELES, 2014, p.

61). E, ainda, a proposta do educador português José Pacheco (2009, p. 6), de que

“Aprender é desprender, é dar os instrumentos de conhecimento e de cultura que

permitam a cada um alargar as suas margens de liberdade”, jamais será

concretizada.

Outro ponto passível de críticas no formato educacional refere-se ao

reconhecimento da alteridade como elemento da cidadania. Notamos, nas palavras

de Pacheco (2009, p. 10), que “Num tempo em que se proclama o reconhecimento

das diferenças, o ato pedagógico mantém-se cativo de um fordismo tardio, ainda

que se enfeite a sala de aula com novas tecnologias”. Portanto, não estamos

considerando essas diferenças, fato que seria essencial para a emancipação

intelectual de um indivíduo.

O que queremos dizer com o conceito de alteridade, é que é preciso

compreender o outro para nos reconheceremos, percebendo, entre diferenças e

semelhanças, quem somos, e rumando, a partir deste ponto, para o pleno

desenvolvimento. Suely Rolnik (1995, p. 143) afirma que “Colocar a alteridade à

sombra da cidadania pode soar estranho, já que a ideia de cidadania está

imediatamente associada a reconhecimento e respeito pelo outro [...]”. O problema é

que não tentamos perceber e entender o diferente, o que não faz parte de nós, mas

apenas qualificá-lo. A necessidade de definir o outro, às vezes antes mesmo de se

definir, mostra a distância em que nos encontramos de uma educação voltada à

autonomia.

Trazemos à tona essa discussão, pois entendemos que existe uma prática

extremamente excludente em nossa sociedade, demonstrada pelas atuais

discussões sobre minorias, por exemplo. Há uma necessidade de se regular o que é

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o outro (negro, transgênero, estrangeiro, pobre, etc.) não pensando

necessariamente em aceitá-lo ou entendê-lo, mas apenas discriminá-lo.

Apresentamos uma vivência própria para tornar mais claro o que queremos

dizer.

Certa vez, em uma instituição destinada ao treinamento de menores

aprendizes – portanto um ambiente com finalidade diversa da escola, mas que

trabalha com jovens em idade escolar –, na qual atuamos, uma das professoras,

responsável por aulas sobre sexualidade, trouxe à tona a questão da

homossexualidade, utilizando, para tanto, a bíblia como fundamentação, limitando a

possibilidade de debate, uma vez que sua fundamentação era dogmática. Parece-

nos que isso leva ao caminho oposto da autonomia e autodeterminação,

representando a definição do que é o outro e, mais que isso, do que é certo ou

errado no outro. Mas onde está o eu, dentro dessa construção?

Paulo Freire escreveu que os oprimidos, ou marginalizados, em razão desta

determinação externa do que são, acabam permanecendo sempre dentro de uma

estrutura que:

[...] os transforma em ‘seres para o outro’. Sua solução, pois, não está em ‘integrar-se’, em ‘incorporar-se’ a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se ‘seres para si’ [...] Dai que a ‘educação bancária’, que a eles serve (os opressores), jamais possa orientar-se no sentido da conscientização dos educandos (FREIRE, 1987, p. 33).

Nota-se, também, que dentro dessa estrutura, fica muito difícil que realmente

se pense em progresso ou no pleno desenvolvimento do indivíduo, como expressa o

texto constitucional, pois apenas instruem-se os alunos a pensar de determinada

forma, limitando o pensamento àquilo que já existe. Há certo receio do pensamento

autônomo, e, em troca, criam-se “autômatos” (FREIRE, 1987, p. 33).

Faço aqui uma analogia com uma corrente, que, mantendo seus elos

próximos, mantém-se também forte. Da mesma forma ocorre com o pensamento.

Quanto mais próximo mantivermos o pensamento do outro daquele que temos ou

queremos, mais difícil será rompê-lo. Entretanto, uma vez que é rompida a corrente,

torna-se muito mais difícil a manutenção de um pensamento ou da prática

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decorrente dele. Assim funciona em manifestações como a da professora, que

acima citamos. Ao definir um ser humano dentro de um padrão de normalidade, dá-

se aos alunos a ideia de que estão (ou não estão) dentro desse padrão, tornando

muito difícil a quebra desse paradigma e trabalhando para a manutenção do mesmo.

De tudo isso decorre a forma pela qual os alunos se expressarão e atuarão no

seu meio, podendo reproduzir ou romper uma forma de pensamento que lhes é

imposta:

A educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento (FREIRE, 2009. p. 98).

Recorri a essa analogia em um encontro com jovens, em que falávamos,

basicamente, sobre cidadania. Concluímos que diversos problemas sociais

decorrem dessa lógica, necessitando que alguém decida romper com a corrente,

não mais permitindo que uma informação se transmita, ou impedido que uma forma

de violência perdure.

Soma-se a isso o que Paulo Freire nos deixou:

Na visão ‘bancaria’ da educação, o ‘saber’ é uma doação dos que julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro (FREIRE, 1987, p. 33).

Outro ponto importante é que, nesse formato institucionalizado da educação,

esquece-se que escolarizar é diferente de educar. O próprio professor Pacheco,

citado anteriormente, diz estar “[...] perplexo perante tentativas de melhorar o que já

não pode ser melhorado, perante as práxis de educadores que ainda confundem

educar com escolarizar” (PACHECO, 2014, p. 12).

Educar diz respeito à emancipação dos sujeitos, a permitir o empoderamento.

Ao passo que a escolarização, parece muito ligada à doutrinação ou

disciplinarização dos corpos, como apontado por Foucault:

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Outro lugar onde apareceu esta nova tecnologia disciplinária é a educação (sic), que foi primeiro nos colégios e depois nas escolas secundárias onde apareceram os métodos disciplinares em que os indivíduos são individualizados dentro da multiplicidade. O colégio reúne dezenas, centenas e as vezes milhares de escolares, e se trata então de exercer sobre eles um poder que será justamente muito menos oneroso que o poder do preceptor que não pode existir senão entre aluno e professor (CÉSAR, 2004 apud RODRIGUES, 2008, p. 54).

Considerando o significado de empoderamento mencionado, podemos ver

que ele se encaixa com os ideais que aparentemente estão representados na

Constituição e na LDB. Certamente o empoderamento não pode ser entregue aos

estudantes como uma recompensa por seu esforço, muito menos fixado em suas

cabeças por meio de repetições. Então a escola deveria servir como um ambiente

que permite e estimula esse desenvolvimento, da melhor forma possível, uma vez

que não teria como simplesmente dá-lo aos alunos. Porém, considerando o sistema

disciplinar que temos, fica claro que há aqui uma contradição, pois, indivíduos

empoderados não são passíveis de submissão:

O cidadão, que resulta dessa educação libertadora, não é mais sujeito a nenhuma forma de servidão. Ele sabe que viver em sociedade é uma questão política e que cabe a ele buscar a liberdade, afastando a dominação e o autoritarismo (TELES, 2014. p. 61).

Sendo muitas escolas ambientes “cercados, quadriculados, com uma

disposição arquitetônica milimetricamente estudada e um mobiliário especialmente

desenhado para o ensino” (CÉSAR, 2004 apud RODRIGUES, 2008, p. 54), e, além

disso, com a “presença de um corpo de especialistas preparados para a aplicação

dos exercícios disciplinares tanto da mente como do corpo” (CÉSAR, 2004 apud

RODRIGUES, 2008, p. 54), como podemos querer que sejam, também, locais de

pleno desenvolvimento, de educação emancipatória, para autonomia, para o

empoderamento?

Este modelo “bancário”, disciplinado, pelo qual se tenta manter um controle

das ações e do desenvolvimento do indivíduo, em que se tenta manter as coisas

como estão, talvez continue sendo o mesmo, ou muito próximo, daquele criado para

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uma sociedade de vigilância. Abre-se mão do panóptico77 (SPÍNDOLA, 2015, p. 1) e

mantêm-se as crianças em ordem através de uma vigilância daquilo que aprendem e

como aprendem. Muitas escolas, e não apenas as públicas, continuam seguindo

esse modelo disciplinar que:

[...] a partir do século XIX inspirou-se no controle imanente dos indivíduos com a finalidade de evitar e prevenir quem fugisse às leis da ordem estabelecida pela sociedade da época. Deste modo, hospitais, escolas, manicômios e a polícia passam a formar uma rede de um poder cuja função é de corrigir virtualidades e não mais punir. Trata-se de uma “ortopedia social” que consiste em um poder de uma sociedade disciplinar, uma sociedade de vigilância (SIMONELI, 2004 apud RODRIGUES, p. 54)

A cidadania entra aqui com o sentido de “cidadão de bem” - aquele que

mantém a ordem, colabora com o desenvolvimento da sociedade através de seu

trabalho (ou seu corpo). Dentro deste entendimento há uma clara forma de

disciplinarização. E aqui cabe a pergunta: o ideal de cidadania, constitucional e

legal representa uma forma de controle do que é o cidadão? Uma forma de fazer

com que as escolas formem corpos dóceis?

Cristiani Graciani Rodrigues nos dá uma possível resposta, e que está de

acordo com o que temos visto até então:

Nas instituições disciplinares eram utilizadas técnicas ou métodos disciplinares que buscavam produzir corpos dóceis, eficazes economicamente e submissos politicamente, por isso essas técnicas estavam sempre conectadas ao capitalismo de produção, por definir certo

77 O autor menciona que: “[...] o teórico Michel Foucault inventou a concepção do panoptismo ao se utilizar da noção do panóptico concebida por Jeremy Bentham [...]. O panóptico pode ser descrito com uma estrutura física, um prédio circular com uma torre central, de onde se pode observar as celas construídas a sua volta. As celas teriam duas janelas para fazer com que a luz atravessasse cada uma delas, possibilitando à torre central ou panóptica, a todo instante, acompanhar tudo que ali se passa [...]. Dentro da central panóptica, as janelas estariam recobertas com persianas ou biombos para impedir os que estivessem sendo observados de perceberem que estariam sendo vigiados. Logo, que vê nunca é visto, assim como quem é visto nunca vê e está hipoteticamente sob constante observação [...]. A aplicação desse modelo passa a ser eficaz em qualquer instituição que assim deseje, seja a escola, o hospital, o hospício, a fábrica ou a casa de detenção. Melhorando a funcionalidade da disciplina nessas instituições [...], a arquitetura assume o lugar da força física. Foucault diz que a observação contínua serviria para disciplinar, sendo esse modelo aplicado à sociedade como um todo, na forma daquilo que o mesmo chamou de ‘docilização dos corpos’. Segundo o pensador, isto significa dizer que os métodos disciplinares contribuíram para formar uma sociedade obediente”.

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modo de investimento político e detalhado do corpo (RODRIGUES, 2015, p. 43).

Poderíamos ensaiar aqui uma ligação entre Freire e Foucault. A educação

“bancária”, descrita pelo primeiro, depende de um educador capaz de docilizar seus

alunos, para que “deposite” mais eficazmente os conteúdos considerados relevantes

para a vida desse indivíduo, independentemente do contexto em que este viva.

Enquanto a educação “bancária” visa socializar, educar, dentro de um padrão pré-

estabelecido, a disciplinarização, apontada por Foucault nas prisões e hospícios,

visa ressocializar novamente pare esses moldes. Portanto, é possível imaginar que

a melhor eficácia do modelo “bancário” de educação é alcançada quando se tem

alunos dóceis e disciplinados.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ambiente escolar possui vasta diversidade cultural, o que faz com que a

pesquisa em seu meio seja extremamente rica. Observamos a existência de uma

pluralidade de entendimentos sobre o que é cidadania e o que é ser um cidadão, os

quais transitaram entre direitos, deveres, preconceito, respeito, responsabilidade,

ética, harmonia, trabalho e contribuição social. Poucas vezes as respostas relativas

à cidadania foram concisas, entretanto, percebemos por meio dos diálogos que a

dificuldade de síntese, diz respeito apenas à conceituação. Todos os entrevistados

expuseram diversos casos que consideraram ligados à cidadania. A facilidade de

definição do que é ou não uma prática cidadã, pelo olhar dos professores, diretores

e coordenadores, demonstra que conceituar cidadania é diferente de praticar a

cidadania.

A fala dos diretores foi bastante reveladora. Parece que se instaura um novo

paradigma para a escola, no qual a formação humana e ética passa a ter maior

relevância, diminuindo o espaço da formação puramente intelectual. A simples

instrução parece não ser mais suficiente para o enfrentamento das questões que

ocorrem dentro dos muros escolares. É cada vez mais latente a necessidade da

escola se constituir como um ambiente que fomente a empatia e a solidariedade,

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que se abra para discussões e ensine os alunos a receber as diferenças com

curiosidade e mente aberta. Surge, com isso, a preocupação sobre quão preparados

estão os educadores para praticar e transmitir esse tipo de cidadania.

Por outro viés, esses mesmos educadores demonstraram-se apreensivos

quanto à atuação das famílias na educação dos jovens. Nesse sentido, é importante

lembrar que, segundo a Constituição, cabe, não apenas à escola, mas também à

família e à comunidade, o preparo do educando para a prática da cidadania.

Acreditamos que o objetivo pelo qual se colocou um conceito tão

multifacetado na LDB, e as consequências disso, constituem um vasto campo de

pesquisa. A polissemia inerente ao conceito pode transformá-lo em uma verdadeira

“torre de babel”, em que a falta de compreensão é geradora de conflitos e exclusão,

impedindo a construção de uma sociedade igualitária e justa. Por outro lado,

entendemos que, por carregar todos os sentidos expostos, trabalhar a cidadania,

pode ser uma forma de colocar nas salas de aula um sentimento que não

compreendemos bem, mas que representa a todos, fazendo com que o outro, o

diferente, aquilo que não somos (mas que devemos respeitar), faça parte da nossa

educação.

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ANÁLISE DA MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO EM FACE DO DIREITO

COMPARADO SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO INGLÊS

ANALYSIS OF SURROGACY CONCERNING THE COMPARATIVE LAW FROM

AN ENGLISH LAW PERSPECTIVE

Camila Francini de Souza78

Camila Gil Marquez Bresolin79

SUMÁRIO

Resumo 1 Introdução 2 Reprodução Assistida e a Maternidade de Substituição 2.1 Breve análise das técnicas de reprodução humana assistida 2.2 Maternidade de Substituição 2.2 Da Filiação 2.4 Críticas advindas da reprodução humana assistida 2.5 Da Regulamentação 3 Maternidade de Substituição em face do Direito Comparado 3.1 Relevância do Direito Comparado 3.2 Do Direito Inglês 3.3 Direito de Família sob a perspectiva inglesa 3.3.1 Da Reprodução Assistida 3.4 Maternidade de Substituição sob a luz do Direito Inglês 4 Considerações finais. Referências

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo incentivar o reconhecimento jurídico da maternidade de substituição, observando a regulamentação já existente em demais localidades, como o Reino Unido. Esta técnica de reprodução assistida consiste na cessão do útero por parte de terceiro em relação ao casal ou indivíduo, para que ocorra a gestação do embrião e posterior entrega da criança. A regulamentação deste tema mostra-se imprescindível uma vez que a prática deste método é recorrente e as condutas são regidas apenas pela Resolução nº 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina, de caráter ético, não existindo portanto qualquer normatização e respaldo legal, podendo causar a corrupção de valores, princípios e garantias do cidadão, bem como impossibilitando a resolução de conflitos decorrentes, como a determinação da paternidade e da filiação, a permissão ou proibição do critério de onerosidade, além de debates éticos, sociológicos e psicológicos. Para o desenvolvimento da análise da maternidade de substituição em face do direito comparado, é necessária inicialmente a compreensão dos novos paradigmas e contornos da família e sua relação com a reprodução assistida, com a seguinte identificação do que é a maternidade de substituição, quais são seus desafios e a consequente necessidade de elaboração de respostas aos novos questionamentos e conflitos. Como fonte de norma jurídica, avaliação crítica, preenchimento de lacunas e revisão de interpretações, vale ressaltar o direito comparado, a legislação do direito inglês, que admite a prática da maternidade de substituição não onerosa, em clínicas licenciadas pela autoridade, desde que haja a satisfação de uma série de exigências, para posterior concessão da ordem parental, outorgando a responsabilidade pela criança aos pais solicitantes. Pretende-se promover uma reflexão, o respeito a diversidade, o auxílio na construção e interpretação de normas, visando principalmente a proteção ao melhor interesse da criança, resguardado pela Constituição Federal.

78 Acadêmica de Direito do Unicuritiba e Instrutora da Língua Inglesa na Influx English School. [email protected] 79 Mestre em Direitos Humanos e Democracia (UFPR); Professora do Curso de Direito do Unicuritiba. [email protected]

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Palavras-chave: maternidade de substituição, reprodução assistida, família, regulamentação, direito comparado.

ABSTRACT

The present coursework aims to embolden the legal recognition of surrogacy, observing the extant regulation in other countries, as United Kingdom. This assisted reproduction technique consists of a womb cession by a third party in relation to the couple or individual, to happen the embryo gestation and the following placement of the child with her family. The ordinance of this subject shows oneself indispensable once that the practice of this method is recurrent and the conducts are governed only by Federal Medicine Council’s Resolution nº 2.013/2.013, with an ethical character, thus there is no legal basis, causing corruption of values, principles and of guarantees of citizens, as well as hindering the resolution of deriving conflicts, like the paternity and affiliation determination, the permission or prohibition of the burdensomeness criterion, besides ethical, sociological and psychological debates. To the development of the analysis of surrogacy in the face of comparative law, it’s initially necessary the understanding of the new paradigms and family frameworks and its relation to the assisted reproduction, with the succeeding identification of what surrogacy is, it’s challenges and the consequent need for elaboration of answers to the new questions and conflicts. As a legal norm source, critical valuation, gap filling and interpretation review, it’s important to emphasize the comparative law, the United Kingdom legislation, that admits surrogacy nonprofit practice, in clinics licensed by an authority, as long as there is the satisfaction of several demands, for the subsequent parental order concession, awarding the responsibility for the child to the intended parents. The goal is to promote a reflection, a respect for diversity, a support for the construction and interpretation of norms, mainly aiming for the protection of the best interest of the child, saved by the Federal Constitution. Keywords: surrogacy, assisted reproductive, family, ordinance, comparative law.

1 INTRODUÇÃO

O conceito de família tem passado por transformações rotineiramente, a partir

de situações fáticas, históricas, sociais, morais e jurídicas. Com a laicização do

Estado, houve o afastamento da intervenção da Igreja e do Estado no ambiente

familiar, prevalecendo a liberdade, a afetividade e possibilitando alterações na

estrutura da família. O papel da mulher na sociedade também passou por

modificações, deixando de existir restrições extremas em seu espaço de atuação,

ampliando sua participação, responsabilidade, consequentemente mudando

conceitos e inserindo novos modelos familiares, como o reconhecimento de outras

formas de união diferentes do casamento.

Ademais, a medicina tem avançado e progredido a cada dia, também

contribuindo para novos paradigmas e novos contornos da família. Assim, uma

pluralidade de conceitos de família surgiu e tem sido construída pouco a pouco, de

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acordo com os anseios da sociedade e a preservação da felicidade e da afetividade,

consagrados inclusive pela Constituição Federal de 1988. Neste meio, insere-se a

possibilidade do estudo da maternidade de substituição, método de reprodução

assistida que consiste na cessão do útero por parte de terceiro em relação ao casal

ou indivíduo, para que ocorra a gestação do embrião e posterior entrega da criança.

Com estes aprimoramentos da tecnologia e da biotecnologia, surgem novos

desafios a serem respondidos e conflitos a serem solucionados. Porém, a família e o

Direito não se desenvolvem no mesmo ritmo e da mesma maneira, formando-se

grandes lacunas na resolução de problemas gerados por atividades como a

maternidade de substituição.

O presente estudo tem como objetivo compreender o que é a maternidade de

substituição, seus desafios e a consequente necessidade de elaboração de

respostas aos novos questionamentos e conflitos, bem como identificar aspectos da

maternidade de substituição no direito internacional, mais precisamente da Grã-

Bretanha, para posterior demonstração da imprescindibilidade de normatização,

tanto no plano nacional quanto internacional.

Para tanto, é fundamental a verificação dos métodos de reprodução assistida,

os desafios decorrentes, a questão da filiação e a imperiosa necessidade de

regulamentação.

Com relação a apreciação da maternidade de substituição em face do direito

comparado, serão abordadas questões sociais, culturais, históricas e jurídicas do

direito inglês, para que se identifique vínculos e diferenças entre o sistema nacional

e internacional, e se realize uma avaliação crítica, de modo a constatar as melhores

posturas jurídicas a serem tomadas, revisar conceitos consolidados e fomentar

discussão.

2 REPRODUÇÃO ASSISTIDA E A MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO

2.1 BREVE ANÁLISE DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

Como forma de possibilitar a reprodução humana, foram desenvolvidas

técnicas cada vez mais seguras, efetivas e menos prejudiciais. Até o começo da

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década de 90, eram reconhecidos os seguintes métodos de reprodução

medicamente assistida: inseminação artificial, fertilização in vitro, transferência

intratubária de gametas, transferência peritonal de gametas e transferência

intratubária de embriões (GAMA, 2003, p.96).

A reprodução medicamente assistida possibilita ao casal ou indivíduo que

deseja ter filhos, ter seu código genético refletido na criança advinda desta técnica,

ter parentesco biológico integral, no caso da inseminação artificial homóloga, ou

parcial, no caso de inseminação artificial heteróloga (LEITE, 1995 p. 147).

Diversos são os motivos que levam à busca de métodos de reprodução

medicamente assistida, casais com problemas relacionados a esterilidade e

infertilidade, casais homoafetivos, e até por conveniência, já que nos dias de hoje as

mulheres carecem de tempo para gestar e também se preocupam com questões

estéticas, optando então por estas técnicas.

O desapontamento do casal que deseja ter filhos, mas não pode, tem estreita

relação com o meio social, que determina a imprescindibilidade de gerar filhos

(LEITE, 1995, p. 22). Portanto, a infertilidade acaba logo trazendo espaço para

angústia, planos são desfeitos, sonhos são incompletos, como o de perpetuar a vida

de sua família a partir da continuidade da filiação, bem como expectativas pessoais

e também do ambiente familiar são frustradas (LEITE, 1995, p. 24).

De acordo com o doutrinador Eduardo de Oliveira Leite (1995, p. 101) “O

desejo de filiação é inato à natureza humana. Desde a infância até a velhice o

homem espera perpetuar sua espécie através dos filhos”. É neste meio que a

reprodução assistida é inserida como forma de satisfazer o anseio de ter filhos.

Quando há ausência ou escassez de espermatozóides, busca-se um doador,

para que aconteça a chamada inseminação heteróloga. Do mesmo modo ocorre no

caso de a mulher carecer de óvulos, busca-se uma doadora, havendo fertilização in

vitro, e após tratamento hormonal, poder gestar o embrião.

No caso da mulher com carência de trompas ou esta com funcionalidade

prejudicada, também se busca a fertilização in vitro. Nesta técnica a união do óvulo

e do espermatozóide ocorre em laboratório, garantindo espaço e alimento para

possibilidade de fecundação. Se ocorre a fecundação, o embrião é deslocado para o

útero, onde permanecerá durante toda a gestação (LEITE, 1995, p. 27).

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Quando há espermatozóides deficientes, é preciso tratá-los e ajudá-los em

sua atividade de fecundação, ocorrendo a chamada inseminação homóloga, no colo

ou na cavidade uterina.

Mas quando não há possibilidade do útero exercer sua funcionalidade,

somada ou não à inexistência de óvulos, busca-se uma mãe de substituição. Este

método gera severos debates éticos e jurídicos, tendo em vista que a sociedade e o

Direito desde sempre consideram mãe a pessoa que dá à luz, que passa pela

gestação, ao invés de uma terceira pessoa alheia ao casal (LEITE, 1995, p. 28).

Diversas tecnologias são adotadas para solucionar as dificuldades procriativas,

passar-se-á agora a análise do estudo enfoque do presente trabalho, a maternidade

de substituição.

2.2 MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO

A maternidade de substituição pode ser definida como a cessão do útero por

parte de terceiro em relação ao casal ou indivíduo, para que ocorra a gestação do

embrião e posterior entrega da criança.

É uma prática muito antiga, citada inclusive na Bíblia. Entretanto, a mãe de

substituição era considerada anteriormente a mãe biológica da criança, e a partir dos

avanços biotecnológicos, com o surgimento da fertilização in vitro e da inseminação

artificial, tornou-se possível a cessão do útero sem qualquer ligação genética com o

embrião (LEITE, 1995, p. 184).

Esta técnica foi utilizada primeiramente no Japão, em 1963, e nos Estados

Unidos em 1975, e é recomendada em casos de infertilidade, quando inexiste útero

ou na presença de deficiência que impossibilite uma gravidez comum.

A maternidade de substituição pode envolver duas situações diferentes: a

mãe portadora, que empresta o útero para gestar o embrião obtido da fecundação

dos gametas masculino e feminino do casal, via fertilização in vitro; e a mãe de

substituição, que faz doação de seus óvulos e também empresta o útero, neste caso

haverá inseminação do esperma, e a criança advinda da gravidez será

geneticamente da mãe de substituição, que entregará a criança para o casal

solicitante (LEITE, 1995, p. 68).

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Pode ocorrer também a doação do gameta masculino ou feminino, que após

fecundação in vitro com o material do pai ou da mãe genética, o embrião será

transplantado no útero da mãe de substituição. São inúmeras as possibilidades e

pessoas que podem estar envolvidas no procedimento (LEITE, 1995, p. 187).

Alguns países, como os Estados Unidos, contratam as mães de substituição

por meio de incentivos pecuniários, porém, a cessão ocorre também por motivos

afetivos, por vezes dentro da esfera familiar.

Vale ressaltar o direcionamento à gratuidade, postulado por Eduardo de

Oliveira Leite (1995, p. 144), com base em princípios franceses e no Relatório de

Warnock, do Reino Unido, que se trata de esclarecimentos sobre reprodução e

embriologia.

A segunda regra, da gratuidade, decorre igualmente da indivisibilidade da pessoa e do seu corpo. O corpo, por ser elemento constitutivo e formador da pessoa deve permanecer fora do comércio. A regra de impõe também pela necessidade de proteger a pessoa contra a tentação de agredir a integridade de seu corpo, movida pelo dinheiro.

Muitas mulheres disponibilizam seu corpo para gestar uma criança, com o fim

de receber dinheiro pela cessão do útero. A gratuidade evita a profissionalização

desta prática e o consequente lesionamento do corpo pela reiteração, assim como

torna o consentimento totalmente livre, não movido por interesse financeiro, mas sim

por fins altruístas.

Para a ocorrência da reprodução assistida, é fundamental a presença um

terceiro, alheio ao casal, que vai doar seja o gameta feminino, seja o masculino, ou

ceder o útero. Na maior parte das vezes, este terceiro é um estranho, um anônimo,

que por generosidade auxiliará no processo procriativo.

Diante desta situação, levanta-se uma dúvida concernente a este terceiro

dever ser conhecido do casal solicitante ou permanecer em anonimato. A melhor

resposta seria que “(...) a doação de gametas (esperma + óvulo) não gera ao seu

autor nenhuma consequência parental relativamente à criança daí advinda. A

doação é abandono a outrem, sem arrependimento, nem possibilidade de retorno”

(LEITE, 1995, p. 145). Inexistindo, portanto, o vínculo de filiação entre o doador do

gameta ou do cedente do útero e a criança advinda.

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Restando assim, totalmente e aconselhavelmente dispensável o

conhecimento da pessoa doadora, não existido interessem algum por parte dela.

Quanto a criança ter conhecimento de sua origem biológica, é convencionado entre

os pais informar ou não, e em que momento.

Diversas perguntas surgem com a maternidade de substituição, pois o tema

sempre é objeto de discussões por sua relevância no âmbito jurídico, ético,

sociológico, psicológico e inclusive financeiro. E não há regulamentação jurídica

adequada e suficiente que sane dúvidas e solucione conflitos (LEITE, 1995, p. 66).

Muitas vezes acaba ocorrendo durante a gestação uma ligação emocional

entre a gestante e a criança que está carregando. Como resolver esta situação?

Quem deve ficar com a criança, a mãe gestacional ou a mãe genética e solicitante?

Para responder esta indagação, é primordial a consideração do melhor interesse da

criança, do seu direito de desenvolver-se em um ambiente propício a promoção de

suas potencialidades (LEITE, 1995, p. 191-192).

Na hipótese de a mãe de substituição ter relações com outra pessoa, qual a

garantia de que a criança foi realmente concebida pela inseminação? E quanto ao

anonimato, deve ser preservado? A gestação de substituição pode ter caráter

pecuniário? Algumas questões podem ser resolvidas mediante a elaboração de um

contrato entre a mãe de substituição e a mãe solicitante, ora genética, como

cláusulas garantindo a entrega da criança e o tempo de castidade necessário. Mas

qual é a validade deste contrato?

Não há um posicionamento pacífico e majoritário que responda a todos estes

questionamentos, não há legislação que se refira a estes problemas, nem a

Constituição Federal, o Código Civil ou o Estatuto da Criança e do Adolescente

aludem diretamente a maternidade. De acordo com os ensinamentos do doutrinador

Eduardo de Oliveira Leite (1995, p. 195), “O importante para contornar objeções

morais e sociais é estabelecer um rigoroso controle do processo acompanhado por

uma série de princípios que resguardariam os excessos até então constatados”.

No Brasil, a única disposição concernente ao tema, provém da esfera da

regulamentação da profissão médica, é a Resolução nº 2.013/2013 do Conselho

Federal de Medicina, que reflete normas éticas a serem adotas quanto aos métodos

de reprodução assistida.

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Tendo em vista a inexistência de regras jurídicas sobre a maternidade de

substituição, enquanto o Congresso Nacional não redigir uma legislação acerca

deste tema, a Resolução nº 2.013/2013 permanecerá exercendo indiretamente uma

regulação do procedimento e das partes envolvidas (ARAUJO; VARGAS; MARTEL,

2012. p. 213).

Esta resolução contém requisitos gerais e específicos atinentes a gestação

por substituição. Para a adoção desta técnica, é indispensável que haja um

problema médico que torne inviável ou contraindique a gestação da mãe genética,

ou em casos de relação homoafetiva.

Primeiramente, condiciona-se a doação temporária do útero ao grau de

parentesco da mãe substituta, que deverá ser consanguínea do indivíduo solicitante

ou de um dos componentes do casal contratante, até o quarto grau (mãe, irmã, avó,

tia ou prima), respeitando-se a idade limite de 50 anos.

Outro requisito, é o impedimento de finalidade lucrativa ou de

comercialização, ocorrendo a substituição apenas por um caráter altruístico e de

generosidade. Contudo, é possível o auxílio financeiro durante o período de

gestação, devido a despesas médicas necessárias (ARAUJO; VARGAS; MARTEL,

2012. p. 216).

Alguns documentos também são de apresentação obrigatória na clínica de

reprodução assistida, são eles: o termo de consentimento, com a assinatura de

todos os envolvidos no procedimento; relatório médico assegurando o bom estado

emocional e psicológico da mãe gestacional; a exposição por meio escrito e

detalhado das ocorrências médicas advindas da utilização de técnicas de

reprodução assistida, seus resultados, constando inclusive informações de ordem

biológica, jurídica, psicossocial, ética e econômica; contrato entre os participantes da

relação determinando a filiação da criança; esclarecimento dos riscos característicos

da gravidez; a impossibilidade de interrupção da gestação; a prerrogativa de

tratamento e acompanhamento médico; o registro civil pelos solicitantes; e por

último, a aprovação do cônjuge ou parceiro em caso da doadora temporária do útero

possuir relacionamento (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2013).

Estas regulamentações tornam possível a relativização dos critérios de

filiação, colaborando para o reconhecimento da multiparentalidade e autorizando a

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adoção das técnicas de reprodução assistida, incluindo a maternidade de

substituição e incentivando a aceitação social (OLIVEIRA, 2012, p. 205).

Este rol de documentos obrigatórios para realização do procedimento da

maternidade de substituição, permite inferir a formalização de um contrato, ainda

que não oneroso, aplicando-se a ele o regime do Código Civil (ARAUJO; VARGAS;

MARTEL, 2012, p. 217).

Mas muitas dúvidas permanecem sem serem sanadas, como a definição da

maternidade ante a mãe genética e a mãe gestacional. Diante disto, vale ressaltar o

seguinte trecho (ARAUJO; VARGAS; MARTEL, 2012, p. 218):

Diante da ausência de normas, o juízo terá que decidir ante o caso concreto, levando em consideração vários princípios, como a força da autonomia privada em relação aos melhores interesses da criança, bem como a filiação por status ou contratual.

Os raros casos judiciais de que se tem conhecimento, versavam sobre o

registro de nascimento, em que os envolvidos na gestação de substituição

desejavam a admissão da situação fática frente a legislação existente, ou seja, o

reconhecimento do estabelecimento da filiação por aqueles que decidiram pela

parentalidade, não pela pessoa que gestou a criança.

Passa-se agora então à análise da determinação da filiação diante do atual

cenário vivenciado.

2.3 DA FILIAÇÃO

Historicamente, desde 1804 com o Código Napoleônico, a parentalidade era

definida com base na presunção de paternidade, sendo esta decorrente apenas do

casamento (LEITE, 1995, p. 201).

A partir das evoluções científicas e da possibilidade de obtenção de exames

de DNA, a presunção de paternidade deixou de ser o critério norteador para a

fixação da filiação, cedendo lugar para a verdade genética e biológica, prevalecendo

esta sobre qualquer coisa.

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Contudo, é preciso uma revisão do tradicionalmente ensinado à sociedade,

novos conceitos são necessários para que a filiação seja determinada por critérios

adaptados à realidade atual.

A técnica de reprodução medicamente assistida tornou imperioso o

reconhecimento do estabelecimento da filiação não somente por critérios biológicos

e genéticos, mas também afetivos e psicossociais, com predominação da verdade

sentimental e subjetiva, baseada na vontade.

Atualmente, nem mesmo o ato de dar à luz corresponde a uma definição para

o vínculo da maternidade, considerando que um embrião pode ser transplantado

para o útero de uma mulher que apenas gestará a criança, entregando-a mais tarde

(ARAUJO; VARGAS; MARTEL, 2012, p. 211).

O Direito precisa encarar o mais importante em meio a estas relações: a

questão da vivência (LEITE, 1995, p. 203). Gérard Cornu (CORNU, 1984, p. 299)

demonstra a essencialidade deste ponto com a afirmação de que “o direito da

filiação não é somente um direito da verdade. É também, em parte, um direito da

vida, do interesse da criança, da paz das famílias, das afeições, dos sentimentos

morais, da ordem estabelecida do tempo que passa...”. Evidenciando assim, a

importância da afetividade.

Mas qual é o fundamento da filiação no caso da maternidade de substituição?

A vontade de ter a criança é o suficiente? Na adoção a filiação é definida

unicamente pelo ato de vontade, independente de vínculos genéticos e biológicos.

Mas em investigações de paternidade, o reconhecimento do filho pode ser forçado,

contra a vontade (LEITE, 1995, p. 203-206).

Entre os dois extremos, pode ser afirmado que o critério da vontade deve ter

preponderância e inclusive servir de meio de prova para a filiação, exemplo disto é o

registro civil de nascimento e a posse de estado do filho. O registro de nascimento

provém de um ato de vontade dos pais, da mesma forma a posse do estado do filho,

que decorre da vivência, da situação fática proporcionada pelos pais, e é inclusive

prevista no Código Civil Brasileiro de 2002, em seu artigo 1.605, II.80

80 Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito: II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.

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O casal ou indivíduo que recorre a maternidade de substituição, o faz por um

ato de pura vontade e afetividade. Portanto, conclui-se que a filiação resulta da

afetividade baseada na vontade, é decorrente do projeto parental, sendo argumento

suficiente para a determinação da filiação na maternidade de substituição (LEITE,

1995, p. 368).

Atualmente, o princípio da afetividade tem sido recepcionado nas questões de

filiação (OLIVEIRA, 2012, p. 205). A modernidade tem girado em torno deste

princípio, norteador das relações. Neste momento insta frisar os ensinamentos de

Pablo Stolze Gagliano e de Rodolpho Pamplona Filho (2012, p. 90): “Vale dizer, a

comunidade de existência formada pelos membros de uma família é moldada pelo

liame socioafetivo que os vincula, sem aniquilar suas individualidades”. Ou seja, o

próprio conceito de família abordado no início deste estudo, tem sua origem fundada

na afetividade.

O Código Civil Brasileiro de 2002 passou a abranger a possibilidade de

reconhecimento da filiação advinda da inseminação artificial homóloga e heteróloga,

esta última desde que haja prévia autorização do marido, superando o conceito

tradicional de paternidade relacionada ao ascendente genético.

Entretanto, nada é referido ao tema da maternidade de substituição, que

apesar de envolver a inseminação artificial, inclui também a pessoa que gestará a

criança. Nenhum dos sujeitos deste procedimento é protegido pela legislação atual,

originando dúvidas e lacunas para solucionar conflitos (OLIVEIRA, 2012, p. 206).

Aliás, limitação alguma é abordada fazendo alusão as técnicas possíveis para

reprodução. Esta e outras críticas atinentes à esta matéria serão exploradas a

seguir, com o fim de proporcionar uma reflexão e também incentivo a

regulamentação.

2.4 CRÍTICAS E DESAFIOS ADVINDOS DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

Muitas críticas surgem no tocante a este tema, devido a inexistência de

relações sexuais, assim como dilemas morais e éticos são construídos.

Parafraseando Eduardo de Oliveira Leite (1995, p. 131-132), nossas representações

tradicionais dos modos de concepção são distorcidas em frente a reprodução

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assistida, assim como as estruturas de parentesco. Discussões são cotidianamente

levantadas e opiniões divididas, deve-se tratar adequadamente e regulamentar, ou

os progressos científicos e biológicos devem ter seu avanço limitado?

As opiniões da população divergem, ora contra, ora a favor da reprodução

assistida. Uma corrente acredita que o desejo de ter filhos não é uma necessidade,

não merecendo intervenção ou qualquer proteção do Estado, outra corrente acredita

que gerar filhos ou não, é uma questão estritamente divina, não devendo existir

intervenção na natureza. Outro posicionamento acredita que é uma questão digna

de atenção, com tratamento justificado e necessário (LEITE,1995, p. 131-132).

De acordo com Barchifontaine (1997, p.174), estes debates não devem

impedir a realização de tais métodos, “O conjunto do ato sexual e das intervenções

da reprodução medicamente assistida pode considerar-se como integrado numa

ação significativa única do amor do casal”, sendo então o principal alicerce para a

adoção destas técnicas de reprodução assistida, o amor entre o casal e a

paternidade responsável.

Para a Igreja Católica, a concepção dos filhos é decorrente do casamento, da

relação sexual conjugal. Este pensamento não deve predominar mais, pois

evidentemente o vínculo de paternidade não apenas se relaciona a um caráter

biológico, mas também afetivo. Barchifontaine (1997, p.190) novamente demonstra a

substancialidade da questão declarando que “Poder-se-ia dizer até que as próprias

dificuldades físicas e psicológicas dessas técnicas constituem uma prova de amor

recíproco do casal e prova de amor para com o nascituro”. Fundamento o qual

evidencia a possibilidade da existência de parentalidade social e não apenas

genética, justificando a adoção das técnicas de procriação, considerando que até

mesmo pais que não possuem afeto para com seus filhos, tem responsabilidade

parental.

Contudo, até que ponto existe o direito de criar um novo ser humano? E

quanto a inviolabilidade do corpo? Como fica enquadrado o interesse da criança?

Estes são alguns dos questionamentos originados diante do tema, que merecem

atenção e respostas, a serem observadas a seguir (LEITE, 1995, p. 139).

Quanto ao direito de criar um novo ser humano, insta frisar os ensinamentos

de Eduardo de Oliveira Leite:

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(...) o direito de ter meu próprio filho, e a não inserção de um estranho no grupo familiar, até prova em contrário, é um direito absoluto que, no presente momento, nenhum legislador do mundo civilizado se arriscou a negar. (...) poder-se-ia negar em cada ser este direito fundamental como expectativa tanto natural quanto essencial? Certamente que não. Este direito é incontestável e absoluto? Se há verdadeiramente um direito absoluto à criança, isto quer dizer que todos os meios são possíveis para ter um filho. Se existe este direito – e nem a lei civil, nem a religiosa o negam – a sociedade tem o dever de ajudar os casais (...)

Resta evidente então, a existência e essencialidade do direito a ter um filho.

Adiante será sanada a indagação quanto a inviolabilidade do corpo humano.

Com os avanços da medicina e a extrema valorização do corpo, ilustrada

principalmente pela grande quantidade de realização de cirurgias plásticas, o corpo

tem sido objeto de exploração, é a tendência atual e também futurística. Da mesma

forma a questão da inviolabilidade do corpo humano pode ser interpretada no caso

da reprodução assistida, a proteção é estendida à pessoa, o corpo deixou de possuir

caráter intocado. Exemplo disso é prática de autópsia em cadáveres, com o fim de

estudo, experimentos, não caracterizando violação à pessoa (LEITE, 1995, p. 134).

Ademais, ao submeter-se a procriação artificial, a pessoa demonstra

inequivocamente o seu consentimento para tal atividade, não havendo o que se falar

sobre inviolabilidade do corpo. Existem necessidades sociais que fazem essenciais

as intervenções sobre o corpo, mas obviamente, de forma delimitada e não abusiva,

a ser regulamentada por uma legislação atualmente insuficiente e imperiosamente

primordial.

Quanto ao interesse da criança, este é constitucionalmente resguardado,

devendo ser o foco da questão. Haja vista a subsistência do direito dos pais a terem

filhos, as crianças consequentemente também possuem direitos. O direito a ter pai,

mãe, uma família, seja qual for sua estrutura, tem direito a ter seus interesses

satisfeitos, receber amor, carinho, proteção e cuidados, que são objetivos do casal

ou indivíduo que deseja ter filhos e recorre a reprodução assistida (LEITE, 1995, p.

140).

Outro ponto a ser destacado no presente estudo, é o interesse de mercado

advindo destas técnicas, objetivando a venda ao invés da doação de gametas

humanos e a cessão onerosa do útero. Além disso, o mercado seleciona e separa

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as pessoas por sua raça, características físicas e intelectuais, com promessa de

resultados similares. Esta prática não deve prosperar, uma vez que torna o corpo

humano uma espécie de produto, vinculado a interesses econômicos, e com

possibilidade de rejeição em caso de a expectativa não ser atendida (GAMA, 2003,

p. 100).

Esta não é uma atividade a ser explorada economicamente, com direito a

exibição de catálogos com possibilidade de escolha quanto as características da

mãe substituta ou do doador do sêmen. Por este e inúmeros motivos a serem

demonstrados neste estudo faz-se necessária uma imediata construção normativa

por parte do Estado, de modo a preservar valores tutelados por cada sociedade.

2.5 DA REGULAMENTAÇÃO

É mister a regulamentação estatal quanto a técnica de reprodução

medicamente assistida. Inclusive, os direitos reprodutivos estão implícitos na

Constituição Federal, como poderá ser observado a seguir (OLIVEIRA, 2012, p.

209).

A Constituição Federal de 1988 prevê em seu artigo 196, proteção relativa a

saúde, previdência e assistência social. A saúde é evidentemente direito da pessoa

humana, que deve ser preservada a partir de medidas políticas, sociais e ações do

poder público para manter o bem da coletividade.

Portanto, é imprescindível que haja normatização alusiva aos avanços

biotecnológicos, de modo a impedir a utilização abusiva, clandestina, prejudicial e

desumana de pesquisas e métodos de intervenção na pessoa humana, como

exemplo, a técnica de reprodução medicamente assistida, vítimas da

mercantilização.

Esta construção normativa deve estar atrelada aos valores sociais e culturais

de cada localidade, bem como deve ser flexível, com possibilidade de alteração,

considerando a rápida modificação e criação de tecnologias, sendo também

necessária uma harmonia entre a norma jurídica e os valores éticos e morais da

sociedade (LEITE, 1995, p. 145).

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Responsabilidades antes não atribuídas, devem ser reconhecidas, tanto no

campo ético quanto moral, social e jurídico. Novos valores são originados e

contemplados pelo biodireito, pela bioética, e discutidos na sociedade. Logo, as

lacunas legislativas não podem mais servir de espaço para arbitrariedades, abusos e

má utilização dos métodos alternativos emanados para reprodução humana (GAMA,

2003, p. 108).

A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos de

1997, firmada por inúmeros países, faz referência as questões concernentes a

biologia, genética e ao biodireito, bem como incentiva a promoção de políticas

públicas e determina o equilíbrio e conformidade entre normas jurídicas e princípios

estabelecidos. Confirmando assim, a imprescindibilidade da regulamentação do

tema.

Mais um fundamento para a regulamentação das técnicas de reprodução

assistida, implícito na Constituição Federal como direito reprodutivo, é a previsão do

disposto no artigo 226 §7 da Constituição Federal, que aduz sobre o planejamento

familiar.81

Da mesma forma, a Lei nº 9.263/1996, alude ao planejamento familiar,

deliberando em seu artigo 282 que este preceito envolve também a constituição da

fecundidade, bem como o número de filhos, devendo o Estado auxiliar o exercício

deste direito do cidadão.

Todos estes direitos explicitados são de suma importância, e enquanto não há

expressa previsão legal, podem obter respaldo nos artigos descritos até aqui da

Constituição Federal de 1988.

Quanto a interpretação conforme a Constituição, a doutrinadora Maria Rita de

Holanda Silva Oliveira (2012, p. 205) afirma que o direito à reprodução medicamente

assistida está aliado a uma diversidade de garantias constitucionais, derivando

inclusive do direito à intimidade privada e à liberdade individual, devendo também

81 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 82 Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.

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permitir aos casais homoafetivos e as famílias monoparentais adotarem tais

técnicas.

Segundo Eduardo de Oliveira Leite (1995, p. 131), “As novas técnicas de

reprodução assistida exigem normas aptas a contornar adversidades e impasses

decorrentes, bem como fixar limites de aplicação e utilização”. Diante do exposto, o

legislador tem duas alternativas: desconsiderar a validade dos contratos,

declarando-os ilegais e impraticáveis; ou considerá-los e delimitar sua ocorrência,

estrutura e efeitos (LEITE,1995, p. 197).

O Brasil está percorrendo um caminho direcionado a um posicionamento que

permite o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, tornando-as

legítimas, mas obviamente com restrições quanto ao uso, atendendo princípios

bioéticos, sociais, culturais e constitucionais (OLIVEIRA, op. cit., p. 202).

A ciência e a humanidade devem dialogar para que conflitos sejam

solucionados de forma harmônica.

Vale ressaltar que com a limitação legislativa das técnicas de reprodução

assistida visando a ética, a entidade familiar e o planejamento familiar devem

permanecer recebendo auxílio e tutela do Estado, não limitando sua atuação, mas

sim preservando-a, tendo em vista que estes objetivam o melhor interesse da

criança (OLIVEIRA, op. cit., p. 207).

Além das adversidades encontradas no Brasil, há circunstâncias de ordem

internacional que ampliam as complicações, como a atual facilidade de mobilidade,

que possibilita aos interessados na gestação por substituição buscar no plano

externo um recurso para a satisfação de seu anseio, frustrado por exemplo, pela

incapacidade de concepção e desamparo técnico e jurídico em seu país de origem.

Assim, mostra-se essencial a análise da maternidade de substituição no direito

comparado, tratada a seguir.

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3 MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO EM FACE DO DIREITO COMPARADO

3.1 RELEVÂNCIA DO DIREITO COMPARADO

As técnicas de reprodução assistida possuem tratamento diferenciado em

cada localidade, considerando a pluralidade cultural, ética, moral e religiosa. A

Noruega e a Austrália permitem a utilização destes métodos apenas por pessoas

casadas, a Suécia exige uma união estável, a Espanha permite a adoção destes

meios de procriação artificial por pessoas casadas, em união estável e também para

indivíduos não envolvidos numa relação (GAMA, 2003, p. 182).

Analisar a maternidade de substituição sob a luz do direito comparado permite

obter maior conhecimento e compreensão do tema, tanto no plano externo quanto

interno, bem como possibilita alterações e aprimoramentos relativos a legislação

brasileira (GAMA, 2003, p. 184).

É necessário observar primeiramente questões atinentes aos próprios

indivíduos, suas culturas, para posterior exame do sistema jurídico, semelhanças e

diferenças, de modo a evitar discriminações e incentivar a inclusão, a igualdade, a

tolerância e a dignidade em face da diversidade.

Dessa forma, consegue-se chegar a uma reflexão e avaliação crítica a

respeito do próprio direito brasileiro, a uma identificação das melhores posturas

jurídicas a serem tomadas e a verificação da solução de conflitos nos variados

sistemas.

O direito comparado viabiliza também a construção normativa quando diante

de lacunas, e a revisão de interpretações, quando diante de regras já existentes

(GAMA, 2003, p. 198).

Diversos países já possuem regulamentação jurídica em relação a reprodução

assistida. É imprescindível a normatização de determinados aspectos desta matéria,

do contrário, valores são corrompidos, bem como princípios e garantias do cidadão.

Assim, para uma melhor abordagem do tema, passa-se a explanação do

assunto sob a ótica do sistema inglês.

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3.2 DO DIREITO INGLÊS

Durante a época medieval, a Inglaterra foi influenciada pelo direito erudito que

havia sido constituído devido a motivação do direito canônico dos tribunais

eclesiásticos da Igreja Católica e da Igreja Anglicana (GAMA, 2003, p. 317).

Entretanto, o fator mais relevante para o desenvolvimento do direito inglês, foi

a atuação dos tribunais reais, que a partir do século XII, com objetivo de solucionar

conflitos de modo rápido e acessível à população, formaram um direito

consuetudinário, aplicado a todo o reino, dando início a criação do Common Law,

determinando as regras a serem aplicadas a todo o território. Foram também

elaboradas fórmulas de ação, denominadas writs, para facilitar e ampliar o acesso

da população a justiça, que consistiam em mandados, ordens, de acordo com

pretensão judicial.

O Common Law correspondia a uma série de normas não escritas, baseadas

nos costumes da sociedade, interpretadas pelos juízes. Não tendo então qualquer

importância o direito escrito, servindo este apenas de complemento as decisões.

Portanto, não ocorreu nesta localidade o episódio da codificação,

considerando que já existia um sistema jurídico formado, dotado de unidade política

e territorial (GAMA, 2003, p. 212).

A unidade política é demonstrada pela tradição, tendo em vista que a mesma

família real está no governo desde o ano de 1066, formando uma sociedade

homogênea. Quanto a unidade territorial, esta decorre do fato de os territórios da

Inglaterra pertencerem como propriedade da Coroa inglesa, sendo os povos

possuidores dos feudos, e fiéis ao rei, formando uma centralização do poder.

Com o passar dos anos, novas situações surgiram e as fórmulas antes

implementadas não abarcavam toda a necessidade populacional, suscitando um

desejo de mudanças no sistema. A partir disto, passou a prevalecer a equidade,

oportunizando as pessoas insatisfeitas a se dirigirem ao rei, para que ele resolvesse

o caso apresentado, fazendo a justiça livremente (GAMA, 2003, p. 318).

Tribunais foram criados e faziam seus julgamentos com fundamento nos

critérios de equidade, atuando de maneira ativa no sistema jurídico em

desenvolvimento. Os precedentes jurisprudenciais também possuíam relevância,

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sendo obrigatoriamente aplicados quando certa solução já havia sido empregada em

caso semelhante.

Os acontecimentos históricos como o Iluminismo e a Revolução Industrial não

influenciaram de nenhuma forma o direito britânico. Jeremy Bentham, que

incentivava a codificação, levantava questionamentos a respeito do sistema jurídico

inglês, se este observava a utilidade e a maximização da felicidade de cada um,

afirmando que os conceitos utilizados pelo sistema eram falhos, e que precisavam

ser substituídos pela construção de um código (GAMA, 2003, p. 319-322).

Devido ao conservadorismo do Reino Unido, demorou um tempo até as ideias

de Bentham serem aplicadas, mas ao longo dos anos a legislação passou a ser

necessária em determinados tópicos. Assim, a partir do século XIX, o direito inglês

começou a sofrer modificações significativas.

Os estatutos que não eram usados foram abolidos e os ainda aplicáveis foram

compilados; os writs, equivalentes a mandados correspondentes aos casos

concretos para iniciar a ação, também foram extintos do sistema processual.

A partir da reorganização do judiciário, os tribunais tornaram-se

hierarquizados, os writs foram substituídos por um processo único, com adoção dos

princípios e conceitos do Common Law e da equidade. Estas transformações

geraram inúmeras consequências, o divórcio por exemplo, antes altamente

burocrático e custoso, passou a ser um instituto alcançável por todas as pessoas.

Houve edição de novos estatutos fixando o anteriormente estabelecido e

incluindo a consolidação de jurisprudências, mas nenhuma esfera completa do

direito foi codificada.

Após a breve análise histórica da construção do direito inglês, passa-se a

apreciação do Direito de Família neste contexto, para melhor compreensão e

verificação da matéria alusiva as técnicas de procriação artificial e a maternidade de

substituição.

3.3 DIREITO DE FAMÍLIA SOB A PERSPECTIVA INGLESA

No que concerne ao Direito de Família, a organização familiar tinha como

figura central o pai, chefe de família, detentor de todos os direitos sobre seus filhos,

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o que gerava um tratamento de propriedade, tendo a mãe apenas o dever de

reverência e respeito para com seus filhos e marido. Este cenário modificou-se

apenas em 1973, com o Guardianship Act, em que a igualdade de direitos e

obrigações foi reconhecida no âmbito familiar, entre pai e mãe. Contudo, a guarda

permaneceu sendo exercida unicamente pelo pai, demonstrando a desigualdade,

apenas alterada em 1989, com o Children Act (GAMA, 2003, p. 323).

Quanto ao reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, o

tratamento recebido é desigual, considerando que o poder parental não é

estabelecido de forma plena para ambos pais.

Inexiste também o princípio da solidariedade familiar, sendo inclusive obstado

a família tomar decisões relativas à sua própria organização, cabendo aos estatutos

proceder a regulamentação de direitos, deveres e poderes.

A doutrina tem observado as recorrentes mudanças no modelo de

constituição familiar, o grande aumento do número de uniões estáveis, sendo

fundamental uma revisão na legislação no que diz respeito às famílias e

principalmente aos filhos advindos.

O direito inglês tem se mobilizado e criado leis no tocante a proteção dos

interesses da criança, sem envolver ligação direta entre o ela, o vínculo biológico e

seus pais. São exemplos disso o Family Law Reform Act de 1987, o Children Act de

1989 e o Family Law Act de 1996.

O Family Law Reform Act de 1987 removeu todas as restantes distinções

legais entre crianças nascidas provenientes de um casamento ou de pais não

casados (PARLIAMENT, 2015). É o atual estatuto que regula o status e direitos de

propriedade de filhos ilegítimos, e traz um princípio geral em sua primeira seção, o

qual faz referência a relação entre duas pessoas, que deve ser construída e

interpretada sem ligação com a existência de casamento ou não (BARLOW, 2015).83

83 “The provisions of the 1969 Act were superseded by the much more comprehensive Family Law Reform Act 1987, which is the statute currently governing the status and property rights of illegitimate children. This Act, which embodies a number of Law Commission recommendations, was brought into force on April 4, 1988. 17 Section l(l) states what is termed “the general principle.” This subsection provides (inter alia) that in instruments made after the coming into force of the Act references to any relationship between two persons shall in the absence of a contrary intention be construed without regard to whether or not the father or mother of either person have or had been married to each other at any time”. (Tradução nossa).

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Ainda, começou a remover as desvantagens legais da ilegitimidade,

estabelecendo como princípio geral a igualdade legal para as crianças,

independentemente de seus pais serem casados entre si ou não. Tornou possível

também que as crianças advindas de casamentos nulos, fossem capazes de pleitear

a cidadania britânica pela descendência na linha masculina (GOVERNMENT UK,

2015).

O Children Act de 1989 traça o bem-estar da criança como de extrema

importância, devendo sua visão ser respeitada nas circunstâncias apropriadas. Este

estatuto inclui uma lista de princípios gerais que devem ser levados em

consideração nos casos envolvendo crianças de modo a maximizar a promoção e

proteção do bem-estar geral delas, guiando as ações para o seu melhor interesse

(MINISTRY OF ETHICS, 2015).84

Este estatuto delineia também exatamente quem possui guarda e

responsabilidade parental, permitindo até mesmo a ação unilateral de um dos

responsáveis, não sendo necessário o consentimento de ambos. Devem ser

respeitados e levados em consideração: os sentimentos e desejos averiguáveis da

criança, conforme a idade e nível de compreensão; suas necessidades físicas,

emocionais e educacionais; os possíveis efeitos causados por qualquer mudança de

circunstância; sua idade, sexo, experiências ou qualquer característica que a corte

julgar relevante; qualquer dano por qual tenha passado ou tenha o risco de sofrer,

dentre outros (CHILDREN ACT 1989, 2015).

Quanto ao Family Act de 1996, este coloca em primeiro lugar a segurança e o

melhor interesse da criança quando as famílias decidem não viver juntas mais. Este

estatuto encoraja as famílias a resolverem suas disputas fora da corte, clarifica as

responsabilidades parentais e a divisão de bens na separação e no divórcio, bem

como fornece estrutura para determinar o parentesco legal (JUSTICE BC, 2015).85

84 “This Act outlines that the Child's welfare is of utmost importance and their views must be respected in the appropriate circumstances. It is a list of general principles that one should keep in mind when dealing with cases involving children so as to maximally promote and protect their general welfare and to guide actions that are in their best interest. It also outlines exactly who has parental responsibility or guardianship. The Act allows anyone with parental responsibility to act alone (the consent of 1 parent is necessary)”. (Tradução nossa). 85 “The Family Law Act puts the safety and best interests of the child first when families decide not to live together anymore. The Act also: Encourages families to resolve their disputes out-of-court; Clarifies parental responsibilities and the division of assets when couples separate and divorce;

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São tratados também assunto referentes a violência doméstica, ajuda judicial para

mediação de problemas familiares, casamento forçado, divórcio e separação.

Além destes estatutos, os direitos da criança que atendam ao seu melhor

interesse são protegidos pela Convenção das Nações Unidas e pela Convenção

Europeia de Direitos Humanos, utilizadas pelo Reino Unido (GAMA,2003, p. 324-

325).

Como já identificado no presente estudo, o vínculo de paternidade e

maternidade sempre foi estabelecido com base na família constituída, no

casamento, em critérios biológicos. Mas estes parâmetros não são mais suficientes,

tendo em vista os novos contornos que o conceito de família tem tomado.

O Children Act de 1989 abordou questões alusivas a este aspecto,

ressaltando a noção de responsabilidade parental não necessariamente fundada em

uma ligação biológica, “mas sim a qualquer pessoa que assuma a responsabilidade

de sustentar, criar e educar a criança atendendo aos seus melhores interesses”

(GAMA, 2003, p. 326).

No que concerne a filiação, predomina a presunção de paternidade

decorrente do casamento, sendo o marido o respectivo pai da criança advinda,

quanto aos casos em que não há relação matrimonial, a paternidade é determinada

por aquele que pleiteia juntamente com a mãe a inscrição do nascimento. Ou, a

filiação pode ser definida pelo ajustamento da responsabilidade paternal comum.

Quando existe dúvida atinente a paternidade, esta pode ser elucidada por

meio judicial, sendo permitido ao tribunal utilizar qualquer método para

esclarecimento da imprecisão.

3.3.1 Da Reprodução Assistida

Em 1982, o governo da Grã-Bretanha formou uma comissão, tendo Mary

Warnock como presidente, objetivando o exame da matéria consonante a

reprodução assistida, formulando mais tarde, em julho de 1984, o Relatório de

Addresses family violence; and Provides a framework to determine legal parentage”. (Tradução nossa).

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Warnock, com posicionamento favorável a adoção de tais técnicas (GAMA, 2003, p.

327-328).

Este relatório teve como orientações centrais: a instituição de um serviço

particularizado de tratamento contra a infertilidade que integrasse o Serviço Nacional

de Saúde, permitindo o acesso aos métodos de procriação artificial até mesmo para

as pessoas com recursos limitados; obstar a prática da maternidade de substituição;

reduzir o acesso às técnicas de reprodução assistida por mulheres que não tenham

ao menos união estável heterossexual.

Em 1987, com a Family Law Reform Act, tornou-se aceitável o uso da

inseminação artificial homóloga e heteróloga, e nada foi aduzido no tocante a

utilização dos gametas post mortem.

A paternidade em casos de inseminação artificial heteróloga, desde que

consentida pelo marido, é atribuída a ele, inexistindo qualquer vínculo entre o doador

e a criança advinda.

Contudo, estas previsões legais foram desbancadas pelo Human Fertilisation

and Embriology Act 2008, que atribui a paternidade e maternidade para aqueles que

adotaram as técnicas de procriação artificial, devendo o filho ser tratado como

legítimo (BARLOW, 2015).

O Human Fertilisation and Embriology Act 2008 tem como principais objetivos

assegurar e regular a criação de embriões; proibir a escolha do sexo da criança por

motivações sociais; exigir que o bem-estar da criança seja levado em conta; permitir

o reconhecimento de parentalidade legal a casais do mesmo sexo que passaram

pela fertilização por meio da doação de embrião, óvulo ou esperma; possibilitar que

casais homoafetivos e pessoas não casadas requeiram uma ordem parental, que

será especificada mais adiante; e fazer mudanças nas restrições relativas aos dados

coletados para facilitar a condução das pesquisas (HUMAN FERTILISATION AND

EMBRIOLOGY AUTHORITY, 2015).

3.4 MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO SOB A LUZ DO DIREITO INGLÊS

Sobre a maternidade de substituição, o sistema jurídico inglês

terminantemente obstou a utilização desta técnica em casos que tenham como

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finalidade a obtenção de lucro. O Human Fertilisation and Embriology Act de 2008

trata sobre técnicas de reprodução assistida, bem como sobre a manipulação de

embriões humanos, e admite, de forma não expressa, a prática da maternidade de

substituição (GAMA, 2003, p. 329-330).

Entretanto, o direito inglês determina o vínculo de maternidade por meio da

identificação de quem deu à luz, restando a mãe solicitante ter seu filho reconhecido

mediante adoção.

O Human Fertilisation and Embriology Act de 2008 criou mecanismos para

fiscalização e controle da gestação de substituição, uma autoridade deve verificar o

procedimento e apontar quem são os pais jurídicos através da ordem parental, que

corresponde aos pais solicitantes da procriação artificial.

Esta autoridade é denominada Human Fertilisation and Embriology Authority e

é responsável pela supervisão do uso de gametas e embriões, licenciando clínicas

de fertilidade e centros de pesquisa envolvendo embriões humanos, a partir da

verificação e inspeção concernentes ao padrão de segurança e regras éticas fixadas

pelo governo do Reino Unido (HUMAN FERTILISATION AND EMBRIOLOGY

AUTHORITY, 2015).

Os métodos de reprodução assistida só podem ser adotados em clínicas

licenciadas, do contrário, o doador do gameta masculino será considerado

legalmente como pai da criança.

Independentemente de obrigações compactuadas, os acordos sobre a

substituição não são legalmente executáveis no Reino Unido. Porém, a relação entre

a mãe gestacional e a solicitante é reconhecida pelo Human Fertilisation Act de

2008, tendo a gestante inclusive o direito de determinação sobre a criança, ainda

que não seja geneticamente relacionada a ela (MINISTRY OF ETHICS, 2015).

Os dispositivos que versam sobre a maternidade de substituição têm origem

na década de 80. No ano de 1985, um caso envolvendo uma mulher que recebeu

dinheiro para gestar uma criança chegou ao conhecimento do parlamento,

provocando a implementação do Surrogacy Arrangements Act 1985 (SURROGACY

ONE, 2015).

Esta lei proíbe a gestação por substituição com qualquer tipo de negociação

comercial e lucrativa, considerando-se inclusive como ofensa criminal anúncios e

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131

propagandas que incentivem a adoção desta técnica, podendo gerar multa

pecuniária e até mesmo o encarceramento por período não superior a três meses

(SURROGACY ARRANGEMENTES ACT 1985, 2015).

No direito inglês, como já aferido anteriormente no presente estudo, a

substituta será a mãe legal da criança, todavia, a parentalidade poderá ser

transferida por meio da ordem parental ou da adoção.

Quanto a paternidade, inicialmente o pai será o marido ou parceiro da mãe

gestacional, a menos que este não tenha consentido com a realização do

procedimento, ou que os direitos tenham sido legalmente transferidos para outra

pessoa (GOVERNMENT UK, 2015).

Vale ressaltar as duas possibilidades para ocorrência da maternidade de

substituição. A mãe substituta pode ser a mãe genética, determinando a substituição

tradicional, ou ela pode não ter relação genética com a criança, determinando a

substituição gestacional (SURROGACY ONE, 2015).

A substituição gestacional implica na implantação de um embrião criado a

partir do óvulo e do espermatozóide dos pais solicitantes; ou da doação de um óvulo

fertilizado com o espermatozóide do futuro pai; ou um embrião formado através da

doação de ambos, óvulo e espermatozóide.

Em relação a substituição tradicional, esta envolve o esperma do pai

solicitante e do óvulo da substituta, podendo ser feita a fertilização por inseminação

artificial ou intrauterina.

Insta frisar que no Reino Unido é proibida a comercialização desta técnica.

Contudo, as despesas razoáveis podem ser pagas para a substituta, cada

pagamento devendo ser justificado. Os valores variam conforme cada caso e

circunstâncias da substituição.

Como já explanado, ainda que o acordo seja firmado via contrato assinado

pelas partes e que todas as despesas tenham sido custeadas, tal acordo não é

legalmente executável pela Corte do Reino Unido. A mãe substituta tem o direito de

ficar com a criança, ainda que não geneticamente relacionada a ela, pois para o

Direito Inglês, a pessoa que passa pela gestação da criança é a mãe legal. Devido a

estas restrições legais, a procura por substituição internacional tem crescido

constantemente.

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132

A seção 3 do British Nationality Act 1981 permite que crianças não

automaticamente determinadas como cidadãs britânicas com o advento do

nascimento, sejam registradas para adquirir esta nacionalidade, desde que pelo

menos um dos pais solicitantes seja um cidadão britânico, que os pais substitutos

tenham consentido e que o casal solicitante tenha o vínculo de paternidade

estabelecido legalmente com a ordem parental.

Esta ordem parental é um mecanismo legal que corresponde a um

requerimento do vínculo de parentalidade para com a criança advinda, a ser

solicitado a partir de seis semanas após o nascimento ou até que a criança complete

seis meses de idade, do contrário, a mãe de substituição permanece sendo a mãe

legal da criança.

Alguns requisitos são necessários para a concessão da ordem parental, como

a ligação genética com o filho, sendo possível a existência de um doador de gameta

masculino ou feminino. Os solicitantes devem ter dezoito anos ou mais, e podem ser

pessoas casadas ou que convivam em uma união estável, devendo um dos

indivíduos, ou ambos, estarem residindo no Reino Unido. Ainda, a criança precisa

obrigatoriamente viver com os pais solicitantes. Estes requisitos estão consagrados

no Human Fertilisation and Embriology Act 2008.

Não é permitido o requerimento de ordem parental por pessoas solteiras, ou

que não tem qualquer relação genética com a criança, restando a adoção como

única forma de estabelecer o vínculo de paternidade legal.

Mostra-se necessária a obtenção da ordem parental para a finalidade de

assegurar os direitos parentais no Reino Unido. A partir da ordem parental, é

possível endereçar a parentalidade, redesigná-la, retirando o título dos pais

substitutos e concedendo a responsabilidade parental aos pais solicitantes

(SURROGACY ONE , 2015).

A mãe substituta ou qualquer outra pessoa que seja considerada como pai da

criança deve expressamente concordar com os termos da ordem parental para esta

possa ser concedida (GOVERNMENT UK, 2015).

Existem diversas clínicas no Reino Unido que acompanham o processo da

maternidade de substituição. Umas das principais, é chamada de COTS,

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Childlessness Overcome Through Surrogacy, fundada em 1988 e acompanhado até

o ano de 2013 cerca de 855 substituições.

Quanto ao questionamento a respeito da entrega da criança, esta clínica

afirma que por volta de 98% dos acordos restaram prósperos. Por se tratar de

agência que não tem lucro como finalidade, não perdura qualquer objeção legal em

relação a ela (CHILDLESSNESS OVERCOME THROUGH SURROGACY, 2015).

Tecidas estas considerações, atinge-se o objetivo do direito comparado no

estudo da maternidade de substituição, ampliando o rol de posicionamentos

possíveis a serem tomados ou deixados de lado, permitindo uma análise das

alternativas a serem adotadas e também aprimoradas, viabilizando uma revisão de

interpretações e posturas jurídicas, além de incentivar a promoção de uma

regulamentação da matéria, diversas vezes inexistente, como o caso do Brasil.

Dessa forma, uma vertente para avaliação e reflexão é levantada, para que a

questão seja solucionada no Brasil, deixando de ficar a margem do sistema jurídico

brasileiro (GAMA, 2003, p. 182).

Ainda, vale ressaltar os ensinamentos de Guilherme Calmon Nogueira Gama

(2003, p. 336), no que alude a importância do direito comparado como forma de

proporcionar a construção e reforma normativa:

E qual a importância da análise comparatista ora apresentada? O direito brasileiro se ressente, a exemplo de outros países, de um tratamento legislativo adequado em conformidade com as polêmicas e exigências que os avanços científicos em matéria de reprodução assistida têm suscitado, o que torna inevitável o estudo aprofundado sobre a questão para que possa ficar expressa a postura do ordenamento jurídico brasileiro frente às questões polêmicas que se apresentam. O direito comparado, na linha contemporânea relativa às suas funções e objetivos, deixa evidenciado que o respeito à diferença é fundamental e, dentro desse contexto, o Direito de Família brasileiro apresenta vários pontos que lhe são próprios e que, evidentemente, devem ser considerados não apenas no trabalho de construção, no de aplicação, mas também de interpretação das normas jurídicas para que o ordenamento jurídico brasileiro possa efetivamente cumprir os objetivos expressos na Constituição Federal de 1988 (artigo 3º), com base nos fundamentos que o alicerçam (artigo 1º, do texto constitucional).

Por fim, resta demonstrada a imprescindibilidade do reconhecimento jurídico

concernente a maternidade de substituição, com a consequente regulamentação do

tema, principalmente a partir da observação e análise do tratamento jurídico adotado

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em demais localidades, com o objetivo de amparar os anseios da sociedade

contemporânea, dirimir incertezas, preencher lacunas legislativas, e

fundamentalmente, proteger o melhor interesse da criança.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo inicialmente possibilitou a compreensão dos novos

contornos da família e do que motivou a revisão de posturas conservadoras,

reconhecendo especialmente as diferenças existentes. Pode se entender que o

conceito de família está em constante mudança, em conformidade com os anseios

da sociedade contemporânea, estabelecendo novas estruturas familiares, formando-

se uma pluralidade, baseada majoritariamente no princípio da afetividade.

A partir disto, verifica-se a possibilidade de adoção dos métodos de procriação

artificial, também reestruturantes do conceito de família, como a maternidade de

substituição. Do mesmo modo, foi possível conhecer algumas formas de reprodução

medicamente assistida, sua utilização e as motivações que levam a busca destas

técnicas, como a esterilidade, infertilidade, problemas médicos que inviabilizam a

gestação, o relacionamento homoafetivo e o desejo de ter filhos.

Quanto ao tema principal, foi identificada sua caracterização e as duas

situações quem podem ser envolvidas, a mãe portadora e a mãe de substituição,

havendo no primeiro caso apenas o empréstimo do útero para gestar o embrião, e

no segundo caso ocorrendo a doação de óvulos além do empréstimo do útero.

Ademais, pode-se verificar os diferentes tratamentos ao redor do mundo, alguns

permitindo a prática desta técnica, outros obstando, restringindo, e outros sem

qualquer respaldo jurídico, como o Brasil.

Após observar a variedade de desafios, questionamentos e conflitos que

surgem diante da maternidade de substituição, como a questão da paternidade,

filiação, gratuidade, onerosidade, anonimato, validade do contrato, debates éticos,

morais, psicológicos, jurídicos e inclusive financeiros, constatou-se a falta de

respostas e soluções aos problemas advindos. Ainda que exista a Resolução nº

2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina, que contém requisitos para a

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ocorrência da maternidade de substituição, esta possui caráter apenas ético, e não

serve de respaldo jurídico para fixar determinações legais e sanar dúvidas.

Em seguida, pode se reconhecer os direitos reprodutivos e o direito a saúde

na Constituição Federal, ensejando novamente a regulamentação legislativa da

maternidade de substituição, de modo a coibir os abusos existentes, arbitrariedades,

fixar limites e proteger princípios e garantias constitucionais, principalmente o melhor

interesse da criança.

Ao analisar o direito inglês, pode se constatar que as mudanças no conceito

de família incentivaram a criação de leis visando proteger a criança sem

necessariamente exigir o vínculo biológico entre ela e seus pais, de modo a

potencializar a proteção de seus interesses e de seu bem-estar.

Sobre a legislação existente e atinente a maternidade de substituição, pode

se concluir que esta permite a prática deste método de reprodução assistida,

contudo obsta qualquer envolvimento lucrativo, sendo possível apenas pagamentos

de gastos razoáveis, como exames por exemplo. Ainda, as clínicas devem ser

licenciadas e adotar uma série de exigências estabelecidas pela autoridade.

Como para o direito inglês a maternidade é atribuída a pessoa que gestou a

criança e deu à luz, foi disponibilizado o requerimento de uma ordem parental, que

possui pressupostos para ser concedida, para então finalmente ser outorgada a

responsabilidade pela criança aos pais solicitantes.

Por fim, no que concerne ao direito comparado, este permitiu a aquisição de

conhecimento de novas culturas jurídicas, bem como oportunizou a análise e

avaliação crítica das posturas adotadas pelo direito inglês, proporcionando revisão

de conceitos consolidados, de interpretações, ensejando formulação de regras a

serem aplicadas, e auxiliando no alcance de soluções e conclusões, podendo ser

também fonte de norma jurídica e de preenchimento de lacunas legislativas, de

modo a viabilizar a efetivação da proteção da garantia constitucional do melhor

interesse da criança na maternidade de substituição.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Nadia de; VARGAS, Daniela; MARTEL, Letícia de Campos Velho. Gestação de substituição: regramento no direito brasileiro e seus aspectos de direito

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internacional privado. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família: entre o público e o privado. Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2012. BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Bioética e reprodução medicamente assistida. [S.l.: s.n.], 1997. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. DF: Senado, 1998. CORNU, Gérard. Droit Civil. La famille. Précis Domat. vol. 2, nº 101.Paris: Editions Montchrestien, 1984. GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, volume 6: Direito de Família – As famílias em perspectiva constitucional. 2.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. OLIVEIRA, Maria Rita de Holanda Silva. Reprodução assistida e uma releitura das presunções jurídicas da filiação. In: PEREIRA, Rodrigo Cunha (Coord.). Família: entre o público e o privado. Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2012. DOCUMENTOS ELETRÔNICOS BARLOW, Francis. Children and Issue: Some Lingering Growing Pains. Disponível em: <http://www.kessler.co.uk/wp-content/uploads/2012/04/Barlow_Children_and_Issue.pdf> Acesso em: 05 jun. 2015. CHILDLESSNESS OVERCOME THROUGH SURROGACY.Do many surrogates keep the baby? Disponível em: <http://www.surrogacy.org.uk/FAQ4.htm> Acesso em 02 set. 2015. CHILDREN ACT 1989. Welfare of the child. Disponível em: <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1989/41/section/1> Acesso em: 05 jun.2015. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.013/2013. Brasília, 09 de maio de 2013. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf> Acesso em: 16 maio 2015. GOVERNMENT UK. Surrogacy: legal rights of parents and surrogates. Disponível em: <https://www.gov.uk/legal-rights-when-using-surrogates-and-donors/overview> Acesso em: 06 jun. 2015.

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A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE MÚLTIPLA FILIAÇÃO REGISTRAL

THE LEGAL POSSIBILITY OF MULTIPLE PARENTAGE REGISTER

Gabrielle Fração86

Tatiana Denczuk87

SUMÁRIO

Resumo. 1 Introdução. 2 Critérios Filiatórios Determinantes 2.1 Critério Jurídico-Legal 2.2 Critério Biológico 2.3 Critério Socioafetivo. 3 Possibilidade Jurídica de Múltipla Filiação Registral. 3.1 A Coexistência das Relações Filiais Biológica e Socioafetiva como Pressuposto de Admissibilidade à Multiparentalidade 3.2 O Instituto e Alguns Aspectos Práticos. 4 Considerações Finais. Referências

RESUMO O presente texto objetiva analisar as mais diversas facetas que, ao longo da história, foram se incorporando às relações parentais. Neste cenário, dedicou-se à extensão dos conhecimentos acerca dos critérios legal, biológico e socioafetivo da filiação, partindo da análise de suas peculiaridades e concretas funções parentais. Partindo do pressuposto de que não há qualquer prevalência de um critério sobre o outro, visto que todos são igualmente importantes, pretende-se solucionar casos onde há efetiva colisão de dois ou mais critérios filiatórios sobre a mesma pessoa. À luz do princípio da dignidade da pessoa humana e, no intuito da preservação de direitos, urge-se à necessidade de adesão do instituto da Multiparentalidade, ao ordenamento jurídico brasileiro. Neste sentido, defende-se não só a possibilidade jurídica de múltipla filiação registral, como também se orienta no sentido de que todas as filiações possam surtir integrais efeitos. Palavras-chave: parentalidade biológica, socioafetividade, multiparentalidade.

ABSTRACT This paper aims to analyze the various facets that, throughout history, have been incorporated to parental relations. In this scenario, dedicated to the extent of knowledge about the legal criteria, biological and socio-affective paternity, based on an analysis of its peculiarities and specific parenting duties. Assuming that there is no prevalence of one criterion over another, since all are equally important, it is intended to resolve cases where there is effective collision of two or more filiatórios criteria on the same person. According to the principle of human dignity and in order to preserve rights, it is urgent to the need for membership of the Multiparentalidade Institute, the Brazilian legal system. In this sense, it is not only defends the legal possibility of multiple registral membership, but also is oriented in the sense that all affiliations might work full effects.

86 Acadêmica de Direito do UNICURITIBA - Jus Vitae. [email protected] 87 Mestranda em Direito pelo UNICURITIBA, especialista em Contratos Empresariais pela UFPR e graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora no curso de graduação e pós graduação em Direito no UNICURITIBA - Jus Vitae. [email protected]

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Keywords: biological parentage, affective parentage, multiple parentage register.

1 INTRODUÇÃO

Devido ao fato das transformações sociais estarem estritamente relacionadas

com o momento histórico em que estão inseridas, o presente artigo científico visa

perscrutar, de forma contextualizada, o caráter multifacetado que, ao longo dos

anos, afiliou-se às relações familiares e parentais.

Inicialmente, remete-se à estruturação das famílias na Antiguidade Clássica

para a melhor compreensão da lógica familiar patrimonialista e matrimonial adotada

pelo Código Civil Brasileiro de 1916 que, posteriormente, também serviu como

alicerce do legislador cível de 2002, fundamentando assim, a criação do critério

jurídico legal da filiação.

Este, por sua vez, apesar de ainda recepcionado pela legislação vigente,

torna-se cada vez mais insuficiente e rudimentar frente aos impactos sociais da

modernidade e, ao progresso da engenharia genética, principalmente no que tange

ao surgimento dos exames de DNA e das técnicas de reprodução humana assistida.

Ocorre que, porquanto o reconhecimento parental biológico seja de extrema

relevância para a formação da personalidade do filho, não mais satisfaz, de forma

isolada, os anseios de uma sociedade que, a cada dia, experimenta novos arranjos

familiares. Nesta conjuntura, a afetividade ganha especial relevo, tornando-se

essencial para concretização da subjetividade e dignidade de cada membro

integrante de uma família.

Em suma, as mudanças sociais albergadas pela sociedade moderna

acabaram conferindo ao critério jurídico-legal da filiação grande insuficiência prática.

Resultado disto foi à propagação de novas classificações doutrinárias referentes às

mais diversas maneiras de constituição parental, sejam elas decorrentes do vínculo

biológico ou da relação socioafetivamente construída.

Às primeiras vistas, a recepção judicial destes novos critérios aparenta ser

suficiente para a resolução dos mais variados casos concretos, porém deve-se

igualmente atentar para a real existência de situações onde os critérios biológico e

socioafetivo(s) colidirão, ou melhor, coexistirão.

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Posto isto e, partindo da premissa de que não há qualquer tipo de

hierarquização ou sobreposição de um critério filiatório sobre o outro, o principal

objetivo deste estudo consiste em analisar situações onde é faticamente constatada

a convivência de inúmeras formas de parentalidade sob a mesma pessoa.

Dado o fato de ainda não existir qualquer regulamentação legal neste sentido,

tampouco expressiva posição doutrinária e/ou jurisprudencial capaz de sanar estes

eventuais conflitos, a pesquisa que se segue visa elucidar a mais digna solução

quando da colisão entre as relações parentais biológica e socioafetiva, sem qualquer

supressão de direitos dos envolvidos.

2 CRITÉRIOS FILIATÓRIOS DETERMINANTES

Inicialmente, faz-se mister recapitular que, sendo a primeira e mais relevante

instituição organizada do mundo, a família deve ser considerada a principal unidade

de desenvolvimento humano. Desta feita, para que seja possível a realização plena

de seus membros, urge a constante necessidade de sua proteção e amparo.

É de notório saber que, com o fluxo do tempo, as sociedades presenciaram

mudanças culturais, religiosas, políticas e econômicas que impactaram diretamente

nas relações estruturais familiares. Dado este fato, torna-se descabido o estudo dos

critérios filiatórios, sem a prévia compreensão do momento histórico em que

eclodiram.

De forma correlata ao acima mencionado, passa-se então, à análise dos 3

(três) critérios doutrinários brasileiros, diferenciadores do instituto da filiação.

2.1 CRITÉRIO JURÍDICO-LEGAL

Para a melhor delineação do atual critério jurídico-legal da filiação, faz-se

necessário retroceder ao sistema romano de parentesco civil, que se estruturava,

basicamente, em noções patriarcais, matrimoniais, hierarquizadas e patrimoniais.

Diante disto, apercebe-se que o direito brasileiro, em especial o Código Civil

de 2002, reportou alguns princípios norteadores da antiguidade clássica, para a

criação de hipóteses legais de paternidade presumida que, consoante entendimento

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de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2014, p. 591), são provenientes

de um exercício lógico:

Considerando que as pessoas casadas mantêm relações sexuais entre si, bem como admitindo a exclusividade (decorrente da fidelidade existente entre elas) dessas conjunções carnais entre o casal, infere-se que o filho nascido de uma mulher casada, na constância das núpcias, por presunção, é do seu marido.

Ademais, é inóculo que a necessidade de preservação do matrimonio e, as

reais condições da mulher neste período, serviram como instrumentos basilares à

criação das presunções. Neste sentido, Maria Berenice Dias (2007, p. 323) entende

que

Além das dificuldades científicas em determinar a filiação, a história de subjugo que se impôs à mulher em nossa sociedade, não dava margem para duvidar da origem paterna de seu filho. A mulher tinha de casar virgem. Ao casar, retornava à incapacidade e era representada, em todos os atos, pelo seu marido. Não podia trabalhar, restringindo-se a cuidar do lar, do marido e da prole. Devia obediência ao marido... Enfim, os seus filhos, é claro, somente poderiam ser do seu marido, por absoluta impossibilidade de outra situação!

Desta feita, o critério jurídico da filiação pode ser ilustrativamente

representado por dois lados de uma mesma moeda, visto que é alicerçado nas

máximas: mater semper certa est (a mãe é sempre certa) e pater is est quem

nuptiae demonstrant (o pai é aquele indicado pelas núpcias).

É neste cenário que o legislador cível de 2002, elencou, em seu artigo 1597,

um rol taxativo de prazos, com o desígnio de determinar formas de paternidade

presumida em relação ao marido da mãe.88

Levando em conta que a gestação decorre de um período de 9 (nove) meses,

o legislador, nos incisos I e II do referido artigo, dispôs que são presumidamente

88 Art. 1597, CC/02: Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

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filhos do marido da mãe as crianças nascidas pelo menos 6 (seis) meses depois da

celebração do matrimônio, bem como as nascidas até 10 (dez) meses depois da

dissolução desta. Já nos incisos III, IV e V, as presunções são decorrentes de

alguns tipos de inseminações artificiais e fertilizações in vitro.

Contudo, atualmente, já se reconhece o caráter relativo das presunções

acima descritas, o que significa dizer que, com os avanços percorridos no campo da

biogenética, toda a lógica filial legislativa admite prova em contrário.

Enfim, cabe mencionar que, com a promulgação da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988, enviesada na ideia de justiça social, restou vedado

qualquer tipo de discriminação referente à pessoa dos filhos, motivo este pelo qual

muito se questiona acerca do caráter (in)constitucional das referidas presunções de

paternidade.

Ocorre que, se de um lado ditas presunções são consideradas

inconstitucionais pelo seu alto teor discriminatório, e, por conseguinte, não mais

deveriam subsistir, do outro, possuem status de direito adquirido, facilitando o

reconhecimento de filhos matrimoniais, e, desta feita, não podem ser suprimidas da

legislação pátria, sob pena de violar o princípio da proibição de retrocesso social.

De forma benéfica ou detestável, o fato é que o Código Civil de 2002

permanece abastado de presunções provenientes do critério jurídico ou legal da

filiação, porém, o objetivo central deste estudo não consiste em analisar de forma

aprofundada cada uma delas, mas sim, reconhecer a existência de critérios filiatórios

mais modernos e sinceros.

2.2 CRITÉRIO BIOLÓGICO

Como acima mencionado, o legislador ancorava-se em presunções que

consagravam valores morais e éticos da época em que o matrimônio traduzia a

sacralização da família. Aliado a isto, devido ao período em que o estudo da

biogenética se encontrava, não havia nenhum outro modo capaz de determinar com

absoluta certeza a filiação biológica, por conseguinte, as presunções, restavam

"suficientes".

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Ocorre que, a ânsia do ser humano em conhecer seu liame genético, tem

correlata ligação com o desvendar e com a construção de sua identidade pessoal,

por conseguinte, seu autoconhecimento e construção da sua personalidade. Em

outras palavras, o indivíduo apenas consegue ter consciência da sua condição de

ser quando compreende sua própria história, ou seja, quando, em seu íntimo,

consegue organizar a estrutura lógico-psíquica familiar pré-existente à sua origem.

Foi, após reconhecer a importância subjetiva destes motivos, que o direito

civil constitucional brasileiro passou a recepcionar o direito à filiação integral,

disponibilizando ao filho todos os instrumentos legais necessários, para que tenha

desvendada sua progenitura materna e/ou paterna.

Todavia, as Ações de Investigação de Maternidade e Paternidade só se

tornaram efetivamente viáveis a identificação da ancestralidade biológica, com o

surgimento dos testes de DNA. O que, na prática, para a ciência do Direito,

demonstrou expressiva relevância no que tange à possibilidade de afastamento do

critério biológico do jurídico legal da filiação.

Destarte, é de todo conclusivo que, com os exames de DNA as presunções

adotadas pelo legislador caem por terra: a mãe passa a não ser mais sempre certa

visto que, com as técnicas de reprodução artificial, a gestação pode se dar por

substituição - quando uma mulher gesta em seu útero óvulo fertilizado por outra

mulher - ou por doação de óvulo.

Na mesma linha de raciocínio, o pai passa a não ser mais necessariamente o

marido da mãe, mas sim aquele que possuí vínculo biológico com o filho,

determinado pelo sangue: pater is est quem sanguis demonstrant.

Ocorre que, apesar da relevância dada a esta prova pericial, suas limitações e

seu caráter de falibilidade não podem ser ignorados, motivo este pelo qual não se

orienta em sua demasiada valoração. Isso significa que magistrados não devem, em

ações investigatórias, tornar-se meros homologadores de laudos, mas sim estarem

atentos a todo o conjunto probatório, de modo a não corroborar com a sacralização

dos testes de DNA.

Em suma, a chamada verdade biológica da filiação, relegou um caráter

obsoleto à chamada verdade jurídico-legal. Porém, na atualidade, a mesma verdade,

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que derrotou a primeira, deve ser flexibilizada, visto que as relações filiais, por si só,

traduzem muito mais do que apenas laços de sangue.

2.3 CRITÉRIO SOCIOAFETIVO

Para entender como o afeto desocupou uma posição marginalizada e passou

a ingressar como elemento fundamental nos relacionamentos familiares

contemporâneos, é extremamente oportuno rememorar que na Antiguidade "não era

perceptível a concessão de espaço para o exercício de uma maior subjetividade", e

que até o século XVII o respeito a esfera individual se mostrava improvável

(CALDERÓN, 2013, p. 195).

Isso significa dizer que, "a vida no passado, até o século XVII, era vivida em

público", as pessoas passavam grande parte de seu tempo na coletividade e davam

pouca importância a esfera privada subjetiva, o que acarretava numa família que

"não existia como sentimento ou como valor" (ARIÈS, 1981, p. 210).

Foi com o século XVIII e a ascensão da Modernidade que começaram a

efervescer ideias subjetivistas, havendo, pois, o surgimento das famílias

eudemonistas que prezavam primordialmente, pela garantia de realização plena de

seus membros, bem como a comunhão de afeto recíproco entre eles independente

de qualquer vínculo biológico.

Em suma, Eduardo de Oliveira Leite (1991, p. 277) é quem explica a nova

mentalidade:

No final do século XVIII e, principalmente, após a Revolução Francesa, a juventude começou a dar mais atenção aos seus próprios sentimentos e não às considerações exteriores. A propriedade, o desejo dos pais e as injunções de ordem social foram negligenciadas na escolha do cônjuge.

Isso significa dizer que o tripé liberdade, igualdade e fraternidade, proveniente

da Revolução Francesa, passou a adentrar também aos relacionamentos

interpessoais, possibilitando uma seara propícia ao desenrolar da afetividade.

É neste cenário que a vertente socioafetiva da filiação, fundada no afeto como

valor predominante, conquista, na atualidade, cada vez mais espaço, revelando-se

de todo ameaçadora, aos critérios jurídico e biológico, previamente estudados.

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Consoante entendimento de Silvana Maria Carbonera e Marcos Alves da

Silva, a verdadeira parentalidade "decorre mais de amar e servir do que de fornecer

material genético" (2012, p. 109), razão esta pela qual, conclui-se que a filiação é

uma relação quotidianamente construída.

Nesta perspectiva, o real exercício da parentalidade vem do respeito ao trato

dos pais para com seus filhos, que não apenas inventam tempo para permanecer ao

'lado deles', mas para efetivamente 'estar com eles', fornecendo-lhes educação,

atenção e amor (ANTUNES, 2005, p. 14).

Desta forma, conclui-se que o afeto por excelência deve ser propiciado e

fornecido por aquelas pessoas que, independente de terem laços biológicos ou

afetivos, em determinado momento estejam desempenhando a função e o status de

pais e mães.

Eis que surge a noção de posse de estado de filho como "uma manifestação

de afeto por parte dos pais que acolhem outrem como filho independente da verdade

biológica” o que, em sua essência, traduz a efetivação do princípio da convivência

familiar (FACHIN, 2003, p. 85).

Por assim ser, entende-se que a parentalidade formada por este tipo de

estado de posse "é a aplicação da denominada teoria da aparência sobre as

relações paterno-filiais, estabelecendo uma situação fática que merece tratamento

jurídico" (CASSETTARI, 2015, p. 39).

Em suma, tendo o Direito a função de estatuir as relações social, nada mais

razoável que o afeto, em suas mais diversas facetas, também seja juridicamente

reconhecido e tutelado.

3 POSSIBILIDADE JURÍDICA DE MÚLTIPLA FILIAÇÃO REGISTRAL

Em decorrência da proteção garantida à família matrimonial e ao disposto nas

presunções legais filiatórias, o registro de nascimento da pessoa natural seguia um

modelo dúplice de parentalidade registral, onde só era possível constar o nome de

um pai e de uma mãe, desde que fossem de sexos distintos, consagrando-se assim

a dualista hipótese de biparentalidade (CASSETTARI, 2015, p.157).

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Porém, na medida em que a realidade social foi sofrendo alterações, os

modelos éticos de condutas entendidos como apropriados para a vida em

coletividade, principalmente aqueles relativos à conjugalidade e ao núcleo familiar,

entraram em constante declínio.

Desta forma, abriu-se maior espaço à individualização e à busca de

realização pessoal de cada pessoa dentro de sua singularidade, tornando-se

inevitável a desconstituição matrimonial e até mesmo familiar, quando da frustração

do plano de vida inicialmente estabelecido entre o casal.

Passa-se então, a compreender que "se é direito da pessoa humana constituir

núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de

comprometer-lhe a existência digna"89, desta forma, tornou-se possível a criação de

relacionamentos democráticos onde a opção pessoal - e não mais as questões

econômicas, patrimoniais e morais - tornou-se o critério determinante para dar

continuidade ou findar uma relação amorosa (CALDERÓN, 2013, p. 37).

No Brasil, apenas com a Emenda Constitucional 66/2010 tornou-se possível o

rompimento da sociedade conjugal com a efetiva extinção do vínculo matrimonial.

Diante disto, a estrutura familiar codificada cedeu espaços e passou a conviver com

outros núcleos familiares, principalmente aqueles estruturados na socioafetividade

e/ou resultantes da dissolução do matrimônio, dentre as quais cite-se as famílias

monoparentais, as homoafetivas e as pluriparentais.

Inicialmente, apercebeu-se que, a permissão legal a adoções conjuntas

homoafetivas, passaram a caracterizar mudanças significativas no assento de

nascimento da pessoa natural que, nestes casos, passam a ter apenas 2 pais ou 2

mães, caracterizando assim, nítida hipótese de bipaternidade ou bimaternidade.

Ora, não obstante a isto, passa-se também a presenciar um aumento do

número de dissoluções matrimoniais e uniões estáveis, o que acarreta na constante

construção de famílias monoparentais.

Ocorre que, a qualquer momento esta condição pode ser alterada, visto que

se vincula à possibilidade de uma futura recomposição familiar onde agrega-se novo

89 FARIAS, Cristiano Chaves de. A proclamação da liberdade de não permanecer casado (Um réquiem para a culpa na dissolução das relações afetivas). Disponível em: <www.flaviotartuce.adv.br/artigosc/Cristiano_artculpa.doc> Acesso: 17.agosto. 2015.

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cônjuge ou companheiro à um núcleo previamente existente, resultando assim na

formação de famílias pluriparentais.

Ditas famílias mosaico acabam caracterizando-se pela multiplicidade de

relações parentais e até mesmo familiares, a medida em que os novos casais

geralmente trazem consigo filhos egressos de outros relacionamentos e, por vezes,

até têm filhos em comum.

Das inúmeras configurações que podem se desenhar com a formação de uma

família recomposta, vislumbra-se a probabilidade de haver um compartilhamento de

funções parentais decorrente da máxima "os seus, os meus, os nossos" (DIAS,

2013, p. 56).

Assim sendo, a conduta externalizada pelos pais afins90 configurará

modalidade de parentalidade socioafetiva, na medida em que se aperceber que

estes, se auto identificam detentores fáticos da autoridade parental, tratando o filho

do novo companheiro como se seu fosse.

Neste sentido, Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues

(2009, p. 44) defendem que é

Perfeitamente possível que se crie um vínculo afetivo entre estes parentes afins e os filhos de seus consortes, uma vez que padrasto e madrasta exercem, com frequência, uma série de atos tipicamente inseridos no conteúdo da autoridade parental, mesmo que não haja uma real desvinculação afetiva ou material desses filhos com seus genitores biológicos, que, a despeito da dissolução da família anteriormente constituída, não deixaram de se desincumbir de seus papéis na formação da personalidade de seus filhos.

Havendo, portanto, mostras de que a parentalidade biológica pode coexistir

faticamente com a socioafetiva, passa-se a analisar a possibilidade jurídica de

reconhecimento de uma múltipla filiação registral.

90 Waldyr Grisard Filho sugere que a nomenclatura madrasta e padrasto seja substituída por mãe afim e pai afim, a medida em que estes não possuem qualquer carga valorativa preconceituosa e pejorativa, assim como os primeiros.

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3.1 A COEXISTÊNCIA DAS RELAÇÕES FILIAIS BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA

COMO PRESSUPOSTO DE ADMISSIBILIDADE À MULTIPARENTALIDADE

Como já elucidado, sabe-se que, posteriormente à grande conquista realizada

no campo da biogenética, que possibilitou o alcançar da verdade biológica da

filiação por meio dos testes de DNA, houve o florescer de uma nova ramificação nas

categorias filiatórias.

Esta, por sua vez, essencialmente embasada no valor do afeto, "conseguiu

estremecer os alicerces do vínculo meramente biológico" (GHILARDI, 2013, p. 69) a

medida em que supria mais exigências de uma sociedade contemporânea na

incessante busca pela concretização de sua dignidade humana.

Por conseguinte, com o prosperar destes novos critérios filiatórios, a doutrina

e a jurisprudência majoritária entenderam que, duas paternidades ou duas

maternidades, sendo uma proveniente da ascendência genética e outra da

construção parental socioafetiva, não podem coadunar sobre uma só pessoa.

Em suma, a maioria das decisões tendem no sentido de hierarquizar os

critérios filiatórios, onde o julgador, de acordo com o caso concreto, decide pela

prevalência de um em prejuízo do outro.

Ocorre que, a princípio, este não revela o posicionamento mais adequado,

visto que submete o filho à uma "escolha de Sofia"91 no momento em que o faz optar

por um vínculo parental, renunciando tacitamente o outro.

Em razão disto, torna-se óbvio que exigir das partes ou promover

juridicamente uma eleição entre os vínculos parentais já constituídos,

definitivamente não tutela a dignidade humana92 em sua mais pura forma, uma vez

que poderá trazer grandes traumas relacionais e, até mesmo psicológicos para

todos os envolvidos.

91 O filme "Escolha de Sofia" trata do dilema de "Sofia", uma mãe polonesa, filha de pai antissemita, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher um, ambos seriam mortos. (CASSETTARI, 2015, p. 215). 92 "Dignidade significa mais do que respeito recíproco da vida, inviolabilidade e liberdade no sentido negativo. Significa reconhecimento do outro por cada pessoa, na sua particularidade e singularidade, com tudo aquilo que é próprio da sua individualidade, enquanto ser único. (TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Multiparentalidade como fenômeno jurídico contemporâneo. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões (IBDFAM), Belo Horizonte, v. 14, p. 101, fev./mar. 2010.)

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Desta feita, passa-se a vislumbrar um caminho alternativo que reconhece,

não apenas as transformações sociais oriundas da modernidade, como também

valora equitativamente as parentalidades biológica e socioafetiva e lhes fornece

igual proteção e tutela jurídica. Conforme o exposto, Belmiro Pedro Welter (2009, p.

222) leciona:

Visto o direito de família sobre o prisma da tridimensionalidade humana, deve-se atribuir ao filho o direito fundamental às paternidades genética e socioafetiva e, em decorrência, conferir-lhes todos os efeitos jurídicos das duas paternidades. Numa só palavra, não é correto afirmar, como o faz a atual doutrina e jurisprudência do mundo ocidental, que "a paternidade socioafetiva se sobrepõe à biológica", ou que "a paternidade biológica se sobrepõe à socioafetiva", isso porque ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas.

Primeiramente, faz-se mister compreender que, apesar de distintos, todos os

critérios filiatórios podem se comunicar na realidade fática - a parentalidade biológica

pode ou não ser afetiva, a parentalidade afetiva pode ou não ser registral, a

parentalidade registral pode ser biológica e socioafetiva, assim por diante - motivo

este pelo qual se abre à análise da possibilidade de reconhecimento de uma múltipla

filiação registral.

Neste sentido, o fenômeno da multiparentalidade ou da pluriparentalidade

reflete juridicamente a existência palpável do convívio entre as relações parentais

biológicas e socioafetivas - que poderão ocorrer de forma simultânea ou espaçadas

ao longo da vida -, possibilitando que uma única pessoa tenha mais de um pai e/ou

mais de uma mãe, totalizando assim mais de duas pessoas em seu registro de

nascimento (CASSETTARI, 2015, p. 169).

Destarte, quando da real coexistência dos vínculos paterno ou materno-filiais

afetivos e biológicos, a efetivação de seu reconhecimento jurídico, mais do que um

direito das partes é uma obrigação constitucional, "na medida em que preserva

direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo a dignidade e a afetividade

da pessoa humana" (DIAS, 2013, p. 385).

Notadamente, o elo de correspondência existente entre dignidade e

multiparentalidade faz-se presente à medida em que a segunda é uma das formas

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de se consubstanciar a primeira. Esse é o entendimento de Ana Carolina Brochado

Teixeira e Renata de Lima Rodrigues (2010, p.102):

[...] é possível a formação de vínculos socioafetivos parentais por toda a vida, ou a descoberta de liames biológicos a qualquer tempo. Se o ordenamento jurídico transmudou-se para o viés personalista com a finalidade de tutelar a pessoa humana de forma mais concreta e abrangente possível, deve reconhecer a possibilidade de cumulação parental, para que o assento de nascimento reflita a exata realidade daquela pessoa, que no mundo da vida, tem múltiplas vinculações parentais, das mais diversas ordens.

Considerando que um vínculo socioafetivo poderá surgir em complementação

a um elo biológico ou jurídico já preestabelecido, bem como anteriormente à

descoberta e reconhecimento de uma paternidade ou maternidade biológica, tem-se

sobressaído na atual prática, à postulação de demandas que buscam a declaração

jurídica da multiparentalidade oriunda da formação das famílias recompostas ou do

desenrolar das adoções feitas à brasileira.

No caso das famílias mosaico, o reconhecimento da multiparentalidade irá

garantir "aos filhos que, na prática, convivem com múltiplas figuras parentais, a

tutela jurídica de todos os efeitos que emanam tanto da vinculação biológica como

da socioafetiva" (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.103).

Contudo, deve-se levar em consideração que os relacionamentos familiares

modernos, sejam eles conjugais ou parentais, tendem à efemeridade e fugacidade,

motivo este pelo qual as filiações devidamente constituídas tornam-se irrevogáveis,

afinal criança não é brinquedo, mas sim sujeito de direito em peculiar condição de

desenvolvimento que merece especial cuidado e respeito.

Com relação à hipótese anteriormente mencionada do filho que pretende ser

reconhecido pelo pai biológico, apesar de já ter um pai registral - como acontece, por

exemplo nos casos de adoção à brasileira - a melhor solução também desemboca

na multiparentalidade, visto que "excluir o pai registral, seria negar o reconhecimento

do afeto, assim como não reconhecer o pai biológico lhe traz a cômoda isenção de

responsabilidade" (GHILARDI, 2013, p. 76) ou seja, "retirar as obrigações legais

daquele que gerou um filho, mesmo que por um ato não desejado, é o mesmo que

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premiá-lo, em razão de terceira pessoa ter assumido seu papel" (GHILARDI, 2013,

p.78).

Já no que diz respeito à pessoa do filho, é incontestável que "negar-lhe uma

das paternidades é impingir-lhe uma penalidade em decorrência de uma situação

por ele não provocada" (GHILARDI, 2013, p.78).

Evidentemente, o não reconhecimento do liame biológico é uma restrição à

direitos da personalidade tanto quanto o não reconhecimento ou, até mesmo a

desconstituição, da parentalidade socioafetiva é violadora da dignidade humana.

Por assim ser, o direito precisa "compreender que o sujeito de direito é

também um sujeito desejante " e que, por vezes, aspirará pela legitimação tanto de

seus laços biológicos quanto afetivos, de modo que toda a compreensão da

dogmática jurídica deverá se adaptar a realidade de cada pessoa e, a forma como a

vida se apresenta a ela (PEREIRA, 2012, p.150).

Desta forma, será lícito "manter o estado de filiação mesmo que verificada a

ausência de vínculo biológico" bem como, a prévia existência de uma parentalidade

afetiva não poderá impedir que o filho busque o reconhecimento judicial de sua

genealogia, suas raízes, suas origens, seus antepassados.93

Percebe-se que na frustrada exaustão judicial de se "tentar encontrar a

melhor solução, excluindo um dos pais, perde-se grande oportunidade de se pensar

em estabelecer a dupla parentalidade" (GHILARDI, 2013, p. 75).

Para que seja juridicamente possível acolher a pluriparentalidade e a

multiparentalidade, é primordial absorver que não há qualquer tipo de vedação legal

capaz de afastá-la.

Apesar da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, mencionar como

tipos de famílias apenas o casamento, a união estável e as famílias monoparentais,

este rol demonstra-se meramente exemplificativo, visto que "se a liberdade de

constituição de família é um direito fundamental, não pode o estado limitar as formas

de família, ou os modos de exercício deste direito" (PÓVOAS, 2012, p. 88).

93 WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional no Direito de Família: reconhecimento de todos os direitos das filiações genética e socioafetiva. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, 13 abr. 2009. Disponível em: <http://www.mprs.mp.br/imprensa/noticias/id17076.htm?impressao=1>. Acesso em: 13 set. 2015.

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Deve-se salientar para o fato de que as mais novas decisões do Supremo

Tribunal de Justiça, contemplam a existência jurídica da multiparentalidade, como

pode-se aperceber no entendimento do Ministro Luis Felipe Salomão:

Direito de Família. Recurso especial. Ação investigatória de paternidade e maternidade ajuizada pela filha. Ocorrência da chamada "adoção à brasileira". Rompimento dos vínculos civis decorrentes da filiação biológica. Não ocorrência. Paternidade e maternidade reconhecidos. 1. A tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e depende sempre do exame do caso concreto. É que, em diversos precedentes desta Corte, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica foi proclamada em um contexto de ação negatória de paternidade ajuizada pelo pai registral (ou por terceiros), situação bem diversa da que ocorre quando o filho registral é quem busca sua paternidade biológica, sobretudo no cenário da chamada "adoção à brasileira". 2. De fato, é de prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, a assertiva seja verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva. No caso de ser o filho - o maior interessado na manutenção do vínculo civil resultante do liame socioafetivo - quem vindica estado contrário ao que consta no registro civil, socorre-lhe a existência de "erro ou falsidade" (art. 1.604 do CC/02) para os quais não contribuiu. Afastar a possibilidade de o filho pleitear o reconhecimento da paternidade biológica, no caso de "adoção à brasileira", significa impor-lhe que se conforme com essa situação criada à sua revelia e à margem da lei. 3. A paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente e que não se desfaz com a prática ilícita da chamada 'adoção à brasileira', independentemente da nobreza dos desígnios que a motivaram. E, do mesmo modo, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos da filha resultantes da filiação biológica, não podendo, no caso, haver equiparação entre a adoção regular e a chamada "adoção à brasileira". 4. Recurso especial provido para julgar procedente o pedido deduzido pela autora relativamente ao reconhecimento da paternidade e maternidade, com todos os consectários legais, determinando-se também a anulação do registro de nascimento para que

figurem os réus como pais da requerente.94

Na mesma direção do entendimento do STJ, inúmeros tribunais brasileiros

passam a reconhecer, mesmo que de forma ainda tímida, a multiparentalidade.

Inclusive, diversos deles, valem-se da teoria tridimensional do direito de família,

desenvolvida por Belmiro Pedro Welter, no intuito de melhor fundamentá-la.

94 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial, n. 1167993/RS. Rel: Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma. DJ: 18 dez. 2012.

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Em seu estudo, referido autor parte da premissa de que a compreensão do

ser humano somente será efetivada se ele tiver direito aos seus três mundos, quais

sejam: genético - pelo comportamento com o mundo das coisas -, (des)afetivo - pelo

modo de ser em família e em sociedade - e, ontológico - pelo modo de se relacionar

consigo mesmo.

Ainda afirma que com a continuidade da vida, a pessoa adquire direitos que

moldam seus modos de ser-no-mundo, por conseguinte, nenhum destes episódios

(genético-(des)afetivo-ontológico) poderá ser renunciado, sob pena de renunciar

também à carga, à história, à experiência de vida que conduz a pessoa no seu modo

de ser-em-família, de ser-em-sociedade e de ser-no-mundo-tridimensional. Em

decorrência disto, Belmiro Pedro Welter (2009, p. 223) defende que

Há necessidade premente da doutrina e da jurisprudência avancem mais um pouco, não admitindo apenas a existência do mundo genético OU do mundo afetivo, mas, sim, conceder ao ser humano o direito ao mundo biológico e ao mundo afetivo, isso porque o ser humano é detentor de três mundos, genético-afetivo-ontológico, pelo que ele tem o direito: (a) à sua singularidade, ao seu mundo real, em sua perspectiva verdadeira, a base sobre a qual ele se relaciona consigo mesmo (mundo ontológico); (b) ao relacionamento com a família e a sociedade (mundo afetivo); (c) à transmissão às gerações, por exemplo, de sua compleição física, os gestos, a voz, a escrita, a origem da humanidade, a imagem corporal e, principalmente, de todas as partículas de seu DNA (mundo genético), para que haja pacificação familiar e social, um dos maiores fundamentos do Estado Constitucional.

Por assim ser, quando da colisão de filiações biológica e socioafetiva, a mais

sensata solução virá acompanhada da premissa principiológica do melhor interesse

do filho, que deverá ser analisado à cada caso concreto.

Isso significa que a multiparentalidade como novo fenômeno social, apesar de

aclamar por aceitação e acolhimento jurídico, nem sempre traduzirá a melhor

resposta, "até porque não se pode mais cometer os mesmos erros da era positivista

e acreditar que, efetivamente, exista uma única resposta" (GHILARDI, 2013, p.73).

Diante deste particular cenário, sobressai aos olhos a real importância de

contarmos com profissionais qualificados e efetivamente comprometidos com o

desenvolvimento social, não esquecendo de respeitar cada pessoa em sua

singularidade, de forma à não se abolir direitos.

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3.2 O INSTITUTO E ALGUNS ASPECTOS PRÁTICOS

Neste estudo, a multiparentalidade é defendida como uma maneira de

garantir a proteção integral e o melhor interesse do filho, de forma que todas as

pessoas que exerçam ou, em algum momento já exerceram os papéis da

paternidade e da maternidade, tornem-se "responsáveis por prover tanto assistência

material quanto referenciais morais", indispensáveis para o crescimento sadio e para

a melhor estruturação da personalidade de seu filho, seja ele sanguíneo ou afetivo

(TEIXEIRA; RODRIGUES, 2009, p.48).

Em decorrência de toda fundamentação que constrói o instituto da

multiparentalidade e, partindo do pressuposto de que esta será recepcionada em

breve pelo ordenamento pátrio, faz-se necessário analisar algumas consequências

jurídicas que por logo advirão.

A princípio, os efeitos práticos da multiparentalidade serão os mesmos que os

recepcionados pelas famílias biparentais, visto que "independente da forma como

esse vínculo é estabelecido, sua eficácia é exatamente igual" (TEIXEIRA;

RODRIGUES, 2009, p.50).

Corroborando o entendimento de Belmiro Pedro Welter, sustenta-se que em

razão da condição humana ser tridimensional, genética, afetiva e ontológica, todos

os efeitos jurídicos de todas as parentalidades juridicamente constituídas devem-lhe

ser outorgadas (WELTER, 2009, p.113).

Desta feita, novas interpretações irradiam nos mais diversos institutos: nome,

parentesco, poder/dever familiar, guarda, visitas, alimentos e sucessão, que no

presente momento passaram a ser objeto de análise.

Bom, logo após o reconhecimento jurídico da multiparentalidade será

necessária sua exteriorização. Primeiramente, no quis diz respeito ao nome familiar,

já se consolidou o entendimento de que "o direito de uso do nome do pai pelo filho é

direito fundamental e não pode ser vedada sua utilização" (PÓVOAS, 2012, p. 94).

Isto posto, aquele que tiver reconhecida múltipla filiação registral terá o direito

de ostentar, caso queira, o nome familiar de todos os seus pais, bem como adotar a

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ordem de sua preferência. Após a escolha do nome, o juiz expedirá mandado de

averbação que deverá ser levado à efeito no Cartório de Registro Civil.95

Não se pode esquecer que "somente com a publicidade registral é que o

nome passa a ter suas características jurídicas de nome, em toda a sua amplitude e

com oponibilidade erga omnes" (BRANDELLI, 2012, p. 118).

Com relação à pessoa que não tinha capacidade civil plena para realizar a

escolha de seu nome no momento oportuno, poderá alterá-lo no primeiro ano após

ter atingido a maioridade e, desde que não prejudique os sobrenomes de família que

já possui (CASSETTARI, 2015, p. 227).

Por muito tempo as certidões de nascimento traziam campos específicos para

o nome do pai, da mãe e dos avós, portanto a inclusão de outros patronímicos além

destes, adentrava à uma seara delicada.

Contudo, nos dias de hoje isto não acarreta maiores problemas, visto que em

2009, o Provimento 2 do Conselho Nacional de Justiça além de determinar a

padronização de todas as certidões dentro do território nacional, substituiu os

campos 'pai' e 'mãe' por 'filiação' e os de 'avós paterno e materno' por 'avós'.

Ademais, em consequência do reconhecimento multiparental, o filho terá

vínculo de parentesco em linha reta e colateral até quarto grau com todas as famílias

de todos os seus pais e mães, de modo que os impedimentos matrimoniais e

sucessórios, desta forma também se estenderão. Exemplifica-se: "O filho que tiver

dois pais e duas mães, consequentemente terá oito avós e tantos tios quantos

irmãos esses pais/mães possuírem, e assim por diante" (CASSETARI, 2015, p. 193).

Com relação ao poder/dever familiar, urge a necessidade de se reinterpretar o

artigo 1636, do atual Código Civil96 para que não destoe da atual realidade,

principalmente à das famílias recompostas onde prevalece, o diário e contínuo

exercício da autoridade parental através de pais e mães afins.

Acerca disto, o Estatuto das Famílias já prevê:

95 Art. 100, §1º, Lei de Registros Públicos: Antes de averbadas, as sentenças não produzirão efeito contra terceiros. 96 Art 1636, CC/02: O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro.

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Art. 91: Constituindo os pais nova entidade familiar, os direitos e deveres decorrentes da autoridade parental são exercidos com a colaboração do novo cônjuge ou convivente ou parceiro. Parágrafo único: Cada cônjuge, convivente ou parceiro deve colaborar de modo apropriado no exercício da autoridade parental, em relação aos filhos do outro, e representá-lo, quando as circunstâncias o exigirem.97

Deve-se levar em conta que nos casos de multiparentalidade, o exercício da

autoridade parental será exercido por, no mínimo mais de três pessoas, o que na

prática, poderá gerar conflitos decisionais.

Porém, em identificando a multiparentalidade como um conglomerado de

relações parentais biológicas e afetivas, não sujeitas a hierarquização, não parece

razoável que as decisões tomadas por pais biológicos se sobreponham às decisões

tomadas por pais socioafetivos ou vice-versa.

Desta feita, caso a decisão a ser tomada com relação ao filho não seja

unânime entre todas as figuras parentais o ato não poderá ser praticado, devendo o

artigo 1631, p. único do CCB98 ser invocado, para que o juiz decida consoante o

melhor interesse do filho.

Exemplifica-se: no caso do menor de 18 anos que tem constituída

multiparentalidade e deseja se casar, qual dos pais deverá autorizar? O artigo 1517,

do Código Civil, estabelece que "o homem e a mulher com dezesseis anos podem

casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais,

enquanto não atingida a maioridade civil". Nesta linha, entende-se que a utilização

da palavra “ambos”, se remete a "todos", motivo este pelo qual o menor em idade

núbil, que tiver qualquer dos pais discordante da realização do casamento, só

conseguirá se casar com autorização judicial.

Indo mais além, as sanções previstas nos artigos 163799 e 1638100 do Código

Civil Brasileiro deverão se estender a todos os pais e mães responsáveis pelo

desenvolvimento do filho menor, independente de serem eles biológicos ou afetivos.

97 BRASIL. Projeto de Lei nº , de 2007. Dispõe sobre o Estatuto das Famílias. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/517043.pdf>. Acesso em: 07 ago. 2015. 98 Art. 1631, p. único, CC/02: Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo. 99 Art. 1637, CC/02: Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. Parágrafo único. Suspende-se igualmente o

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Quando da existência de múltipla filiação registral, outro ponto que merece

relevância diz respeito ao direito de guarda do filho menor. Em havendo bom

relacionamento entre todos os envolvidos poderá se optar por uma guarda

compartilhada, caso contrário esta deverá ser judicialmente concedida de forma que

atenda ao melhor interesse da criança.

Estritamente ligado à determinação da guarda, emerge também o direito de

visitas. Este, por sua vez, deverá ser concedido de igual forma a todos os pais e

mães envolvidas nesta relação multiparental, para que se garanta ao filho uma

possibilidade real e concreta de convivência familiar.

Por óbvio, os pontos mais críticos despontam ao se tratar dos direitos

sucessório e a pensão alimentícia. Decorrente da lógica patrimonialista adota pelo

atual Código, muitas pessoas não conseguem vislumbrar a possibilidade de alguém

fazer jus a várias heranças e/ou receber várias pensões alimentícias.

No que diz respeito à pensão alimentícia, esta é embasada no princípio da

solidariedade familiar, não de outra forma, aquele que possuir mais de um pai e/ou

mais de mãe terá seu direito estendido a todos - pais e avós. De igual forma, em

sendo o direito à prestação de alimentos recíproco, o filho se vinculará a todos seus

pais e mães.

Quanto aos direitos sucessórios, serão estabelecidas tantas linhas

sucessórias quantos forem os pais e as mães. Nesse sentido, Mauricio Cavallazzi

Póvoas (2012, p. 98), exemplifica:

Se morresse o pai/mãe afetivo, o menor seria herdeiro em concorrência com os irmãos, mesmo que unilaterais. Se morresse o pai/mãe biológico também o menor seria sucessor. Se morresse o menor, seus genitores seriam herdeiros.

Em resumo, todos os direitos e deveres oriundos da relação paterno/materno-

filial aplicados à tradicional família biparental, serão estendidos para as famílias

exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão. 100 Art. 1638, CC/02: Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

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multiparentais, de forma que sejam conferidos efeitos jurídicos à todas as

parentalidades dela decorrente.

Desta feita, alerta-se para o fato de que o reconhecimento de uma múltipla

filiação registral deverá ser concedido apenas via judicial e, desde que seja realizado

com extrema cautela, pois exercer funções e assumir papéis parentais requer

responsabilidade e comprometimento.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final da elaboração desta pesquisa, cumpre-se preliminarmente sobrelevar

o caráter plurifacetado que se incorporou às entidades familiares, tornando assim a

legislação sobre a matéria constantemente defasada e insuficiente para a efetiva

solução dos mais variados e até mesmo inimagináveis conflitos familiares que

eclodiram ao longo dos séculos.

Neste sentido, no decorrer do presente trabalho, fez-se necessário recapitular

alguns marcos históricos e seus impactos sociais, para uma melhor compreensão do

instituto da filiação e das mudanças que dele sobrevieram. Por conseguinte,

procurou-se evidenciar a mudança principiológica que sobreveio com a promulgação

da Constituição da República de 1988 e as alterações legais que acompanharam a

edição do Código Civil de 2002.

Destarte, referida codificação, projetada originariamente no ano de 1977, não

foi elaborada a lume dos novos ideais constitucionais e, em razão disto, não trouxe

numerosos comandos legais progressistas humanitários. Não para por aí, visto que

o mais estarrecedor é o fato de que este mesmo código regulamenta o direito das

famílias pós-moderno.

Na medida em que o critério jurídico-legal da filiação, alicerçado nas máximas

mater semper certa est e pater is est quem nuptiae demonstrant, é recepcionado

pela legislação vigente, torna-se inescusável o estudo das presunções de

paternidade. Estas, por sua vez, da mesma forma que podem traduzir comandos

discriminatórios às formas de filiação, podem facilitar o reconhecimento de filhos

matrimoniais, motivo este pelo qual a doutrina diverge quanto a sua

constitucionalidade ou não.

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Apesar disto, não é novidade que referido critério legal caiu em desuso com

os avanços da biogenética, em especial com a criação dos exames de DNA. Desta

feita, conferiu-se ao critério biológico da filiação imensa crença de infalibilidade,

gerando assim, inúmeros problemas práticos em razão da possibilidade de erro nos

resultados e, de relações parentais efetivamente construídas sem a presença de

vínculo genético.

Diante deste quadro, a doutrina, de forma muito acertada, construiu o critério

socioafetivo da filiação com base no princípio da dignidade da pessoa humana. Às

vistas disto, as relações paterno-filiais deixaram de se limitar a existência de laços

sanguíneos para revelar a maneira mais afetiva da convivência familiar. Posto isto, o

amor, o cuidado, o respeito e a real doação parental ao melhor desenvolvimento do

filho, não mais podem carecer de tutela jurídica.

Ao passo em que ambos os critérios filiatórios, biológico e socioafetivo,

mostram-se igualmente importantes, não se vislumbra qualquer justificava para não

serem equitativamente valorados. Por assim ser, a problemática central deste

estudo assentou-se em casos onde há efetiva colisão destas parentalidades sobre

uma única só pessoa.

Porquanto percebe-se que na prática prevalecem as decisões que

hierarquizam os vínculos parentais, dando prevalência à parentalidade socioafetiva

em detrimento da biológica, o trabalho que aqui se desenvolveu, propôs-se a

fundamentar a necessidade atual de serem mutuamente reconhecidos laços afetivos

e biológicos quando da sua factual coexistência.

Uma vez posto que a Modernidade veio recheada de mudanças culturais,

comportamentais e sociais, não mais cabe à legislação atual abnegá-las. Nesta

perspectiva, ganha corpo o instituto jurídico da multiparentalidade, que passa a ser

visto como o auge da concretização da dignidade humana de todos os envolvidos

nas relações paterno/materno-filiais "recompostas".

Por conseguinte, advoga-se a favor de que todos os modelos parentais

possam, com o devido respaldo legal, surtir seus efeitos, direitos e deveres, sem a

supressão de qualquer direito dos interessados. Em síntese, o objetivo medular

desta pesquisa não consiste em conceder ao instituto da multiparentalidade o

caráter da regra geral, mas sim em abrir mais uma possibilidade legal para que

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estes novos arranjos familiares não permaneçam à margem do sistema jurídico

atual.

REFERÊNCIAS

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O DIREITO À MORADIA: DÉFICIT HABITACIONAL NA REGIÃO

METROPOLITANA DE CURITIBA E A CONSTRUÇÃO DO "MODELO-CURITIBA"

THE RIGHT TO HOUSING: HOUSING DEFICIT IN THE METROPOLITAN REGION

OF CURITIBA AND THE CONSTRUCTION OF "CURITIBA-MODEL"

Germano Augusto Pereira Sureck101

Maria Luisa Scaramella102

SUMÁRIO

Resumo 1 Introdução 2 Breves considerações a respeito do processo de urbanização brasileiro e do déficit habitacional urbano 3 A produção dos espaços informais de moradia na Região Metropolitana de Curitiba e a construção do "modelo-Curitiba" 4 Considerações Finais. Referências

RESUMO

A partir de uma análise inicial do processo de urbanização brasileiro e do déficit habitacional urbano existente no cenário nacional, o presente texto propõe um breve estudo sobre a produção dos espaços informais de moradia na Região Metropolitana de Curitiba (RMC) nas últimas décadas e da construção do "mito da cidade-modelo", que atribui à capital do Estado do Paraná o status de "cidade que deu certo", em decorrência de suposto processo de planejamento urbano bem-sucedido. Para tanto buscou-se apontar a origem do denominado "Planejamento Estratégico", suas principais características e a implementação de seus postulados no município de Curitiba, bem como a formação da periferia metropolitana e a dinâmica do mercado imobiliário da "RMC". Pretende-se demonstrar que entre o discurso oficial e a realidade há um abismo, e que a problemática transcende o campo jurídico.

Palavras-chave: Direito à moradia; Metrópole de Curitiba; Espaços informais de moradia; Região Metropolitana.

101 Graduando em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. 102 Atualmente é professora no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com estágio no "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (ITEM), na "École Normale Supérieure" (2006-2007), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). É pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), na Universidade Estadual de São Paulo (USP).

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ABSTRACT

From an initial analysis of the brazilian urbanization process and the existing urban housing deficit on the national scene, this text propose a brief study of the construction of informal housing places in Metropolitan Region of Curitiba (RMC) in recent decades and the idea of "model city myth" that is given to the capital of Paraná the status of "city that succeed" due to the alleged process of urban planing well succeeded. Therefore we attemped to point the source of the named "Strategic Planning", its main characteristics and the Curitiba's principle of implementation, just like the metropolitan periphery construction and the "RMC" real estate market dynamics. We intend to demonstrate that there is an abyss between reality and official discourse, and that the problem transcends the legal field.

Keywords: Right to housing; Metropolis of Curitiba; Informal spaces housing; Metropolitan Region.

1 INTRODUÇÃO

Nos dias atuais evidencia-se verdadeira crise urbana, cujos efeitos refletem

em diferentes áreas. O cenário caótico transita da questão da moradia à falta de

vagas em creches, do transporte coletivo precarizado sob domínio e exploração de

poucos grupos familiares à ausência de saneamento básico para grande parte da

população, da coleta de lixo ineficiente ao trânsito insustentável, da violência

perpetrada por civis à repressão estatal e policial desmesurada etc. O recente

movimento de distribuição de renda, ou melhor, de combate à miséria, que culminou

na retirada do Brasil do "Mapa da Fome" elaborado pela Organização das Nações

Unidas (ONU), foi de grande valia, mas passou longe de resolver os problemas

urbanos.

O déficit habitacional urbano, compreendido tanto como a ausência de um

"teto", quanto como privação de condições de habitabilidade (déficit qualitativo) e,

consequentemente, de dignidade, é um problema que assola grande parcela da

população brasileira. Tem como origem aparente inúmeros eventos fático-materiais,

como a apropriação excludente do solo brasileiro, a ausência de reforma agrária e a

consequente concentração de terras nas mãos de poucos, a "urbanização baseada

em baixos salários" que não permitiu o trabalhador suprir adequadamente suas

necessidades vitais básicas por meio de seu salário, o interesse do capital pelo

espaço urbano, manifestado especialmente pela prática da especulação imobiliária e

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ingerência no planejamento urbano, e a ausência ou ineficácia das políticas públicas

habitacionais.

Concretizar o direito à moradia é o primeiro passo para proporcionar uma vida

digna e assegurar o pleno gozo de outros direitos, como o direito à intimidade, o

direito ao trabalho, o direito à saúde, o direito à cidade etc. Elevado ao status de

direito fundamental social, previsto no artigo 6º, caput, da Constituição da República

de 1988, emergem discussões sobre a possibilidade de atuação do Poder Judiciário

para sua concretização, bem como o estabelecimento de critérios para tal.

O presente trabalho objetiva problematizar, sucintamente, a questão da

habitação, partindo-se do cenário nacional para a Região Metropolitana de Curitiba

(RMC). A principal fonte utilizada foi a bibliográfica, tratando a pesquisa brevemente

de três temas conexos: a) o processo de urbanização brasileiro e o déficit

habitacional urbano; b) a produção dos espaços de moradia popular na Região

Metropolitana de Curitiba (RMC) e a formação da periferia metropolitana; c) a

construção do "modelo-Curitiba".

2 BREVES CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO

BRASILEIRO E DO DÉFICIT HABITACIONAL URBANO

O processo de urbanização no Brasil e demais países da América Latina

ocorreu especialmente na segunda metade do século XX, gerando um gigantesco

movimento de construção da cidade (MARICATO, 2013, p. 16). Segundo Milton

Santos o Brasil deixou o século XIX com aproximadamente 10% da população nas

cidades, apesar de já apresentar cidades de grande porte desde o período colonial

(SANTOS apud MARICATO, 2013, p. 16-17). Explica Ermínia Maricato que

[...] somente a partir da virada do século XIX e das primeiras décadas do século XX que o processo de urbanização da sociedade começa realmente a se consolidar, impulsionado pela emergência do trabalhador livre, a proclamação da República e uma indústria ainda incipiente que se desenrola na esteira das atividades ligadas à cafeicultura e às necessidades básicas do mercado interno [...] (MARICATO, 2013, p. 16-17).

No Brasil, a manutenção do atraso agrícola em certas áreas, convivendo com

a modernização agrícola em outras (modernização que se deu principalmente nos

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setores de exportáveis, como o café, visando competir com o mercado externo),

foram as grandes responsáveis pelo êxodo rural, culminando na "expulsão" da

população do campo para as cidades e na impossibilidade destas de absorver esta

mão de obra (CANO, 2011, p. 119-120). Portanto, pode-se dizer que o êxodo rural

foi gerado tanto pelo progresso (modernização da agricultura, que se deu com maior

ênfase na década de 1960), quanto pelo atraso (piora crescente das condições de

sobrevivência da população rural):

[...] Em nossos países, o atraso da agricultura até a década de 1960 era o traço marcante desse setor. No compartimento produtor para exportações algum grau de modernização se manifestava, para que se pudesse manter a competitividade no mercado exterior. No amplo setor produtor para o mercado interno, a produção se manifestava com baixo grau tecnológico, crescendo vegetativamente pela expansão da área plantada, o que permitia um crescimento do contingente populacional, urbano e rural a taxas muito mais elevadas do que as verificadas nos países desenvolvidos. A manutenção do atraso dessa agricultura piorava cada vez mais as condições de sobrevivência do imenso contingente de sua população rural. No caso brasileiro, pelo menos desde a década de 1930, isso engendrou um grande fluxo de emigração, o chamado êxodo rural, em direção não só às zonas urbanas mais densamente povoadas, como o Rio de Janeiro e notadamente São Paulo, mas também para áreas rurais mais distantes e de mais fácil acesso a terra, como eram o Cento Oeste e o Paraná. Contudo, a partir da década de 1960, parte dessa agricultura – especialmente seu segmento mais voltado para o mercado exportador ou para a produção de insumos para transformação industrial (cana-de-açúcar, cítricos, soja etc.) – teve seu processo de modernização acelerado. Por razões diferentes, ou seja, por elevar sobremodo a produtividade do trabalho, isso gerou um acréscimo àquele fluxo migratório, engrossando as fileiras do êxodo rural em direção às grandes cidades (Graziano da Silva, 1981; Kageyama, 1985) [...] (CANO, 2011, p. 30-31).

A especificidade do processo de urbanização brasileiro reside basicamente no

desenvolvimento tardio do capitalismo em nossas terras e na dependência brasileira

no cenário internacional. Enquanto nos países desenvolvidos o desenvolvimento

econômico e a modernização ocorreram de maneira menos desigual entre a

agricultura e a indústria, reforçando a tendência à diminuição do diferencial entre a

taxa de salário na agricultura e na economia urbana, facilitando, assim, o

enxugamento do excedente de mão de obra do campo que era expulsa pela

modernização, ocasionando uma expansão urbana mais amena, no mundo

subdesenvolvido a industrialização e a urbanização foram incapazes de absorver o

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excedente gerado tanto pelo atraso quanto pela modernização da agricultura

(CANO, 2011, p. 29-31). Nesse sentido explica Wilson Cano:

[...] Enquanto os países que primeiro se desenvolveram puderam promover mais cedo e mais lentamente a transformação de sua agricultura, ajustando, no tempo e no espaço, sua modernização à industrialização por que então passavam, os latino-americanos sofreram processo inverso: praticavam agricultura atrasada e, mesmo no segmento exportador – gerador básico de sua transição para o capitalismo –, ela não guardava identidade tecnológica com a dos países desenvolvidos. [...] Isso porque, nesses países, a modernização e o avanço da industrialização se deram de forma mais estável e, portanto, seus processos de urbanização manifestaram-se de maneira menos abrupta do que os verificados no mundo subdesenvolvido, particularmente na América Latina e no Brasil [...] (CANO, 2011, p. 28-29).

A nova etapa do processo de industrialização que se deu a partir dos anos de

1950 com a produção de bens duráveis no território nacional (automóveis,

eletrodomésticos e eletrônicos) alterou as formas de vida, bem com o ambiente a ser

construído e deslocou o centro das decisões para o exterior, ampliando a inserção

do Brasil na divisão internacional do trabalho e mudando a vida dos consumidores.

Com o setor mais desenvolvido da atividade produtiva sob o domínio do capital

internacional "os bens modernos passaram a integrar um cenário onde a pré-

modernidade sempre foi muito marcante, especialmente na moradia ou no padrão

de urbanização dos bairros periféricos" (MARICATO, 2013, p. 19-21). Ademais, o

fato de a industrialização brasileira ter sido baseada em baixos salários prejudicou

sobremaneira a reprodução do trabalhador e gerou uma "urbanização com baixos

salários", o que vem a influenciar na construção de nossas cidades e na qualidade

das moradias (MARICATO, 2010, p. 13). Segundo Ermínia Maricato

[...] Ao lado do grande contingente de trabalhadores que permaneceu na informalidade, os operários empregados do setor industrial não tiveram seus salários regulados pelas necessidades de sua reprodução, como a inclusão dos gastos com moradia, por exemplo. A cidade ilegal e precária é um subproduto dessa complexidade verificada no mercado de trabalho e da forma como se processou a industrialização. Até mesmo parte dos trabalhadores empregados na indústria automobilística, que ingressava no Brasil nos anos 50, mora em favelas [...] (MARICATO, 2013, p. 41).

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Esta superexploração do trabalhador latinoamericano e o desenvolvimento do

capitalismo na periferia do sistema é denunciada principalmente pelos teóricos e

militantes da Teoria Marxista da Dependência, dentre os quais se destacam os

precursores Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e André

Gunder Frank.

Destarte, verifica-se que a urbanização no Brasil não se desconectou do

processo histórico excludente, tendo a tragédia urbana "suas raízes muito firmes em

cinco séculos de formação da sociedade brasileira, em especial a partir da

privatização da terra (1850) e da emergência do trabalho livre (1888)" (MARICATO,

2013, p. 23). A privatização da terra privou os trabalhadores (não detentores de

capital) de ter seu pedaço de chão, que a partir da Lei de Terras de 1850 só pôde

ser adquirido mediante compra e venda. A referida lei foi elaborada com base na

doutrina conservadora da época e teorias modernas europeias sobre colonização,

que tinha como expoente Edward Wakefield e sua teoria do "preço suficiente". Tal

teoria defendia, sucintamente, que as terras desocupadas deveriam ter um "preço

suficiente" para desestimular os trabalhadores livres a adquiri-las, caso contrário só

continuariam como trabalhadores se os salários fossem muito altos, isto é, a

liberação de terras significaria o encarecimento da produção (MARÉS, 2003, p. 71).

Já a emergência do trabalhador livre trouxe um problema inédito, na medida em que

uma massa de trabalhadores teve que buscar um trabalho assalariado e a partir

disto, satisfazer suas necessidades para sua reprodução. O problema da habitação,

segundo Ermínia Maricato, tem início justamente com a emergência do trabalhador

livre, isto é, quando o trabalho se torna mercadoria:

[...] Quando o trabalho se torna mercadoria, a reprodução do trabalhador deveria, supostamente, se dar pelo mercado. Mas isso não aconteceu no começo do século XX, como não acontece até o seu final. Como previu Joaquim Nabuco, o peso do escravismo estaria presente, na sociedade brasileira, muito após sua abolição. Não só grande parte dos trabalhadores atua fora do mercado formal como, mesmo aqueles regularmente empregados na moderna indústria fordista, apelam para expedientes de subsistência para se prover de moradia na cidade. Isso significa que grande parte da população, inclusive parte daquela regularmente empregada, constrói sua própria casa em áreas irregulares ou simplesmente invadidas. Isto é, ela não participa do mercado hegemônico [...] (MARICATO, 2013, p. 22-23).

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De acordo com o último censo do IBGE sobre a população brasileira

atualmente 84% dos brasileiros vivem em áreas urbanas, número que cresceu em

relação aos anos 2000 (IBGE, 2010). Segundo Ermínia Maricato, essa concentração

populacional nas cidades, apesar de modernizar o modo de vida, não deixou de

reproduzir seu lado arcaico:

[...] Em apenas nove metrópoles moram 50 milhões de pessoas, mais do que a população da maior parte dos países da Europa ou da América Latina. Em 50 anos, a população brasileira cresceu mais de 100 milhões de indivíduos. A sociedade apenas começa a se dar conta de que o avassalador processo de urbanização foi acompanhado da modernização do modo de vida, no ambiente construído, nas comunicações, sem deixar, entretanto, de reproduzir seu lado arcaico. Isto é, a modernização é apenas para alguns; a cidadania e os direitos, idem [...].103

Neste caótico contexto urbano de adensamento e de seletividade de direitos,

para muitos um local adequado para morar equivale ao pote de ouro no final do

arco-íris, ou seja, um sonho, difícil (ou quase impossível) de ser conquistado, mas,

sobretudo uma necessidade humana e um direito garantido constitucionalmente. A

falta de moradia é um problema que assola especialmente a classe trabalhadora,

provida de parcos recursos, e as pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Não obstante os atuais programas habitacionais, o cenário é problemático.

Apesar de o texto constitucional prever no rol de direitos sociais (artigo 6º) o

direito à moradia, na prática o déficit habitacional quantitativo, segundo dados da

Fundação João Pinheiro (FJP) – utilizados oficialmente pelo Governo Federal –,

atinge cerca de 5.792.508 milhões de famílias. No âmbito dessas famílias, que não

devem ser tratadas apenas como números, são vários os problemas: há o

componente da coabitação familiar (1.865.457 milhão) – pessoas que vivem "de

favor" na casa de parentes –, do ônus excessivo com aluguel (2.660.348 milhões) –

o pagamento ao locatário compromete seriamente a renda familiar e a subsistência

dos membros da família –, da habitação precária (883.777 mil) e do adensamento

excessivo de pessoas em uma única moradia (382.926 mil) (FJP, 2011-2012).

103 Essas premissas foram expostas por Ermínia Maricato em artigo sem data de publicação ou numeração denominado "Conhecer para resolver a cidade ilegal"., que se encontra disponível no sítio eletrônico da Universidade de São Paulo (USP): <http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_conhecercidadeilegal.pdf>. Acesso em: 03 mar. 2015.

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Deve-se ter claro que o direito à moradia não importa em simplesmente possuir um

"teto sobre a cabeça", uma vez que está relacionado a outras necessidades

existenciais do ser humano e diretrizes constitucionais, como a dignidade da pessoa

humana. Ademais, como bem ressalta José Afonso da Silva, "o direito à moradia

não é necessariamente direito à casa própria. Quer-se que se garanta a todos um

teto onde se abrigue com a família de modo permanente, segundo a própria

etimologia do verbo morar, do latim "morari", que significa demorar, ficar" (SILVA,

2013, p. 317).

Se não se resume a mero abrigo e não equivale ao direito de propriedade, em

que consiste e qual a interpretação adequada sobre os limites deste direito? À

primeira vista deve-se ter em evidência que como o constituinte derivado ao elencar

a moradia como direito social mediante a edição da Emenda Constitucional nº 26 de

2000 não definiu-lhe um conteúdo mínimo – o que vem a gerar amplo debate sobre

a densidade normativa deste direito, em particular, e de outros direitos sociais de um

modo geral –, nos mostra Ingo Sarlet que se faz necessária a observância das

diretrizes internacionais pertinentes ao tema diante da referida omissão:

[...] Se a nossa própria Constituição foi omissa neste passo, nada impede – pelo contrário, tudo impõe (inclusive a nossa Carta Magna) –, que se faça o uso da normativa internacional também nesta esfera. Justamente neste contexto, buscando estabelecer padrões internacionais, a Comissão da ONU para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais identificou uma série de elementos básicos a serem atendidos em termos de um direito à moradia: a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e origem. b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde, segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento básico, etc. c) As despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a satisfação de outras necessidades básicas. d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitalidade, notadamente assegurando a segurança física de seus ocupantes. e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os portadores de deficiência. f) Localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde, educação e outros serviços sociais essenciais. g) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a identidade e diversidade cultural da população [...] (SARLET, 2009, p.19).

Ou seja, resta evidente que tratar de "moradia" engloba necessariamente as

necessidades básicas do cidadão, pois sequer faria sentido elencar um "direito à

moradia" de modo que esta não fosse digna e adequada e não se relacionasse com

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outros direitos (saúde, educação, transporte público, direito ao trabalho etc.), haja

vista a necessidade de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico,

atentando-se para os princípios que orientam o Estado Brasileiro.

É de salientar que a moradia tem sido tratada basicamente sob duas

perspectivas: como direito e como mercadoria/bem de consumo. Na perspectiva

mercadológica é vista pelos possuidores de capital como um grande negócio, capaz

de alavancar os lucros. É nesse prisma que as grandes empreiteiras sempre

aparecem no top five de financiadores de campanhas políticas, firmando clara

aliança com aqueles que dizem representar o povo. A cidade, dominada pelo capital

imobiliário, evidencia uma desigualdade social profunda e "o modo como vemos o

mundo e definimos possibilidades depende do lado da pista em que nos

encontramos e a que tipo de consumismo temos acesso" (HARVEY, 2014, p. 47).

Segundo David Harvey a concentração de riqueza, que gera abismos entre as

pessoas e traz à tona realidades socioeconômicas completamente distintas, reflete

diretamente nas formas espaciais de nossas cidades:

[...] Os resultados dessa crescente polarização na distribuição de riqueza e poder estão indelevelmente inscritos nas formas espaciais de nossas cidades, que cada vez mais se transformam em cidades de fragmentos fortificados, de comunidades muradas e de espaços públicos mantidos sob vigilância constante. A proteção neoliberal aos direitos da propriedade privada e seus valores torna-se uma forma hegemônica de política, mesmo para a classe baixa. [...] (HARVEY, 2014, p. 48).

Em análise das estatísticas divulgadas pelo IBGE no ano de 2013 Gislene

Pereira e Jussara Maria Silva afirmam que "o déficit habitacional no Brasil teve um

acréscimo de 65% no período entre 2000 e 2010, em termos absolutos – passando

de quase 4,01 milhões, em 2000, para cerca de 6,6 milhões, em 2010" (PEREIRA;

SILVA, 2014, p. 261). O Paraná é o terceiro estado da federação com o menor

número percentual de domicílios no déficit e apresenta 66.772 habitações precárias;

115.767 por coabitação; 88.985 por ônus excessivo com aluguel e 16.926 por

adensamento excessivo em domicílios locados. Segundo censo de 2010 o déficit na

Região Metropolitana de Curitiba (RMC) totaliza 85.814 habitações (PEREIRA;

SILVA, 2014, p. 261). Todavia, acredita-se que esse número seja maior, em razão

da metodologia utilizada pelo IBGE, que computa como "aglomerado subnormal"

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apenas locais que possuem mais de 50 domicílios. Esta "linha de corte" relega à

invisibilidade, por exemplo, assentamentos como a "Ilha", localizada no município de

Almirante Tamandaré e que possui apenas 32 domicílios (BERTOL; HOSHINO,

2014, p. 476).

De todo modo, os números apontam que a concentração do déficit brasileiro

ocorreu nas aglomerações urbanas mais populosas, principalmente nas Regiões

Metropolitanas (RMs), sendo constatado pelo Censo realizado em 2010 que 88,6%

dos aglomerados subnormais do País situam-se em vinte RMs, dentre elas a de

Curitiba, que ocupou o 12º lugar em população residente nestes espaços (SILVA,

2014, p. 236-237).

Portanto, com o fito de melhor compreender o problema, será analisada

brevemente a produção dos espaços informais de moradia na metrópole de Curitiba

e alguns dos impasses socioespaciais da região.

3 A PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS DE MORADIA NA REGIÃO METROPOLITANA

DE CURITIBA E A CONSTRUÇÃO DO "MODELO-CURITIBA"

A abordagem das Regiões Metropolitanas (RMs) não é tarefa fácil.

Normalmente compostas por municípios com diferentes características, arrecadação

e economia, tem organização socioespacial complexa e os conflitos fundiários104

como um dos principais impasses. De início é de salientar que nem todos os

municípios que compõem a Região Metropolitana mantém fortes relações

econômicas e dividem problemas. No caso de Curitiba a porção do território que

mantém relações socioespaciais intensas é denominado Aglomerado Metropolitano

e composto por 12 municípios105. Thiago Hoshino e Laura Bertol explicam a

diferença entre Região Metropolitana e Aglomerado Metropolitano:

104 Adota-se a interpretação de Laura Esmanhoto Bertol e Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino, segundo os quais "conflitos fundiários urbanos são as disputas pela apropriação da terra urbana (seja por meio de propriedade, posse, uso ou acesso), com o fito de garantia do direito humano à moradia adequada (nos termos amplos do Comentário Geral nº 4 do Conselho de Direitos Humanos da ONU), envolvendo a população de baixa renda e (ou) grupos sociais vulneráveis" (BERTOL; HOSHINO, 2014, p. 460). 105 São eles: Curitiba, Almirante Tamandaré, Araucária, Campina Grande do Sul, Campo Largo, Campo Magro, Colombo, Fazenda Rio Grande, Pinhais, Piraquara, Quatro Barras e São José dos Pinhais (PEREIRA; SILVA, 2009, p. 295).

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[...] A aglomeração metropolitana real distingue-se do que formalmente se denomina Região Metropolitana. Enquanto esta é fundamentalmente uma conformação institucional e política, lastreada num marco legal-normativo mais ou menos arbitrário em suas definições, aquela pode ser entendida como a aglomeração composta por vários municípios limítrofes e que se destaca pela expressão populacional, pelo desempenho de funções complexas e pelo estabelecimento de relações econômicas com as demais aglomerações, funcionando como centro de comando e coordenação de uma vasta rede urbana [...] (BERTOL; HOSHINO, 2014, p. 459-460).

A Região Metropolitana de Curitiba (RMC) foi institucionalizada em 1973 pela

Lei Complementar Federal nº 14/1973 e inicialmente compreendia 14 municípios. Ao

decorrer dos anos mudou sua configuração e atualmente, após a última modificação

implementada pela Lei Complementar Estadual nº 139/2011, possui 29

municípios106. De 1970 a 1991 sua população cresceu de 869.837 para 2.003.015,

atingindo no ano 2000 o número de 2.768.394 habitantes, cerca de 28,95% da

população paranaense. Esse incremento populacional simultâneo a intensificação do

uso do solo metropolitano foi induzida pelo planejamento urbano de Curitiba, que

favoreceu o crescimento e ocupação das áreas periféricas internas e principalmente

externas aos seus limites administrativos (MOURA; KORNIN, 2009, p. 19).

De acordo com Madianita Nunes da Silva a produção dos espaços de moradia

popular na RMC, isto é, destinadas às classes de menor renda, se distinguem em

duas fases, a primeira até o final da década de 1980, e a segunda a partir de 1990:

[...] Na primeira fase, a produção dos espaços de moradia popular foi marcada pela formação de uma periferia autoconstruída no entorno dos limites de Curitiba, que se consolidou pela implantação de loteamentos que vinham sendo aprovados na RMC desde a década de 1950. Esse período caracterizou-se também pelo início do crescimento e a concentração das favelas, bem como da produção habitacional financiada pelo Estado no Município de Curitiba. A segunda fase foi marcada pelo crescimento dos domicílios e dos espaços informais de moradia em toda a extensão da metrópole. Caracteriza-se também pela incorporação da metrópole às mudanças observadas no regime de acumulação capitalista em escala mundial, a partir das quais se instala um novo ciclo de desenvolvimento econômico e ampliam-se as desigualdades socioespaciais [...] (SILVA, 2014, p. 232).

106 Além da previsão na referida lei, a lista dos municípios que compõem a RMC encontra-se no sítio eletrônico da Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (COMEC). Disponível em: <http://www.comec.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=89>. Acesso em: 01 nov. 2015.

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No período de 1970-1989 houve maior produção de lotes legais/formais na

periferia do Aglomerado Metropolitano. Entre 1970 e 1979, foram aprovados na

RMC 41.028 e na década seguinte (1980/1989) 45.117 novos lotes, totalizando

89.089, a grande maioria localizados entre o sudeste e o norte do Aglomerado

Metropolitano. Na década de 1990 a dinâmica o mercado imobiliário se altera,

havendo redução significativa da produção de lotes legais/formais e o crescimento

das ocupações irregulares, sendo a maior parte da população destes espaços

residente em Curitiba (PEREIRA; SILVA, 2009, p. 300-306).

No primeiro período, até o final da década de 1970 o processo de produção

dos loteamentos foi marcado pela inexistência e fragilidade das normas de

parcelamento, uso e ocupação o solo, o que viabilizou o parcelamento de áreas

rurais com baixo preço e a implantação de loteamentos com um mínimo de

infraestrutura e pouco investimento, gerando grande retorno aos empresários do

ramo imobiliário. Situados nos limites de Curitiba e nos municípios do entorno,

precários, sem serviços públicos próximos e distantes dos núcleos urbanizados,

estes loteamentos foram responsáveis pela ocupação da periferia metropolitana e

áreas ambientalmente frágeis ao leste da RMC, tendo o processo da autoconstrução

da habitação como marca (SILVA, 2014, p. 240-241).

Importante mencionar que neste processo autoconstrutivo não contribuem

engenheiros ou arquitetos, tampouco há a observância de normas de segurança ou

regras urbanísticas (MARICATO, 2013, p. 20). Ademais, consiste em uma

"alternativa" altamente espoliativa e parte importante do processo de reprodução do

capital, uma vez que reduz o valor da reprodução da força de trabalho, medido pelo

valor dos meios de subsistência do trabalhador, dentre os quais se destaca a

moradia. Sobre o tema são importantes as palavras de Lucio Kowarick:

[...] o 'vale a pena construir' deve ser entendido como uma alternativa altamente espoliativa. Consegue realizá-la quem dispõe de energia física para aumentar a jornada de trabalho vários dias por semana a fim de conseguir uma sobra que permita realizar paulatinamente a obra nas 'horas livres'. Consegue realizá-la, ainda, quem diminui as despesas básicas e dispõe de braços na família também submetidos a esses processos: para os autoconstrutores, além dos enormes sacrifícios de erguer a casa, surge uma moradia destituída de serviços públicos, de péssima qualidade habitacional e, na maioria das vezes, longe do local de emprego [...] (KOWARICK, 2009, p. 31).

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O cenário se altera substancialmente no ano de 1979 com a promulgação da

Lei Federal nº 6.766/1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e é

responsável por impor condições ao ramo imobiliário:

[...] No ano de 1979, com a aprovação da Lei Federal nº 6.766, muda o vetor da atividade imobiliária destinada à produção dos lotes populares na periferia metropolitana. Ao condicionar a aprovação, implantação e venda dos novos loteamentos a exigências ambientais, jurídicas e projetuais, esta Lei teve o efeito de ampliar os custos destes negócios, fazendo com que o mercado passasse a explorar áreas mais apropriadas à ocupação, diminuindo de intensidade no Leste e aumentando no Oeste da RMC. As novas exigências legais e o maior controle do uso e da ocupação do solo explicam também por que na década de 1980 a atividade imobiliária formal na periferia metropolitana apresentou menor dinamismo em relação às décadas anteriores. A atuação dos agentes vinculados ao mercado imobiliário formal consolidou nesse período uma coroa de ocupação periférica situada nos limites da cidade polo, prioritariamente habitada pelas classes populares [...] (SILVA, 2014, p. 241).

Na década de 1980, além da intensificação dos domicílios informais, também

há o crescimento das áreas periféricas internas de Curitiba, com taxas geométricas

anuais superiores à média da RMC, em especial nos bairros da Cidade Industrial de

Curitiba (19,69% ao ano) e Sítio Cercado (10,18% ao ano). No período de 1991-

2000 o crescimento interno permanece alto e o Sítio Cercado, influenciado por

programas habitacionais do município, apresenta a maior taxa (15,33% ao ano)

(MOURA; KORNIN, 2009, p. 20-21).

O aumento, de um modo geral, no número de favelas a partir de meados da

década de 1980 intensifica a carência de moradia. Este fato encontra-se diretamente

ligado à redução dos recursos federais destinados à produção de habitação, à crise

econômica presente no período e o empobrecimento da população, tornando-se

inacessível o mercado formal de moradias, ainda que periférico. Nas últimas duas

décadas houve significativo aumento dos espaços informais de moradia (favelas,

loteamentos clandestinos e loteamentos irregulares) por toda a extensão da

metrópole, concentrando-se em Curitiba o maior número de assentamentos:

Nas duas últimas décadas, os espaços informais de moradia cresceram e difundiram-se em toda a extensão da metrópole, passando de 571 assentamentos e 54.662 domicílios no final da década de 1990, para 984 assentamentos e 98.444 domicílios no final da década de 2000. Tomando como referência o número de assentamentos, entre o final das décadas de

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1990 e 2000, o crescimento relativo na metrópole de Curitiba foi de 72,32%. [...] Curitiba manteve-se como o município com o maior número de assentamentos, somando na última década 341 áreas, ou 34,65% do total. [...] Levando em conta as tipologias dos espaços informais de moradia, as favelas corresponderam a 72,05% do total dos assentamentos na última década, os loteamentos clandestinos a 23,98%, e os loteamentos irregulares a 2,13% (SILVA, 2014, p. 245-247).

As favelas são os locais em que há o maior número de irregularidades e as

piores condições de moradia. Normalmente há riscos de ocorrência de acidentes

ambientais e as habitações são precárias, tanto pelas técnicas construtivas, quanto

pelos materiais empregados. Nelas residem a população mais pobre, formada por

grande proporção de famílias com renda inferior a dois salários mínimos. Os

loteamentos clandestinos, por sua vez, responsáveis pela extensão da mancha de

ocupação urbana no norte da metrópole e no extremo sul de Curitiba, possuem

moradores com maior renda (cerca de três salários mínimos), em média mais

elevada que a dos residentes em favelas, mas excluídos dos programas de

habitação de interesse social (SILVA, 2014, p. 248-250).

Segundo Madianita Nunes da Silva, os distintos perfis socioeconômicos entre

os moradores das favelas e dos loteamentos clandestinos, bem como a localização

diferenciada desses espaços no território da metrópole indicam que a aquisição de

moradias por meio do mercado formal também foi obstaculizada para uma parcela

da classe média, ou seja, não atingiu apenas os mais vulneráveis. Além disso,

defende que atualmente há uma nova tendência de organização socioespacial na

metrópole de Curitiba, que foge do padrão centro-periferia107 presente até o final da

década de 1980:

[...] analisando-se as tipologias das favelas, loteamentos clandestinos e irregulares e suas localizações, observa-se maior diferenciação dos conteúdos desses espaços, derivada dos distintos perfis socioeconômicos dos seus residentes. Essa distribuição diferenciada da população residente

107 Segundo Teresa Pires do Rio Caldeira a organização socioespacial "centro-periferia" possui os seguintes atributos: 1) uma forma dispersa ao invés de concentrada, observando-se taxas decrescentes de densidade populacional ao longo dos anos; 2) as classes sociais vivem longe uma das outras no espaço da cidade: as classes média e alta nos bairros centrais, legalizados e bem-equipados; os pobres na periferia, precária e quase sempre ilegal; 3) a aquisição da casa própria torna-se regra para a maioria dos moradores da cidade, ricos e pobres; 4) o sistema de transporte baseia-se no uso de ônibus para as classes trabalhadoras e automóveis para as classes média e alta (CALDEIRA, 2011, p. 218).

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nos espaços informais de moradia caracteriza-se pela localização dos de maior renda nas proximidades do núcleo da aglomeração metropolitana e nos loteamentos clandestinos, e os de renda mais baixa nas favelas e áreas mais distantes. Essa constatação indica que nas últimas décadas a dificuldade de aquisição de moradias por meio do mercado formal não se ampliou apenas para as classes de baixa renda, mas também para uma parcela da classe média, comprovada pelo perfil socioeconômico dos residentes nos loteamentos clandestinos. A existência de um novo padrão de localização dos espaços informais de moradia e a diversidade de perfis socioeconômicos de seus residentes expressam-se também ao se comparar a localização das tipologias com as áreas de concentração dos tipos socioespaciais em 2010. Observa-se que aproximadamente 50% dos espaços informais de moradia situam-se em áreas classificadas como de tipo superior e médio, com predomínio das favelas, na região que circunda com um raio de 10 km a área central do Município de Curitiba. A análise do processo de produção dos espaços informais de moradia revela uma nova tendência de organização sociespacial na metrópole de Curitiba, que até o final da década de 1980 caracterizava-se por um núcleo mais homogêneo, prioritariamente ocupado pelos espaços residenciais formalmente produzidos destinados pelas classes de renda mais elevada, e a periferização da pobreza. Assim, nas duas últimas décadas a estruturação espacial consolida um padrão que se distancia do centro-periferia [...] (SILVA, 2014, p. 253).

Em 2000, a RMC já apresentava uma extensão da mancha contínua de

ocupação (MOURA; KORNIN, 2009, p. 21), mas o baixo grau de coordenação

horizontal (entre municípios vizinhos) e vertical (entre entes federativos) no âmbito

das políticas de habitação de interesse social acirrou a fragmentação e segregação

socioespacial (BERTOL; HOSHINO, 2014, p. 479), configurando um cenário de

apartheid metropolitano:

[...] No caso da moradia, o impacto negativo da submissão das práticas de oferta de habitação às lógicas de mercado, excludentes da população de baixa renda ou sem rendimento, fez com que aumentasse o número de assentamentos informais e favelas, a periferização em áreas mais distantes, assim como a ocupação de áreas impróprias, ambientalmente vulneráveis, aflorando o conflito ambiente/sociedade. Como ação extremada, passou a ocorrer uma espécie de "negociação" intermunicipal em processos de relocação de comunidades assentadas em áreas públicas ou privadas, com base em acordos que desconsideram os moradores, configurando-se em verdadeiras "vendas de famílias" entre municípios. Evidenciou-se um apartheid socioespacial, no qual os crescentes segmentos sem acesso aos benefícios da internacionalização ficaram confinados nas periferias da RMC. A inclusão dos moradores dessas áreas só se deu (quando se deu) por meio de sua força de trabalho, em momentos em que ela foi necessária ao mercado, sem vínculos, e efemeramente [...] (MOURA; KORNIN, 2009, p. 28).

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O baixo grau de coordenação dos municípios vizinhos tem como causa

aparente tanto os óbices institucionais, oriundos de um pacto federativo rígido que

inviabiliza ações integradas, quanto o cenário de competição entre as cidades, em

que se busca, dentre outras coisas, a "venda" da imagem da urbe para a atração de

investimentos. As transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas nas

últimas décadas do século XX influenciaram decisivamente no modo de gerir e

construir a cidade, intensificando a supressão da cidadania e difundindo discursos

falaciosos. Em um contexto de competição, liberalização da economia,

internacionalização das finanças e busca de novos mercados para investir, surge um

novo modelo de planejamento urbano: o Planejamento Estratégico.

De acordo com Carlos Vainer este modelo "vem sido difundido no Brasil e na

América Latina pela ação combinada de diferentes agências multilaterais (Bird,

Habitat) e de consultores internacionais, sobretudo catalães, cujo agressivo

marketing aciona de maneira sistemática o sucesso de Barcelona" (VAINER, 2013,

p. 75), tendo como inspiração conceitos e técnicas oriundos do planejamento

empresarial. Pregam seus ferrenhos defensores que as cidades estão submetidas

às mesmas condições e desafios que as empresas, em face do atual cenário de

"competitividade urbana", isto é, competitividade pelo investimento de capital,

tecnologia e competência gerencial; pela atração de novas indústrias e negócios; no

preço e na qualidade dos serviços, bem como na atração de força de trabalho

adequadamente qualificada (VAINER, 2013, p. 76-77).

Diante disto, incumbe aos governantes "vender a cidade" aos investidores

(cidade-mercadoria), tratá-la como empresa (cidade-empresa) – na medida em que

deve competir com outras cidades para atrair investimentos e tecnologias – e criar

um sentimento de "patriotismo de cidade" ou "patriotismo cívico" em seus habitantes

(cidade-pátria), a fim de promover uma ligação de pertencimento, de confiança e

crença no futuro da urbe, sendo esta a chave para a construção da

unidade/consenso (VAINER, 2013, p. 94). Defende-se um projeto consensual que

transcenda um pouco o campo das filiações político-partidárias e que possa garantir

aos investidores a permanência de certas escolhas (ASCHER apud VAINER, 2013,

p. 96), devendo a liderança urbana se situar acima dos partidos e das paixões, pois

sem consenso não há qualquer possibilidade de estratégias vitoriosas. O plano

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estratégico supõe, exige, depende de que a cidade esteja unificada, toda, sem

brechas, em torno ao projeto. Busca-se um governo forte, personalizado, estável,

apolítico, carismático, expressando a vontade unitária de toda uma cidade de manter

a trégua e a coesão interna, a fim de afrontar, com base num projeto competitivo e

no patriotismo cívico, as outras cidades (VAINER, 2013, p. 91-97).

Criticamente, Carlos Vainer ataca os "três eixos" do referido modelo de

planejamento, quais sejam, o ideário da cidade-mercadoria, cidade-empresa e

cidade-pátria, nos seguintes termos:

[...] Tendo invocado em sua origem a necessidade de descentralização do poder, e sua consequente democratização na esfera municipal, o planejamento estratégico urbano e seu patriotismo de cidade desembocam claramente num projeto de eliminação da esfera política local, transformada em espaço do exercício de um projeto empresarial encarnado por uma liderança personalizada e carismática. Transfigurando-a em mercadoria, em empresa ou em pátria, definitivamente a estratégia conduz à destruição da cidade como espaço da política, como lugar de construção da cidadania. A reivindicação de poder para as comunidades e coletividades locais, conquistada numa luta travada em nome do autogoverno, se consuma como abdicação em favor dos chefes carismáticos que encarnam o projeto empresarial. A cidade conquistou parte dos recursos políticos antes concentrados no poder central, mas não realizou o sonho do autogoverno. Nesse contexto, os chamados à participação mal encobrem que seu pressuposto é a adesão à utopia mercantil de uma cidade unida pela produtivização e competição. O compromisso patriótico de não romper a unidade necessária ao bom andamento dos negócios nos quais a cidade está engajada, a abdicação do poder a um chefe carismático, a estabilidade e a trégua assim conquistadas, seriam o preço a pagar pelo privilégio de disputar, junto com outras tantas dezenas ou centenas de cidades, o direito de ser escolhida como localização dos próximos investimentos, das próximas feiras, das próximas convenções [...] (VAINER, 2013, p. 98).

As premissas do Planejamento Estratégico estão absolutamente arraigadas

no processo de planejamento urbano de Curitiba e no discurso oficial, sob a criação

de "mitos" que visaram vender a imagem da urbe e, consequentemente, inseri-la no

mercado internacional de cidades, conferindo-lhe destaque e visibilidade global:

[...] Curitiba antecipou o que hoje se torna lugar-comum na elaboração das políticas urbanas: a adoção os princípios e das práticas do "planejamento estratégico de cidades". Deliberadamente, foi construído um projeto de cidade que colocou Curitiba no "mapa do mundo" (SÁNCHEZ GARCIA, 2001), tornou-a atrativa e desenhou sua competitividade, atribuindo ao voluntarismo e à ousadia dos responsáveis políticos o "sucesso pela articulação à economia global" (COMPANS, 1999), como em tantos projetos

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similares ao redor do mundo. Um projeto que seduz pelo fato de vir revestido de uma "aura progressista", de assumir-se como resultante de um desejo coletivo urbano, que se apoia no urbanismo e oficializa a "cidade do espetáculo", transformando o cidadão em um espectador (SÁNCHEZ GARCIA, 1997) [...] (MOURA; KORNIN, 2009, p. 25).

Segundo Aline Figueiredo de Albuquerque o mito da cidade-modelo

construído em Curitiba pelo discurso de seus governantes e técnicos municipais

funda-se no pressuposto de que a cidade foi palco de uma prática bem sucedida de

planejamento urbano. Esse discurso vendido ao mundo recorre a alguns elementos

urbanos construídos no espaço da cidade (setores estruturais, parques e áreas

verdes e transporte coletivo) para disseminar a imagem "modelo" de Curitiba. É o

que denomina de "elementos constitutivos do discurso", isto é, referências concretas

no espaço da cidade que visam legitimar a ideia de sucesso, as "provas" de que a

cidade foi bem planejada, não obstante sustentar-se em parcela do espaço urbano,

notadamente as regiões "nobres", pedaço da realidade que se pretende passar

como universal (ALBUQUERQUE, 2007, p. 29-30). Esta lógica que pretende "vender

a imagem da cidade", busca, por óbvio, esconder o que julga indesejável, incluindo-

se aqui a produção informal do espaço e as condições precárias de moradia que,

como amplamente demonstrado, afetam grande parte da população. Nesse ponto,

chama a atenção para a ausência da questão habitacional no discurso oficial da

"cidade-modelo", o que não significa que Curitiba não apresente sérios problemas

habitacionais, mas justamente o contrário:

[...] uma questão urbana parece não ter sido planejada na "cidade-modelo". Tão merecedora – do nosso ponto de vista – de atenção do Poder Público Municipal quanto é o transporte coletivo ou o meio ambiente, a questão habitacional, ao menos no discurso da cidade-modelo, não foi considerada como elemento representativo da boa prática curitibana. Em outras palavras: entre os elementos constitutivos do discurso da cidade que "deu certo" não encontramos a questão habitacional. [...] A nosso ver o ocultamento da questão da habitação esteve mais relacionado à manutenção e reprodução da ideia de "sucesso" do planejamento urbano curitibano do que a uma suposta inexistência do problema da habitação na cidade ou, ainda, a um suposto êxito da Política Habitacional do Município [...] (ALBUQUERQUE, 2007, p. 37-38).

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Ao contrário do discurso e da imagem vendida, a realidade habitacional

presente na "cidade-modelo" não fugiu ao padrão de produção do espaço brasileiro

– caracterizado pela periferização e favelização da população de baixa renda

(ALBUQUERQUE, 2007, p. 39).

É de salientar que este processo de construção e consolidação da imagem de

Curitiba como "cidade-modelo" e a integração da RMC na economia internacional,

geraram vários problemas para as "municipalidades menos dinâmicas" situadas ao

entorno:

[...] as municipalidades menos dinâmicas não se encontram capazes de responder às exigências de modernização colocadas por esses empreendimentos, quanto aos padrões de competitividade e atratividade às atividades modernas, permanecendo excluídas do processo, abrigando a população pobre as atividades segregadas [...] (MOURA; KORNIN, 2009, p. 22).

O fato de Curitiba concentrar as atividades mais rentáveis e serviços

modernos e relegar aos municípios da periferia funções secundárias acaba por criar

espaços socialmente diferenciados, cabendo aos últimos entes assumir a posição de

verdadeiras "cidades-dormitório", justamente em razão da menor arrecadação

financeira que mal permite responder às exigências mínimas da sobrevivência de

seus moradores (MOURA; KORNIN, 2009, p. 21). Diante disto, não causa espanto o

deslocamento da enorme massa de trabalhadores que se dá diariamente para os

postos de trabalho na capital.

Assim, ainda que o presente texto não dê conta de abordar profundamente a

questão e outros entraves não menos importantes deste território, visualiza-se

facilmente um enorme abismo entre o "legal", constituído, na análise em tela,

especialmente pelo direito à moradia digna, e o real. Incumbe a todos denunciar o

cenário de privação e lutar pela implementação de políticas públicas, bem como pela

concretização dos direitos fundamentais.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente texto teve como proposta principal tratar do direito à moradia sob a

ótica da produção dos espaços de moradia popular na Região Metropolitana de

Curitiba (RMC). Para isso recorreu-se mais às estatísticas e estudos

interdisciplinares do que propriamente à dogmática jurídica e abstrações que

circundam o conteúdo da norma. Com isso buscou-se atingir um objetivo específico:

demonstrar que as necessidades vitais das pessoas estão sempre acima dos

regramentos, bem como que a estrutura das cidades é moldada pela ação de

agentes econômicos, questões que certamente fogem da análise de boa parte dos

juristas.

Entretanto, nem se cogite que há um desprezo pelo estudo da técnica do

direito. Ao contrário: as discussões a respeito da justiciabilidade dos direitos

fundamentais sociais, dos regramentos que versam sobre a ocupação do solo e dos

instrumentos urbanísticos que visam garantir a função social da propriedade, são de

grande valia e somam a tudo que foi exposto.

A breve menção ao processo de urbanização brasileiro, marcado pelos fluxos

migratórios, coexistência de realidades discrepantes no cenário nacional e pelos

"baixos salários" visou evidenciar as especificidades de nosso desenvolvimento –

em rejeição às "ideiais fora do lugar e o lugar fora das ideias", conforme a expressão

cunhada por Erminia Maricato –, bem como as origens da crise urbana, na qual a

moradia aparece como um dos vetores. Constatou-se que o processo

autoconstrutivo de moradias – para o qual não contribuem engenheiros ou arquitetos

e não há a observância de qualquer regra de direito urbanístico –, muito frequente

em outras regiões do Brasil, também ocorreu na Região Metropolitana de Curitiba.

Outrossim, que a produção dos espaços de moradia popular na metrópole se divide

em duas fases: a primeira, até o final da década de 1980, que tem como

características a aprovação de lotes formais/legais e a formação de uma periferia

autoconstruída no entorno dos limites de Curitiba; e a segunda, a partir de 1990, em

que há o crescimento dos domicílios e espaços informais por toda a extensão da

metrópole.

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Outro ponto a ser destacado é a alteração da estrutura socioespacial da

metrópole nas últimas duas décadas. Se antes havia uma estrutura muito mais

homogênea e coesa, em clara divisão espacial entre pobres e ricos (centro-

periferia), atualmente há parcela da classe média residindo em espaços informais de

moradia (como os loteamentos clandestinos e os irregulares) e em condomínios na

periferia, o que atesta, na primeira situação, a falta de acesso de moradia no

mercado formal também para esse segmento social.

Por fim, abordou-se brevemente o processo de construção e da propagação

do discurso que imputa à Curitiba o status de "cidade-modelo”. A venda da imagem

da cidade, por intermédio de um Planejamento Estratégico "embrionário", com vistas

a inseri-la no contexto da internacionalização da economia e no "mercado global de

cidades" para a atração de investimentos, gerou grandes reflexos na região.

Enquanto a capital concentrou as atividades mais rentáveis e os serviços modernos,

restou aos municípios da periferia funções secundárias, o que acabou criando

espaços socialmente diferenciados e "cidades-dormitório", que mal arrecadam para

as próprias despesas. Ademais, demonstrou-se que a questão da habitação esteve

sempre distante do discurso oficial da "cidade-modelo", não pela ausência de déficit,

mas justamente por sua presença.

Considerando os pontos abordados, infere-se que há enorme discrepância

entre o discurso oficial e a realidade existente. Dificilmente haverá a redução dos

problemas metropolitanos se não for estimulada a coordenação entre os municípios

e a implementação de uma política habitacional de interesse social conjunta, bem

como políticas públicas para o desenvolvimento das municipalidades "menos

dinâmicas". Além disso, deve-se combater a especulação imobiliária, dotando os

instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade (Lei Federal nº

10.257/2001) de executoriedade e notificando os proprietários dos "vazios urbanos".

O recém aprovado Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/2015) vem para

somar forças na batalha, na medida que busca viabilizar a cooperação

metropolitana. Certo é que bons regramentos não faltam.

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REFERÊNCIAS

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COLETÂNEA 2 – HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

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MARICATO, Ermínia. Cidade do Pensamento Único: Desmanchando consensos. 8. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.

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MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E

FUNDAMENTAIS DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL

Laura Carolina de Carvalho Rosa Soler

Maria Luisa Scaramella108

SUMÁRIO

Resumo 1 Introdução 2 O Portador de Transtorno Mental como Sujeito de Direitos 3 As Violações de Direitos Humanos no Âmbito do Manicômio Judiciário 3.1 Transtorno Mental e periculosidade 3.2 Hospitais de Custódia e sua Incompatibilidade Com a Lei Federal 10.216/2001 3.3 A Proibição de Prisão Perpétua e a Indeterminação do Prazo da Medida de Segurança 4. Considerações Finais. Referências.

RESUMO

Embora nos encontremos em um Estado Democrático de Direitos, percebe-se que o Ordenamento Jurídico Brasileiro e a própria sociedade não conseguem zelar pelo interesse das minorias não privilegiadas. O cenário se agrava quando fala-se dos direitos de portadores de transtorno mental que cometeram algum tipo de infração. A sociedade, preconceituosa, condena e recrimina todo sujeito que pratica algum tipo de ilícito, atrelado a isto, o fato desta pessoa ter um transtorno mental apenas agrava a situação. Busca-se isolar este sujeito, fundamentando tal conduta na necessidade de proteção da sociedade e do próprio sujeito infrator. O tema deste estudo refere-se as violações de direitos humanos e fundamentais sofridos pelo portador de transtorno mental condenado à medida de segurança. Palavras-chave: medida de segurança, transtorno mental, violação de direitos humanos e fundamentais.

ABSTRACT

Although we find ourselves in a Democratic State of Rights, it is clear that the Brazilian legal system and society itself can not safeguard the interests of underprivileged minorities. The scenario worsens when there is talk of the mentally disturbed rights committed some kind of offense. The society,

108 Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com estágio no "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (ITEM), na "École Normale Supérieure" (2006-2007), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Atualmente é professora de Sociologia e Antropologia do Direito no Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), membro do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), na Universidade de São Paulo USP. Tem experiência na área de Ciências Sociais com ênfase em Antropologia, atuando principalmente nas seguintes áreas e temas: antropologia, antropologia do direito, sociologia, abordagem biográfica, trajetória, história de vida, narrativas biográficas.

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prejudiced, condemns and reproaches every guy who does some kind of illicit, linked to this, the fact that this person has a mental disorder only exacerbates the situation. The aim is to isolate this guy, justifying their conduct in need of protection by society and the offender liable own. The theme of this study refers to the human and fundamental rights violations suffered by the mentally ill sentenced to a security measure. Keywords: security measure, mental disorder, violation of human and fundamental rights.

1 INTRODUÇÃO

Após a Segunda Guerra Mundial, o contexto internacional começou a

expressar maior preocupação no que dizia respeito aos direitos humanos e à saúde

mental da população, procurando alterar o modelo clássico que buscava o

isolamento do doente mental em asilos ou hospitais psiquiátricos. Entretanto, no

Brasil tal processo de alteração iniciou-se tardiamente, sendo que até os dias atuais

apresenta-se deficitário.

A evolução de direito dos portadores de transtorno mental no Brasil, iniciou-se

com um importante movimento, denominado “Movimento da Luta Antimanicomial”,

tal movimentação social buscava pelo fim dos modelos asilares de hospitais

manicomiais, lutando por um modelo aberto de tratamento, entretanto, apesar do

Movimento ter surgido em 1970, foram necessários quase meio século de luta para

que alterações efetivas ocorressem, apenas em 2001 entrou em vigor a Lei Federal

10.216/2001, trazendo em seu bojo a necessidade de desinstitucionalização dos

Hospitais Psiquiátricos existentes até então.

Ocorre que, conforme será visto no presente estudo, as inovações da Lei

10.216 não atingiram os portadores de transtorno mental que encontravam-se em

regime de internamento nos Hospitais de Custódia, pior, mesmo após tal lei entrar

em vigor, ainda assim, inauguraram-se novos hospitais de custodia.

O presente estudo busca, através da análise dos direitos concedidos pelo

Ordenamento Jurídico ao portador de transtorno mental e de dados coletados pela

Universidade de Brasília sobre as violações de Direitos Humanos nos Hospitais de

Custódia, abordar como o portador de transtorno mental em regime de internamento

devido a Medida de Segurança não foi englobado pelas evoluções legislativas e

sociais que ocorreram. Nosso Sistema Politico trata essas pessoas como se fosse

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uma categoria “a parte”, diferenciada, não merecedora dos direitos e garantias

contidos em nosso Ordenamento Jurídico.

Logo, como se verá, o interno em Hospitais de Custódia tem seus direitos e

garantias violados diariamente, e, sem voz ativa na população e sem alguém a

quem recorrer, espera que algum dia o Estado lembre-se dele e dos direitos a ele

concedido.

2 O PORTADOR DE TRANSTORNOS MENTAIS COMO SUJEITO DE DIREITOS

Antes de adentrar no tema, propriamente dito, importante demonstrar como o

nosso Ordenamento Jurídico vê o portador de transtorno mental, e quais os direitos

que ele concede a essas minorias.

O Decreto nº 3.298 de 1999 traz, em seu artigo 4º, inciso IV, o conceito legal

de deficiência mental:

Art. 4o É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias: IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização dos recursos da comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho.

Logo, tem-se que o portador de transtorno mental é considerado pelo nosso

ordenamento jurídico como pessoa com deficiência, na medida em que este possui

uma restrição mental. Entretanto, Ricardo da Fonseca sabiamente dispõe que:

A deficiência está na sociedade, não nos atributos dos cidadãos que apresentem impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais. Na medida em que as sociedades removam essas barreiras culturais, tecnológicas, físicas e atitudinais, as pessoas com impedimento têm assegurada ou não a sua cidadania.

Até pouco tempo atrás, vigorava o modelo médico de abordagem da situação

da pessoa portadora de deficiência, que considerava a deficiência como um “defeito”

que precisava de uma “cura”, assim, tal modelo pregava que quem deveria se

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adaptar à sociedade era a pessoa com deficiência, cabendo ao Estado e à

sociedade o simples papel de reconhecer a dificuldade de integração dessas

pessoas e realizar estratégias para que o convívio delas na sociedade fosse o

menos danoso possível. Com a gradual conquistas de direitos dos portadores de

transtorno mental, através do movimento antimanicomial, tal modelo foi substituído

pelo “modelo de direitos humanos”, também chamado de modelo social, que, ao

vislumbrar o portador de deficiência como sujeito de direitos, busca, de fato,

conceder a este o gozo de todas as garantias e direitos fundamentais, sem

descriminação.

Tratando-se especificamente do portador de transtorno mental, após a

repercussão do caso de Damião Ximenes Lopes109, que mais tarde será abordado

no presente estudo, passou-se a refletir sobre a necessidade de maior

regulamentação do direito dessas minorias, assim, após longo tramite no Congresso

Nacional, em 2001 entra em vigorar no Brasil a Lei Federal 10.261, com o objetivo

de tutelar direitos e garantias dos Portadores de Transtorno Mental.

A Lei possui 13 artigos e foi sancionada objetivando um modelo aberto de

atenção à saúde mental, visando o fim do modelo asilar dos hospitais psiquiátricos.

Traz em seu bojo, a garantia de direitos como: tratamento de saúde digno e

adequado; garantia de sigilo das informações; garantia de acesso às informações;

proteção contra qualquer forma de abuso e exploração. Além disso, em seu artigo

3º, responsabiliza o Estado pelo desenvolvimento de uma politica publica de saúde

mental, destacando a importância da sociedade e da família na assistência do

paciente. Ademais, a legislação ainda trás a internação hospitalar como ultimo

recurso, apenas quando “os recursos extra hospitalares se mostrarem insuficientes”.

Destaca-se que, para que ocorra a internação psiquiátrica, o art. 6º exige

agora a necessidade de laudo médico circunstanciado com os motivos (antes da

entrada em vigor da lei, era possível o recolhimento por simples atestado médico,

conforme mencionado no tópico anterior), sendo que, quando ocorrer a internação

involuntária, o Ministério Público Estadual deverá ser informado em até 72 horas.

109 Damião Ximenes Lopes faleceu em um Hospital Psiquiátrico vinculado ao Sistema Único de Saúde e sua família buscou reparação pelos danos causados na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tal caso teve grande repercursão nacional,.

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Percebe-se que o legislador buscou tentar reinserir o paciente na sociedade,

com o apoio de seus familiares e da própria sociedade, que deve, antes de tentar

internar e isolar, buscar o tratamento adequado em ambientes comunitários e

terapêuticos.

Ocorre que, em que pese tal Lei tenha trazido inegáveis avanços, tratando o

portador de deficiência mental como sujeito de direitos, ela sozinha não consegue

garantir e tutelar direitos dessas minorias. Isso porque o direito não pode ser

analisado de forma isolada, devendo ser contextualizado em todo seu Sistema.

Analisando o Sistema Jurídico Brasileiro, temos uma Lei Federal que prega o

direito à saúde, à informação, e, de certa forma, à igualdade do portador de

transtorno mental, visando humanizar o cuidado com essas minorias. Entretanto, ao

tentarmos associar tal Lei a outros dispositivos que tratam do portador de Transtorno

Mental, vemos que estes continuam sem voz ativa em nosso Ordenamento Jurídico,

principalmente no âmbito civil e penal: o Código Civil, promulgado em 2002,

portanto, após a vigência da Lei 10.261, define no seu art. 3º o portador de

transtorno mental como “absolutamente incapaz para os atos da vida civil”.

A justificativa para encarar o portador de transtorno mental como “incapaz” é

sua própria proteção, porém deve-se questionar o quanto da liberdade de escolha e

de decisão desse sujeito são limitados devido ao título de “incapaz” concedido pelo

nosso Ordenamento.

Eduardo Henriques Rodrigues de Almeida, realiza uma análise muito

interessante sobre o tema, discorrendo sobre a influência do pensamento Kantiano

em nossa sociedade atual, pensamento esse que determina o ser humano como

“ser dotado de razão” e sobre a consequência deste tipo de raciocínio para alguém

visto como “incapaz”, segundo o autor (2010, p.384):

Se é a consciência que fundamenta a dignidade, a autonomia e a liberdade como classificar os mentalmente incompetentes ou aqueles que, em razão de sua condição etária ou de saúde, são tidos como incapazes de exercer sua autonomia? Deixariam de ser considerados humanos por estarem privados do pleno uso de suas faculdades mentais? Partindo de tal pressuposto, tanto crianças muito novas como doentes destituídos do pleno uso de sua consciência não poderiam ser classificados como humanamente dignos (grifos nossos).

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Almeida ainda irá destacar um importante ponto (2010, p.385): ver o paciente

portador de um distúrbio mental como incapaz de dar seu consentimento, sendo

permitido que este seja realizado por seu representante legal, faz com que este

perca cada vez mais sua própria autonomia e seja mais suscetível a abusos:

A presumida incapacidade de pacientes doentes mentais em exercer sua autonomia frente às possibilidades terapêuticas e à participação em grupos de pesquisa médica os tornaria um grupo particularmente vulnerável a abusos.

E ainda:

Uma pessoa com autonomia diminuída é, pelo menos em algum aspecto, controlada por outros ou incapaz de deliberar e agir com base em seus desejos e planos. A incapacidade mental limita a autonomia da mesma forma que a institucionalização coercitiva o faz com os prisioneiros (grifos nossos).

Desta forma, ao colocar o portador de transtorno mental como “incapaz para

os atos da vida civil”, o legislador abriu margem para a ocorrência de violações de

direitos fundamentais desse sujeito, tais como a liberdade e autonomia.

Ainda que incapaz para os atos da vida civil, o sujeito portador de transtorno

mental não deve ser visto como pessoa totalmente incapaz de exprimir sua vontade

ou seu consentimento, principalmente quando o assunto à tona for aceitar ou não

determinado tratamento, principalmente porque, infelizmente no Brasil, temos o

costume de submeter os pacientes vulneráveis a tratamentos sem nos importarmos

com o consentimento deles. Sobre o tema, Almeida cita que Moura Fé especula

(2010, p.388):

Ser possível que a tendência a considerar natural o tratamento dos doentes mentais, à revelia de suas vontades ou opiniões, tenha relação com dois preconceitos que foram sendo estabelecidos no que concerne a esses pacientes: sua periculosidade e incurabilidade. Acrescenta que o uso frequente da contenção física ou química se presta a ocultar a escassez quantitativa ou qualitativa de pessoal da área da saúde, ou seja, para mascarar a falta de atenção à saúde dos pacientes, o que considera um dos aspectos dramáticos e revoltantes dos asilos, que deve sempre ser denunciado (grifos nossos).

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Adentrando-se especificamente no tema do presente estudo, outra

problemática que ocorre no Ordenamento Jurídico diz respeito ao portador de

transtorno mental que comete algum tipo de delito, sendo que este passa a ser visto

pelo Sistema Jurídico Brasileiro como sujeito “periculoso”, conforme expressa

previsão em nosso Código Penal.

Tratar o sujeito infrator como periculoso é um problema pois, na medida em

que o Estado passa a ver um sujeito como “perigoso”, a tendência é que este

busque isola-lo da sociedade, deixando de crer em sua cura.

E, em se tratando de pacientes com problemas mentais, este é um dos

maiores problemas da politica criminal de nosso país, isto porque as medidas de

segurança fornecidas pelo Estado violam completamente qualquer tipo de direito

que tenha sido concedido ao portador de transtorno mental até então: Com o nome

de “tratamento”, as medidas de segurança concedidas no país buscam apenas

aprisionar e isolar o “louco”, deixando de crer na sua reabilitação.

2 AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO ÂMBITO DO MANICÔMIO

JUDICIÁRIO

Segundo o art. 26 do Código Penal, todo aquele que for portador de uma

debilidade mental que o impeça de compreender a ilicitude do fato criminoso

praticado, será considerado “inimputável”, ou seja, estará, em tese, isento de pena:

Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (grifos nossos).

Assim, nosso Código estabelece que aos indivíduos inimputáveis que

sofrerem de debilidade mental, será concedida a chamada “medida de segurança”,

que poderá ocorrer por meio de: internação em hospital de custodia e tratamento

psiquiátrico ou por meio de tratamento ambulatorial. Além disso, o Código

estabelece a possibilidade de determinação de medida de segurança ao semi-

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imputavel (portador de debilidade mental que possui o discernimento reduzido,

porém conseguem entender a ilicitude de sua conduta).

O fato é que, segundo nosso Ordenamento Jurídico, a medida de segurança

serve para o “tratamento” do portador de transtorno mental. O Art. 96 do Código

Penal trata do portador de distúrbio mental submetido a medida de segurança na

modalidade de internação, estabelecendo que “o internado será recolhido a

estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a

tratamento (grifos nossos)”.

2.1 TRANSTORNO MENTAL E A PERICULOSIDADE

Para o Ordenamento Jurídico Brasileiro, dois são os requisitos para a

aplicação da medida de segurança: O Cometimento de um fato penal típico e

punível, ou seja, uma conduta descrita no Código Penal Brasileiro como ilícita e,

portanto, culpável e, a existência de “periculosidade” do agente que cometeu tal

ilícito. Segundo Cezar Roberto Bittencourt (2011, p.256):

É indispensável que o sujeito que praticou o ilícito penal típico seja dotado de periculosidade. Periculosidade pode ser definida como um estado subjetivo mais ou menos duradouro da antissociabilidade. É um juízo de probabilidade (...) de que este voltará a delinquir. (grifos do autor).

Ocorre que, a análise da “periculosidade” do sujeito infrator está carregada a

uma análise subjetiva, de cunho estritamente moral. Determinar que o sujeito é

perigoso, e, portanto, poderá vir a cometer novas infrações, viola flagrantemente

todo o Ordenamento Jurídico Brasileiro, isto porque, deixa-se de punir o sujeito pelo

delito praticado, e passa-se a punir o sujeito por quem ele é.

Essa análise moral e subjetiva do sujeito infrator já aparecia na época da

Escola Penal Positiva, com Cesare Lombrozo. Lombrozo pregava a existência de

um “sujeito criminoso”, que nascia predisposto a prática de crimes, segundo ele, os

delinquentes poderiam ser classificados como: delinquentes natos, por paixão,

loucos, de ocasião e epilépticos.

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Lombrozo fundou a chamada “Escola da Antropologia Criminal”, utilizando-se

do estudo antropológico do perfil do criminoso, concluiu a existência de um

delinquente “nato”:

O criminoso nato de Lombrozo seria reconhecido por uma série de estigmas físicos: assimetria do rosto, dentição anormal, orelhas grandes (...). Lombrozo chegou a acreditar que o criminoso nato era um tipo de subespécie do homem, com características físicas e mentais, crendo, inclusive, que fosse possível estabelecer as características pessoais das diferentes espécies de delinquentes: ladrões, assassinos, tarados sexuais, etc (BITTENCOURT, 2011, p.88).

Destaca-se que o enfoque do estudo de Lombrozo não era o delito cometido

pelo agente, e sim o agente em si. Segundo o autor, uma pessoa acometida por um

transtorno mental, pode vir a ser taxada como “perigosa” logo quando passa a

apresentar essa espécie de anomalia. Defender tal teoria faz com que deixe-se de

acreditar no tratamento e na possível reabilitação do portador de transtorno mental,

que passa a ser visto como irrecuperável. Cria-se a categoria de “louco moral”,

caracterizada pela dificuldade em distinguir o bem do mal. Segundo Priscila Mathes

e Raquel Mitjavila (2012, p.1.380):

Esse tipo de avaliação psiquiátrica se constitui, basicamente, de qualificações morais, fazendo com que se torne possível construir um novo tipo de discurso que será uma versão psicológica e ética do delito. Ao fazer isso, a psiquiatria deslegaliza a infração como é determinada na legislação e faz do delito uma irregularidade frente a regras morais, sociais, psicológicas e também fisiológicas. Com isso, o que o juiz vai condenar não é mais o delito, o crime, e sim as condutas irregulares do individuo que os originaram (grifos nossos).

Corroborando para o entendimento, Débora Diniz, coordenadora do Censo

produzido em 2011 pela Universidade de Brasília (UnB), intitulado “A custódia e o

tratamento psiquiátrico no Brasil”, assim se posiciona (2011, p.16):

Periculosidade é um dispositivo de poder e de controle dos indivíduos, um conceito em permanente disputa entre os saberes penais e psiquiátricos. É em torno desse dispositivo, no meu entender antes moral que orgânico ou penal, que o principal resultado do censo se anuncia. Diagnóstico psiquiátrico e tipo de infração penal não andam juntos:

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indivíduos com diferentes diagnósticos cometem as mesmas infrações (grifos nossos).

O perigo de tal pensamento, difundido ainda hoje em nossa sociedade, reside

em deixar de punir a conduta ilícita, passando a punir o sujeito por suas

características próprias, sua história de vida, passa-se a ter uma dupla

criminalização: pelo crime e pela própria vida do sujeito. Foucault irá abordar isso

em sua obra “Vigiar e Punir” (1987, p.146), segundo o autor, ao culminar uma pena,

passa-se a adotar a prática de “presentificação do passado”: busca-se no passado

do sujeito infrator sua historia de vida, sua personalidade, suas condições

psicológicas, culpabilizando seu passado. Assim, adotam-se categorias

estereotipadas como “personalidade voltada para o crime”, “periculosidade”, para

poder culpabilizar.

É exatamente esta análise moral e subjetiva, essa presentificação do

passado, que ocorre ao atrelar ao associar a “medida de segurança” à

“periculosidade” do agente: leva-se em consideração suas atitudes passadas, muitas

vezes decorrentes de sua condição psicológica, para determinar que, possivelmente,

futuramente esse sujeito irá praticar outros delitos. Segundo Mathes e Mitjavila

(2012, p.1837):

A teoria da periculosidade tornou-se a grande noção da criminologia e da penalidade do final do século XIX, e sobrevive atualmente sob novas roupagens e nuances, mas persistindo na função discursiva de fazer com que o individuo passe a ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não de seus atos, não em termos das infrações concretas e sim das potencialidades comportamentais que elas representam (grifos nossos).

Destaca-se que, segundo dados do Censo 2011, inexiste periculosidade

inerente aos diagnósticos psiquiátricos. Após a realização do Censo, DINIZ (2011,

p.16) concluiu que:

O diagnóstico psiquiátrico não é determinante para a infração penal cometida pelo louco. O que há são indivíduos em sofrimento mental que, em algum momento da vida, por razões que não fomos capazes de identificar pela pesquisa documental em dossiês, cometem infrações

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penais. É possível supor que a ausência de tratamento de saúde, o abandono de redes sociais de cuidado e proteção, a carência de politicas sociais eficazes para essa população possam ser fatores desencadeantes do ato infracional. O que descobrimos, no entanto, é que essa é uma população majoritariamente masculina, negra, de baixa escolaridade e com periférica inserção no mundo do trabalho, que em geral cometeu infração penal contra uma pessoa de sua rede familiar ou doméstica.

Percebe-se que, em verdade, a infração não ocorre devido a “periculosidade”

do agente, mas sim devido sua exclusão social. A falta de políticas públicas e a

estigmatização desse sujeito, que muitas vezes depende do Sistema Único de

Saúde, somam-se a sua falta de recursos e, muitas vezes, desconhecimento de sua

condição mental, o levando a cometer uma infração penal.

Resumir as motivações que levam alguém a cometer um delito a sua

“periculosidade” é uma forma simplista de encarar os fatos, e de mascarar a

ineficácia do Sistema, uma vez que, quando o Estado intitula o portador de

sofrimento mental como “periculoso” ele retira de seus ombros a responsabilidade

por esta pessoa, que é, na maioria das vezes, visto como irrecuperável e nocivo ao

convívio social.

Além da medida de segurança acabar não tratando esse sujeito, ela segrega,

isola e estigmatiza. Ressalta-se que a aplicação a Medida de Segurança

considerando a “periculosidade do agente” e condicionar sua duração a “cessação

desta periculosidade” viola todo o Ordenamento Jurídico Brasileiro, principalmente o

“Estado Democrático de Direito” e o Princípio da Culpabilidade, vez que este atrela a

punição do sujeito infrator à conduta típica e antijurídica praticada, pregando que

não deve ser realizada uma análise moral subjetiva sobre a vida desse sujeito.

2.2 HOSPITAIS DE CUSTÓDIA E SUA INCOMPATIBILIDADE COM A LEI

FEDERAL 10.216/2001

O modelo manicomial adotado nos Hospitais de Custódia por meio da Medida

de Segurança tornou-se incompatível com o aspecto desistitucionalizante da Lei de

Reforma Psiquiátrica.

Em 2002, no Seminário Nacional para a Reorientação dos Hospitais de

Custódia e Tratamento Psiquiátrico, determinou-se que os Hospitais de Custódia

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deveriam seguir as orientações do Sistema Único de Saúde, qual seja, que estes

deveriam se submeter as regras e princípios da Lei da Reforma Psiquiátrica. Paulo

Jacobina cita em sua obra (2008, p.106) que uma das conclusões do Seminário

Nacional foi de que:

Nos estados onde existem manicômios judiciários, as condições mínimas devem se adequar às normas do SUS, com as mesmas regras para os hospitais psiquiátricos públicos ou credenciados ao SUS, direcionadas no sentido de humanização, desospitalização e desinstitucionalização, evoluindo para o regime aberto.

Ocorre que tal não se observa na realidade prática, a desinstitucionalização,

infelizmente, ainda não alcançou os manicômios judiciários. Conforme abordado

pelo Censo 2011, após a entrada em vigor da Lei de Reforma Psiquiátrica houveram

Hospitais de Custódia que foram inaugurados, entre eles: o Hospital de Custódia e

Tratamento Psiquiátrico II de Franco da Rocha em São Paulo; o Centro de Apoio

Médico e Pericial de Ribeirão das Neves; a Ala de Tratamento Psiquiátrico Unidade

de Saúde Mental II de Mato Grosso; Hospital Penitenciário Valter Alencar do Piauí;

Enfermaria da Unidade Prisional da Capital Ênio Pinheiro, de Rondônia; e o Hospital

de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Pará.

Parece-nos claro que, ao dispor dos direitos e garantias do portador de

transtorno mental, a Lei 10. 216 não faz distinção entre o portador que não cometeu

nenhum delito e àquele que cometeu um ilícito penal. Logo, a desinstitucionalização

e garantia de tratamento digno e adequado deveriam ser aplicados para todos os

portadores de sofrimento mental, sem distinções.

Ocorre que, além de não fornecer o tratamento adequado, o internamento em

Hospitais de Custódia em geral é marcado pelo descaso do Poder Público. O Censo

realizado em 2011 apontou que pelo menos 741 indivíduos não deveriam estar em

restrição de liberdade, pelos mais diversos motivos: laudos que atestam a cessação

da periculosidade, sentença judicial que determinam a desinternação, medida de

segurança extinta entre outras causas. Ou seja:

um em cada quatro indivíduos internados não deveria estar nos estabelecimentos de custodia (...). 55 indivíduos tem a medida de

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segurança extinta e se mantem em regime asilar de restrição de direitos. Esse número é um cenário conservador para efeitos de um retrato nacional da situação desses indivíduos, pois não avaliamos a qualidade dos laudos médicos-periciais ou os argumentos das sentenças judicias (DINIZ, 2011, p.16).

Além disso, o Censo demonstrou a existência de 1.194 pessoas com laudos

psiquiátricos atrasados, que não sabem se deveriam ou não continuar internadas.

Diniz (2011, p.16) afirma que “as razões da permanência são desconhecidas, mas

podem ser especuladas como parte de um extenso descaso com a combinação

entre pobreza e sofrimento mental”.

O número de pacientes abandonados pelo Poder Público assusta, pessoas

esquecidas, muitas vezes vulneráveis, que se veem em uma situação sem saída.

Sobre a inércia do Poder Público a pesquisa realizada por Diniz (2011, p.17) ainda

aponta que:

41% dos exames de cessação de periculosidade estão em atraso, o tempo médio de permanência à espera de um laudo psiquiátrico é de dez meses (o artigo 150 §1º do Código de Processo Penal determina 45 dias) e o de espera para o exame de cessação de periculosidade é de 32 meses. 7% dos indivíduos possuem sentença de desinternação e se mantêm em regime de internação (grifos nossos).

Diniz (2011, p.17) ainda aponta que, a internação injustificada de um paciente

viola flagrantemente os Direitos Humanos e fundamentais:

Para a cultura dos direitos humanos, bastaria um único indivíduo injustamente internado para nos provocar inquietudes éticas sobre a moralidade do modelo de confinamento para correção psiquiátrica. O censo encontrou algo muito mais atroz: pelo menos um em cada quatro indivíduos não deveria estar internado; e para um terço deles não sabemos se a internação é justificada. Ou seja, para 1.866 pessoas (47%), a internação não se fundamenta por critérios legais e psiquiátricos. São indivíduos cujo direito a estar no mundo vem sendo cotidianamente violado (grifos nossos).

A total incompatibilidade do modelo asilar com a Lei de Reforma Psiquiátrica

além da ineficácia do Sistema, que não trás o suporte necessário para estes

pacientes internados, muitas vezes nem ao menos se dignando a verificar se estes

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realmente merecem ali estar demonstram que os atuais manicômios judiciários não

evoluíram muito desde o “Hospital de Barbacena”, abordado na Introdução do

presente estudo.

Servindo muito mais para isolar o sujeito que praticou a infração, do que

efetivamente tratar, diversas vozes silenciadas ocupam os Hospitais de Custódia e

Tratamento, abandonados à conveniência do Poder Público.

2.3 A PROIBIÇÃO DE PRISÃO PERPÉTUA E A INDETERMINAÇÃO DO

PRAZO DA MEDIDA DE SEGURANÇA

O Ordenamento Jurídico Brasileiro em seu Código Penal não estipula um

prazo máximo para a duração da Medida de Segurança, condicionando este à

“cessação da periculosidade” que deverá ser atestada pelo médico. O prazo

estipulado, de um a três anos, é apenas uma diretiva realizada pelo legislado para

que ocorra o exame de “cessação de periculosidade”, o qual deverá ser repetido

periodicamente.

Ocorre que nossa Constituição Federal de 88, em seu art. 5º, inciso XLVII,

alínea “b” veda expressamente a existência de penas de “caráter perpétuo” e, em

que pese o internamento em “Hospital de Custódia e Tratamento” seja considerado

pelo Código Penal como “tratamento”, é indiscutível seu caráter punitivo, conforme

abordado no tópico anterior.

Tentando resolver este dilema, o Supremo Tribunal Federal se manifestou em

2005, estabelecendo o limite de 30 anos, neste sentido:

MEDIDA DE SEGURANÇA – PROJEÇÃO NO TEMPO – LIMITE. A interpretação sistemática e teleológica dos artigos 75, 97 e 183, os dois primeiros do Código Penal e o último da Lei de Execuções Penais, deve fazer-se considerada a garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. A medida de segurança fica jungia ao período máximo de trinta anos.

Nova tendência jurisprudencial e doutrinaria, sustentada por Cezar Roberto

Bittencourt (2011, p.787), seria de que o período de internação do portador de

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transtorno mental infrator deveria ser equivalente aos limites mínimos e máximos da

infração por ele cometida, alegando que este seria “o limite da intervenção estatal,

seja a título da pena, seja a título de medida”. Segundo o doutrinador, há que se

levar em consideração os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sendo

que, acaso após o decurso do prazo o interno continuar apresentando sintomas

relacionados à sua enfermidade mental, este deixa de ser assunto do Sistema

Penal, devendo procurar assistência junto ao Sistema Único de Saúde.

Ainda que a solução proposta busque trazer uma resposta ao lapso temporal

indeterminado da duração da medida segurança, tal não se mostrar efetivamente

preocupada com o tratamento daquele sujeito, associando a medida de segurança à

punição. Sendo assim, o internamento perde-se em seu fim que deveria, em tese,

ser terapêutico, tornando-se apenas mais uma forma de punir e isolar o sujeito

considerado “periculoso” da sociedade.

Acerca do período de internação e seu caráter perpétuo, o já mencionado

Censo produzido pela UnB, apontou a existência de dezoito indivíduos internados

em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico há mais de 30 anos, totalizando

0,5% do total de pacientes pesquisados (DINIZ, 2011, p.14):

Jovens, eles atravessaram os muros de um dos regimes mais cruéis de apartação social. Idosos, eles agora esperam que o Estado os corporifique para além dos números aqui apresentados e reconheça-os como indivíduos singulares com necessidades existenciais ignoradas em vários domínios da vida.

Além disso, o Censo ainda aponta a existência de 606 indivíduos internados

há mais tempo do que a pena máxima para a infração cometida, totalizando 21%

dos pesquisados.

Percebe-se que a indeterminação de prazo da Medida de Segurança também

é uma flagrante violação aos direitos fundamentais do “louco infrator”, isto porque

viola nossa Constituição que veda expressamente as penas de caráter perpétuo.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto minoria sem voz ativa em nossa população, os pacientes com

problemas mentais possuem seus direitos constantemente violados, principalmente

no que tange à autonomia e liberdade. Especificamente no que diz respeito ao

portador de transtorno mental interno em Hospitais de Custódia, percebe-se que há

muito deixou-se de crer em sua possível recuperação, não havendo um tratamento

específico para esses pacientes, que se tornam então, prisioneiros.

Ao determinar uma Medida de Segurança ao Portador de Transtorno Mental,

o Estado deveria proporcionar um adequado tratamento, visando a melhora do

quadro do paciente que, ao retornar para a sociedade, devidamente medicado e

ouvido, teria menor possibilidade de cometer novas infrações devido seu transtorno.

Entretanto, a Medida de Segurança perdeu-se em seu fim, visto que,

conforme abordado, existem inúmeros pacientes com laudos atrasados e internados

mais tempo do que o previsto, os Hospitais de Custódia e Tratamento tornaram-se o

símbolo do total descaso do Poder Público no que tange a essas minorias.

Utiliza-se a necessidade de tratamento e de proteção ao portador de

transtorno mental para punir e isolar o sujeito do convívio social. Muitas vezes não

ouvido e não compreendido de forma adequada, o paciente interno no Hospital de

Custódia encontra-se condenado a uma prisão sem função social alguma.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Eduardo Henrique Rodrigues. Dignidade, autonomia do paciente e doença mental. Revista Bioética, Rio de Janeiro, nº 18, p.384, julho de 2010. BITTENCOURT, Cezar Roberto; Tratado de direito penal: parte geral, 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 256. BRASIL, Decreto Lei nº2.848 de 07 de dezembro de 1940, Código Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Art. 26, Brasília, DF, 31 de dezembro de 1940. BRASIL, Decreto Lei nº3.298 de 24 de outubro de 1999, que regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989 e dispõe sobre a Politica Nacional para a

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Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 21 de dezembro de 1999. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 84.219, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJ 23.9.2005. DINIZ, Débora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 2011. 1.ed. Brasília: Universidade de Brasilia, 2013. p. 15. FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. A ONU e seu Conceito Revolucionário de Pessoa com Deficiência. Disponível em: <http://www.ampid.org.br/Artigos/Onu_Ricardo_Fonseca.php>. Acesso em 05 de março de 2015. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito Penal da Loucura. 1.ed. Brasília: ESMPU, 2008. p. 106. 1 MATHES, Priscila Gomes; MITJAVILA, Myriam Raquel. Doença mental e periculosidade criminal na psiquiatria contemporanêa: estratégias discursivas e mdoelos estiológicos. Physis, Rio de Janeiro, Ano 22, Volume 4, 2012, p. 1.380.

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O RECONHECIMENTO DO ÍNDIO COMO ENTRAVE NO JUDICIÁRIO PARA A

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS

THE RECOGNITION OF INDIGENOUS PEOPLE AS AN OBSTACLE IN THE

JUDICIARY FOR THE INDIGENOUS LANDS DEMARCATION

Lidiane Harue Fugimoto110

Heloisa Fernandes Câmara111

SUMÁRIO

Resumo.1 Introdução – 2 Demarcação de terras – 2.1 As terras indígenas – 3 Quem é índio? – 3.1 Identidade indígena – 3.1.1 O reconhecimento como índio e o conflito no judiciário – 4 Considerações finais – Referências.

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar o conflito que se configura no judiciário brasileiro referente ao reconhecimento indígena no tocante à demarcação de terras. Pretende-se analisar a situação pela qual as comunidades indígenas têm passado, tendo como foco principal a questão referente às terras ocupadas por esses povos. Também pretende explorar algumas concepções jurídicas e culturais acerca da identidade indígena, cujo entendimento se faz importante para as atuais discussões relativas à demarcação de terras indígenas. Outrossim, objetiva-se explorar o tratamento dado juridicamente à terra perante a sua importância na cultura indígena e algumas consequentes violações sofridas de direitos indígenas assegurados constitucionalmente. Ainda, propõe-se observar algumas dificuldades enfrentadas no procedimento de demarcação de terras e a necessidade a efetivação desse processo. Ao final do trabalho, pretende-se pela desmistificação de alguns pré-conceitos relacionados ao índio e a observância mais atenta aos problemas enfrentados pelas comunidades indígenas. Ademais, percebe-se que os tribunais brasileiros tratam muitas vezes com descaso as comunidades indígenas em risco, por não aceitarem que tais são índios e negando, consequentemente, a demarcação das terras reivindicadas. Palavras-chave: direitos indígenas, demarcação de terras, reconhecimento indígena, direitos humanos, questão indígena no judiciário.

110 Acadêmica de Direito no Centro Universitário Curitiba. 111 Mestre em Direito do Estado na Universidade Federal do Paraná (2010). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2008). Professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos no Centro Universitário Curitiba. Participante do grupo de pesquisa Constitucionalismo e Democracia (UFPR) e Direito e Subjetividade (UFPR).

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ABSTRACT

This current article aims to analyze the conflict that takes shape in brazilian justice concerning the indigenous recognition in relation to land demarcation. It intends to analyze the situation in which the indigenous communities have past, focusing mainly on the question of the land occupied by these people. It also intends to explore some legal and cultural conceptions of indigenous identity, whose understanding becomes important for current discussions on the demarcation of indigenous lands. Furthermore, the objective is to explore the treatment of legally grounded before its importance in Indian culture and some consequential violations suffered indigenous rights guaranteed constitutionally. It is proposed to observe some difficulties in land demarcation process and the need the realization of this process. At the end of the article, it is intended by the demystification of some preconceptions related to Indian and closer observance of the problems faced by indigenous communities. Moreover, it is clear that brazilian judiciary treats often with disregard indigenous communities at risk for not accepting them like indigenous and denying, consequently, the demarcation of claimed lands. Keywords: indigenous rights, land demarcation, indigenous recognition, human rights, indigenous issues in the judiciary.

1 INTRODUÇÃO

Terras indígenas são áreas do território nacional, cuja propriedade é da União,

habitadas por povo ou povos que se reconhecem indígenas, onde exercem suas

atividades habituais. Essas terras são necessárias para a reprodução física e

cultural, segundo usos, costumes e tradições, desses povos. Diz-se que a posse

desse território é originária e coletiva.

A demarcação dessas terras é o procedimento pelo qual se garante a

proteção física do local, reconhecendo-o e declarando como terra indígena. Pela

Constituição Federal de 1988, basta que a terra seja tradicionalmente ocupada para

que os índios tenham direito originários sobre ela.

Surgem obstáculos como na questão do reconhecimento como índio, ou seja,

como definir quem é índio. O conceito legal de índio, no Estatuto do Índio,

estabelece alguns requisitos obrigatórios para tal configuração: origem e

ascendência pré-colombiana, auto-identificação e identificação externa como índio e

pertença a grupo étnico com características diversas da sociedade nacional. Para

Eduardo Viveiros de Castro, índio é “qualquer membro de uma comunidade

indígena, reconhecido por ela como tal”, sendo que comunidade indígena é aquela

fundada em relações de parentesco entre seus membros, mantidos laços histórico-

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culturais com os as sociedades indígenas pré-colombianas, ou seja, antes do

aparecimento dos europeus na América.

Ser índio não é mera questão de aparência ou de prática de rituais

tipicamente indígenas. Não é difícil encontrar comunidades vivendo em centros

urbanos e que, por sua vez, são impedidos de realizarem alguns de seus ritos. Uma

pessoa não é menos índio por viver “fora da floresta”, mas se verá que muitos

grupos estão exigindo e necessitam do retorno para meio natural, requerendo as

terras que sempre foram de seus ancestrais.

2 DEMARCAÇÃO DE TERRAS

2.1 AS TERRAS INDÍGENAS

A terra é elemento fundamental para as comunidades indígenas

desenvolverem sua cultura, por estar intrinsecamente ligada ao meio ambiente, ela

representa “espaço de vida e liberdade de um grupo humano” (SOUZA FILHO,

1998, p. 121) e é por isso que, como ensina Luiz Felipe Bruno Lobo, a terra ocupada

pelas comunidades indígenas adquire caráter de território indígena. Esse território é

a base sobre a qual se encontram os fundamentos das sociedades tribais.

Terras indígenas são áreas ocupadas por populações indígenas, ou seja,

territórios habitados por povo indígenas. Para a cultura dos povos indígenas,

A posse coletiva da terra não implica o direito de aliená-la a terceiros, consideram-se depositários de territórios numa corrente imemorial e ininterrupta, passada, presente e futuro, estando impossibilitados, portanto, de transferir o que foi confiado, por sucessão natural, a possuir e transmitir naturalmente aos que lhes hão de suceder nas suas comunidades, conscientes do seu vínculo histórico com sociedades pré-colombianas (LOBO, 1996, p. 45).

O significado da terra para essas comunidades indígenas é muito bem

retratado por Carlos Minc:

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Como se pode comprar ou vender o firmamento, ou ainda o calor da terra? Tal ideia nos é desconhecida (...). Somos parte da terra, do mesmo modo que ela é parte de nós próprios. As flores, o urso e a águia são nossos irmãos (...). Sabemos que o homem branco não compreende nosso modo de vida porque ele é um estranho que chega de noite e tira da terra o que ele necessita (...). Trata sua mãe, a terra, e a ser irmão o firmamento, como objetos que se compram, se exploram e se vendem. (...) o seu apetite devorará a terra, deixando atrás de si só o deserto. (...) só de ver as vossas cidades, entristecem-se os olhos do pele vermelha. (...) o homem branco não parece estar consciente do ar que respira; como um moribundo que agoniza durante muitos dias é insensível ao mau cheiro (...). Tudo quanto acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra (...) isto sabemos: a terra não pertence aos homens; os homens à terra (MINC, apud LOBO, 1996, p. 46).

Por sua vez, a terra indígena é propriedade da União, portanto, bem público,

mas indisponível a ela, porque a utilização é destinada apenas ao uso próprio dos

povos indígenas e cujo usufruto das riquezas deste solo é exclusivo deles. Por isso,

essas terras são destinadas à posse permanente dos índios, sendo-lhes cabível o

usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios, dos lagos existentes ali.

E “A posse dos silvícolas abrange todo o território indígena propriamente dito,

isto é, toda área por eles habitada, utilizada para seu sustento e necessária à

preservação de sua identidade cultural” (MENDES, 1988, p. 56). Dentro dessas

terras deveria ser aplicado o próprio direito consuetudinário indígena, e não as

normas de direito brasileiro.

Não há o que se discutir que originariamente os verdadeiros donos das terras

brasileiras são os povos indígenas. Por esse motivo, em 1680 foi declarado que as

sesmarias, pedaços de terra das capitanias hereditárias, “não poderiam desconstituir

os direitos dos índios sobre a suas terras, que possuíam como ‘primários e naturais

senhores delas’” (SOUZA FILHO, 1998, p. 124). O silêncio da Constituição Imperial

de 1824 estende a interpretação anterior até esse período com a defesa de alguns

políticos que lutavam pela proteção das terras que os índios ainda possuíam, como

Moniz Tavares e José Bonifácio, que falava na incorporação dos índios à população

livre, tratando-os com justiça e reconhecendo a violência que sofreram.

Desde 1850, quando da Lei de Terras e do nascimento do conceito de reserva

indígena, o Estado Brasileiro guarda parte do território nacional para as

comunidades indígenas. Contudo, essa reserva era apenas “uma porção de terra

pública separada (reservada) de um gleba maior, que não era destinada à

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colonização, mas ao uso de um grupo indígena enquanto não fosse definitivamente

‘civilizado’”(SOUZA FILHO, 1993, p.65).

A legislação do século XX aos poucos foi reconhecendo o direito dos índios

sobre as terras. Em 1928, o Decreto Legislativo 5.484, que regulava a situação dos

índios nascidos em território nacional, foi muito bem recebido pelos indigenistas,

finalmente com caráter protetivo, que estabeleceu a posse das terras para os índios,

como bem público inalienável do patrimônio nacional, ainda que defeituoso em

outras áreas.

Em 1934, então, essa garantia ficou também estabelecida

constitucionalmente. O Estatuto do Índio completou a ideia jurídica determinando as

terras como “propriedade pública, da União, posse permanente, intransferível e

intocável dos índios” (SOUZA FILHO, 1998, p. 129), proclamado como direito

originário dos índios pela Constituição Federal de 1988.

Uma das formas de cumprir o disposto no artigo das garantias fundamentais,

a propriedade atenderá sua função social, conforme artigo 5º, inciso XXIII, da

Constituição Federal, é a terra atendendo a necessidades sociais dos índios.

O art. 231 da CF/88, em seu § 1º trata que:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Ana Valéria ressalta que “os direitos territoriais indígenas são originários e

imprescritíveis, isto é, operam desde sempre na direção do passado e do futuro (...)

e independem de reconhecimento formal” (ARAUJO, 2006, p. 47-48). Ela diz que a

União está obrigada a reconhecer a terra tradicionalmente ocupada, por força do art.

231 e que o procedimento de demarcação é apenas burocracia estatal que traduz o

caput desse artigo.

O direito à terra está, sem sombra de dúvidas, na essência dos direitos dos povos indígenas. Da sua garantia dependem todos os demais direitos e a própria continuidade e reprodução cultural desses povos. Por isso mesmo, em torno de sua aplicação ocorrem os maiores conflitos e aí se opera toda

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uma usina de fabricação de preconceitos que procuram deslegitima-lo e desqualifica-lo. (ARAUJO, 2006, p. 49)

A Terra Indígena, cujo fim é a preservação da vida de um povo, “é uma

unidade de conservação cultural e não necessariamente ambiental” (SOUZA FILHO,

1993, p. 66). Por não ser unidade de conservação ambiental, sujeita-se “às normas

genéricas, como as de proteção à água, ar e vegetação de reservas ecológicas,

nelas não podendo incidir outras unidades de proteção que importem em limitação à

posse e usufruto dos índios” (SOUZA FILHO, 1993, p. 67). Essa proteção às áreas

de ocupação indígena existe para que sejam mantidas as condições ecológicas

necessárias à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas.

O direito originário dos índios à terra, do qual fala a Constituição da República

de 1988, significa que esse direito é anterior à própria definição jurídica do termo.

Basta que haja a ocupação da terra indígena.

O Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73) legisla sobre as terras indígenas no

Título III – Das Terras dos Índios, a partir do art. 17, ao definir o que são. Divididas

em três categorias, terras ocupadas tradicionalmente, reservadas e de domínio dos

povos indígenas, todas têm proteção legal, são destinadas ao uso e posse deles e

devem ser demarcadas. Segundo Lobo, “esta é, inclusive, uma das formas através

da qual a propriedade (no caso da União) atenderá sua função social” (LOBO, 1996,

p. 45). O autor ainda afirma que o legislador ao utilizar o termo “terras indígenas” ao

invés de “território indígena” quis evitar a aproximação ao conceito de Estado, que

por vezes acaba se entrelaçando. No entanto, essa discussão é ultrapassada e

finaliza que pode ser dito sem medo que “o Brasil é um Estado multinacional e

multiterritorial, onde as nações indígenas habitam seus territórios sem prejuízo da

soberania nacional dominante” (LOBO, 1996, p. 45).

A ocupação tradicional das terras é aquela que se dá pelos usos, costumes e

tradições, permanentemente, para realização das atividades próprias culturais, pela

necessidade de reprodução física e cultural. É o que “determina a existência do

fenômeno jurídico chamado ‘terra indígena’” (SOUZA FILHO, 1998, p. 130), tendo

esse território jurisdição própria, queira ou não o Estado que abrange essas terras.

A Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que se refere

aos povos indígenas e tribais, traz em seu artigo 14, 2 que “os governos tomarão as

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medidas necessárias para identificar terras tradicionalmente ocupadas pelos povos

interessados e garantirão a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e

posse”. Entretanto, os dispositivos legais que tratam do assunto, mostram o quanto

o conceito de terras indígenas está distante do que se entende juridicamente por

posse e propriedade. Mas ainda que se aproximasse do conceito jurídico, “não se

chegará à sua essência, porque não estamos falando de direito privado, portanto

nem de posse nem de propriedade. A terra é o balão colorido que não cabe em

gavetas ocidentais” (SOUZA FILHO, 1998, p. 131).

O entendimento de áreas reservadas, previsto no EI, é o de que em qualquer

parte do território nacional, a União poderá estabelecer áreas destinadas à posse e

ocupação pelo índio (art. 26). Divide-se em quatro categorias: reserva, parque,

colônia agrícola e território federal indígena. Os artigos seguintes definem que:

Reserva indígena é uma área destinada a servir de habitat a grupo indígena, com os meios suficientes à sua subsistência. Parque indígena é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região. Colônia agrícola indígena é a área destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional. Território Federal indígena é a unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população seja formado por índios. (SOUZA FILHO, 1998, p. 131).

O professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho critica a definição de

reserva, pois área destinada a servir de habitat ao índio nada mais é que a própria

terra ancestral e tradicionalmente ocupada pelos índios, dado que o que gerou essa

criação foi a individuação de suas próprias terras.

As terras de domínio indígena tratam confusamente das terras privadas

indígenas. O que quis se proteger nessa definição foram as terras privadas dos

índios e aquelas obtidas por usucapião, conforme legislação civil. Ademais, o

parágrafo único do art. 33 do EI traz que o conteúdo do seu caput “não se aplica às

terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de

que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal”, ou seja,

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não são passíveis de usucapião por outro grupo, ou mesmo indivíduos do grupo,

apenas é possível pelo próprio grupo tribal.

Segundo Manuela Carneiro da Cunha, os direitos territoriais das comunidades

indígenas são o “núcleo da questão indígena” (CUNHA, 1987 apud BITTAR, 2012, p.

285). Por isso, a demarcação de terras indígenas se faz necessária, tanto para

consegui-las fisicamente quanto para assegurá-las juridicamente. No entanto,

independentemente de demarcação elas demandam proteção. Terra indígena não

se constitui, presume-se ser. Sendo ela habitada por indígenas, ainda que o órgão

competente alegue que não ser, será terra indígena. Isso demonstra que a

demarcação das terras não é determinante para o seu reconhecimento, oficial ou

não. O que dificulta o respeito às terras indígenas é o interesse econômico nelas. As

fronteiras agrícolas se expandem rapidamente, tomando conta de terras sem

observar a quem pertencem ou simplesmente ignorando essa informação.

O Estatuto do Índio dispôs que o Estado deveria em cinco anos promover a

demarcação das terras indígenas conhecidas, a contar da sua decretação em 1973.

Em 1978 não havia sido cumprida a determinação. A Constituição Federal de 1988

reforçou que a medida deveria ser tomada no mesmo prazo de cinco anos. Até

2015, novamente a norma não foi cumprido.

Segundo Marés, esse procedimento de demarcação nada mais é que o

“reconhecimento do Estado brasileiro de sua propriedade e dos direitos originários

dos povos que nele habitam” (SOUZA FILHO, 1998, p. 151), por isso é coerente que

a Administração Federal decida:

Sobre o procedimento demarcatório, em primeiro lugar porque é ato declaratório, confirmatório da existência prévia de terra indígena, em segundo lugar porque a Administração federal nada mais está fazendo do que descrevendo formalmente uma propriedade já sua, já que as terras indígenas são terras públicas federais (SOUZA FILHO, 1998, p. 151).

Aponta Bittar que sobre as terras indígenas há grande interesse

econômico e político e devido a esses interesses o sistema jurídico é corrompido, de

forma que acaba não realizando o intuito para o qual existe. O autor completa que

apesar da Carta Magna de 1988 ter sido um grande avanço, ela não é uma solução

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perfeita aos conflitos indígenas, nem a qualquer outro conflito, pois está inserida

também no contexto sistêmico onde não há autonomia jurídica.

Pontes de Miranda já ensinava que não existe direito algum sobre terras

indígenas daqueles que não são índios,

São nenhuns quaisquer títulos, mesmo registrados, contra posse dos silvícolas, ainda que anteriores à Constituição de 1934, se à data da promulgação havia tal posse. O registro anterior de propriedade é título de propriedade sem uso e sem fruição (MIRANDA, 1972 apud SOUZA FILHO, 1998, p. 153).

Como já falado, as terras são instrumento fundamental para a reprodução da

cultura indígena. Nela realiza-se o trabalho que é outro aspecto essencial na cultura.

Como bem disse Márcio Túlio Viana,

Os primeiros eram errantes. Como folhas levadas ao vento, iam e vinham, ao acaso, se aventurando no mundo. Não o faziam por escolha – mas por necessidade. Tinham o destino ligado ao dos animais que caçavam. Foi só numa segunda etapa, quando aprenderam a ciência das plantas, que os homens conheceram o prazer de poder ficar. Já então, era como se a Terra, por eles dominada também os quisesse possuir; e fosse fincando, em seus pés, raízes iguais às que plantavam. Mas a terra também despertou cobiça, na medida de sua utilidade. E aí surgiram, de um lado, as disputas por sua posse; e, de outro, a exploração sobre as que não possuíam. (VIANA, 1993 apud LOBO, 1996, p. 67-68).

Todos os dispositivos legais mostram o quanto estão distantes os conceitos

de posse e propriedade do conceito cultural.

Discorre Manuel Scorza sobre “a luta dos indígenas convertidos em

camponeses que não logram do sistema o reconhecimento de sua identidade

comunitária e dos títulos de terra” (SCORZA apud SOUZA FILHO, 1988, p. 45),

matéria que perdura até hoje.

A demarcação dessas terras indígenas é regulamentada hoje pelo Decreto nº

1.775/96 e passa por sete fases distintas para ser concretizada. Lobo sintetiza da

seguinte forma: identificação e delimitação do território por especialista seguido da

aprovação do relatório feito pela FUNAI e consequente publicação no Diário Oficial e

na sede da Prefeitura Municipal da localidade da terra reconhecida. Após esse

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procedimento, em até 90 dias posteriores ao início do processo, será cabível

impugnação pelos interessados (estados, municípios ou terceiros, desde que a área

a ser demarcada o afete de alguma forma). O processo será então encaminhado ao

Ministro de Justiça do Estado que, em 30 dias, aprovará a demarcação ou

encaminhará os autos à FUNAI em caso de desaprovação. Aprovada a demarcação,

a homologação do território se dará por meio de decreto do Presidente da República

e em até 30 dias contados deve ser feito registro imobiliário na comarca da

localização das terras e também na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério

da Fazenda.

Ana Valéria conta que atualmente no Brasil ocorrem “práticas sistemáticas de

violação dos direitos territoriais dos índios” (ARAUJO, 2006, p. 54) e coloca em

questão a visão distorcida que se tem quanto ao reconhecimento dos direitos

indígenas.

Essa visão distorcida é percebida nos diversos projetos de lei ou propostas de

emenda constitucional como a PEC 38/99 que intenciona limitar “a área total de

cada estado passível de ser declarada como terra indígena, atribuindo ao Senado a

competência para aprovar os procedimentos administrativos de demarcação dessas

terras” (ARAUJO, 2006, p. 62) ou o Projeto de Lei (PL) 3897/04 que intenta os índios

não receberem tratamento diferente de qualquer outro cidadão, propondo a

eliminação da atenuação automática da pena prevista no art. 56 do EI, quando

houver condenação de índios por infração penal. E ainda, o Projeto de Lei

Complementar (PLP) 151/04:

Regulamenta o relevante interesse público da União e, portanto, não podem ter suas extensões abrangidas pela demarcação de terras indígenas. O mesmo PLP ainda inclui na noção de relevante interesse público todas as obras de infra-estrutura nas áreas de transporte, energia e comunicações. (ARAUJO, 2006, p. 62).

Percebe-se a falta de preocupação com as comunidades indígenas ao ignorar

seus direitos próprios. Prova disso, é o Projeto de Emenda à Constituição (PEC)

215/2000, que objetiva a transferência da competência para demarcação de terras,

que hoje é da União, para o Congresso Nacional. Percebe-se que essa medida não

é sequer minimamente favorável aos povos indígenas, além de ser inconstitucional.

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Para Boaventura de Souza Santos, a PEC 215/2000 “é um golpe frontal e

impiedoso às vidas dos povos indígenas, pois tende a destituir as comunidades, na

prática, da posse permanente de seus respectivos territórios (tradicionalmente

ocupados) e do usufruto exclusivo das riquezas” (SANTOS, 2014) existentes nessas

terras.

Na realidade, essa PEC possui diversos interesses de empresas do

agronegócio e mineração. Um dado interessante trazido pelo Tribunal Superior

Eleitoral mostra que dos 50 deputados participantes da Comissão Especial que

analisará a PEC 215, 20 deles tiveram suas campanhas eleitorais financiadas por

grandes empresas do ramo do agronegócio.

3 QUEM É ÍNDIO?

Quem é índio? A definição de índio no Estatuto do Índio (EI – Lei nº 6.001/73)

é um tanto problemática. O art. 3º da referida lei, dispõe em seu inciso I a definição

de índio que “É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se

identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características

culturais o distinguem da sociedade nacional”. Percebe-se que esse artigo determina

que para ser considerado índio, deve preencher três requisitos: origem genealógica

indígena, identificar-se e ser identificado como tal e possuir características culturais.

A condição de índio não se esgota com a mestiçagem ou emancipação deste. O que

cessa é a incapacidade relativa a certos atos da vida civil, por exemplo, com a

emancipação (art. 3º, III, Código Civil brasileiro). A Lei que dispõe sobre o Estatuto

do Índio foi criada durante o período da ditadura militar, assim como a FUNAI, que

sucedeu o Sistema de Proteção ao Índio (SPI), causa de escândalos administrativos

por corrupção. Os militares, que seguiam o modelo integracionista, enxergaram na

lei uma brecha, a qual conduziria que índios emancipados não seriam mais

considerados índios, vez que seriam integrados no sistema nacional. Essa tentativa

de reduzir o índio não obteve êxito, já que caracterizou uma confusão entre

capacidade civil e direito de cidadania, “a ideia partia da falsa premissa que os

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indígenas não eram cidadãos integralmente porque pesava sobre eles a tutela”

(SOUZA FILHO, 1996, p. 90).

O Estatuto, em seu art. 3º, II, classifica ainda Comunidade Indígena como:

Um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo de isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem, contudo, estarem neles integrados.

Ou seja, a não integração em sociedade nacional é adicionada à definição de

índio. O problema reside na incoerência deste inciso. Pelo inciso primeiro, entende-

se que é índio todo aquele que se encaixa nos requisitos expostos, inclusive os

emancipados. Pelo inciso segundo, tem-se que a comunidade indígena para ser

considerada como tal não pode ser integrada, logo, compreende-se que o índio que

for independente, e, assim, estiver em comunhão com o Estado brasileiro, fará parte

de uma comunidade de índios, mas não reconhecida juridicamente como indígena.

Não existe sentido em um índio emancipado ser índio individualmente e em

comunidade tribal não ser reconhecido da mesma forma. Portanto, interpreta-se

esse texto em favor do índio, de maneira protetiva, e não de forma matemática, e

paralelamente com a leitura do art. 231 da Constituição Federal que sana o

paradoxo, na medida em que dispõe que:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União 216demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

A Constituição Federal em 1988 veio, nesse sentido, garantir a perenidade do

ser índio. Com ela, uma vez índio, essa condição para sempre.

Dessa maneira, os índios podem ser considerados isolados, em vias de

integração ou integrados, segundo o art. 4º do Estatuto, e, assim como toda a

legislação indigenista, possui intepretação extensiva, o que significa que não importa

a qual classificação pertençam, “todos são indistintamente índios” (LOBO, 1996, p.

17).

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Como explica o próprio artigo 4º:

I – Isolados – Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II – Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existências comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III – Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições características da sua cultura.

Lobo ressalta que os últimos dois incisos são pouco satisfatórios, pois trazem

definições prejudiciais e incompletas. Por esse motivo, a interpretação é feita de

forma sempre favorável ao indígena.

3.1 IDENTIDADE INDÍGENA112

Com o passar dos séculos, foi sendo construída uma ideia de que era

vergonhoso ser índio.

Eduardo Viveiros de Castro explica um pouco do que consiste na diferença do

ser índio e do não ser índio. Começa dizendo que a problemática dessa identidade

não se localiza na cultura dos povos indígenas, ou seja, que a cultura não é

suficiente para definir alguém como índio, pois “um coletivo humano não é jamais a

encarnação de uma cultura” (CASTRO, 2006).

Viveiros afirma que a definição de índio, portanto, é apenas ficcional, posto a

“indianidade” ser tautegórica, que significa que ela cria sua própria referência. Ele

diz que índios representam a si mesmo, pois é isso que faz uma singularidade.

O autor fala ainda, a título de especificação de quem é índio, das

características de haver “comunidade fundada em relações de parentesco ou

vizinhança e que mantém laços históricos ou culturais com as organizações

112 Nota: a expressão “identidade indígena” utilizada neste artigo não é para fins de generalização do termo, uma vez que não existe uma única identidade indígena, mas várias diante das diversas etnias existentes. Explica-se que, ao utilizar esse termo, quis-se apenas buscar uma forma de expressar quem é reconhecido como índio, a título de “definição”.

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indígenas pré-colombianas” (CASTRO, 2006). Outra dimensão da qual Viveiros de

Castro fala é a sociopolítica:

A terceira dimensão, enfim, é a sociopolítica – a primeira era histórica (continuidade), a segunda era cultural (orientação positiva em relação ao fundo cultural). Ela diz respeito à decisão, manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade se constituir como corpo socialmente diferenciado dentro da comunhão nacional – para usarmos essa linguagem empolada e hipócrita. Constituir-se como entidade socialmente diferenciada significa dar-se autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição, isto é, os modos de recrutamento e critérios de excluso da comunidade. Estamos falando de coisas como “governança” comunitária, modalidades de ocupação do território, regimes de intercâmbio com a sociedade envolvente, dispositivos de reprodução material e simbólica... Os índios têm, como diz a lei, direito a seus usos e costumes e tradições. Ter direito aos usos e costumes e tradições. Ter direito aos usos e costumes significa ter autonomia para se governar internamente “naquilo que não fira os princípios fundamentais” (como se não os feríssemos, por princípio) da constituição nacional.

A análise antropológica acima objetiva possibilitar um panorama mais amplo

do que é ser índio no Brasil, pois nas palavras do autor no Brasil “todo mundo é

índio, exceto quem não é”.

Dentro do contexto de processo étnico, Darcy Ribeiro argumenta que “não

houve assimilação das entidades étnicas, mas absorção de indivíduos desgarrados,

ao passo que aquelas entidades étnicas desapareciam ou se transfiguravam para

sobreviver” (RIBEIRO apud MOTA, 2001, p. 414).

Ana Valéria diz acerca do critério de auto-identificação, contido desde a

Convenção 169 da OIT, que “negá-lo significa prejudicar principalmente os povos

indígenas que lutam por recuperar o reconhecimento de suas identidades, com a

consequente devolução de seus territórios” (ARAUJO, 2006, p. 61).

A identidade cultural está intrinsecamente ligada à terra, ao território indígena,

e a Constituição Federal de 1988 ao dispor sobre as terras indígenas

tradicionalmente ocupadas demonstra que compreendeu a profundidade dessa

relação, o que é diferente de dizer que efetivou essa compreensão. A ideia da

dignidade humana do índio está ligada, portanto, à terra como “construção simbólica

de outro jeito de ser num espaço onde sua ancestralidade está presente”

((Plataforma de Direitos Humanos, 2014, p. 45), o que significa a continuidade da

herança indígena e sua reprodução no meio que lhe é próprio.

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Ligado à identidade cultura está ainda o direito à auto-determinação dos

povos indígenas. Esse direito é resultado “da luta dos povos indígenas de todo o

mundo para que os mesmos possam controlar seu destino em condições de

igualdade sendo partícipes efetivos da tomada de decisões que os afetem”

(Plataforma de Direitos Humanos, 2014, p. 45).

Deve-se reconhecer que a cultura indígena pressupõe formas diversas de

crença, de produção e de transmissão do saber do seu povo. Ser índio não é

aparentar ser, pois “não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha,

algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão

de ‘estado de espírito’” (CASTRO, 2006), mas sim um modo de devir, ou seja,

significa se tornar, transformar-se.

3.1.1 O Reconhecimento como Índio e o Conflito no Judiciário

Faz-se problemática a questão do reconhecimento do índio em situações de

demarcação de áreas indígenas. Neste sentido, Manuela Carneiro da Cunha explica

dois modos de se entender a cultura: um modelo platônico e outro heraclitiano. O

primeiro entende a identidade como um modelo que supõe uma essência e a cultura

como itens, regras, valores e posições previamente dados. Ou seja, para esse

modelo platônico, identidade e cultura são vistas como coisas estáticas, não

passíveis de mudança. Já o modelo heraclitiano percebe a identidade como

continuidade, fruto processo, fluxo e memória e a cultura vem de traços gerados

através de sistemas perpetuamente variáveis (CUNHA, 2012, p. 120).

Manuela compara etnicidade e totemismo, na medida em que a etnicidade

também utiliza objetos naturais para produzir diferenças dentro das sociedades.

Contudo, as espécies naturais, dentro de uma sociedade multiétnica, apresentam

diferenças culturais, que geram por sua vez espécies culturais. Assim, sendo a

referência, portanto, modificada “sem que nada tangível tenha mudado nos objetos,

muda também o significado dos itens culturais” (CUNHA, 2012, p. 121). Ainda que o

traço cultural tenha mudado, a etnicidade não sofreu tal mudança.

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Os signos étnicos podem ser elaborados com todas as regras da arte tradicional e, no entanto, terem um significado externo à cultura em que se originaram: não por serem falsos, mas por serem comandados por um sistema que extrapola a cultura tradicional (CUNHA, 2012, p. 122).

Exemplifica Manuela que em um ritual indígena, o cocar pariko possui uma

significação, já em uma reivindicação por direitos em frente ao Planalto Central

possui outra. É assim que os índios são vistos, ora como bonzinhos, ora como

vilões, “hoje, eles são ora os puros paladinos da natureza ora os inimigos internos,

instrumentos da cobiça internacional da Amazônia”. Essa questão depende da

própria escolha dos povos indígenas e de políticas públicas nacionais e

internacionais.

O direito indígena às terras está previsto na Carta Régia desde 1609. Os

índios são os primários e naturais senhores das terras e esse direito continua

constando na Constituição da República de 1988. No entanto, para burlar esse

direito, “inaugura-se um expediente utilizado até hoje: nega-se sua identidade aos

índios. E se não há índios, tampouco há direitos” (CUNHA, 2012, p. 127).

Os índios que hoje moram em centros urbanos ou até mesmo em ambientes

mais afastados, mas que vivem em casa simples de alvenaria, são vistos por muitos

como aculturados. Estes, ao exigir seus direitos, principalmente no tocante às terras

indígenas, são discriminados e tachados como não índios por não “aparentarem” ser

o que alegam. Ora, a Convenção 169 da OIT assegura o direito de

autorreconhecimento dos índios e outros povos tribais.

No Judiciário, essa questão do reconhecimento como índio é colocada como

ponto controverso. No recente caso da Terra Indígena Maró, cuja decisão de

primeira instância, proferida no final de 2014, confundiu conceitos e interpretações a

respeito do ser índio e foram utilizados argumentos fora de contexto, como se

percebe no trecho da sentença a seguir:

A chamada etnogênese em suas tentativas de reconstruir a memória coletiva, sem avaliar as consequências de que, quem se insere no chamado “pertencimento”, que se reconhece como indígena e consegue vender esta verdade a quem está oficialmente apto, ou seja, ao Estado, satisfaz-se mais com a versão do que com a própria verdade, assim revelando-se mais um projeto ideológico do que propriamente um resgate da memória, da cultura e da identidade de um povo.

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Entretanto, para o antropólogo e historiador José Maurício Arruti, “na acepção

antropológica, ao contrário, os grupos étnicos não são definidos por qualquer

conteúdo (cultural ou não), mas como unidades sociais que emergem de

mecanismos sociais de diferenciação estrutural entre grupos”.

O juiz que proferiu a decisão referida, ainda, fez alusão ao antropólogo

Eduardo Viveiros de Castro, transmitindo a ideia de que havia falsos índios na

demanda da ação, pessoas querendo se tornar índio. Percebe-se, contudo, uma

interpretação equivocada ao texto de Viveiros de Castro, tendo este, inclusive, se

manifestado, repudiando o uso distorcido de seu pensamento pelo juiz. O MPF se

manifestou em sede recursal:

Cumpre-nos repisar: foi justamente a Constituição Federal de 1988 que retirou da invisibilidade (do ponto de vista de proteção normativa) as centenas de etnias indígenas que habitam as terras brasileiras. Só a partir da atual Carta Magna que povos indígenas, que antes eram compelidos a se esconderem e omitirem suas identidades, levantaram-se e buscaram resgatar seus traços identitários. Vale frisar, a propósito, que os dispositivos constitucionais que estabelecem direitos às populações indígenas não foram fruto de bondade dos legisladores constituintes. Resultaram, a bem da verdade, de um intenso e constante processo de luta dessas populações em busca do reconhecimento de seus direitos que vinham sendo brutalmente sonegados. É nesse contexto que os povos Borari e Arapium, muito embora estejam habitando a área da TI Maró há séculos (conforme fartamente demonstrado acima e nas provas carreadas aos autos), somente buscaram empunhar a bandeira de suas identidades indígenas. Assim, neste momento, não houve conversão de ribeirinhos em indígenas, como quer fazer crer o juiz prolator da sentença. O que houve, repita-se, foi um legítimo processo de reavivamento de uma identidade coletiva específica, sempre existente, mas que dormitava face os constantes processos de opressão e sonegação de direitos.

Como fala Viveiros de Castro, parece que somente é aceito deixar de ser

índio e se tornar índio seria uma contradição. Afinal, como se resolve isso? O

antropólogo fala que os índios podem ter comportamento diferente daquele

originário do seu próprio fundo cultural, porque às vezes este se perdeu de alguma

forma. O que cabe aos antropólogos é “criar condições teóricas e políticas para

permitir que as comunidades interessadas articulem sua indianidade” (CASTRO,

2006).

Portanto, a questão do reconhecimento do índio não é simples a ponto de

somar alguns conceitos e definir quem é e quem não é. Dizer que todo mundo é

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índio, exceto quem não é, é afirmar que não se definirá quem é índio, mas sim quem

não é, afinal deveria ser orgulho pátrio mostrar que as comunidades indígenas

existem e estão sendo devidamente protegidas, dentro e fora do território nacional.

No entanto, o que se percebe é a falta de ambos, do orgulho de mostrar que eles

existem e da proteção fundamental que lhes não é assegurada.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cultura dos povos indígenas está intrinsecamente ligada à terra, por isso a

existência desses povos depende do contato com ela, vez que é onde suas vidas se

desenvolvem tanto no aspecto espiritual quando físico.

A demarcação de terras é um direito indígena positivado na Constituição

Federal que vem sendo veementemente violado de diversas formas. O

procedimento do reconhecimento das terras é bastante demorado e é acrescido da

demora processual quando o caso se torna conflituoso e chega ao Poder Judiciário.

Vários são os problemas enfrentados diante dos casos levados até o

Judiciário, como a alegação da não originariedade das terras, ou seja, por não terem

estado naquele determinado lugar desde sempre, não configuraria área como

território indígena. Entretanto, não é válido esse argumento pois se sabe que

inúmeras vezes os índios foram forçosamente retirados de suas terras e, além disso,

o que caracteriza a terra como indígena é a própria comunidade que se garante

como indígena e não a mera originariedade do território.

Outro ponto conteste levado ao Judiciário é o de que a comunidade

reivindicante de terras não é mais indígena. Se a comunidade não for reconhecida

como indígena, então não há que se falar em demarcação. O Judiciário brasileiro e

aquela parcela contrária ao reconhecimento de território indígena têm

frequentemente levantado essa tese de inexistência de “indianidade”.

Entretanto, essa tese é equivocada, visto que dizer quem é índio não é uma

fórmula dada que deve conter todos os elementos determinados por lei para sua

caracterização. Atualmente, existe uma outra noção de ser índio e é muito mais

difícil do que parece determinar se tal pessoa é ou não é índio.

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Assim, muitas vezes o judiciário carece de certo cuidado quando da análise

do caso, além de, por vezes, haver despreparo e falta de conhecimento ao se

pensar a questão indígena. Portanto, percebe-se que analisar quem é índio e quem

não é se mostra um exercício não apenas de soma de critérios pré-estabelecidos em

lei, mas de inclusão que visa assegurar a sobrevivência daqueles que são, sim,

índios.

REFERÊNCIAS

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A SUPREMACIA DO ESTADO NOS DOMÍNIOS DE FAMÍLIA VERSUS A

ONIPOTÊNCIA DOS QUE ASSUMEM O PODER DE DIREÇÃO FAMILIAR

STATE SUPREMACY IN FAMILY DOMAINS VERSUS OMNIPOTENCE OF THOSE

WHO TAKE ON THE POWER OF FAMILY LEADERSHIP

Maria Eduarda Barletta Doria Guimarães113

Luiz Gustavo de Andrade114

SUMÁRIO

1 Introdução; 2. Direitos fundamentais e princípios constitucionais; 3. Colisão entre preceitos constitucionais e a resolução de conflitos: o método da ponderação de bens; 4. O direito das famílias após a Constituição de 1988; 4.1 Do pátrio poder ao poder familiar; 4.2. Colisão entre princípios: livre planejamento familiar versus o melhor interesse da criança; 5. O ponto de equilíbrio entre preceitos constitucionais no seio familiar; 6. Considerações Finais; 7. Referências.

RESUMO

O presente trabalho analisa, sob o enfoque constitucional, as questões inerentes à intervenção do Estado nos domínios de família e os limites de sua atuação, revelando verdadeira contraposição entre os interesses público e privado. De um lado, a insurgência estatal se mostra necessária, por meio das chamadas liberdades positivas, para coibir eventuais abusos por parte dos particulares nas relações privadas, mais precisamente no que toca às crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade perante os pais. De outro, o respeito à autonomia, intimidade e liberdade do indivíduo de conduzir as questões particulares que condizem à vida privada sem a interferência estatal, tal como as relações familiares, de igual modo mostra-se imperioso. Nesse sentido, o objetivo principal do presente trabalho volta-se a buscar o meio adequado para encontrar o ponto de equilíbrio entre a supremacia estatal versus a onipotência do particular, em especial no que se refere ao exercício da autoridade parental por intermédio do poder familiar, sendo necessária a utilização do método de ponderação dos bens jurídicos e princípios constitucionais que entram em conflito em determinado caso concreto. Palavras-chave: interesse público; interesse privado; direitos e princípios fundamentais; direito das famílias, da criança e do adolescente; colisão; solução de conflitos.

113 Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). 114 Advogado. Mestre em Direito. Professor da Graduação e da Pós-Graduação do curso de Direito Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).

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ABSTRACT

This paper analyzes, under a constitutional approach, the issues related to State intervention in family domains and its limits of action, revealing true opposition between public and private interests. On one hand, the State insurgency shows itself necessary, through the so-called positive liberties, to restrain possible abuse by individuals in private relationships, more precisely regarding children and adolescents in vulnerable situations towards their parents. On the other side, the respect for autonomy, privacy and freedom of the individual to conduct one’s personal matters that matches to privacy without State interference, such as family relationships, likewise shown to be imperious. In this sense, the main objective of this paper aims to seek suitable means to find the balance between state supremacy and the omnipotence of the private party, especially as regarding the exercise of parental authority through family power. Therefore, it is demonstrated that, once it comes to the collision of fundamental principles that underlie the rules of law, the use of balancing method for constitutionally guaranteed legal interests is necessary ensured that, perchance, conflict in a particular case may occur. Thus, through reasonableness and proportionality there will be found the most adequate solution to the specific case in analysis.

Keywords: public interest; private interest; fundamental rights and principles; families, children and adolescents rights; collision; conflict resolution.

1 INTRODUÇÃO

As questões sociais, culturais e, em reflexo, jurídicas atinentes à família

sofreram importantes e decisivas transformações ao longo do tempo, em especial

após o advento da Constituição Federal de 1988.

Ao trazer em seu bojo um vasto número de direitos e princípios fundamentais

para que a harmonia e o respeito sejam o norte das relações interpessoais, o

diploma constitucional passou a reservar uma verdadeira valorização à dignidade da

pessoa humana, identidade do atual Estado Democrático de Direito, que culminou

com a chamada repersonificação do direito das famílias.

Dentre as mudanças mais significativas, tem-se a ascensão da mulher e seu

devido reconhecimento como sujeito de direitos em nível de igualdade com os

homens, garantindo-lhe posições favoráveis a exercer sua cidadania e a lutar pelos

seus interesses.

De outro vértice, trouxe, aos filhos, o prestígio de serem olhados como seres

humanos a quem o Estado e a sociedade devem a devida atenção e proteção

especial e prioritária, na medida em que se encontram em situação de

desenvolvimento, crescimento e formação.

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Com efeito, tais prerrogativas ensejaram a transformação do antigo pátrio

poder para o atual poder familiar, cuja natureza revela um poder e um dever

recíprocos que possuem, como destinatários, os pais. Assim, ao mesmo tempo em

que lhes é conferido o poder de exercer a autoridade parental, esta se condiciona ao

atendimento do melhor interesse dos filhos, em razão de ser assegurado, a estes,

especial e prioritária importância.

Por consequência, o próprio poder familiar revela a dicotomia entre, de um

lado, o interesse privado e particular dos pais de dirigir a educação que lhes convier

aos seus filhos, sob a premissa de que lhes é assegurada a intimidade, liberdade e

autonomia de conduzir as relações privadas e, de outro, a necessidade da

observância ao melhor interesse da criança, o que, por sua vez, enseja a atuação

estatal quando necessária a coibir eventuais abusos.

A grande questão envolvendo estes conceitos, analisada por este trabalho,

diz respeito aos limites da intervenção estatal na vida privada e, ainda, em quais

situações, de fato, se mostra pertinente e necessária, o que, no caso concreto, pode

revelar-se bastante controversa.

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Os direitos fundamentais representam uma grande conquista da sociedade e

são indispensáveis à manutenção de uma vida digna sob a égide de uma

democracia, uma vez que, segundo a definição de José Afonso da Silva, versam

sobre situações jurídicas “sem as quais a pessoa humana não se realiza, não

convive e, às vezes, nem sobrevive” (SILVA, 2005, p. 178).

Desde o seu reconhecimento nas Constituições, os direitos fundamentais

passaram por diversas modificações quanto ao seu conteúdo, à sua titularidade,

eficácia e efetivação, razão pela qual a doutrina costuma dividi-los em três

dimensões, entre si complementares.

A primeira delas foi originada pelos ditames do pensamento liberal-burguês

vigente na Idade Média, eis que os direitos foram identificados como sendo de

defesa e apresentados como direitos de cunho negativo, tal como o direito à vida, à

liberdade individual e coletiva, como as liberdades de expressão, imprensa,

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manifestação, reunião e associação, bem como à propriedade e à igualdade formal,

tal como assevera Gilmar Mendes (MENDES; BRANCO, 2013, p. 157).

A ideia de “defesa” está atrelada ao interesse do homem, individualmente

considerado, de se proteger da insurgência arbitrária e abusiva do Estado,

preservando o exercício da sua autonomia para conduzir questões particulares e,

assim, ensejando verdadeira abstenção – ou limitação – do poder estatal na esfera

privada.

No entanto, se de um lado foram impostos limites ao poder estatal, o mesmo

não se mostrava presente sob a perspectiva horizontal – nas relações de indivíduo

para indivíduo. O exercício indiscriminado e arbitrário do poder pelo próprio

particular tornava vulnerável quem ocupasse posição mais frágil, tornando-se um

mecanismo inaugurador das mais diversas opressões.

No momento em que se viu necessária a instauração de medidas que

promovessem um equilíbrio satisfatório às relações, surge a segunda dimensão dos

direitos fundamentais a partir das chamadas liberdades positivas. Por meio destas,

buscou-se pôr fim ou, ao menos, mitigar a disparidade e o desequilíbrio social que

impunha, às categorias sociais em vulnerabilidade, sua submissão.

Diante da necessidade de olhar para os indivíduos como sendo pertencentes

à determinada coletividade, através da qual convivem e se relacionam socialmente

com outras pessoas, continuou lhes sendo garantido o desfrute de direitos

subjetivos, conquanto sob a condição de que estes não infrinjam, por si, os direitos

de outrem. A partir de então, a ideia egoística central do ser humano como ser único

e intocável passou a ser mitigada.

Como marco do segundo período pós-guerra do século XX, a liberdade que

antes era manifestada e mantida apenas formalmente, sob os ditames da lei, passou

a assim ser concebida em aspecto material, porquanto foi conferido ao cidadão o

direito de exigir do Estado a prestação social necessária a salvaguardar direitos

relativos à saúde, educação e ao trabalho, voltando-se à promoção do bem-estar e

justiça social.

O Estado se encarregou, portanto, de criar e oferecer condições materiais

propícias a garantir a igualdade material - ou a chamada isonomia -, proporcionando,

desta forma, o exercício efetivo e a eficácia real da liberdade, sedimentada na

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premissa aristotélica de que os desiguais devem ser tratados de forma desigual, na

medida de sua desigualdade.

Como resultado da personalização e positivação de determinados valores

básicos da sociedade, os direitos fundamentais compõem, ao lado dos princípios

estruturais e organizacionais, o âmago da ordem normativa constitucional. Entre si,

verifica-se uma relação de interdependência, reciprocidade e coexistência, o que,

por sua vez, não afasta a existência de tensões em virtude do vasto pluralismo

existente, gerando, por vezes, conflitos concretos envolvendo interesses opostos.

Por traduzirem diretrizes a serem alcançadas em determinado caso concreto,

os direitos fundamentais são considerados como comandos prima facie (CAMBI,

2011, p. 92), cuja otimização decorre do balanceamento, ou ponderação, dos

direitos contrapostos de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas

apresentadas, estimando a aplicação que se verificar mais adequada.

Para muito além de normas, os direitos fundamentais são princípios de

conteúdo aberto que abrangem as mais diversas situações, valores e finalidades

para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Constituem, assim, os mandamentos nucleares do sistema jurídico, irradiando

seus efeitos sobre diferentes normas, de modo que a carga axiológica neles contida

é tomada como diretriz a ser almejada e, na medida do possível, alcançada, por

intermédio da atuação direta ou indireta do Estado na promoção dos valores da

sociedade que neles encontram-se implícitos.

3 COLISÃO ENTRE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS E A RESOLUÇÃO DE

CONFLITOS: O MÉTODO DA PONDERAÇÃO DE BENS

O pluralismo social e ideológico notório e característico da sociedade

brasileira direcionou o processo do constituinte de 1988 para que não se

desenvolvesse sob o prisma do consenso, traduzindo, ao revés, a síntese dialética

de concepções e ideais políticos e sociais diversificados, por vezes antagônicos,

que, ao incidir sobre casos concretos, podem indicar soluções opostas.

Assim, a Constituição Federal atualmente vigente é dotada de elasticidade

material suficiente para acolher ideologias e visões distintas, pelo fato, aliás, de

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possuir normas consideradas abertas, sem, contudo, optar de modo definitivo por

nenhuma delas.

Os princípios são compatíveis entre si no plano abstrato e convivem de forma

harmônica dentro do ordenamento jurídico, em razão do Princípio da Unidade da

Constituição. Entretanto, podem ocupar posições contrapostas no momento de sua

aplicação – e ponderação – no caso concreto.

Quando forem colidentes, um deles se sobreporá em relação ao outro sem,

contudo, excluí-lo ou invalidá-lo do ordenamento jurídico, na medida em que se faz

necessário contrabalancear os bens protegidos para se avaliar e, assim, definir qual

princípio terá maior peso diante da situação específica.

O método da ponderação de bens, então, aparece como alternativa à solução

para esse tipo de conflito, na medida em que potencializa, em alto grau, a ideia da

Constituição aberta, visando a possibilitar o convívio mútuo entre valores e princípios

constitucionais opostos.

Na ponderação de bens, a decisão judicial é tomada por meio de um processo

através do qual são examinadas todas as normas e todos os valores envolvidos na

questão, sendo o objetivo maior do intérprete o de lograr, na medida do possível, a

concordância prática entre eles, de modo que cada um só seja restringido no estrito

limite necessário à garantia dos demais.

Gilmar Mendes assevera que a restrição aos direitos fundamentais deve se

atentar à identificação dos bens jurídicos protegidos e sua amplitude, bem como à

verificação das reservas legais expressamente enunciadas no art. 5°, inciso II do

diploma constitucional, que legitimam a ação restritiva (MENDES, 2013, p. 194).

Evidenciando que há valores cujo peso lhe confere prioridade face aos

demais, dentro do mesmo ordenamento jurídico, destaca-se a sobreposição da

dignidade da pessoa humana, como sendo basilar das relações interpessoais, e do

direito à vida acima de qualquer outro.

No entanto, por todos possuírem importância que não se deve ignorar, a

ponderação dos princípios, no seio de cada caso, será feita em análise às condições

neste estabelecidas bem como das possibilidades fáticas e jurídicas apresentadas.

Inobstante a isso, a legitimidade da decisão deve ser estimada através da

justificação das restrições impostas a cada bem jurídico em confronto, que têm de

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observar o princípio da proporcionalidade ao lado da proteção do núcleo essencial

de cada direito fundamental.

Isso porque, apesar de conferida a discricionariedade ao juiz, sua atuação é

vinculada à observância dos limites que não permitem ceifar, arbitrariamente, o

direito fundamental em jogo. Assim, a discricionariedade não lhe confere poder

despótico para decidir ou tampouco infringir garantias constitucionais previstas e

asseguradas.

Gilmar Mendes avança e dispõe que

Não há duvida de que a ideia de restrição leva, aparentemente, à identificação de duas situações distintas: o direito e a restrição. Se direito fundamental e restrição são duas categorias que se deixam distinguir lógica e juridicamente, então existe, a princípio, um direito não limitado que, com a imposição de restrições, converte-se num direito limitado. Essa teoria, chamada de teoria externa (Aussentheorie), admite que entre a ideia de direito e a ideia de restrição inexiste uma relação necessária. Essa relação seria estabelecida pela necessidade de compatibilização concreta entre os diversos tipos de direitos fundamentais (MENDES, 2013, p.197-198).

Portanto, para a resolução de qualquer controvérsia envolvendo valores

constitucionais, necessária a compreensão acerca dos direitos fundamentais

indubitavelmente como sendo princípios.

Imaginando-se uma situação na qual há a recusa pelos responsáveis, cujo

credo lhes qualifica como Testemunhos de Jeová, de proceder-se à transfusão de

sangue para fins de salvar a vida de sua filha ainda criança, dois direitos

fundamentais são colocados em jogo: o direito à vida e à liberdade de crença.

Diante desta circunstância, deverá o aplicador ponderar os valores imprimidos

e, assim, resolver o caso de modo a otimizar os benefícios e reduzir, o quanto

possível, os prejuízos que por ventura sejam causados pela violação do direito

fundamental.

4 O DIREITO DAS FAMÍLIAS APÓS O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Ao longo da história são perceptíveis determinantes mudanças em uma

sociedade que, de tempos em tempos, quebra velhos paradigmas não mais

convenientes às concepções que vão se atualizando e, assim, faz com que

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gradativamente novos ideais, valores e pensamentos ganhem força dentro de um

determinado espaço.

Toda a trajetória percorrida pela sociedade acaba refletindo e transmitindo,

para o Direito, a necessidade de adaptações, alterações ou ajustes, para que os

interesses mais atuais sejam consagrados e assegurados por intermédio do

ordenamento jurídico.

Com efeito, o contexto histórico, antigo ou atual, inevitavelmente está

associado às mudanças que ocorrem dentro do ínterim familiar, vez que a família é o

primeiro ambiente socializador do ser humano, no qual são ensinados os primeiros

valores, regras e comportamentos que cada indivíduo internaliza à essência pessoal

e transmite, aos outros, quando se relaciona no mundo externo.

De modo simétrico, a atual Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226,

reconhece a importância da família ao afirmar ser, esta, a base da sociedade e, por

tal razão, merecedora de especial proteção por parte do Estado.

Nas palavras de Ana Carolina Brochado Teixeira:

É no seio da família que são travadas as relações mais íntimas e relevantes da vida da pessoa. É nesse âmbito que se reproduzem ideologias, transmitem-se normas, os valores dominantes que fundamentam as relações sociais, que justificam as relações humanas e a ordem social num determinado contexto histórico. É no interior da família que se reproduz a primeira organização social, onde se aprende valores como respeito, integridade e todas as regras de convivência. É nesse âmbito mais privado que as pessoas travam as primeiras experiências da vida pública, da coexistência, da cidadania, da inclusão ou da exclusão, dos conflitos, dos erros e dos acertos (TEIXEIRA, 2005. p. 12).

Característico do Estado Social, que intervém em setores da vida privada

como forma de proteger o cidadão, o direito civil se constitucionalizou e afastou-se,

por consequência, de uma concepção individualista e eletista para tratar das

relações interpessoais, resultando na chamada repersonificação do direito das

famílias.

Com efeito, qualquer norma jurídica exige a presença de fundamento de

validade constitucional e, em especial quando se fala em crianças e adolescentes,

do princípio do seu melhor interesse sob o prisma da doutrina da proteção integral.

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Em virtude, portanto, da enorme importância da família para a sociedade como um

todo, a Constituição de 1988 trouxe para o Direito uma essência firmada na

dignidade da pessoa humana, princípio da onde decorrem diversas, senão todas, as

questões inerentes às relações sociais e interpessoais, bem como o rompimento

com os ideais religiosos que, em peso, influenciavam as questões envolvendo a

família:

A ideia de família, para o Direito brasileiro, sempre foi a de que ela é constituída de pais e filhos unidos a partir de um casamento regulado e regulamentado pelo Estado. Com a Constituição de 1988 esse conceito ampliou-se, uma vez que o Estado passou a reconhecer “como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Isso significa uma evolução no conceito de família. Até então, a expressão da lei jurídica só reconhecia aquela entidade constituída pelo casamento. Em outras palavras, o conceito de família se abriu, indo em direção a um conceito mais real, impulsionado pela própria realidade (CUNHA, 2012, p. 3).

Nesse sentido, destaca-se o contido no julgamento do REsp 1.183.378/RS, de

relatoria do Senhor Ministro Luiz Felipe Salomão, referente à quebra do antigo

paradigma que apenas com o casamento que se poderia constituir uma família:

DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ E DA ADI N. 4.277/DF. (...) 3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamada “família”, recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. (BRASIL, STJ, REsp 1.183.378/RS)

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Considerando que é fruto de uma construção cultural que se adapta e se

transforma ao longo do tempo, a família ganhou destaque no diploma constitucional

e tratamento diferenciado daquele contemplado em legislações anteriores,

conferindo espaço a todos os integrantes que a compõem, respeitando-se suas

peculiaridades e priorizando, acima de tudo, o afeto e a solidariedade existente entre

seus componentes.

Em síntese, houve nítida ruptura das duas premissas básicas que

sustentavam a família modelo do Código Civil de 1916: a patrimonialização e a

matrimonialização das relações familiares. Porém, as mudanças no seio da família

são perceptíveis das mais variadas formas.

Como consequência da luta histórica inaugurada pelo feminismo, a mulher

passou a ocupar lugar de destaque dentro do ordenamento jurídico, fazendo romper

a ideologia patriarcal que anteriormente era predominante.

De outro vértice, os filhos passaram a ser vistos com maior complacência,

dignidade e também foram colocados em posição de equidade. Em destaque, houve

a disseminação da igualdade perante os filhos havidos de relações conjugais e

extraconjugais (“legítimos e ilegítimos”) reconhecendo que, acima de tudo, a razão

de serem filhos é suficiente para reconhecer que são merecedores de respeito e

proteção independente da sua origem.

Merece destaque, ainda, a transformação da antiga figura paterna,

anteriormente vista como “chefe”, provedor da família sem qualquer vínculo afetivo

com o filho, à postura ativa, dos pais, na educação e participação na vida da prole.

Leciona Rodrigo da Cunha Pereira:

A relação do filho com o pai, por uma questão cultural advinda da ideologia patriarcal, sempre foi marcada, como já se disse, por uma ausência no aspecto afetivo, assim considerada em relação à mãe. Partindo da ideia de que o pai tem a função e autoridade, de ser a “lei”, e que muitos cuidados com a criança é função materna, criaram-se mitos em torno das funções de paternidade e maternidade. Por exemplo, até que se introduzisse a concepção e legislação sobre guarda compartilhada, em uma separação de casais, em geral os filhos ficavam com a mãe. O pai raramente reivindicava a guarda dos filhos. Mesmo quando a reivindicavam, dificilmente lhes era concedida. Judicialmente, a recusa se explica por serem os juízes também inseridos neste contexto da ideologia patriarcal (...). (CUNHA, 2012, p. 134).

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Logo, a estrutura familiar, em muito, sofreu importantes mudanças. O afeto, o

amor e a solidariedade tornaram-se imperativos, com a consagração do respeito e

da proteção a todos os seus componentes no chamado fenômeno da

repersonalização familiar.

Maria Berenice Dias, neste aspecto, leciona que a concepção atual acerca da

estrutura da família instiga a preservar a noção do LAR, entendido como Lugar de

Afeto e Respeito (DIAS, 2015, p. 29).

Outra mudança de extrema importância foi a atenção dada às crianças e

adolescentes, mais precisamente na nova orientação acerca do antigo pátrio poder e

atual poder familiar. De uma prerrogativa dos pais em relação aos filhos, o poder

familiar acabou se tornando um encargo conferido aos pais para promover e

satisfazer o melhor interesse dos filhos.

4.1 DO PÁTRIO PODER AO PODER FAMILIAR

No direito antigo, a estrutura autocrática da família, alicerçada no princípio da

autoridade, constituiu a noção de pátrio poder sob o cerne da figura paterna, em

termos rígidos e severos, notadamente influenciado por crenças religiosas que

atribuíam, ao denominado pater, o poder de comandar, dirigir e controlar todos os

assuntos ligados à família.

Nesse cenário romano, o homem, como sendo o chefe da família, detinha

direito absoluto sobre os filhos e a mulher, cuja extinção se dava apenas nos casos

de morte, elevação do filho a certas dignidades maiores, pela emancipação

voluntária ou pela diminuição da autoridade do pater (VENOSA, 2007, p. 286).

O Código Civil de 1916, por sua vez, numa linha tradicional e conservadora,

atribuiu o pátrio poder ao marido e, em sua falta, à mulher que exercesse a chefia da

sociedade conjugal, em caráter subsidiário e, assim sendo, manifestamente

discriminatório.

O direito passou e continua protagonizando, contudo, enorme transformação a

esse propósito. A ideia predominante é que o poder anteriormente conferido deixou

de ser uma prerrogativa do pai para ceder lugar aos interesses dos filhos, visando a

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protegê-los ao revés de beneficiar quem o exerce, transformando o antigo pátrio

poder no atual poder familiar, o qual passou a ser conferido a ambos os pais.

Como desdobramento do princípio da igualdade, a isonomia que aparece no

artigo 226, § 5° da Constituição de 1988 erradia seus efeitos para a legislação

infraconstitucional, fazendo a previsão, no Estatuto da Criança e do Adolescente, de

que o pátrio poder será exercido igualmente pelo pai e pela mãe até que o filho

atinja a maioridade.

A doutrina da proteção integral indica que os interesses dos filhos

predominam em detrimento dos pais, reconhecendo, desta maneira, a condição de

sujeitos de direitos que a lei lhes atribui. Está-se, portanto, diante de uma nova

estrutura familiar marcada essencialmente pelas responsabilidades dos pais pelos

filhos, pessoas em condições peculiares de desenvolvimento.

Nesse sentido, nasce a figura da paternidade responsável, do dever de

educar para a vida e de propiciar a educação formal esperada, além de criação e

assistência. Sob outra perspectiva, surge o direito fundamental do filho de ser

cuidado, de ter convivência familiar plena, educação e profissionalização,

assistência material e o direito ao afeto.

Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira:

Em face da valorização da pessoa humana em seus mais diversos ambientes, inclusive no núcleo familiar, o objetivo era promover sua realização enquanto tal. Por isso, deve-se preservar, ao máximo, aqueles que se encontram em situação de fragilidade. A criança e o adolescente encontram-se nesta posição por estarem em processo de amadurecimento e formação da personalidade. Assim, têm posição privilegiada na família, de modo que o Direito se viu compelido a criar novas formas viabilizadoras deste intento (PEREIRA, 2006, p. 126).

Assim, de objeto do poder, o filho passou a ser sujeito de direitos. Essa

inversão ensejou modificação no conteúdo do poder familiar, em face do interesse

social que envolve. Não se trata do exercício de uma autoridade indiscriminada, mas

de um encargo imposto por lei aos pais (DIAS, 2015, p. 461).

O poder familiar é trazido como exemplo da noção de poder-função ou direito-

dever, consagradora da teoria funcionalista das regras de direito das famílias: poder

que é exercido pelos genitores, mas que serve ao interesse dos filhos. Tal dicotomia

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atende à prerrogativa, de um lado, da autoridade parental inerente aos pais de dirigir

a educação e criação de seus filhos. Porém, esta mesma autoridade encontra

limitações, na medida em que está condicionada à satisfação do melhor interesse

das crianças e adolescentes.

Em outro aspecto, pode-se considerar um verdadeiro dever imposto pelo

Estado aos pais, com o fito de que estes zelem pelo crescimento, desenvolvimento e

futuro de seus filhos, principalmente no que se refere ao carinho e afeto. Não mais

configura, portanto, um direito subjetivo deste ou uma prerrogativa para exercer a

autoridade arbitrária e ilimitada, em prol de seu único e exclusivo interesse.

O poder familiar, portanto, nada mais é do que a reunião da autoridade

parental com a paternidade responsável, que compreende o conjunto de direitos e

deveres de ordem moral e legal, confiados aos pais como instituição protetora da

menoridade cujo objetivo é lograr o pleno desenvolvimento e a formação integral dos

filhos, seja física, psicológica, moral ou socialmente.

4.2 COLISÃO DE PRINCÍPIOS: LIVRE PLENAJEMENTO FAMILIAR VERSUS O

MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

A autonomia privada diz respeito a um direito subjetivo do particular em

conduzir sua vida e garantir suas próprias vontades, decorrente do antigo

pensamento liberal-burguês.

Traço marcante da prevalência da autonomia da vontade nas relações

familiares veio com o advento da Emenda Constitucional n° 66/2010, através da qual

foram retirados o requisito temporal e a previsão de culpa para a concessão do

divórcio.

Foi dado grande passo à consagração da liberdade pessoal e da autonomia

privada, corroborando a ideia de que o indivíduo é um ser dotado de capacidade e

discernimento para, em regra, fazer suas próprias escolhas, independente da

vontade ou de posicionamentos ideológicos contrapostos.

Desta premissa nasce o princípio do livre planejamento familiar, insculpido no

artigo 226, § 7° da Constituição de 1988. Nas palavras de Arnaldo Rizzardo:

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Não se tolera a ingerência de estranhos – quer de pessoas privadas ou do Estado -, para decidir ou impor no modo de vida, nas atividades, no tipo de trabalho e de cultura que decidiu adotar a família. Repugna admitir interferências externas nas posturas, nos hábitos, no trabalho, no modo de ser ou de se portar, desde que não atingidos interesses e direitos de terceiros”. (...) Dentro do âmbito da autonomia, inclui-se o planejamento familiar, pelo qual aos pais compete decidir quanto à prole, não havendo limitação à natalidade, embora a falta de condições

materiais e mesmo pessoal dos pais (RIZZARDO, 2006, p. 15 e 16).

O planejamento familiar é tido como promocional, voltado a assegurar a

tomada de decisões, por parte do particular, a respeito da direção da família.

Ademais, é orientado por ações preventivas e educativas por garantia de acesso

igualitário a informações, meios e técnicas disponíveis para a regulação inclusive da

fecundidade, a qual se trata de questão de ordem privativa e pessoal.

Contudo, ao mesmo tempo em que é conferida ao particular a prerrogativa de

construir sua família e servir a sua vida privada como bem lhe convir, o titular do

direito deve se prestar, também, a atender a função do direito que atende ao

interesse de outro, como ocorre no caso do exercício do poder familiar que, de um

lado, é conferido aos pais, porém é exercido em prol do melhor interesse dos filhos

em desenvolvimento (DIAS, 2015, p. 461).

Em função do próprio fundamento e pelo fato de, na história, ter representado

uma fonte de poder para as mais diversas opressões, a liberdade e autonomia

individuais passaram a ser mitigadas, encontrando os mais variados limites impostos

pela supremacia estatal – destinada à observância do interesse público em

detrimento do privado.

Seus reflexos, nesse sentido, igualmente são percebidos no direito das

famílias, em virtude do chamado fenômeno da funcionalização dos institutos

jurídicos à luz dos valores constitucionais. A lição de Pietro Perlingieri é clara:

A autonomia privada não é um valor em si e, sobretudo, não representa um princípio subtraído ao controle de sua correspondência e funcionalização ao sistema das normas constitucionais. Também o poder de autonomia, nas suas heterogêneas manifestações, é submetido aos juízos de ilicitude e de valor, através dos quais se determina a compatibilidade entre ato e atividade de um lado, e o ordenamento jurídico globalmente considerado, de outro (PERLINGIERI, 2007, p. 277).

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Nesse contexto, o poder familiar, por si, acaba se revelando como uma via de

mão dupla. Ao mesmo tempo em que exprime ser um “poder” conferido aos pais,

inerente à autoridade parental que lhes é própria, vincula seu exercício ao

atendimento do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio basilar do

direito infanto-juvenil.

A recaracterização da figura do poder familiar enseja um debate acerca da

autonomia da autoridade dos pais sobre os filhos em detrimento dos limites

impostos, em razão da especial proteção conferida às crianças e aos adolescentes.

Nesse ponto, surgem diversos questionamentos que, inclusive, ensejaram a

discussão acerca da chamada “crise da autoridade parental” (TEIXEIRA, 2005), uma

vez que a autonomia privada dos pais é restringida pelo poder estatal.

De fato, é a partir da autoridade que são fixados limites dos quais decorre o

reconhecimento do respeito dos filhos em relação aos pais, simplesmente pela

ascendência dos mesmos. O exercício da paternidade e da maternidade pressupõe

muita dedicação e luta, tratando-se de uma atividade vitalícia para os pais que irão

se realizar diante da felicidade e das conquistas de seus filhos.

Segundo Katia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel, no seu Curso de Direito

da Criança e do Adolescente:

Educar significa orientar a criança, desenvolvendo sua personalidade, aptidões e capacidade, conceder instrução básica ou elementar, ensino em seus graus subsequentes, incluindo a orientação espiritual, tudo dentro do padrão da condição socioeconômica dos pais (...) Como extensão do dever de educar, aos pais compete, quanto à pessoa dos filhos menores, exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. (...) Acopladas à educação formal estão a correição e a disciplina que significam impor limites necessários à boa convivência familiar e social (MACIEL et al., 2010, p.

114).

Desde o princípio, pais são modelos aos filhos. Transmitem ensinamentos,

valores e sentimentos que constroem e formam o indivíduo que será independente

no futuro, o qual, por sua vez, irá repassar os aprendizados que obteve ao longo da

vida às futuras gerações. Trata-se, assim, da essencial função da família na vida de

cada pessoa e, em sentido amplo, para toda a sociedade que, indubitavelmente, é

formada justamente por cada um destes indivíduos.

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Não se olvida que na tarefa de educar, aqui entendida em lato sensu, são

impostos alguns comandos e limites a serem respeitados e realizados mesmo se

forem contra a vontade precípua e imediata do menor, mas que, no geral e a longo

prazo, vão de encontro com seu interesse.

Por tal razão, o princípio do livre planejamento familiar autoriza os pais a

dirigir a educação – aqui entendida em sentido amplo – que bem lhes aprouver em

relação aos filhos, sem que o Estado determine como deve esta ser feita.

A criação e a formação pessoal do menor estão umbilicalmente ligadas aos

ensinamentos e aprendizados transmitidos pelos pais, portanto condizente à

educação que estes receberam, servindo como verdadeiro incentivo intelectual para

que as crianças e adolescentes construam sua personalidade, autonomia e sigam

suas escolhas no futuro.

De igual modo, a imposição de disciplina e de “bons modos” está diretamente

associada à punição de condutas reprováveis. É por meio dela que a criança e o

adolescente refletem sobre os limites na relação com o próximo e entende, assim,

que o respeito mútuo é a chave para as relações pessoais e sociais.

Contudo, existem exceções. Diversos foram os casos, com notoriedade

enfatizada inclusive pela mídia, de situações abusivas perpretadas por pais em

relação a seus filhos nos mais elevados níveis de manifesto abuso da autoridade

parental. E é em virtude disto que o poder estatal não deve restar silente, pelo que

prevê hipóteses de suspensão e até mesmo de destituição do poder familiar em

determinados casos, os quais deverão ser minuciosamente analisados pelo Poder

Judiciário.

Com efeito, imprescindível o reconhecimento de que a educação a ser

passada para cada um dos filhos deve respeitar as condições pessoais destes e

atender, sempre, ao princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual são

impostos alguns limites à autoridade parental, sob pena de sanção.

Nas palavras de Ana Carolina Brochado Teixeira:

É possível ter autoridade e ser democrático, simultaneamente. A democracia familiar induz à participação de todos nas decisões, além da valorização de todos os membros daquela comunidade. Ela se perfaz através do diálogo, do atendimento, mas não significa que o desejo de algum participante deva ser sempre atendido. Mediante a reflexão conjunta é que encontrarão a melhor solução, mas sempre com firmeza

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e autenticidade dos pais. É uma necessidade vital da criança que os limites lhe sejam estabelecidos, para que se torne uma pessoa segura e tenha condições de associar liberdade e responsabilidade. Se ela sempre pode tudo, crescerá julgando que seu espaço é infinito, desconhecendo o fenômeno da coexistência, pois acreditará que todos vivem para servi-la (TEIXEIRA, 2005, p. 153).

Atualmente, considera-se o menor como sendo o verdadeiro protagonista do

seu processo educacional, eis que previstos controles de conduta dos genitores com

a finalidade de coibir eventuais abusos inaceitáveis que atentem à dignidade

humana.

No entanto, por mais que as crianças e os adolescentes sejam, de fato, o

“futuro” e, por tal razão, seja conferida importante e especial proteção aos seus

interesses que, por vezes, vão a desencontro das vontades dos pais, necessário o

uso da proporcionalidade e da razoabilidade nas questões que envolverem

interesses controvertidos.

A razão de os menores receberem, exatamente, esta proteção se dá pelo fato

de não possuírem o discernimento necessário para fazer suas escolhas de modo

independente e plausível, tarefa que compete, portanto, aos pais.

Assim sendo, pela própria razão de ser, não se valoriza o interesse pessoal e

único dos menores de modo absoluto e unilateral, eis que não detêm a maturidade

que se espera na tomada de decisões importantes, cujo reflexo se mostra presente

nos mais diversos domínios da vida.

5 O PONTO DE EQUILÍBRIO NO CONFLITO ENTRE PRECEITOS

CONSTITUCIONAIS DENTRO DO SEIO FAMILIAR

Quando se fala em equilíbrio, estritamente estão conexas a ele as noções de

proporcionalidade e a razoabilidade. Como anteriormente mencionado, os direitos

fundamentais são, nada mais nada menos, que a manifestação de princípios que

compõem a sociedade e lhes atribuem conteúdo solidário.

Diante do conteúdo abrangente das normas principiológicas que preveem os

direitos fundamentais e a amplitude argumentativa que deste pode surgir, necessário

encontrar uma forma alternativa de interpretação que possa resolver essas

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situações difíceis, contrabalanceando interesses opostos e limitando ao máximo a

restrição ao direito fundamental que se afigure necessária.

De fato, o ordenamento jurídico é um sistema formado por um conjunto de

normas – sejam elas constitucionais, ou não – que tratam das mais variadas

situações, descrevem as mais diversas condutas e abstenções e se organizam, de

todo, num imenso e organizado sistema normativo.

Surge, no entanto, a indagação: seria possível universalizar princípios? Vale

lembrar que o conteúdo dos princípios é sempre observado em determinado

contexto, seja este temporal ou cultural, o que leva a crer que, em matéria de

conteúdo aplicável, impossível a sua universalização.

Ante esta impossibilidade, imperioso estabelecer critérios capazes de

solucionar os choques de princípios, os quais ocorrem no plano da sua aplicação,

quando não mais se mostram como abstratos e abrangentes.

Em outras palavras, isso ocorre em razão de cada princípio poder levar a uma

solução diferente ao caso em específico, de modo que se faz necessário escolher

um deles para ser aplicado ou em que medida deve-se aplicar cada um. Nesse

aspecto, a técnica da ponderação surge para, diante da controvérsia entre direitos

fundamentais conflitantes, estabelecer qual deve prevalecer em determinada

situação.

O julgamento, perante o Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial

Cível distribuído sob o número 984.803, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi,

envolvendo discussão acerca do conflito entre os direitos fundamentais de liberdade

de expressão e o direito à honra, assim destacou:

a solução deste conflito não se dá pela negação de quaisquer desses direitos. Ao contrário, cabe ao legislador e ao aplicador da lei buscar o ponto de equilíbrio onde os dois princípios mencionados possam conviver, exercendo verdadeira função harmonizadora (BRASIL, STJ, REsp.n° 984.803 – ES (2007/0209936-1).

Cumpre mencionar, ainda, que a doutrina diferencia a colisão entre direitos no

sentido estrito e no sentido amplo. As colisões em sentido estrito referem-se apenas

entre direitos fundamentais, idênticos ou diferentes, ao passo que, em sentido

amplo, envolvem não apenas direitos fundamentais como também outros princípios

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e valores que tenham por escopo a proteção de interesses da comunidade

(MENDES, 2013, p. 236).

O direito fundamental à intimidade está consagrado no artigo 5°, inciso X, da

Constituição Federal, o qual garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada,

honra e imagem das pessoas, sendo-lhes assegurado o correlato direito à

indenização pelo dano moral ou material, decorrente da violação de tais bens

jurídicos.

Esculpido sob a premissa de não intervenção estatal, mencionado dispositivo

está ligado à ideia de que a intervenção do Estado na vida privada deve ser, de

todo, subsidiária. Ou seja: quando afigurar necessária a atender o interesse público

maior e imperativo da sociedade atual

No que se refere à intimidade das crianças e adolescentes, o Estatuto da

Criança e do Adolescente prevê expressamente, em seu artigo 17, o direito

fundamental ao respeito, que tem interferência direta no direito à intimidade, pois

especifica sua extensão à preservação da sua imagem, identidade, autonomia,

valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Para que um equilíbrio seja alcançado na relação conflituosa entre o livre

planejamento familiar e a autonomia dos pais na educação dos filhos e, de outro, o

direito à intimidade e à proteção – e prevalência - do melhor interesse da criança e

do adolescente, necessário haver a ponderação, no caso concreto, dos princípios

em detrimento das circunstâncias a ele específicas.

Muito embora se defenda que não há hierarquia entre os princípios ou direitos

fundamentais, é notória a sobreposição do preceito da dignidade da pessoa

humana, eis que balizador de todas as demais disposições constitucionais. Assim

como o direito à vida, que tem prevalência face aos demais, porquanto se trata de

pressuposto indispensável ao exercício dos demais direitos fundamentais previstos.

Portanto, imperioso considerar que, de fato, pode-se mensurar a importância

e a imprescindibilidade de certos direitos fundamentais frente a outros, em razão da

importância ou da predominância que possuem em determinadas situações

concretas.

Nesse sentido, estabelecer uma hierarquização entre os direitos fundamentais

não se mostra incisivo à ideologia constitucional sistemática por trás envolvida, sob

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a condição de não seja rigorosa em demasiado ao ponto de destituir toda a natureza

complementar e congruente dos direitos fundamentais que, de fato, nutre o Princípio

da Unidade da Constituição (MENDES, 2013, p. 240.).

A previsão de expressa restrição legal não contém um juízo desvalorativo e

enfraquecido de determinado direito, porém traduz a ideia de que é necessária para

a compatibilização com outros direitos ou valores constitucionalmente relevantes.

Assim, a ponderação dos valores e bens jurídicos em jogo, com a respectiva

opção por um em prevalência, no fundo, acaba por criar ficta hierarquização entre os

princípios conflitantes, a qual, por sua vez, é relativa e condizente a determinado

caso concreto.

Atingir o equilíbrio, portanto, nada mais é do que utilizar da racionalidade para

otimizar o bem jurídico que merece prevalecer ao mesmo tempo em que, para tanto,

restringe o outro direito fundamental da estrita medida de sua necessidade, em prol

do interesse maior e predominante.

Isso, por sua vez, só se torna possível em análise do caso concreto. A

resposta não será alcançada através de uma fórmula definitiva e previamente

estipulada. Quando se trata de princípios constitucionais igualmente assegurados,

fala-se, por consequência, em diretrizes que devem ser manejadas e, acima de tudo,

objetivadas no momento de sua aplicação.

As garantias constitucionais foram resultado de muita luta, histórica e social,

pelos cidadãos das mais variadas épocas. Por tal razão, devem ser respeitadas e

restringidas somente na estreita medida do necessário, com o fito de preservar o

bem maior que envolve o conjunto de princípios do ordenamento jurídico: o respeito

ao próximo e à dignidade da pessoa humana.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A família é o núcleo primário da sociedade que vem passando por constantes

transformações, num transcurso em que tudo se altera: as idades, as circunstâncias,

as capacidades, direitos e deveres. Alguns indivíduos adaptam-se a tais

transformações e levam suas vidas numa convivência familiar permanentemente

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solidária, na qual os adultos fortes acodem os mais frágeis, os menores e os demais

incapazes.

Nesta solidariedade, ainda, deve estar patente a gratidão pelo anteriormente

recebido, importando no desprendimento de cada um para o recíproco e permanente

suprimento das necessidades dos familiares que se alternarão na variação cíclica do

tempo que faz nascer, viver, envelhecer e morrer.

Nesse ritmo os indivíduos deverão seguir provendo suas carências cognitivas

e afetivas, e ao tornarem-se pais e mães, o apelo natural os compelirá a trabalhar

para a segurança da família que constituirão, tentando proporcionar um melhor

futuro para os seus filhos.

Não obstante, existem as exceções. As violações do dever moral/natural dos

pais de prestar assistência afetiva, material e escolar aos filhos, por tratarem de

comportamento reprovável pela sociedade, já foram definidas pelo direito como

infrações civis, sujeitas à correição e sanção por parte do Estado.

Porém, também se percebe a ingratidão e o desrespeito de alguns filhos com

relação aos pais, ora influenciados pelo bombardeio de informações banalizadoras

do mal que, sorrateiras, invadem as famílias através da televisão e redes sociais,

absorvendo as atenções e padronizando comportamentos.

Diante do reconhecimento de cada um de seus componentes e da necessária

proteção especial – e integral - que passou a ser conferida pela Constituição de

1988 às crianças e adolescentes, por intermédio do exercício do poder-dever

familiar, a intervenção do Estado em questões particulares se mostra legítima e

necessária a preservar valores que vão além da mera prerrogativa pessoal e

individual, os quais buscam a maximização do afeto e a realização pessoal de cada

um dos componentes da família, sempre em respeito ao próximo.

Portanto, inexistente a onipotência dos que assumem o poder de direção

familiar. O novo conteúdo da autoridade parental e, ademais, da nova face do poder-

dever familiar, se presta à realização da personalidade dos entes familiares,

sobretudo da criança e do adolescente.

Entretanto, o exercício do poder familiar não deve ensejar uma prerrogativa

dos filhos para com os pais, de modo que estes não devem ficar adstritos às

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vontades únicas e exclusivas dos filhos e, por seu turno, à mercê dos mesmos. A

autoridade parental deve ser, em seu todo, preservada.

As relações parentais devem girar em torno dos filhos com o fito de lhes

orientar a formar a sua autonomia e a sua personalidade sob a égide de valores e

princípios voltados, sobretudo, à dignidade da pessoa humana e ao respeito ao

próximo. É esta, portanto, a ideologia por trás do artigo 227 da Constituição, que

atribuiu deveres constitucionais de criar, assistir e educar, preservar a liberdade

íntima responsável dos filhos, os reconhecendo, também, como sujeito de direitos.

Em se tratando de direitos que, especialmente, ensejam ponderação e limites

necessários à promoção do equilíbrio entre os preceitos constitucionais de

autonomia da vontade e promoção do interesse público, quando entram em conflito,

imperiosa a ponderação, de um lado, do interesse dos pais em educar, de forma

livre, os seus filhos, sem temer eventuais sanções em caso de descumprimento da

lei. De outro, a garantia de que as crianças e os adolescentes irão crescer, aprender

e formar suas convicções pessoais a partir da premissa de que devem viver

dignamente.

A intervenção estatal, assim, se mostra legítima quando voltada a coibir os

abusos que, infelizmente, se mostram presentes em uma sociedade egoísta que,

sobretudo, quando se depara com o mínimo de poder que lhe é conferido, mostra

que não é dotada do discernimento necessário para utilizá-lo de forma razoável e

ponderada.

A partir de então, a busca pelo equilíbrio nas relações que são levadas ao extremo

deve partir do Estado, o qual, na busca pela tutela de ambos os interesses e direitos

em jogo, deve se pautar pela ponderação dos princípios constitucionalmente

assegurados, sob pena de afronta, inclusive, ao princípio da legalidade,

configurando verdadeiro abuso do poder.

Por tal razão, necessário não apenas o reconhecimento de que, sim, os filhos

merecem a devida atenção e respeito especial, mas, com a mesma ênfase, o

reconhecimento de que os pais possuem importante missão na sua vida.

Seus exemplos lhes tornam modelos a serem seguidos. O jeito que

conduzem a vida, a paternidade (ou maternidade), além da maneira como se

relacionam com o próximo e utilizam o poder que, sim, lhes é conferido, é decisiva

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para a construção da criança no futuro. É dentro da família, afinal, que todos os

indivíduos constroem sua identidade e, a partir daí, apresentam-na para o mundo.

Por isso, o que se vê são valores igualmente indispensáveis à construção de

uma sociedade digna e justa que representam os dois lados de uma mesma moeda,

os quais devem estar presentes, quando possível, em igual peso e medida.

Antes mesmo de o Estado procurar o equilíbrio nas relações familiares,

necessário, sobretudo, que os pais tenham esse pleno discernimento, a fim de evitar

situações degradantes, infelizes e plenamente inaceitáveis na relação com os filhos

– e vice-versa.

Apenas diante da impossibilidade, absoluta, do pressuposto de razoabilidade

é que deve haver a atuação enfática do Estado, coibindo condutas inaceitáveis,

exageradas e que vão a desencontro com toda a ideologia a despeito da dignidade

da pessoa humana que demorou, e muito, para ser reconhecida pelo ordenamento

jurídico.

REFERÊNCIAS

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A (IM)POSSIBILIDADE DE INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO: ANÁLISE

À LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AFETIVIDADE

THE (IM)POSIBILITY TO PAYMENT ABANDONMENT AFFECTIVE:

ASSESSMENT OF THE LIGHT OF THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF

AFFECTIVITY

Michele Louise Vidotto115

Luiz Gustavo de Andrade116

SUMÁRIO

1. Introdução; 2. A constitucionalização do direito de Família; 2.1. Breve histórico da evolução da família no ordenamento jurídico; 3. As lides envolvendo direitos fundamentais e afeto; 3.1. Responsabilidade civil e as ações de indenização por danos morais no direito de família; 4. Indenização por abandono afetivo; 4.1. Argumentos favoráveis à indenização; 4.2. Argumentos desfavoráveis à indenização; 5. Considerações Finais; 6. Referências.

RESUMO

O presente trabalho tem por objeto demonstrar quais são os deveres dos pais para com seus filhos e como o Judiciário brasileiro vem atuando nas causas do Direito de Família tendo como principal foco as causas de indenização por abandono afetivo. Pretende-se demonstrar os principais nortes do Direito de Família utilizados no Judiciário, bem como destacar os argumentos para justificar a possibilidade ou impossibilidade de indenização por abandono afetivo. Com isso, o objetivo aqui é encontrar uma solução cabível para tal impasse a partir das próprias decisões proferidas pelos Tribunais brasileiros. Ainda, o foco do referido trabalho consiste em analisar a aplicação do princípio constitucional da afetividade no Direito, o valor jurídico dado ao afeto e até que ponto pode o Estado interferir na vida dos cidadãos, questionando as possibilidades de aplicação da responsabilidade civil quando se tratar da vida íntima, ou mais que isso, quando se tratar de sentimentos puramente subjetivos. Ao final, concluir-se-á que a indenização por abandono afetivo é inviável tendo em vista todas as conseqüências que dela poderão resultar. Palavras-chave: Direito de família, abandono afetivo, responsabilidade civil e princípio da afetividade.

115 Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). 116 Advogado. Mestre em Direito. Professor da Graduação e da Pós-Graduação do curso de Direito Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).

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ABSTRACT

This paper has the purpose to demonstrate what are the duties of parents to their children and how the Brazilian judiciary has been working on the causes of the family law focusing mainly on the indemnity causes for emotional abandonment. It is intended to demonstrate the main north Family Law used the judiciary as well as highlighting the arguments to justify the possibility or impossibility of compensation for emotional abandonment. Thus, the goal here is to find a reasonable solution to this impasse from own decisions handed down by the Brazilian courts. Furthermore, the focus of this paper is to analyze the implementation of the constitutional principle of affection in the law, the legal value given to affection and to what extent the state can interfere in citizens' lives, questioning the application possibilities of liability in the case the inner life, or more than that in the case of purely subjective feelings. Finally, one concludes that the compensation for emotional abandonment is impossible in view of all the consequences that it may result. Keywords: Family law, affective abandonment, civil responsability and principle of affection.

1 INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil nos casos de abandono afetivo tem gerado muita

polêmica no âmbito jurídico, tornando-se pertinente a análise do tema para

esclarecer os deveres dos pais para com os filhos, conforme artigo 229 da

Constituição Federal e outros, e até que ponto o Direito pode interferir na vida das

pessoas.

Ressalta-se que a importância do tema reside, ainda, na ausência de um

entendimento consolidado no âmbito da jurisprudência, bem como a inexistência de

parâmetros objetivos que delimitem as hipóteses de cabimento nos casos em que a

jurisprudência é favorável à indenização.

Faz-se pertinente a análise do tema com o intuito de tentar chegar aos critérios que

têm sido utilizados para se admitir ou não a responsabilização por abandono afetivo.

Assim, far-se-á primeiramente uma análise sobre as diversas entidades

familiares, bem como os principais princípios que regem o Direito de Família.

Destaca-se que é relevante analisar as espécies de entidades familiares uma vez

que, dependendo de qual seja ela, torna-se mais fácil de, infelizmente, caracterizar o

abando afetivo.

Em sequência, abordar-se-á os direitos fundamentais à honra, intimidade e

vida privada demonstrando as consequências de sua violação. Logo após, o

princípio da afetividade será analisado a partir de aspectos relevantes, além de

análises sobre julgados no qual o afeto se sobrepôs ao vínculo biológico. Será ainda

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demonstrado o valor jurídico do afeto e como a jurisprudência vem se posicionando

acerca disso.

Para a caracterização da indenização por abando afetivo, é necessário

analisar primeiro quais são os critérios para a aplicação da responsabilidade civil e

como ela é aplicada nas causas de Direito de Família. Ainda, é interessante

averiguar quais tipos de causas dão direito a uma indenização que não material no

direito de família uma vez que se trata do ramo mais subjetivo do Direito.

Por fim, serão expostas as razões e argumentações utilizadas pela

jurisprudência para o deferimento da indenização bem como as argumentações nas

quais foram indeferidos tais pedidos, comparando, inclusive, julgados de diversos

tribunais brasileiros sobre o tema.

Desta forma, o presente trabalho busca encontrar soluções cabíveis para tal

tema e ainda refletir quanto à possibilidade de quantificação em pecúnia do afeto,

ponderando quando à eventual intromissão indevida do Judiciário no âmbito familiar.

2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA

O Código Civil de 1916, inspirado no Código Napoleônico, era voltado para o

indivíduo a partir de um caráter patrimonialista, não se importando com a

coletividade ou seus direitos fundamentais. Como bem descreve Gustavo Tepedino

(2004, p.3), o Código Civil era considerado a Constituição do direito privado,

regulando “as relações patrimoniais, resguardando-as contra a ingerência do Poder

Público ou de particulares que dificultassem a circulação de riquezas”

A partir desse organizador das relações privadas, que era o Código Civil, o

Judiciário passou a aplicar as chamadas “leis excepcionais”, denominadas assim por

ir contra a codificação existente. Esta denominação se dá pois, caso essas leis

aplicadas fossem contra os princípios do respectivo código, seriam apenas em

ocasiões excepcionais, uma vez que havia um único regulador das relações

privadas. (TEPEDINO, 2004, p. 4)

No entanto, a aplicação dessas leis passou a ser cada vez mais corriqueira,

deixando de ser excepcionais e tendo o Estado que resolver conflitos não regulados

pelo Código Civil.

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A partir disso, surge uma nova fase para a interpretação do Código Civil,

fazendo com que este deixasse de nortear as relações patrimoniais, e desta

maneira, perdendo sua exclusividade e “tornando-se o direito comum, aplicável aos

negócios jurídicos em geral”. (TEPEDINO, 2005, p. 5)

Com a Constituição, insere-se ao ordenamento jurídico direitos e garantias

fundamentais, devendo ser respeitadas por todos os demais ramos do direito. A

partir dessa inserção, passou a existir uma dependência entre a Constituição e os

outros ramos, e essa dependência denominou-se como constitucionalização do

direito privado. (KAROW, 2012, p. 66)

A Constituição Federal de 1988 trouxe mudanças consideráveis para o direito

de família. Primeiro pela inserção dos princípios, dando prioridade à dignidade da

pessoa humana, igualdade entre outros. Outro ponto considerável foi a criação das

entidades familiares reconhecendo outras espécies para além daquelas existentes.

Deixou-se de se basear nos valores morais e sociais e passou a resguardar os

direitos dos indivíduos que não se enquadravam em tais modelos de família.

(KAROW, p. 69)

Assim, com a Constituição surgem os princípios norteadores de todos os

ramos do direito, bem como os princípios específicos para cada ramo, sendo eles a

base para auxiliar os julgadores na aplicação do direito no caso concreto.

O princípio da dignidade da pessoa humana é a base de todos os demais

princípios. Como bem define Berenice (2013, p. 64), “sua essência é difícil de ser

capturada em palavras, mas incide sobre uma infinidade de situações que

dificilmente se consegue elencar de antemão”. Este princípio visa a resguardar os

direitos fundamentais dos indivíduos, tais como a liberdade, a honra, a intimidade e

a vida privada (GAMA, 2008, p.69), além de limitar a atuação do Estado e auxiliar o

Judiciário na aplicação de um caso concreto. É dever do Estado não apenas coibir

condutas que atentem à dignidade da pessoa humana, como também de promover

condutas positivas que garantam o mínimo existencial as pessoas. (DIAS, 2013, p.

66)

Outro princípio que merece menção é o princípio constitucional da igualdade.

Ressalte-se que, conforme o próprio texto constitucional, todos são iguais perante a

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lei, mas é imprescindível analisar essa igualdade de forma justa, ou seja, sopesar a

desigualdade de alguns para igualá-los ao demais. (DIAS, 2013, p. 67)

Por meio desde princípio tem-se a igualação entre homens e mulheres no que

diz respeito a direitos e deveres, inclusive em relação à união conjugal ou perante os

filhos. É também através deste princípio, que os filhos têm direitos iguais, não

podendo haver discriminação, seja porque filhos de relações extraconjugais, seja por

incompatibilidade de personalidade, conforme explícito no artigo 227 da Carta Maior.

Outro princípio constitucional é o princípio da liberdade, sendo de extrema

relevância para o direito de família, uma vez que possibilita tanto a construção de

uma nova família, quanto a extinção da mesma, além de possibilitar a liberdade dos

indivíduos em relação à reprodução e aos direitos sexuais (MELLO, 1993, p. 75).

Destaca-se que, antigamente, a família era constituída visando à procriação, era

algo imposto pela sociedade. Por meio deste princípio as pessoas têm a liberdade

de escolha, e ao optar pela não reprodução, não sofrem nenhuma oposição do

Estado em relação a isso.

A Constituição traz, além dos princípios gerais, os princípios específicos do

direito de família que buscam auxiliar nas peculiaridades deste ramo. Assim, o

princípio do pluralismo das entidades familiares surgiu para ampliar as modalidades

de família, estando baseado no artigo 226 da Constituição em que se reconhece

expressamente as famílias monoparentais e as uniões estáveis. Este princípio serve

para cobrir as “lacunas” do direito em relação às espécies de famílias tendo em vista

que não está expresso na legislação todos os tipos de famílias possíveis. (GAMA,

2008, p. 84)

Outro princípio norteador do direito de família é o da solidariedade familiar.

Este princípio tem como base a “fraternidade e reciprocidade” (DIAS, 2013, p. 69). É

através deste princípio que se configura, a exemplo dos alimentos, a reciprocidade

de assistência tanto dos pais com relação aos filhos, quanto dos filhos com relação

aos pais quando estes necessitarem. Cabe ainda, a este princípio, a “cooperação

solidária de ambos os pais na formação e no desenvolvimento físico, psíquico e

intelectual do filho em comum” (GAMA, 2008, p. 75) abandonando o caráter

individualista e adotando o caráter solidário.

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Em seguida há um dos princípios mais aplicados no caso concreto, qual seja,

princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Como o próprio nome já

diz, dá-se enorme valor ao interesse da criança e do adolescente, recebendo um

tratamento diferenciado em relação as outras pessoas, inclusive as da família. O

Estado oferece grande proteção à criança, não com o objetivo de inferiorizá-la, mas

sim de resguardá-la objetivando sempre o melhor para ela. A aplicação desse

princípio deve ser dada ao analisar principalmente o cotidiano dessas crianças e

adolescentes, incluindo as próprias relações paterno-materno-filiais, além das

decisões em relação à guarda dos mesmos. (GAMA, 2088, p. 82)

O princípio de maior relevância para o presente trabalho é o princípio da

afetividade. Trata-se de um princípio implícito no ordenamento, porém indispensável

para a devida aplicação neste ramo do direito.

O afeto deriva da convivência familiar, não podendo ser imposto. Assim, a

partir deste princípio passa a existir a igualação entre os filhos biológicos e os

adotivos (DIAS, 2013, p. 73), não podendo mais existir qualquer desigualação entre

eles. Outro ponto que merece destaque é que, em muitos casos, a relação sócio-

afetiva se sobrepõe à biológica. Ressalta-se que o afeto é uma construção cotidiana.

Não se faz do dia para a noite. É necessária uma convivência, um conhecimento,

um relacionamento próximo à pessoa para então existir a relação de afeto. Inviável

seria que o Judiciário desse preferência para as relações biológicas às afetivas, uma

vez que existe este princípio para auxiliar os julgadores.

2.1 BREVE HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA NO ORDENAMENTO

JURÍDICO

Antigamente, família era definida pelo modelo patriarcal, em que havia a

figura do pater famílias, sendo sempre a autoridade da família os ascendentes mais

velhos. (GAMA, 2008, p. 14)

Superada essa fase, e com a evolução dos tipos de família, seu conceito

também mudou. Como bem define Maria Berenice (2013, p.27), família é toda

aquela que constitui a palavra L.A.R., tendo em vista que, desde que seja um lugar

de afeto e respeito, deve ser considerado e respeitado como família.

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É fato que essa estrutura familiar é uma construção cultural, devendo a lei

acompanhar sua evolução e tentar sempre refletir a realidade. A nova lei Maria da

Penha (n° 11.340/06), instituída para visar a proteção das mulheres contra a

violência doméstica, “identifica como família qualquer relação de afeto, e com isso,

não mais se pode limitar o conceito de entidade familiar ao rol constitucional”. (DIAS,

2013, p. 42)

A primeira espécie de família a existir foi a matrimonial, sendo aquela

provinda do casamento. A instituição dessa espécie se deu com a união do Estado e

da Igreja interferindo e, de certa forma, controlando a vida das pessoas. Com o

passar dos anos, novas espécies foram surgindo e sendo legalizadas. A

desnecessidade do matrimônio para a caracterização da família aconteceu, surgindo

a chamada família informal. A principal diferença entre união estável e casamento é

a inexistência de qualquer intervenção Estatal na relação dos companheiros. Note-

se que, motivado pela vontade das partes, à união estável poderá ser convertida em

casamento a qualquer momento, conforme disposto no artigo 226, §3º da

Constituição Federal.

Neste mesmo artigo, §4º, tem-se explícito a existência da família

monoparental. A Constituição Federal se preocupou em proteger as famílias

constituídas por apenas um ascendente e um descendente. Estas famílias são

resultado de inúmeros fatores, tais como: pais solteiros, viúvos, ou até mesmo os

avós que cuidam de seus netos por decorrência da morte de seus filhos. (LISBOA,

2009, p.193) A família Monoparental difere-se da anaparental, uma vez que estas

são constituídas por vínculos de parentesco, ou por pessoas que não são parentes,

mas sem que haja qualquer vinculo de ordem sexual.

Importante destacar que o conceito de entidade familiar é aquele definido

como um lugar de afeto e respeito e, sendo assim, não há razão para desconsiderar

a existência das famílias homoafetivas.

Assim, recentemente, em 2011, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou

acerca do tema através da ADI n° 4277 em conjunto com a ADPF n° 132, e

reconheceu a união homoafetiva como uma entidade familiar atribuindo-a efeito

vinculante e eficácia erga omnes, além de passarem a obter os mesmos direitos

decorrentes da união estável entre homem e mulher.

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Por fim, a ampliação do conceito de família trazida pela Lei Maria da Penha

veio para aprimorar tais espécies uma vez que já não se pode afirmar que não há

uma legislação definindo como deverá ser a interpretação em relação as entidades

familiares. (DIAS, 2013, p. 216)

3 AS LIDES ENVOLVENDO DIREITOS FUNDAMENTAIS E AFETO

Conforme exposto, antes da Constituição de 1988 as relações familiares eram

compostas pelo pátrio poder, tendo o afeto um caráter secundário. Nos dizeres de

Jacqueline Filgueiras, (2001, p.27) “os vínculos jurídicos e os laços de sangue eram

mais importantes e prevaleciam sobre os vínculos de amor e da atração pessoal”

sendo o afeto presumido e ficando “pois, à sombra da celebração, podendo existir

ou não nas relações familiares”.

Hoje em dia, o afeto se converteu em um dos principais componentes das

relações familiares, tornando-se completamente indispensável. A partir dessa

transformação, “a família recupera, assim, sua mais importante função, a saber, a de

servir como comunidade de laços afetivos e amorosos em perfeita união”. (GAMA,

2008, p. 128)

Não há dúvidas que o afeto é um sentimento que une as pessoas, sendo uma

das principais características das relações interpessoais. Isto se dá devido ao fato

de que este sentimento deve ser sempre espontâneo, não havendo meios de forçá-

lo.

Assim, resta saber se a falta de afeto do pai para com o filho acarreta em

prejuízo ao mesmo - e vice-versa - analisando se há a violação de algum direito

fundamental uma vez que o afeto, por ser subjetivo, não pode ser imposto por lei.

Posto isto, a Constituição Federal vigente prevê, no âmbito dos direitos

fundamentais, a inviolabilidade do direito a honra, a intimidade e a vida privada em

seu artigo 5º, X, sendo passíveis de indenização quando da sua violação. É

resguardado a todo indivíduo o direito de manter para si suas intimidades. A

Constituição não distingue privacidade de intimidade, no entanto, Paulo Gonet as

difere como:

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O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais próximas. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p. 469)

A privacidade é fundamental para que o cidadão possa desenvolver sua

própria personalidade e enfrentar novos desafios. Ter sua privacidade exposta

acaba por inibir qualquer tentativa de autossuperação. A falta de privacidade pode

acarretar, ainda, em conflitos entre pessoas próximas como cônjuges ou

descendentes quando o que é exposto são as relações íntimas entre esses

conviventes. (MENDES, 2010, p. 470) Discussões, intrigas e desavenças familiares

quando expostas, acabam por aumentar os abalos sofridos, o que não teria tamanha

dimensão se ficasse apenas entre os conflitantes.

No entender de José Afonso da Silva, (SILVA, 2010, p. 208) a Constituição

considera a vida privada como algo mais “abrangente, como conjunto de modo de

ser e viver, como direito de o indivíduo viver sua própria vida.” Parte-se aqui da

premissa de que o indivíduo vive uma vida para si, envolvendo sentimentos, conflitos

pessoais entre outras coisas e uma vida para a sociedade, nas quais suas atitudes

acabam por ser públicas.

É resguardado ao indivíduo o direito de manter sua vida pessoal em sigilo,

bem como ter total liberdade para vivê-la sem a intromissão de terceiros.

A honra, por sua vez, não se encontra como uma espécie do gênero

privacidade. Ela se faz pelas características que o ser humano no decorrer da vida

vai construindo, e tornando-se parte de sua personalidade. São o somatório das

suas características intrínsecas, pessoais e que ajudam a construir seu caráter

perante a sociedade. Nos dizeres de José Afonso, (2010, p.209) “a honra é o

conjunto de qualidades que caracterizam a dignidade da pessoa, o respeito dos

concidadãos, o bom nome, a reputação. Importante diferenciar a honra subjetiva da

objetiva. A primeira consiste na ofensa intrínseca do indivíduo, ou seja, significa

dizer que a ofensa à honra subjetiva é aquela que acarreta em sentimentos internos,

podendo causar angústia, mágoas entre outros. Já a ofensa a honra objetiva, diz

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respeito à repercussão da ofensa ao indivíduo perante a própria sociedade, trata-se

de como a sociedade o verá após a ofensa.

Como bem explica Tavares, a proteção a honra se faz em proteção a

dignidade do indivíduo, e não em proteção da verdade. Desta maneira, “ainda que o

fato imputado à pessoa seja verdadeiro, pelo só fato de atentar contra sua

dignidade, violando sua honra subjetiva, não poderá seu causador/divulgador

beneficiar-se com a prova da verdade”. (TAVARES, 2010, p. 683)

Assim, resta claro que a violação à honra, à intimidade ou à vida privada

encontra amparo constitucional, além de acarretar em direito à indenização por dano

moral e material em favor do ofendido.

Em contrapartida, o afeto se traduz como uma relação de “amor e carinho, em

que os pais são aqueles que cuidam e dispensam tempo e dedicação” com o filho e

que, por isso, independe de como a família é formada. (ABREU, p. 102)

Diante disso, tem-se que o Estado reconhece o afeto como um elemento

constituidor de uma determinada entidade familiar. No entanto, não cabe ao Estado

impor o afeto nas relações familiares. Parte-se do pressuposto de que o Estado

pode tomar medidas informativas e incentivadoras proporcionando as famílias meios

de se relacionarem melhor, buscando então o desenvolvimento do afeto. Contudo, o

Estado não pode impor o afeto às pessoas uma vez que se trata de um sentimento

que surge apenas através da convivência.

Volta-se neste momento ao princípio da liberdade, tendo em vista que é “a

faculdade de fazer ou não o que quer, pensar como se entende, ir e vir, tudo

conforme a determinação do indivíduo, contando que não haja proibições ou

restrições para as tais práticas” (ABREU, p. 116-117). Ou seja, é uma garantia

constitucional que o sujeito haja de acordo com sua vontade desde que dentro da

lei, sem que ocorra qualquer intervenção Estatal.

Ainda, o afeto é uma liberdade garantida pelo Estado em que o indivíduo tem

o direito de se afeiçoar com quem bem entender, não cabendo ao mesmo limitar ou

impor. A partir disso, verifica-se que o indivíduo busca sua felicidade e sua própria

realização através do outro, e que, “somente através da existência do afeto é

possível que as pessoas, restringindo sua esfera de liberdade, renunciem algumas

coisas em favor dos outros membros da família” (NOGUEIRA, 2001, p. 55)

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Desta maneira, a Constituição Federal tem explícita em seu artigo 229 que os

pais devem “assistir, criar e educar os filhos menores”. Nota-se, portanto, que não

está expresso na Constituição o dever de afeto. Neste ponto, cabem diversas

interpretações. Assistir, criar e educar não importam necessariamente em se

afeiçoar, surgindo, a partir daí a necessidade de analisar o caso concreto para

verificar até que ponto o Estado está impondo um dever que não cabe a ele impor e

até que ponto ele estará cumprindo com o seu dever de Estado.

Por fim, entende-se que o afeto passou a se caracterizar como um valor

jurídico uma vez que passou a ser o elemento fulminante nas decisões que

caracterizam determinadas entidades familiares, além da configuração das relações

paterno-filiais, uma vez que pode o afeto se sobrepor ao laço biológico e, ainda,

caracteriza-se como valor jurídico pois “pai não é, necessariamente, o doador de

material genético, mas sim aquele que cria, cuida, ama e se preocupa”. (TARTUCE;

SIMÃO, 2007, p. 368)

3.1 RESPONSABILIDADE CIVIL E AS AÇÕES DE INDENIZAÇÃO POR DANOS

MORAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA

As indenizações por dano moral no direito de família são muito comuns. Por

ser o ramo mais subjetivo do que qualquer outro do direito positivo, a aplicação

desse tipo de indenização torna-se muito frequente.

Primeiramente, cabe definir quais são os requisitos para que haja a

caracterização da responsabilidade civil. São eles: a culpa do agente, o dano e o

nexo de causalidade.

Pensar em responsabilidade civil necessariamente implica pensar na

obrigação de reparar um dano. Nos dizeres de Inácio de Carvalho Neto,

todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. Fica, assim, instituída a regra geral de que a obrigação de reparar depende de dolo ou culpa do agente (CARVALHO NETO, 2007, p.48)

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A partir disso, defini-se culpa como “uma infração a uma obrigação

preexistente” (CARVALHO NETO, 2007, p.49) podendo ser estipulada por lei ou por

contrato, ou ainda, pela moral cabendo ao juiz preservá-las e aplicá-las.

Outro elemento indispensável para a caracterização da responsabilidade civil

é o dano. A melhor definição encontrada se traduz como “toda ofensa a um bem

jurídico”. (PEREIRA, 1997, p. 53)

É indispensável nesses casos pensar além do conceito de dano como aquele

decorrente de uma diminuição patrimonial. Algumas vezes, o dano sofrido pela

vítima não se comportou em diminuição do patrimônio, mas sim em violação a sua

personalidade, sua privacidade, honra dentre outros elementos intrínsecos do

indivíduo.

A grande diferença entre o dano quando ocorrida a diminuição patrimonial ou

quando ocorrida violação a um direito fundamental é a maneira de reparação.

Em relação ao primeiro, tem-se a indenização por dano material, sendo fácil

atribuir a indenização repondo “as coisas lesionadas ao seu status quo”

(CARVALHO NETO, 2007, p.55) ou quando não há como repô-las, atribui-se valor

pecuniário a este para que a vítima possa adquirir bens semelhantes. Desta

maneira, a indenização aplicada diz respeito à diminuição patrimonial obtida pelo

indivíduo, sendo fácil a aplicação deste tipo de indenização.

No entanto, o mesmo não ocorre na segunda hipótese, pois, como atribuir

valor pecuniário a uma violação de um direito intrínseco? Nesses casos ocorre a

chamada indenização por dano moral.

Assim, esta indenização se dá sempre por valor pecuniário. Ainda que não se

tenha como voltar as coisas ao seu status quo, este tipo de indenização veio como

um meio de compensação para tentar amenizar o dano sofrido pela vítima atribuindo

a esse dano um valor que sempre deverá ser arbitrado pelo juiz ao passo que atribui

uma sanção para o agente causador do dano.

Doutrina Clayton Reis (2010, p.8) que o dano moral é visto “como sendo

aquele que atinge o patrimônio ideal das pessoas, ou seja, capaz de ensejar um

sentimento negativo no espírito da vítima, causando-lhes sensações desagradáveis

decorrentes das perturbações psíquicas causadas pela agressão”

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263

Posto isso, o Superior Tribunal de Justiça decidiu em sede de Recurso

Especial os critérios que deverão ser analisados para que se possa chegar a um

valor justo de indenização. Neste sentido tem-se que:

Na fixação do valor da condenação por dano moral, deve o julgador atender a certos critérios, tais como nível cultural do causador do dano; condição sócio-econômica do ofensor e do ofendido; intensidade do dolo ou grau da culpa (se for o caso) do autor da ofensa; efeitos do dano no psiquismo do ofendido e as repercussões do fato na comunidade em que vive a vítima. Ademais, a reparação deve ter fim também pedagógico, de modo a desestimular a prática de outros ilícitos similares, sem que sirva, entretanto, a condenação de contributo a enriquecimentos injustificáveis. (BRASIL, STJ, RESP 355392)

Como o último pressuposto para a caracterização da responsabilidade civil,

tem-se o nexo de causalidade. Neste caso, analisa-se a relação entre a conduta do

agente e o resultado obtido (relação de causa e efeito). Assim, é necessário ter

certeza de que sem o dano não teria ocorrido sem a ocorrência do fato. Ou seja, não

basta o descumprimento de algumas regras, mas sim que este descumprimento

tenha por consequencia algum dano.

Como dito anteriormente, o direito de família, por ser o ramo mais subjetivo do

direito, tem jurisprudências fartas com relação à responsabilidade civil. Através

disso, tem-se a exemplo:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. ALIMENTOS. IRREPETIBILIDADE. DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE FIDELIDADE. OMISSÃO SOBRE A VERDADEIRA PATERNIDADE BIOLÓGICA DE FILHO NASCIDO NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. DOR MORAL CONFIGURADA. REDUÇÃO DO VALOR INDENIZATÓRIO. (BRASIL, STJ, RESP 922462)

Neste caso em específico, o dano moral foi analisado sob a perspectiva do

adultério, ou seja, sobre o descumprimento do dever de fidelidade devidamente

expresso no Código Civil de 2002 em seu artigo 1566. Ainda, o mesmo acórdão

supracitado descreve que “não é possível ignorar que a vida em comum impõe

restrições que devem ser observadas destacando-se o dever de fidelidade nas

relações conjugais, o qual pode, efetivamente, acarretar danos morais”.

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Além disso, outra ação que merece menção são as ações de agressão física

entre cônjuges ou ascendentes/descendentes que acabam por acarretar no dever de

indenizar.

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA.AGRESSÃO FÍSICA. CÔNJUGE.PROVA TESTEMUNHAL. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE OU IMEDIAÇÃO. DANOS MORAIS. LUCROS CESSANTES. CABIMENTO. Embora o conjunto probatório constante nos autos seja limitado, restou suficientemente demonstrada a versão da autora para os fatos. As relações familiares, de regra, desenvolvem-se no foro privado do lar, devendo tal circunstância ser sopesada na valoração da prova. Assim, inexigível a existência de testemunhas oculares da agressão desferida pelo marido contra sua esposa. Quando a prova testemunhal é decisiva para o desfecho do conflito, impõe-se prestigiar o convencimento do julgador que presidiu a instrução e, portanto, estava em melhores condições de aferir a credibilidade das testemunhas. Aplicação do princípio da imediação ou imediatidade. Demonstrada a conduta do agente e o nexo causal em relação ao dano, resta caracterizada a responsabilidade civil nos moldes dos artigos 186 e 927, do Código Civil, implicando o dever de indenizar. Adequada a condenação ao pagamento de indenização pelos lucros cessantes, pois reflete o que restou comprovado pela prova testemunhal. Em sendo admitida a ocorrência dos fatos tais como narrados pela parte autora, não há dúvidas de que decorrem danos morais da conduta do réu. No caso, há de se levar em conta também o sofrimento inerente à desestruturação da família. O fato típico da agressão física é potencializado em razão do agente que o pratica - à época, marido da autora. Sentença mantida. Apelo improvido. (RIO GRANDE DO SUL, TJ, AC 70054899174)

Infelizmente, muitos são os casos como este tramitando nos tribunais do país.

Por mais que a mera indenização não supra os aborrecimentos, as mágoas

ocasionadas pela agressão, seja ela física ou psíquica, ao menos serve como uma

sanção ao causador da lesão como meio de inibir suas atitudes.

Outras ações que merecem destaque no âmbito do Direito de família são as

ações relacionadas à alienação parental. A atual lei que trata a respeito do tema (Lei

nº 12.318/10) considera o ato de alienação parental a interferência na formação

psicológica da criança ou adolescente promovida ou induzida por um dos genitores

com relação ao outro genitor, acarretando negativamente na relação entre eles.

Este ramo tem como fundamento priorizar sempre o melhor interesse da

criança nos casos concretos. Fatalmente, em inúmeras relações conjugais mal-

acabadas, o ex cônjuge, normalmente o possuidor da guarda do menor, acaba por

difamar ou fazer com que o menor se revolte contra o outro genitor, podendo levar

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essas frustrações consigo para toda a sua vida futura, resultando na não

reaproximação do menor com o outro genitor.

O julgador, ao entender que há fortes indícios de alienação parental poderá

requerer perícia psicológica ou biopsicossocial. Como uma tentativa de coibir tais

atos, o Direito, por vezes, se submete a aplicação de multas ao alienante para que

este não volte a cometer tal ilicitude. A exemplo disso, verifica-se aqui uma

jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DECLARATÓRIA DE ALIENAÇÃO PARENTAL - DECISÃO DETERMINOU O CUMPRIMENTO DO ACORDO DE VISITAS - PREVALÊNCIA DO INTERESSE DO MENOR - IMPOSIÇÃO DE MULTA - POSSIBILIDADE. - Certo é que o convívio da figura paterna é necessário para o desenvolvimento psicológico e social da criança, sendo assim, um contato físico maior entre pai e filho, torna a convivência entre eles mais estreita, possibilitando o genitor dar carinho e afeto a seu filho, acompanhá-lo em seu crescimento e em sua educação. - Deve-se impor multa à genitora pelo descumprimento do acordo de visitas, haja vista os indícios de alienação parental, visando, inclusive, que esta colabore à reaproximação de pai e filha. (MINAS GERAIS, TJ, AI 10105120181281001)

Desta maneira, conclui-se que as indenizações referentes ao dano moral no

direito de família abrangem principalmente elementos subjetivos, além de priorizar e

sobrepor sempre o melhor interesse da criança, por ser ela vulnerável e

principalmente, por ser vítima nos casos, a exemplo, de alienação parental como em

tantos outros.

4 INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO

Muito se tem falado na atualidade acerca da indenização por abandono afetivo.

Entretanto, não há consolidação na jurisprudência acerca do tema e, por isso, far-se-

á aqui uma análise sobre os aspectos favoráveis e desfavoráveis, buscando assim,

um amadurecimento do tema a seguir exposto.

Importante destacar que a analise da indenização por abandono afetivo

consiste, ainda, na inexistência de parâmetros objetivos que delimitem as hipóteses

de cabimento nos casos em que a jurisprudência é favorável à indenização.

Assim, primeiramente, cabe definir o que é o abandono afetivo. A Constituição

Federal impõe aos pais, em seu artigo 227, caput, o dever de assegurar à criança e

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ao adolescente o “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à

profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência

familiar e comunitária” e, ainda, dispõe em seu artigo 229 que “os pais têm o dever

de assistir, criar e educar os filhos menores”.

Desta maneira, observa-se que a Constituição Federal impõe aos pais

deveres de assistência material não incumbindo a eles o dever de amar. Entretanto,

é necessário destacar que os pais têm importância indispensável e fundamental

para o desenvolvimento psíquico da criança.

Assim, abandono afetivo compreende-se como a omissão e o

descumprimento dos deveres inerentes à paternidade. Ainda, em uma melhor

definição, temos que o abandono afetivo

é aquele que atinge a criança ou o adolescente, em consequência do descumprimento do direito-dever de visita do pai – e às vezes da mãe -, fixado de comum acordo entre marido e mulher na separação consensual, ou imposto coativamente pelo juiz nas sentenças de separação e divórcio litigiosos, investigação de paternidade ou regulamentação de visitas (SILVA; CAMARGO NETO, 2011, p. 22)

Infelizmente, as rupturas nas relações familiares são cada vez mais

constantes, e por óbvio, ainda que involuntariamente, essas situações acabam por

atingir a todos os integrantes da mesma relação familiar. Consequências dessas

rupturas são, além do próprio abalo emocional, o afastamento da relação paterno-

filial.

Ainda que o Direito procure cada vez mais essa aproximação entre os pais e

os filhos, seja através da guarda compartilhada ou então com a concessão dos

direitos de visitas previsto no artigo 1589 do Código Civil, pressupondo assim que

haverá a “convivência entre ambos, para que, conforme o caso, o vínculo se

estabeleça ou se consolide, gradativamente, e que a criança ou o adolescente possa

receber o afeto, a atenção a vigilância e a influência daquele que não detém sua

guarda” (SILVA; CAMARGO NETO, 2011, p. 23) não cabe ao Estado impor ao

indivíduo o dever de visitar o seu filho no dia combinado, pois existe a autonomia de

vontade, além da própria liberdade de ir e vir concedida a todos os cidadãos.

O abandono afetivo pode ser entendido como um meio de aplicar uma sanção

- com valor pecuniário - a qualquer um dos pais que tenha descumprido o “dever” de

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267

amar. Contudo, é necessário fazer uma retrospectiva em relação ao verdadeiro

significado do dano moral, uma vez que deve ser atribuído com um viés pedagógico

buscando no caso concreto o sentido esse viés pedagógico será utilizado.

Por fim, o abandono afetivo consiste no descumprimento do dever legal dos

pais em amar, participar da vida, das atividades, das datas comemorativas de seus

filhos, além de, é claro, cumprir com os deveres de assistência material. Conclui-se,

portanto, que abandono afetivo é a ausência do genitor, seja ele pai ou mãe, na vida

de seu filho.

4.1 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À INDENIZAÇÃO

No entender de Maria Berenice Dias, (2013, p. 469) a Constituição Federal

em seu artigo 227 em análise conjunta com o artigo 7º e 19 do Estatuto da Criança e

do Adolescente, resguardam aos mesmos o direito de ter um desenvolvimento sadio

e harmonioso, além de serem educados e criados dentro de um ambiente familiar.

Entende ainda que, com o novo conceito de família pautado no afeto, os pais são

incumbidos de “de criar e educar os filhos sem lhes omitir o carinho necessário para

a formação plena de sua personalidade”.

Ainda, no entender de Berenice, esses afastamentos entre pais e filhos

acarretam em grandes sequelas causando impactos negativos ao seu

desenvolvimento, além de deixar traumas permanentes pelo sentimento de

abandono. Para ela, “a falta de convívio dos pais com os filhos, em face do

rompimento do elo de afetividade, pode gerar severas sequelas psicológicas e

comprometer seu desenvolvimento saudável” e ainda

a omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação. Se lhe faltar essa referência, o filho estará sendo prejudicado, talvez de forma permanente, para o resto de sua vida. Assim, a ausência da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo da vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida. Tornam-se pessoas inseguras, infelizes. (DIAS, 2013, p. 470)

Desta maneira, entende ser possível a indenização por abandono afetivo uma

vez que este abandono pode gerar danos ao menor. Esse dano viola, além da

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268

integridade psíquica do mesmo, o princípio constitucional da solidariedade familiar. E

a partir desse entendimento, essa violação resulta na necessidade de reparação.

Explica Berenice, ainda, que esse dever de reparação não incumbe apenas ao

“genitor que abandona o filho, mas também aquele que oculta do outro a existência

do filho, impedindo o estabelecimento do vínculo de paternidade, deve ser

responsabilizado. ” (DIAS, 2013, p. 471)

Ao pensar em argumentos favoráveis à indenização, pensa-se que os danos

gerados ao menor - danos estes de caráter puramente psicológico - acarretariam em

um ato contrário ao ordenamento jurídico e por isso, deve ser reconhecido no campo

da responsabilidade civil.

A responsabilidade civil não serve apenas para reparar o dano, mas também

consiste em um caráter sancionatório buscando ter, além disso, um caráter

preventivo para que condutas iguais voltem cada vez menos a se repetir. Nesse

entendimento, afirma-se que “ainda que, à primeira vista, possa parecer repulsiva a

troca do afeto pela reparação pecuniária, não se pode perder de vista o incentivo

que a simples possibilidade de eventual indenização possa exercer no espírito do

pai, ou da mãe. ” (SILVA, 2010, p. 29)

Outro argumento utilizado em acórdão proferido pelo Superior Tribunal de

Justiça é o de que

não se trata, pois, de "dar preço ao amor" – como defendem os que resistem ao tema em foco -, tampouco de "compensar a dor" propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave. (BRASIL, STJ, RESP 757411)

Maria Berenice entende ainda que a aplicação de indenização por abandono

afetivo pode ser de extrema relevância para um direito de família contemporâneo

uma vez que pode inibir outros pais de abandonarem seus filhos, ainda que por

medo da punição, mas que a partir disso, passe a existir um maior convívio familiar e

em decorrência disso, o surgimento de uma relação de afeto. (2013, p. 472)

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269

4.2 ARGUMENTOS DESFAVORÁVEIS À INDENIZAÇÃO

Partindo para outro ponto de vista, um argumento válido para a

descaracterização da indenização por abandono afetivo é a utilizada em acórdão

prolatado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas, em que argumentou que “deixar de

amar o cônjuge ou companheiro é circunstância de cunho estritamente pessoal, não

configurando o desamor, por si só, um ato ilícito, apto a ensejar indenização. ”

(BRASIL, STJ, RESP 922462)

A partir desse argumento, pode-se extrair que o mesmo raciocínio se aplica

quando se tratar dos filhos, uma vez que o desamor, independentemente de para

quem seja, não pode ser considerado um ilícito civil.

Além disso, o Ministro bem argumenta quando diz que

a felicidade não é assegurada de forma estática e permanente a quem quer que seja, mormente quando o amor não pode ser objeto de imposição legal. A dor da separação, inerente à opção de quem assume uma vida em comum, não é apta a ensejar danos morais de forma isolada. (BRASIL, STJ, RESP 922462)

Desta forma, fica claro que o amor não pode ser considerado uma imposição

legal, não cabendo ao Estado dizer quem se deve amar e quem não se deve amar.

Em outro acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça informa o

Ministro Fernando Gonçalves que em caso semelhante, o Ministério Público se

manifestou no sentido de que "não cabe ao Judiciário condenar alguém ao

pagamento de indenização por desamor, salientando não poder ser a questão

resolvida com base na reparação financeira”. (BRASIL, STJ, RESP 757.411)

Neste ponto é necessário mencionar sobre a possibilidade de destituição do

poder familiar. O Código Civil vigente prevê em seu artigo 1.638, II a desconstituição

do poder familiar quando o pai deixar o filho em abandono. No entendimento do

Ministro Gonçalves, este artigo funciona como uma das maiores punições que

podem ser dadas aos pais, uma vez que o mesmo é obrigado por lei a se afastar de

seu filho por perda do poder familiar. Nesse sentido, nos dizeres do Ministro, “cai por

terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono

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moral” uma vez que o principal argumento é servir como uma punição ao pai.

(BRASIL, STJ, RESP 757.411)

Outro argumento utilizado pelo Ministro no Recurso Especial nº 757.411 é o

de que, ao ser admitida a indenização por dano afetivo, esta acarretaria não em um

reestabelecimento ou uma futura possibilidade de reaproximação entre pais e filhos,

mas sim um afastamento sem chances nenhuma de reconciliação. Ainda nesse

sentido, esclarece que

por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido, não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil (BRASIL, STJ, RESP 757.411)

Desta forma, a decisão proferida neste Recurso Especial pelo Ministro é no

sentido de que não restaria nenhuma finalidade positiva com a condenação à

indenização pelo abandono afetivo, além de não caber ao Judiciário impor alguém a

amar alguém.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, conclui-se que a constitucionalização do direito de família

foi de extrema importância visto que se tirou o foco do patrimônio e os transferiu

para os indivíduos. Com isso, surgem os princípios constitucionais que norteiam o

direito de família sendo indispensáveis na aplicação do caso concreto. A partir disso,

procurou-se resguardar os direitos fundamentais e principalmente buscou-se a

preservação da dignidade da pessoa humana.

Ainda, o direito brasileiro tenta cada vez mais abranger e introduzir no

ordenamento jurídico os diversos modelos de família. A exemplo disso, vale a

menção acerca da legalização das uniões homoafetivas.

Com essa constitucionalização, os direitos fundamentais passaram a importar

mais que os direitos patrimoniais. Diante disso, tentou-se no presente trabalho

abordar não apenas os direitos das crianças e adolescentes, mas também os

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direitos dos pais. Tendo em vista que o direito à intimidade ou vida privada é um

direito fundamental que deve ser protegido e respeitado, não poderia o Estado violar

esse direito sem o cometimento de um ato ilícito. Assim, uma vez que o afeto - ou a

falta dele - não se trata de nenhuma ilegalidade, a aplicação deste tipo de

indenização implicaria em violação dos direitos fundamentais.

Não resta dúvidas quanto ao valor jurídico do afeto, visto que ele se revela

como fator determinante em diversos julgados. Ainda, a inclusão do afeto no

ordenamento jurídico mostra-se pertinente e necessária haja vista a relevância deste

sentimento nas relações interpessoais de todos os cidadãos.

Contudo, os casos abordados no referido trabalho acerca da responsabilidade

civil com enfoque no direito de família demonstram algumas possibilidades da

aplicação do dano moral. Assim, nas jurisprudências citadas, houve sempre um

descumprimento de um artigo de lei, seja o descumprimento do dever de fidelidade,

seja por agressão física ou ainda em relação à alienação parental. Já sob a

perspectiva do tema abordado, não há qualquer artigo no ordenamento jurídico

incumbindo o dever de afeto dos pais para com seus filhos. Logo, entende-se que

não seria cabível o dano moral nas situações de abandono afetivo.

Partindo desta premissa, o abandono afetivo, por si só, não poderia acarretar

em reparação civil. Será necessário abordar as consequências que tal abandono

resultou, os danos causados ao menor - se é que houve algum dano – para então

haver a possibilidade de reparação. Ou seja, repara-se o dano, não pelo simples fato

de haver o abandono afetivo.

Assim, entende-se que a importância do tema abordado reside nas

consequências que a aplicação da indenização por abandono afetivo implicará.

Primeiramente, ao atribuir essa sanção aos pais, acaba por imputar uma punição por

desamor. Vale analisar também que esse tipo de condenação não traria nenhum

auxílio para a família, tampouco teria qualquer utilidade, pelo contrário, acabaria

prejudicando qualquer intenção de proximidade futura.

A falta de afeto decorre da falta de convivência e, muitas vezes, essas

situações decorrem de formas não intencionais, mas necessárias para as

necessidades cotidianas.

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A legalização deste tipo de indenização poderá acarretar em milhares de

ações perante o Judiciário em busca de qualquer proveito referente ao afastamento

existente, extinguindo qualquer possibilidade de reconciliação ou reaproximação nas

relações paterno-filiais.

O Estado estará, de forma indireta, contribuindo para o afastamento entre

pais e filhos de forma permanente ao invés de promover condutas de

reaproximação.

Não há dúvidas acerca da importância dos pais na vida de qualquer criança,

seja ajudando no seu desenvolvimento psíquico ou até mesmo na construção de sua

personalidade e é justamente por isso que esse tipo de indenização não pode existir

no Direito Positivo. É inquestionável que a presença dos pais é importante em

qualquer fase da vida de uma pessoa. Nada impede que o pai que se manteve

afastado durante toda a infância de seu filho se reaproxime quando da sua

adolescência, visto que a relevância que isso terá na vida do filho, seja na infância,

na adolescência ou até mesmo na vida adulta, será sempre tão importante quanto à

de um pai que nunca se ausentou, uma vez que nunca é tarde para uma

reaproximação.

Partindo desse pressuposto, o objetivo do presente trabalho foi, portanto,

demonstrar que esse posicionamento favorável do Judiciário, ao invés de ajudar as

famílias, acaba por dificultar ainda mais a relação entre pais e filhos impossibilitando

qualquer tentativa de reaproximação e, ainda, o fato de se atribuir valor pecuniário

ao desamor vai além das funções do Estado não incumbindo a ele, portanto, tal

medida.

6 REFERÊNCIAS

ABREU, Daniel Alburquerque de. Do afeto como valor jurídico nas relações familiares, em específico na seara da paternidade. Revista de Direito, vol 25, p. 102. Disponível em: <http://www.pge.go.gov.br/revista/index.php/revistapge/article/viewFile/23/18>. Acesso em: 26 abr. 2015 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 355392, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Brasilia, DF, 17 de junho 2012

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273

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 922462, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Brasília, DF, 13 de maio de 2013 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 757411, Relator Ministro Fernando Gonçalves, Brasília, DF, 29 de novembro de 2005. CARVALHO NETO, Inácio de. Responsabilidade civil no direito de família. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2007. DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. 9. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Princípios Constitucionais do Direito de Família: guarda compartilhada à luz da lei n° 11.698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008.

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A (IN)EFICÁCIA DA ILEGALIDADE DA GUERRA NO ÂMBITO INTERNACIONAL:

O CASO DA GUERRA DO IRAQUE DE 2003

THE (IN)EFFICIENCY OF THE ILLEGALITY OF WAR IN THE INTERNATIONAL

SCENARIO: THE 2003 IRAQ WAR CASE

Nayra de Lima Portela117

Violeta Sarti Caldeira118

SUMÁRIO

Resumo 1 Introdução 2 Da guerra e da Sociedade das Nações 3 A ONU e a (i)legalidade da guerra 3.1 A Extensão da Proibição do Uso da Força 4 A invasão do Iraque 4.1 Primeira Guerra Do Golfo 4.2 Doutrina Bush E Guerra Preventiva 4.3 Operation Iraqi Freedom 5 Considerações Finais. Referências

RESUMO

Esse trabalho objetiva analisar se a proibição do uso da força tem ou não eficácia no âmbito internacional. Isso será feito através da compreensão do que seria a guerra, em especial sob os seus aspectos de legalidade e legitimidade. A abordagem seguinte se dará tendo como ponto de partida a Organização das Nações Unidas. É a partir dela que será buscado o entendimento de guerra no mundo pós Segunda Guerra Mundial, tendo em vista que o direito internacional usa a sua Carta, redigida em 1945, como fonte dos limites do uso da força. Por último será examinado como os preceitos da guerra legal e legítima se aplicam na prática. Para tanto será utilizado o caso da Guerra do Iraque de 2003. Essa guerra promovida pelos Estados Unidos trouxe à tona a discussão acerca da eficácia da ilegalidade da guerra e da atuação das Nações Unidas frente a maior potência mundial.

Palavras-chave: guerra, legalidade, legitimidade, Organização das Nações Unidas, Guerra do Iraque.

ABSTRACT

This paper aims at analysing if the prohibition on the use of force is or is not efficient in the international scenario. This will be achieved through the comprehension of war, especially over its aspects of legality and legitimacy. The next step will be using the United Nations as a starting point. It

117 Bacharel em Relações Internacionais pelo Unicuritiba e acadêmica de Direito no Unicuritiba. [email protected]. 118 Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em 2006. Mestra em Ciências Sociais também pela PUC/SP, em 2009 e é doutoranda em Sociologia Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR), desde 2013. [email protected]

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is from here that an understanding of war in the post Second World War world will be drawn, for the international law uses the Charter of the United Nations, written in 1945, as source on the limits on the use of force. Last, it will be examined how the principles of legal and legitimate war work in the real world. To be able to do so the Iraq War case will be used. This war, promoted by the United States, brought to light the discussion about the efficacy of the illegality of war and the role the UN played when confronted with the most powerful country in the world. Keywords: war, legality, legitimacy, United Nations, Iraq War.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como escopo analisar como a guerra é vista sob dois

prismas, o do direito internacional e o da legitimidade. A partir de tal análise será

estudado como a Organização das Nações Unidas atua diante um ato concreto de

guerra. O caso escolhido foi a Guerra do Iraque de 2003.

Apesar de ser uma fonte de terror e destruição e um meio considerado ilícito

para resolver conflitos, a guerra é ainda hoje usada como um instrumento da

política, uma forma de os Estados alcançarem os seus objetivos. Mesmo com o

avanço do direito internacional, o fortalecimento dos organismos internacionais e,

consequentemente, do multilateralismo para solucionar controvérsias, o uso da força

ainda é uma constante no meio internacional, sendo, portanto, relevante o seu

estudo, ainda mais se levarmos em consideração a sua parca abordagem na

literatura nacional.

A guerra aqui tratada será apenas e tão somente a que ocorre entre Estados,

não adentrando, portanto, nas guerras civis. A partir do entendimento da guerra legal

e legítima é que será feita uma abordagem prática do assunto sob a perspectiva da

Guerra do Iraque.

2 DA GUERRA E DA SOCIEDADE DAS NAÇÕES

Guerra, quando vista como um acontecimento externo, pode ser entendida

como um conflito armado entre Estados, objetivando a submissão da vontade de um

Estado a outro. Podemos apontar dois elementos presentes em tal definição, o

objetivo e o subjetivo. O objetivo seria a agressão em si, a violência, enquanto o

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elemento subjetivo seria composto pela intenção de uma ou mais partes em causar

a guerra, é o animus beligerandi (SILVA, 2005).

Dessa forma, a guerra é um ato extremamente complexo, pois envolve não

apenas a violência em si, mas todo um jogo político e objetivos diversos que estão

por detrás dela. Carl von Clausewitz em sua obra, “Da Guerra” ([1984?]), afirma que

a guerra é um instrumento da política, é na verdade a realização da política por

outros meios. Assim sendo, a guerra não é um fim em si mesma, ela é apenas um

meio para atingir um objetivo diverso.

Ao longo do presente trabalho estudaremos a guerra tanto sob o ponto de

vista de sua legitimidade quanto de sua legalidade. Importante diferenciar os dois

termos, enquanto legalidade está relacionada com o direito, com as leis e costumes

internacionais, a legitimidade tem como pano de fundo a moralidade, ao que é certo

ou errado, justo ou injusto. Assim, “Uma ação é sempre legal ou ilegal; ela não pode

ser parcialmente legal. Por outro lado, a legitimidade é maleável e mutável –

depende de percepções e resultados. ” (POPOVSKI; TURNER, 2008, tradução

nossa)119

A Primeira Guerra Mundial marcou definitivamente o fracasso do chamado

Concerto Europeu, que havia se iniciado com o Congresso de Viena em 1815. O

sistema de alianças concebido pelos Estados europeus não foi o suficiente para

evitar uma guerra geral maior e ainda mais devastadora do que as Guerras

Napoleônicas. Tal constatação fez com que se começasse a conceber novos

projetos de paz.

A Sociedade das Nações é resultado dos projetos supramencionados e dos

acordos de paz celebrados entre 1917 e 1920. Ela foi concebida como uma

organização internacional cujo principal objetivo era manter a paz. Entretanto, ainda

durante as conversações de paz é discutida a responsabilidade dos Estados que

haviam declarado ou participado da guerra ofensiva, “A base para a cobrança de

indenizações de guerra, decorrentes do uso ilegal da força armada, é consequência

[dessa] apuração de responsabilidade” (HUCK, 1996, p. 73).

Apesar das duras críticas que o Pacto da Sociedade das Nações (1919)

sofreu, é importante lembrar que ele não foi elaborado como um documento jurídico,

119 “An action is always either legal or illegal; it cannot be partly legal. In contrast, legitimacy is fluid and changing – it depends on perceptions and outcomes.”

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mas político. Mesmo assim, não se pode negar a sua importância em tornar a guerra

oficialmente matéria de direito público, conforme se depreende da leitura do artigo

11120 do referido Pacto, vez que ele prevê que toda guerra ou ameaça de guerra é

de interesse da Sociedade das Nações. Não obstante, Huck (1996, p. 74) ressalta

que a guerra deixa, “[...] de ter conotações de um duelo particular, pois reconhecia-

se que o rompimento da paz, em qualquer ponto do mundo, afetava diretamente a

toda a comunidade internacional, Membros ou não da Sociedade das Nações”.

Ademais, vale ressaltar que mesmo na esfera política o Pacto não conseguiu

dar à Sociedade das Nações um caráter universal, vez que Estados Unidos e

Rússia, duas importantes potências da época, se recusaram a assinar o Pacto,

enfraquecendo significativamente a Sociedade.

O Pacto declarou a guerra ilegal, o último meio a ser utilizado pelos Estados.

E para que isso pudesse ser colocado em prática foram criados mecanismos para a

solução pacífica de conflitos, sendo a guerra admitida apenas quando todos os

outros meios houvessem fracassado. O direito de recorrer à guerra pode ser

claramente percebido no artigo 15.7 do Pacto (1919), cuja redação é a seguinte,

Art. 15. Se entre os Membros da Sociedade houver um litígio capaz de produzir um rompimento e se essa divergência não for submetida à arbitragem prevista pelo artigo 13, os Membros da Sociedade convirão em submetê-lo ao Conselho. Para isto basta que um deles avise do litígio o Secretário Geral, que tomará todas às disposições para um inquérito e um exame completos. [...] No caso em que o Conselho não consiga fazer aceitar seu parecer por todos os membros que não os Representantes de qualquer Parte do litígio, os Membros da Sociedade reservam-se o direito de agir como julgarem necessário para a manutenção do direito e da justiça. (grifo nosso)

Interessante notar que a guerra seria aceita apenas e tão somente depois que

a divergência fosse submetida a todas as soluções pacíficas e mesmo assim não

conseguisse ser resolvida, ou seja, a intenção era construir um meio objetivo para se

120 “Art.11. Fica expressamente declarado que toda guerra ou ameaça de guerra, quer afete diretamente ou não um dos Membros da Sociedade, interessará à Sociedade inteira e esta deverá tomar as medidas apropriadas para salvaguardar eficazmente a paz das Nações. Em semelhante caso, o Secretário Geral convocará imediatamente o Conselho a pedido de qualquer Membro da Sociedade.”

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classificar a guerra como justa ou não, descartando as antigas noções de

moralidade e religião que permeavam a legitimidade da guerra.

No período posterior ao Pacto da Sociedade das Nações até a eclosão da

Segunda Guerra Mundial, foram celebrados diversos tratados, tanto bi quanto

multilateral, que em maior ou menor grau reafirmavam que não se deveria recorrer à

guerra ofensiva. Como exemplo podemos citar o Tratado de Conciliação e Não-

Agressão, celebrado em 1933 entre Brasil, Argentina, México, Paraguai, Chile e

Uruguai, e os acordos entre Grécia e Romênia em 1928 e União Soviética e China

em 1937.

Contudo, todos os tratados e acordos celebrados durante a época não foram

suficientes para evitar a Segunda Guerra Mundial. Além disso, faz-se necessário

destacar que, “[...] vários argumentos teóricos, expendidos nesse período,

rejeitavam a afirmação de que a guerra era ilegal e que seria admitido o uso da força

apenas em legítima defesa, insistindo na guerra como manifesta expressão da

soberania dos Estados” (HUCK, 1996, p. 76). Junta-se a isso a fragilidade da

Sociedade das Nações, oriunda em parte pela sua não ratificação por parte dos

Estados Unidos e da União Soviética, a falta de um sistema internacional que

pudesse dar segurança a toda a coletividade e os atos individuais de alguns Estados

ao reconhecer conquistas territoriais que se deram de forma violenta. A partir desses

fatores pode-se entender porque a guerra era ainda amplamente utilizada apesar de

toda a fachada montada para tentar torná-la ilegal.

3 ONU E A (I)LEGALIDADE DA GUERRA

Com o fracasso da Sociedade das Nações e o final da Segunda Guerra

Mundial, fazia-se necessário criar outro organismo internacional que pudesse

efetivamente prevenir a guerra, através da concepção de mecanismos pacíficos de

solução de controvérsias. Foi com esse objetivo em mente que foi criada em 1945 a

ONU, tendo sido a sua Carta ratificada inicialmente por cinquenta países, hoje conta

com 193 Estados-membros.

Em seu preâmbulo, a Carta das Nações Unidas estabelece seu principal

objetivo e, interessante notar ainda que essa é a única vez que o vocábulo guerra é

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utilizado e ele é, “[...] revestido de um sentido amplo e genérico, sem conotações

jurídicas ou políticas [...]” (HUCK, 1996, p. 92),

NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. (CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945)

Outro ponto interessante que pode ser extraído a partir da leitura do

preâmbulo é que a utilização da força deverá ficar restrita ao interesse comum, ou

seja, a força só será legítima quando usada em prol de um bem maior.

Segundo Mello (2007, p. 1504), cada vez mais o uso da força passa

exclusivamente para as mãos da ONU, o que faz com que, pelo menos

teoricamente, os Estados percam o seu direito à guerra. Mello ainda afirma que o

emprego da força com o aval da ONU está mais para um exercício de um poder de

polícia do que um direito à guerra propriamente dito. Importante frisar, contudo, que

mesmo havendo uma imposição da ilegalidade da guerra, não quer dizer que os

Estados a abandonaram, “como razão última de suas políticas internacionais”

(HUCK, 1996, p.79).

O que é permitido pela Carta, segundo seu artigo 51121, é o direito à legítima

defesa, podendo o Estado recorrer ao uso da força em caso de agressão externa.

Outra ocasião em que se pode recorrer ao conflito armado é quando o Conselho de

Segurança da ONU, “[...] órgão decisório especializado formado por representantes

de quinze países membros das Nações Unidas [...]” (BYERS, 2007, p. 28), assim

determina para que seja restabelecida a paz e a segurança internacionais, ou seja,

quando há um bem maior em jogo. Esse é um ponto um tanto quanto controverso

haja vista que o Conselho de Segurança é formado por dez membros rotativos e

121 “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. [...]”.

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cinco permanentes, Estados Unidos, Inglaterra, França, China e Rússia, sendo que

apenas os permanentes têm poder de veto e, portanto, são os que ditam as regras.

Para que seja permitido o uso da força é necessário que haja uma resolução

do Conselho de Segurança que o autorize. Se qualquer um dos membros

permanentes votar contra uma resolução ela é automaticamente vetada. Caso não

haja veto, é preciso que nove membros votem a favor da resolução.

Não obstante, o Conselho ainda goza da prerrogativa de poder dizer quais

atos podem ameaçar a paz ou quais são atos de agressão, assim, o seu poder de

decisão é amplo e as suas resoluções têm caráter obrigatório, inclusive para

Estados que não são membros, pois o seu objetivo é algo do interesse de todos, a

manutenção da paz. Dessa forma, a sanção imposta pode ser tanto de natureza

econômica quanto militar.

3.1 A EXTENSÃO DA PROIBIÇÃO DO USO DA FORÇA

Com relação ao tema há duas correntes, uma que defende que a proibição

deve ser interpretada de forma restritiva, levando em consideração o sentido comum

das palavras, e outra que afirma que a sua interpretação deve ser ampla,

englobando o seu contexto e finalidade.

A restritiva fala que a Carta proibiu o uso da força em larga escala, já que em

seu artigo 2.4 a proibição é relativa à integridade territorial e política de um Estado e

à utilização da força para violar os princípios elencados na Carta. Nesse caso, para

atingir qualquer uma dessas duas proibições, além da força ter de ser em larga

escala, ela necessariamente tem que ser armada. Qualquer outro tipo de força

menos intensa não violaria as proibições. Importante ressaltar que em relação à

parte do artigo 2.4 que fala sobre a “integridade territorial e independência política”,

É bastante respeitável o número de autores que não admitem qualquer intuito restritivo nessa expressão, mas, ao contrário, uma “garantia mais específica aos pequenos Estados”, não lhes sendo aceitável o intuito de reduzir o campo de incidência da proibição. (BROWNLIE apud HUCK, 1996, p. 96)

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Ainda segundo Huck, a parte seguinte à supramencionada, “ou qualquer outra

ação incompatível com os propósitos das Nações Unidas”, levanta mais dúvidas e

controvérsias do que a sua antecessora. Ele afirma que alguns autores entendem

que essa parte não é limitadora, ela apenas reforça a ideia de que os Estados não

podem sob hipótese alguma utilizar a força. Há outros, entretanto, que não

entendem dessa forma. Huck menciona Julius Stone como um desses autores e diz

que quando o artigo 2.4 fala em utilização da força contra a integridade territorial e

política e contra os princípios elencados na Carta, ele estaria restringindo a

ilegalidade da violência para esses três casos específicos. Se a força for usada em

qualquer situação estranha a essas três ela poderia ser considerada lícita.

O que se viu, e ainda se vê, ao longo da história da ONU é que poucas vezes

ela foi capaz de adotar uma resolução condenando um ato como agressivo e

violador à segurança e à paz internacionais, e autorizando a utilização de forças

armadas para impedi-lo de continuar se perpetuando. Os interesses individuais dos

Estados, especialmente dos membros permanentes, muitas vezes acabam se

sobrepondo ao bem maior da coletividade.

4 A INVASÃO DO IRAQUE

A abordagem da Guerra do Iraque, também conhecida como Segunda Guerra

do Golfo, será feita a partir do entendimento da ONU sobre guerra, sendo abordado

também a legítima defesa preventiva. Será assim feito, pois o caso mais

emblemático e que melhor a representa é justamente a Guerra do Iraque, ocasião

na qual ela foi amplamente utilizada como argumento para justificar a invasão e

posterior guerra.

A intenção não é focar no aspecto histórico da Guerra, mas sim analisar os

motivos apresentados pelos Estados Unidos para justificá-la e o posicionamento

adotado pela ONU. Assim sendo, não nos aprofundaremos nos motivos de fato,

sejam eles econômicos ou estratégicos, que levaram os Estados Unidos a invadirem

o Iraque, apenas e tão somente nas suas justificativas apresentadas perante a ONU.

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4.1 PRIMEIRA GUERRA DO GOLFO

A Primeira Guerra do Golfo foi deflagrada em 1990 e teve como principal

motivação a intenção de Saddam Hussein no sentido de invadir e anexar o Kuwait e

a Arábia Saudita. Dentre as justificativas utilizadas por Saddam podemos citar a

queda no preço do barril de petróleo que, segundo o ditador iraquiano, se deu pelo

fato do Kuwait ter vendido uma cota maior do que a permitida pela Organização dos

Países Exportadores de Petróleo (OPEP), e a recusa em perdoar a dívida contraída

pelo Iraque durante a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), cujos principais credores eram

o Kuwait e a Arábia Saudita, e o pagamento de uma indenização.

Receosos de que o Iraque poderia se tornar uma potência regional, vez que

dominaria cerca de metade das fontes de petróleo do mundo, os Estados Unidos

decidiram por intervir, já que o poderio bélico detido pelo Iraque era

consideravelmente maior do que os dos outros Estados. Dessa forma, os Estados

Unidos acreditavam que somente uma intervenção externa seria capaz de barrar o

avanço iraquiano.

O objetivo era impedir que a balança de poder na região pendesse

demasiadamente para algum dos lados. Se apenas um Estado conseguisse dominar

as fontes de petróleo isso poderia prejudicar o fornecimento para o Ocidente,

ademais, um monopólio não seria nada vantajoso para os países que dependiam do

Oriente Médio para a compra de petróleo. Enquanto na Guerra Irã-Iraque os Estados

Unidos apoiaram e fomentaram as forças iraquianas de Saddam Hussein, agora os

polos se invertiam e o antigo aliado virou inimigo. Ademais, pode-se apontar pelo

menos três fatos relacionados à Guerra Irã-Iraque que culminaram na Primeira

Guerra do Golfo,

A crise da economia iraquiana após oito anos de batalha; a elevada dívida de guerra iraquiana com os países do Golfo Pérsico, em especial com o Kuwait e a Arábia Saudita; e, o desenvolvimento da indústria de guerra iraquiana, fomentada principalmente pelos armamentos da França e da URSS; todos estes eventos foram motivadores para a decisão iraquiana de se aventurar em uma nova guerra, apenas dois anos após o fim do conflito contra o Irã. (EBRAICO, 2005, p. 76)

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Apesar da preocupação norte-americana em evitar o desequilíbrio na balança

de poder da região, tal fato já havia ocorrido com o conflito entre Irã e Iraque, vez

que, além do Iraque ter recebido ajuda militar dos Estados Unidos e do Kuwait,

ainda perdeu territórios para o Irã e foi consequentemente abalado por uma crise

econômica, não conseguindo quitar nem obter o perdão das dívidas contraídas

durante a guerra. A ajuda militar norte-americana foi essencial para que Saddam se

considerasse protegido pelos Estados Unidos, pois sem sua intervenção

provavelmente seu regime teria sido derrubado. Dessa forma, Saddam acredita que

os Estados Unidos não interviriam caso invadisse o Kuwait, “[...] a visão de mundo

do ditador era canhestra, obtusa e o impediu de entender que uma potência global

como os Estados Unidos jamais toleraria que um só país – o Iraque – pudesse com

a invasão do Kuwait controlar a maior parte do petróleo da região” (MAGNOLI, 2006,

p. 455).

No dia dois de agosto de 1990 o Iraque invade o Kuwait e em poucas horas o

ocupa e anexa o seu território. O que aconteceu a seguir foi uma série de

negociações. Demonstrado o seu poderio bélico, o Iraque buscava obter concessões

por parte do Kuwait. Logo chegou-se a um consenso, inclusive entre os antigos

aliados do Iraque, de que as tropas de Saddam Hussein deveriam ser retiradas do

Kuwait mesmo que à força.

Martin Indyk (1991) aponta que a Guerra do Golfo foi produto de vários erros

de cálculo,

[...] em primeiro lugar pelo Kuwait e pelos aliados árabes dos Estados Unidos, que simplesmente não conseguiram imaginar que Saddam Hussein usaria o poder militar contra eles (especialmente poder que eles o ajudaram a acumular). Também foi um erro de avaliação por parte dos Estados Unidos, que deveriam ter melhor entendido as implicações da derrota do Irã pelo Iraque para a balança regional de poder e deveriam ter mudado a sua política de acomodação para contenção. Por último, a guerra foi um grande erro de cálculo por parte do próprio Saddam Hussein. Tendo em vista a extensão e a sofisticação dos seus programas de arma nuclear, é espantoso que ele não tenha esperado meros 18 meses, se isso, até que ele tivesse adquirido um dispositivo nuclear antes de embarcar em sua aventura kuwaitiana. Que ele não tenha esperado talvez tenha se dado em parte por sua incapacidade de alimentar simultaneamente o crescimento econômico iraquiano e suas ambições militares. Mais provavelmente pode ser atribuído à sua errônea visão estratégica – que os sauditas não ameaçariam seu fato consumado, convidando forças infiéis para defender o reino islâmico e que, mesmo que o fizessem, um Estados Unidos pós-

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Guerra Fria pouco provavelmente entraria em guerra pelo Kuwait quando Saddam estava oferecendo garantir o fornecimento de óleo americano.122 (tradução nossa)

Em agosto de 1990 o Conselho de Segurança da ONU aprovou a resolução

de número 660, condenando a invasão do Kuwait pelo Iraque e determinando a sua

retirada imediata. Poucos dias depois, e sem que o Iraque tivesse desocupado o

Kuwait, o Conselho passou a resolução 661, reiterando a resolução anterior e

impondo sanções econômicas contra o Iraque, dentre elas, proibição de importação

e exportação tanto de produtos iraquianos quanto kuwaitianos, exceto

medicamentos e alimentos, e proibição também da entrada e saída de investimentos

financeiros.

Uma coalizão entre Estados Unidos e Inglaterra foi feita e as tropas dos dois

países conseguiram facilmente retirar os soldados iraquianos que estavam

ocupando o Kuwait. O que se seguiu, entretanto, não foi exatamente o esperado, os

Estados Unidos acabaram por não derrubar o regime de Saddam Hussein. Isso se

deu primeiramente por não haver qualquer autorização da ONU nesse sentido. Em

segundo lugar, os Estados Unidos temiam que uma ocupação do Iraque acabasse

sendo mal vista pela população e que com a queda do regime, o Iraque fosse

desmembrado, causando grande instabilidade na região. Os Estados Unidos

acreditavam que Saddam Hussein seria derrubado sem precisar de qualquer

intervenção. Contudo, ele não apenas se manteve no poder como conseguiu o apoio

dos sunitas e reagrupar as suas tropas.

A autorização por parte da ONU só seria dada em 29 de novembro de 1990,

através da resolução 678. Nela, o Conselho de Segurança aprova a utilização de

122 “[...] in the first place by Kuwait and America’s Arab allies, which simply could not imagine that Saddam Hussein would use military power against them (especially power they had helped him to accumulate). It was also a failure of assessment on the part of the United States, which should have better understood the implications of Iraq’s defeat of Iran for the regional balance of power and shifted its policy toward Iraq from accommodation to containment. Finally, the war was a massive miscalculation by Saddam Hussein himself. Given the extent and sophistication of his nuclear weapons programs it is astonishing that he did not wait the mere 18 months, if that, until he had acquired a nuclear device before embarking on his Kuwaiti adventure. That he did not wait may have been due in part to his inability to fuel Iraq’s economic growth and his military ambitions simultaneously. More likely it is attributable to his flawed strategic vision—that the Saudis would not dare challenge his fait accompli by inviting infidel forces to defend the Islamic kingdom and that, even if they did, a post-Cold War United States was unlikely to go to war for Kuwait when Saddam was offering to guarantee American oil supplies.”

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quaisquer meios necessários para se fazer cumprir as resoluções anteriores.

Contudo, primeiramente é concedido um prazo para que o Iraque retire

voluntariamente as suas tropas, prazo este que findava no dia 15 de janeiro de

1991.

Esgotado o prazo sem que Saddam retirasse suas tropas, as forças de

coalizão, lideradas pelos Estados Unidos, começam os ataques aéreos. No final de

fevereiro é dado início à operação Desert Storm e rapidamente as tropas iraquianas

marcham em retirada.

Apesar da interrupção das hostilidades e da declaração unilateral por parte

das forças de coalizão de um cessar-fogo em 27 de fevereiro de 1991, ele é

oficialmente assinado pelos representantes iraquianos apenas no dia 3 de março.

Foi nesse mesmo dia que o Conselho de Segurança aprovou a resolução nº 687. De

acordo com ela, Iraque e Kuwait deveriam respeitar suas fronteiras, o Iraque teria

que se desfazer de suas armas de destruição em massa e não mais desenvolvê-las,

além de permitir que inspeções fossem feitas. Ademais, o Iraque foi

responsabilizado por todos os danos causados ao Kuwait e pelos débitos que havia

contraído anteriormente, assim, qualquer declaração por sua parte de que não os

pagaria foi considerada nula.

Não obstante, um ponto extremamente relevante da resolução 687 é seu

último parágrafo, que declara que o Conselho de Segurança continuaria a se ocupar

da questão do Iraque e poderia adotar os meios necessários para assegurar a

resolução e manter a paz e a segurança na região. Tal parágrafo acaba dando

margem para interpretação de que a força poderia ser utilizada contra o Iraque caso

não cumprisse a resolução.

A Primeira Guerra do Golfo foi um importante marco para a ONU e em

especial para o Conselho de Segurança, pois conseguiu provar a sua competência

em exercer um papel decisivo nos conflitos internacionais. Contudo, faz-se

necessário destacar que a sua capacidade de intervir de forma efetiva pode ser

atribuída em grande parte ao apoio norte-americano. Sem ele o Conselho de

Segurança pouco pôde fazer, por exemplo, para cessar o ataque da Sérvia contra a

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Croácia e a Bósnia123, conhecida como Guerra da Bósnia. Durante a maior parte do

conflito, a ONU se limitou a mandar tropas para ajuda humanitária e missões de paz.

Mas talvez o maior exemplo da impotência da ONU perante o poderio da única

superpotência no pós-Guerra Fria seja a invasão do Iraque em 2003.

4.2 DOUTRINA BUSH E GUERRA PREVENTIVA

A data de 11 de setembro de 2001 marcou de forma extremamente

significativa a história dos Estados Unidos e também do mundo. Isso se deu não

apenas pelo ataque ao World Trade Center, mas também pelo início de uma nova

política externa e a consequente declaração, por parte do então presidente dos

Estados Unidos, George W. Bush, da Guerra ao Terror.

Com os atentados às Torres Gêmeas, Bush passa a adotar uma nova

doutrina, que ficou conhecida como Doutrina Bush, “Os Estados Unidos, o Estado

mais poderoso da história, anunciaram uma nova estratégia nacional de segurança

afirmando que iriam manter permanentemente a hegemonia global. Qualquer

desafio será bloqueado pela força, a dimensão na qual os EUA reinam supremos”

(CHOMSKY, 2003, tradução nossa)124.

123 Apesar desse tema não ser objeto de estudo do presente artigo, mister ressaltar alguns peculiaridades que ajudam a melhor entender como se relacionam a proibição da guerra, o Conselho de Segurança e as grandes potências, com maior ressalto para os Estados Unidos. A Guerra da Bósnia (1992-1995) foi um conflito de natureza principalmente territorial e resultou da desintegração da Iugoslávia. Após a declaração de independência da República da Bósnia e Herzegovina da Iugoslávia, os sérvios bósnios, apoiados pelo presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, e com o objetivo de garantir território sérvio, mobilizaram as suas forças dentro da República da Bósnia. A partir daí o conflito se espalhou por todo o país e cessou apenas com um armistício assinado na base norte-americana de Dayton. A priori os Estados Unidos preferiram não intervir, alegando que aquele era um problema da Europa. Além disso, a população norte-americana não apoiava a intervenção. Foi apenas no final da guerra que eles passaram a participar de forma mais contundente. As duas principais razões para essa mudança de atitude foram o ataque a Srebrenica, onde mais de 7 mil pessoas foram mortas, e a noção que a Bósnia estava atrapalhando a política externa norte-americana. O fato de a Organização do Tratado do Atlântico Norte e os Estados Unidos pouco estarem fazendo para acabar com a guerra manchava a imagem e a credibilidade dos Estados Unidos. Ver: FERREIRA, Renata Barbosa. A Guerra da Bósnia: 1992-1995 Fatores Explicativos da Prática da Limpeza Étnica Perpetrada pelos sérvios contra os mulçumanos-bósnios. 232f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Disponível em: <http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/Busca_etds.php?strSecao=resultado&nrSeq=2664@1>. Acesso em: 15 fev. 2015. 124 “The United States, the most powerful state in history, announced a new national security strategy asserting that it will maintain global hegemony permanently. Any challenge will be blocked by force, the dimension in which the US reigns supreme.”

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A priori, o princípio norteador dessa doutrina era de que os países que

abrigassem ou dessem apoio a terroristas seriam tratados como terroristas. Mais

tarde outros princípios foram incorporados, dentre eles, os ataques preemptivos, que

seria usado para barrar ameaças tanto aos Estados Unidos como aos seus aliados,

a democracia como forma de barrar o avanço do terrorismo e a utilização, ainda que

unilateral, de poderio bélico. Dessa forma, podemos apontar dois objetivos da

doutrina Bush, o primeiro deles é combater o terrorismo e o segundo é garantir a

ordem internacional através da expansão da democracia, especialmente nos

Estados considerados inimigos, a exemplo da invasão do Iraque (BATISTA;

PECEQUILO, 2009).

Palacios Jr. explica melhor a Doutrina Bush ao dizer que,

A suposta inovação da “doutrina Bush” foi alegar que as estratégias dissuasórias não funcionavam mais contra líderes tirânicos e seus programas de armamento de destruição em massa, tampouco contra as organizações terroristas e os fanáticos religiosos. A alternativa seria usar a estratégia da “preempção”, e, no caso, por meio de ataques militares alimentados por inteligência de qualidade, seria possível impedir que um inimigo “concretizasse suas ameaças”. (PALACIOS JR., 2013, p. 107)

Baseando-se na obra de Tucídides, História da Guerra do Peloponeso,

Palacios Jr. afirma que a guerra preventiva não é uma guerra, mas uma justificativa,

pois ela traz a noção de querer defender-se de um ataque iminente. Da obra de

Tucídides advém a noção clássica de guerra preventiva, baseada na militarização de

Atenas e no medo de que isso poderia representar uma ameaça às demais cidades-

Estados. Dessa forma, são dois os elementos que compõem a guerra preventiva

clássica,

[...] o temporal (antecipação) e a percepção da capacidade de poder e intenção das demais unidades políticas. [...] Com efeito, Tucídides se esforçou em esclarecer que a guerra preventiva é uma guerra iniciada antecipadamente (fator temporal) por unidades políticas que temem que outras transformem o equilíbrio de poder em assimetria desfavorável (fator equilíbrio de poderes). (PALACIOS JR, 2013, p.111)

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Tendo em vista o supramencionado, o autor conclui que guerra preventiva

nada mais é do que a luta do fraco contra o forte ou de dois Estados com poderio

bélico similares, na qual um toma a iniciativa de atacar o outro por medo que o

inimigo aglutine mais poder, ameaçando a sua segurança.

Aqui podemos traçar um paralelo entre a Teoria Realista das Relações

Internacionais e a doutrina Bush. Primeiramente, vale ressaltar três conceitos

importantes do realismo, o de que os Estados são os atores por excelência no

âmbito internacional, “[...] o fato do comportamento destes ser influenciado mais

pelas características do sistema do que por suas características internas e o fato de

que os cálculos de poder dominam as ações dos Estados, levando os mesmos a

uma competição por poder” (BATISTA; PECEQUILO, 2009, p. 66). Além desses,

outros fatores relevantes são a anarquia125 que impera no sistema internacional e o

dilema de segurança, segundo o qual o aumento do poder de um Estado causa

insegurança nos demais e, consequentemente, eles passam a se armar mais para

tentar contrabalançar a diferença de forças, gerando mais insegurança e temor pela

sua sobrevivência.

Em relação ao poder, o realista Hans Morgenthau (2003, p. 42) dá uma

grande importância para ele, especialmente quando se trata de política internacional,

A política internacional, como toda política, consiste em uma luta pelo poder. Sejam quais forem os fins da política internacional, o poder constitui sempre o objetivo imediato. Os povos e os políticos podem buscar, como fim último, liberdade, segurança, prosperidade ou o poder em si mesmo. Eles podem definir seus objetivos em termos de um ideal religioso, filosófico, econômico ou social. Podem desejar que esse ideal se materialize, quer em virtude de sua força interna, quer graças à intervenção divina ou como resultado natural do desenvolvimento dos negócios humanos. Podem ainda tentar facilitar sua realização mediante o recurso a meios não políticos, tais como cooperação técnica com outras nações ou organismos internacionais. Contudo, sempre que buscarem realizar o seu objetivo por meio da política internacional, eles estarão lutando por poder.

125 O termo anarquia ao qual aludimos não é aquele ligado à teoria anarquista. Aqui, anarquismo é utilizado para descrever a sociedade internacional, um âmbito em que todos os Estados são soberanos e não há nenhuma entidade acima deles que possa coagi-los a, por exemplo, colocar em prática um tratado celebrado com outros Estados, bem diferente do que ocorre internamente, quando o Estado tem o poder de coerção sobre os seus cidadãos.

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Além disso, Morgenthau destaca a importância da violência física no campo

da política internacional, vez que tanto a ameaça quanto a potencialidade do uso da

violência são um fator intrínseco e essencial na construção da política de uma

nação. Quando essa ameaça se torna realidade, sai de cena o poder político e entra

o poder militar.

A partir daí já podemos traçar o primeiro paralelo entre o pensamento realista

e a doutrina Bush, que é justamente a violência física, tanto em relação à sua

potencialidade quanto à sua concretização. A Estratégia de Segurança Nacional é

clara quanto a isso ao afirmar que,

É hora de reafirmar o papel essencial do poderio militar americano. Nós devemos construir e manter nossas defesas acima de qualquer desafio. A prioridade mais alta de nossas forças armadas é defender os Estados Unidos. Para fazer isso de forma eficiente, nossas forças armadas precisam:

assegurar nossos aliados e amigos;

dissuadir futura competição militar;

deter ameaças contra interesses, aliados e amigos norte-americanos; e

derrotar de forma decisiva qualquer adversário se a retenção não funcionar.

A incomparável força das tropas norte-americanas [...] manteve a paz em algumas das regiões mais estrategicamente vitais do mundo. (THE NATIONAL SECURITY STRATEGY OF THE UNITED STATES OF AMERICA, 2002, p. 29, tradução nossa)126

Ademais, a violência supramencionada inclui também o poderio nuclear.

Dessa forma, o chamado hard power127 tem uma relevância maior do que o soft

power128, que acaba relegado para o segundo plano.

126 “It is time to reaffirm the essential role of American military strength. We must build and maintain our defenses beyond challenge. Our military’s highest priority is to defend the United States. To do so effectively, our military must:

assure our allies and friends;

dissuade future military competition;

deter threats against U.S. interests, allies, and friends; and

decisively defeat any adversary if deterrence fails. The unparalleled strength of the United States armed forces […] have maintained the peace in some

of the world’s most strategically vital regions.”

127 Hard power, também chamado de poder duro, é representado pelo poder bélico e econômico que um Estado possui, e pode se manifestar tanto através da ameaça como da persuasão. 128 Soft power, ou poder brando, é um conceito desenvolvido pelo professor da Universidade de Harvard Joseph Nye e consiste no poder de atração que um Estado exerce sobre os demais. É fazer com que os outros Estados o sigam através do exemplo. O soft power tem três fontes, a cultura, os

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Tendo o poder um importante papel tanto para o realismo como para a política

norte-americana, os Estados Unidos acabam por projetar o seu poder no âmbito

internacional. Não obstante, podemos apontar o racionalismo como balizador da

busca pelo poder. Os Estados agem racionalmente com o objetivo de maximizar o

seu poder e garantir a sua segurança, fazendo com que a luta entre os Estados seja

quase que inevitável,

No contexto presente, esta luta seria representada pelo surgimento de focos de contestação das ações terroristas, que levariam ao surgimento de um novo inimigo, que deve ser combatido como o comunismo soviético o fora, a despeito das diferenças entre os fenômenos no que se refere a sua natureza (não-estatal X estatal). (BATISTA; PECEQUILO, 2009, p. 67)

A interpretação supramencionada é baseada no entendimento de Morgenthau

acerca do realismo. Batista e Pecequilo (2009) apresentam visão diversa de outro

autor realista chamado Mearsheimer (2001). Utilizando o pensamento de

Mearsheimer acerca das relações internacionais, o comportamento norte-americano

poderia ser explicado através da busca da contenção da anarquia internacional. O

posicionamento agressivo e expansivo adotado pelos Estados Unidos na sua

Estratégia de Segurança Internacional poderia ser explicado pelo medo de ser

derrubado da sua posição hegemônica. Assim, sendo o sistema internacional

permeado pela luta entre os Estados em busca do poder e da hegemonia, nada mais

natural do que um Estado que esteja numa posição hegemônica aja de forma

agressiva, "Força garante segurança [...]. Estados enfrentando esse incentivo estão

destinados a entrarem em conflito enquanto um compete para obter vantagem sobre

os demais. [...] conflito e guerra continuarão sendo aspectos grandes e constantes

da política mundial.” (MEARSHEIMER, 2001, p. xi-xii, tradução nossa)129

Outro ponto importante da doutrina Bush se refere à expansão da democracia

como forma de garantir a segurança internacional. Essa expansão, contudo, além de

valores políticos como democracia e liberdade, e a legitimidade da política externa, que nada mais é do que a percepção que as outras nações têm de uma determinada política externa, quanto mais legítima lhes parecer, maior será o poder de persuasão de um Estado. NYE, Joseph. Soft power: the means to success in world politcs. New York: Public Affairs, 2004. 129 “Strength ensures safety […]. States facing this incentive are fated to clash as each competes for advantage over the others. […] conflict and war are bound to continue as large and enduring features of world politics.”

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ser, num primeiro momento, pacífica, usando a força apenas em última instância, é

baseada nos interesses nacionais dos Estados Unidos. Tal ponto de vista é

defendido por Charles Krauthammer (2004). De acordo com ele, os atentados de 11

de setembro foram uma forma de relembrar que os regimes totalitaristas não haviam

acabado com o fim da Guerra Fria e que a unipolaridade gozada pela predominância

do poder norte-americano estava sendo colocada em xeque em face de uma nova

ameaça.

Para Krauthammer (2004), a democracia é o meio e o fim da política externa.

Assim, a resposta para o 11 de setembro é justamente a expansão da democracia,

cujos encabeçadores são George W. Bush e o primeiro ministro da Inglaterra, Tony

Blair. Para o referido autor, Estados democráticos são os mais estáveis e confiáveis.

Contudo, conforme supramencionado, a democracia deve ser levada apenas para

pontos estratégicos, a fim de maximizar a sua eficácia e de não esgotar os recursos

norte-americanos, fazendo, assim, com que os Estados Unidos mantenham a sua

posição hegemônica.

Batista e Pecequilo (2009, p. 71) apresentam algumas críticas acerca da

doutrina Bush ao afirmarem que,

[...] na visão de muitos analistas, a Doutrina Bush se apresenta contraproducente no sentido de proporcionar maior segurança ao Sistema Internacional, já que sua postura unilateral e agressiva pode resultar em maior insegurança e instabilidade no sistema, na medida em que outros Estados também podem fazer uso da Doutrina, visando sua segurança, o que levaria a um aumento das hostilidades e maior possibilidade de ocorrer conflitos. Tal atitude gera o descrédito de organismos e sanções internacionais, já que as ações dos países poderiam ser justificadas considerando-se apenas sua própria segurança e autonomia. Analisamos que o unilateralismo do governo Bush filho tende a gerar isolamento e desgaste dos recursos de poder e da credibilidade do país [...].

Levando em consideração todo o supramencionado acerca da doutrina Bush,

podemos concluir que ela possui uma visão extremamente unilateral e agressiva

sobre como os Estados Unidos devem se posicionar em relação ao mundo,

especialmente acerca de seus inimigos. A sua concretização ajudou a colocar em

xeque a real importância e relevância dos organismos internacionais. Todavia, não

há como negar que ela foi, e ainda é, fonte de diversos debates, dentre eles o da

guerra preventiva.

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A tradição da guerra justa é antiga e permeia o discurso de vários Estados

como forma de justificar uma guerra. Em relação especificamente à guerra

preventiva, analisaremos a sua legitimidade de acordo com essa tradição.

O primeiro tema relevante é a consideração de que há guerras justas e

injustas. A justiça de uma guerra se encontra, de acordo com a escola medieval, no

julgamento moral de suas motivações e de seus objetivos. Dessa forma, e sendo a

agressão considerada um crime contra a paz, a guerra ofensiva deve ser punida.

Como já falamos anteriormente, a sociedade internacional é anárquica, portanto,

não há uma força internacional capaz de reprimir esse tipo de crime. Assim, cabe

aos Estados soberanos se defenderem da agressão. Mas não apenas se

defenderem, segundo Palacios, eles também podem punir a agressão, decorrendo a

partir daí dois aspectos fundamentais da guerra justa, de acordo com Walzer (2004,

apud PALACIOS JR., 2013, p. 115-116),

1. a) um Estado que é vítima de agressão luta em legítima defesa, porque a agressão é um crime contra a sociedade internacional como um todo, pois fere o princípio de não-intervenção; b) toda resistência é considerada execução da lei contra a agressão;

2. a) sempre deve haver um Estado ao qual a lei deve ser imposta, alguém deve ser responsabilizado por interromper a paz; b) nenhuma guerra pode ser, nesses termos, justa dos dois lados; c) nas guerras em que há dúvida sobre qual causa é justa ou sobre quem é o agressor, assume-se que a guerra é injusta por ambas as partes, como acontece nas guerras aristocráticas e imperialistas, nas quais a noção de justiça nitidamente não se aplica.

Conforme os aspectos apresentados, a guerra preventiva seria injusta, algo

que vai na contramão do pensamento realista, já que para os adeptos dessa

corrente, a guerra é uma forma de manter o equilíbrio da balança de poder. Walzer,

contudo, admite uma forma de autodefesa. A preempção depende que o ataque

além de real e iminente, tenha grandes magnitude e possibilidade de se concretizar,

não tendo o Estado chance, meios ou tempo para deliberar.

Palacios Jr. (2013, p. 120) aponta que há três interpretações possíveis

quando falamos de guerra justa e direito internacional positivado: "a) pela Carta da

ONU as guerras preventivas são ilegais; b) pela Carta da ONU as guerras

preventivas são legais; e c) as guerras preventivas são ilegais, salvo se aprovadas

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pelo Conselho de Segurança da ONU."

A Carta da ONU, num primeiro momento, traz a guerra como um ato proibido.

Em outras palavras, os Estados não poderiam exercer a sua soberania de forma

plena. Contudo, essa é uma visão mais generalizada e não leva em consideração as

exceções e a própria prática da ONU, especificamente do Conselho de Segurança e

suas decisões caso a caso, no que se refere à guerra.

Nesse sentido, o Conselho de Segurança tem o poder de deliberar se uma

agressão é ou não permitida, tendo sempre como norteador usar a força somente

em última instância. Assim, as exceções ao uso da força são: legítima defesa

individual ou coletiva; ações para a manutenção da paz; lutas que envolvam a

autodeterminação de um povo; e ações humanitárias. Para o presente artigo a

exceção relevante é a legítima defesa, pois a guerra preventiva é considerada uma

de suas modalidades. Dessa forma, a legítima defesa envolve a autoajuda, o que

significa dizer que ela nada mais é do que a resposta da força legal contra a força

ilegal. Dentro desse contexto, Palacios Jr. (2013, p. 126-127) afirma que,

Surge aqui a questão: qual é a pedra de toque entre a guerra preventiva e a legítima defesa no enquadramento da segurança coletiva da ONU? As possíveis respostas decorrem das interpretações do art. 51 da Carta da ONU. Para aqueles que negam que a guerra preventiva seja legal, o argumento é que o art. 51 explicita que a legítima defesa só pode ocorrer após um Estado sofrer um ataque armado. Portanto, a legítima defesa representa um “contra-ataque”. Outros defendem a legalidade da guerra preventiva por ser uma modalidade de legítima defesa, argumentando que um Estado não precisa sofrer um ataque para poder agir antecipadamente em legítima defesa, porque, se assim fosse, o exercício desse direito seria totalmente condicionado ao timing do agressor. Porém, este segundo parecer foi descartado pela Corte Internacional de Justiça no caso da Nicarágua e os membros da Corte entenderam que o termo “ataque armado” não é desproposital no art. 51; do contrário, os redatores teriam optado pela terminologia “agressão”, como aparece em outros artigos da Carta. Fica implícito que o ataque armado é um tipo de agressão, no caso, o único tipo de agressão que pode validar o direito de um Estado de atacar em legítima defesa.

Assim, de acordo com o entendimento supramencionado, a única forma

aceitável de guerra preventiva seria aquela em que um Estado está se preparando

militarmente para atacar o outro e desde que o caso seja levado ao conhecimento

do Conselho de Segurança.

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Após os atentados de 11 de setembro, voltou à tona a questão da guerra

preventiva. Não que esse fosse um tema novo, tendo sido alegado quando os

Estados Unidos bombardearam a cidade de Trípoli, em 1986, argumentando que lá

havia terroristas, inclusive apoiados pelo governo de Muamar Kadafi. O então

secretário de Estado, George Shultz, declarou que a Carta da ONU previa a legítima

defesa e que seria absurdo o direito internacional proibir qualquer ação relativa ao

ataque ou apreensão de terroristas, aí incluindo-se o ataque a Estados que o

apoiassem (BYERS, 2007). Tal posicionamento não recebeu o apoio de outros

países.

Byers chama a atenção para o fato de que os Estados Unidos costumam usar

o direito internacional para justificar e conseguir apoio para as suas ações, ao

mesmo tempo em que tentam dissuadir os demais Estados de usar a força. Essa

contradição está diretamente ligada com a necessidade dos Estados Unidos de criar

e alterar as leis em seu favor. Nessa esteira, a doutrina Bush adotou um

entendimento mais alargado sobre legítima defesa,

Em discurso na academia militar de West Point, Bush tratou da questão da ameaça das armas de destruição em massa (ADM) em relação ao terrorismo internacional. O presidente defendia um certo grau de direito de preempção que se estendesse ao emprego preventivo – e mesmo cautelar – da força: “Devemos levar a batalha até o inimigo, impedir seus planos e fazer frente às mais graves ameaças, antes mesmo que se materializem.” Ainda que as ameaças não sejam iminentes, “se esperarmos que essas ameaças se materializem plenamente, teremos esperado demais”. A nova política – já agora identificada em geral como “Doutrina Bush” – sequer tentava atender aos critérios do Caroline. Não havia qualquer indicação de que se pretendesse esperar uma “necessidade de legítima defesa” que pudesse ser considerada “urgente, incontornável, sem oferecer opção de meios nem tempo para deliberação”. Esta nova política é questionável em vários níveis. (BYERS, 2007, p. 98)

A ironia no posicionamento dos Estados Unidos sobre as ADM encontra-se no

fato de eles terem se recusado a assinar tratados a respeito do controle delas e

mesmo quando assumiam essa obrigação, como por exemplo ao ratificarem o

Tratado de Não-Proliferação Nuclear, não só não a cumpria como ainda caminhava

no sentido oposto, acelerando seus programas de desenvolvimento de armas

nucleares. Além disso, era a ONU quem há décadas tomava a frente no sentido de

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tentar controlar esse tipo de arma e George W. Bush agora queria aparentemente

encabeçar essa iniciativa.

Diversos problemas surgem com esse posicionamento da doutrina Bush,

entre eles podemos apontar, essa legítima defesa ampliada se aplicaria a outros

países ou apenas e tão somente aos Estados Unidos? Abriria a doutrina Bush um

precedente para intervenção em território alheio com o objetivo de atacar alvos

terroristas específicos? Não se estaria intervindo na soberania estatal?

A doutrina acaba trabalhando numa via de mão única, pois sendo os Estados

Unidos a única superpotência, nenhum outro Estado se atreveria a violar o seu

território para atacar terroristas. Tanto é assim que ela não foi muito bem vista pelos

demais Estados e não foi adotada pelo direito consuetudinário internacional, cujo um

dos requisitos é a aceitação de uma norma pelos outros países.

Contudo, a ideia de legítima defesa preventiva sofre críticas, pois,

[...] os defensores do direito à legítima defesa preventiva focam-se na palavra “direito inerente dos Estados”, presente no art. 51 da Carta, tentando provar que o termo demonstra que a Carta preserva um direito ao acordado pelos Estados quando da criação da ONU, de que seria lícito atacar antecipadamente um Estado que representasse uma ameaça. [...] Entretanto, aqueles que privilegiam a palavra “inerente” ou “natural” no art. 51 o fazem em detrimento de todo o conteúdo restante da Carta, especialmente no que é disposto no art. 2º, §4º, de que todos os membros da ONU devem se abster do uso ou da ameaça do uso da força nas suas relações internacionais. (PALACIOS JR., 2013, p. 136-137)

Importante ressaltar que aqueles que defendem a legalidade da legítima

defesa preventiva se apoiam no fato de esse ser um conceito baseado no jus

cogens130. Eles deixam de lado, porém, a questão de o jus cogens ser melhor

representado no art. 2º da Carta da ONU, justamente aquele que proíbe o uso da

força.

130 Jus cogens é definido pelo art. 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, recepcionada pelo ordenamento pátrio através do decreto nº 7030/2009, como sendo, “[...] uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”. BRASIL. Decreto nº 7030/2009 de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7030.htm>. Acesso em: 31 mar. 2015.

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297

4.3 OPERATION IRAQI FREEDOM

Foi sob a égide da nova política externa, a Doutrina Bush, que os Estados

Unidos declararam, em 17 de março de 2003, o fracasso das tratativas diplomáticas

com o Iraque no sentido de desarmá-lo,

De acordo com Bush, na ausência de atitudes mais firmes das Nações Unidas e da reticência de diversos membros do Conselho de Segurança diante da necessidade de eliminar uma ameaça real à paz e estabilidade mundial, o ditador Saddam Hussein e seu arsenal de armas de destruição em massa, os Estados Unidos e seus aliados liderariam uma coalizão para libertar o Iraque deste jugo ditatorial. (PECEQUILO, 2003, p. 3)

Dessa forma, mesmo não tendo uma resolução da ONU que autorizasse a

invasão ao Iraque, os Estados Unidos se utilizaram da resolução nº 687,

mencionada anteriormente, e da resolução nº 1441 de 2002, segundo a qual caso o

Iraque desrespeitasse as obrigações a ele impostas, sofreria as consequências,

[...] a resolução não autorizava expressamente o emprego da força contra o Iraque, mas efetivamente corroborava, de certa maneira, o argumento de que uma anterior autorização, concedida em 1990, voltava a ter vigência em conseqüência das “violações materiais” cometidas pelo Iraque em relação à resolução de cessar-fogo de 1991. (BYERS, 2007, p. 103)

Mister ressaltar, contudo, que as sanções impostas ao Iraque ao final da

Primeira Guerra do Golfo, apesar de legais, foram extremamente severas,

Em abril de 1991 a ONU estabeleceu o que seria o regime de sanções contra o Iraque, obrigado a admitir a presença de grupos de inspetores que desmantelariam os programas de armas químicas, bacteriológicas e nucleares. Foi imposto também um boicote ao Iraque e criado um comitê para supervisionar a aplicação de medidas que congelaram os bens do Iraque no exterior, e a proibição de comércio exterior, a não ser para importação de alimentos e remédios dentro de um programa conhecido como “petróleo por comida”, iniciado em 1995. Esse sistema durou sete anos e foi reconhecido como um dos mais draconianos jamais impostos a um país derrotado. A principal vítima foi a população civil do Iraque, que registrou o retomo de altos índices de desnutrição e mortalidade infantil, indicadores sociais que tinham se alterado positivamente no primeiro período da ditadura de Saddam. O governo não se viu impedido de comprar

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armas, nem de facilitar o enriquecimento dos clãs com os quais Saddam reconstituiu sua base de poder. Mas o efeito das sanções foi rigoroso, e se parecia ao famoso catch 22: não haveria suspensão das sanções enquanto as reparações de guerra não fossem pagas, mas as reparações de guerra não poderiam ser pagas se as sanções não fossem suspensas. (MAGNOLI, 2006, p. 465)

Num discurso realizado no dia 17 de março de 2003 (BUSH, 2003), o

presidente norte-americano declarou que passados mais de 10 anos da Primeira

Guerra do Golfo, o governo iraquiano não teria cumprido com a sua parte no acordo

de paz no sentido de aniquilar todas as armas de destruição em massa que estariam

em sua posse. Mesmo com a aprovação de várias resoluções perante o Conselho

de Segurança e mesmo com o envio, por diversas vezes, de inspetores, as

autoridades iraquianas os teriam enganado, escondendo as armas de destruição em

massa. Bush afirmou também que o Iraque, com essa atitude, havia ameaçado tanto

os seus vizinhos, quanto os Estados Unidos e seus aliados.

Interessante notar que Bush mencionou a tentativa de passar uma resolução

no Conselho de Segurança justificando uma possível invasão ao Iraque, mas,

segundo ele, países com poder de veto se posicionaram contra, o que fez com que

os Estados Unidos desistissem de tentar aprovar tal resolução.

Bush ainda deu um prazo de 48 horas para que Hussein e sua família saísse

do Iraque a fim de evitar uma invasão liderada pelos Estados Unidos, sugestão essa

que não foi aceita. Findado o prazo, no dia 19 de março de 2003, Bush anunciou o

início da guerra. Em seu discurso, ele afirmou que os Estados Unidos não tinham

qualquer interesse na região, exceto acabar com a ameaça que Saddam Hussein

representava e devolver o poder para o povo, daí derivando o nome da operação

militar chamada de Operação Liberdade do Iraque. Além disso, o primeiro passo

havia sido dado no sentido de atacar pontos militares estratégicos, com o objetivo de

diminuir a possibilidade de Saddam Hussein contra-atacar as forças aliadas aos

Estados Unidos. Pode-se perceber, portanto, ao menos no discurso proferido pelo

presidente Bush, que se tratava de uma guerra com moldes claramente preventivos,

estava-se colocando em prática a legítima defesa preventiva.

Um ponto relevante que foi levantado pela guerra do Iraque é até onde vai o

poder de atuação dos organismos internacionais, vez que estão subordinados, “[...] à

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vontade de seus membros, e as restrições práticas à ação dos que se opõem à

liderança dos Estados Unidos diante de seus significativos recursos de poder,

principalmente os militares” (PECEQUILO, 2003, p. 3). Não obstante, ainda pôde-se

observar que houve uma grande adesão à causa americana, com alguns Estados se

mostrando contra a guerra, enquanto outros optaram por participar da coalização.

Dentro desse último grupo há aqueles Estados que escolheram se subordinar à uma

nação mais forte com o objetivo de obter vantagens pessoais.

Pouco tempo após a invasão do Iraque, Chomsky (2003) fez duras críticas à

atitude norte-americana tanto em relação à doutrina Bush como à invasão em si,

O que é para ser “protegido” é o poder americano e os interesses que ele representa, não o mundo, que vigorosamente se opôs à concepção. Dentro de poucos meses estudos revelaram que o medo dos Estados alcançou elevados níveis, juntamente com a desconfiança da liderança política. Uma votação internacional da Gallup em dezembro, pouco notada nos Estados Unidos, constatou que praticamente não havia apoio para os planos anunciados por Washington para uma guerra no Iraque realizada “unilateralmente pela América e seus aliados”: na realidade, a “coalizão” Estados Unidos-Reino Unido. (tradução nossa)131

Chomsky ainda critica a posição norte-americana perante a ONU, vez que os

Estados Unidos disseram que a ONU poderia ser útil e relevante apoiando a nova

estratégia norte-americana. Ikenberry (2002) menciona que essa nova estratégia

tem um viés imperialista e mostra os Estados Unidos como um país revisionista.

Segundo Chomsky (2003), para uma potência hegemônica não é suficiente

apenas criar uma política oficial, ela precisa ser internalizada pelo direito

internacional,

[...] através de ação exemplar. Ilustres comentaristas talvez expliquem que a lei é um instrumento vivo flexível, de modo que a nova norma está agora disponível como um guia para a ação. É entendido que apenas aqueles com armas podem estabelecer normas e modificar o direito internacional. O alvo

131 “What is to be “protected” is US power and the interests it represents, not the world, which vigorously opposed the conception. Within a few months, studies revealed that fear of the United States had reached remarkable heights, along with distrust of the political leadership. An international Gallup poll in December, barely noted in the US, found virtually no support for Washington’s announced plans for a war in Iraq carried out “unilaterally by America and its allies”: in effect, the US-UK “coalition””.

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300

escolhido precisa preencher diversos requisitos. Ele precisa ser indefeso, importante o suficiente para valer o esforço, uma ameaça iminente para a nossa sobrevivência e um mal supremo. O Iraque preencheu todos eles. As duas primeiras condições são óbvias. Para a terceira, é suficiente repetir os discursos de Bush, Blair e seus colegas: o ditador “está montando as mais perigosas armas do mundo [para] dominar, intimidar ou atacar”; e ele “já as usou em vilas inteiras deixando milhares de seus cidadãos mortos, cegos ou transfigurados. Se isso não é mal, então mal não tem significado.” [...] E aqueles que contribuíram com o aumento do mal não deveriam gozar de impunidade: entre eles, o orador dessas imponentes palavras e seus atuais associados, e todos aqueles que se uniram a eles nos anos em que eles apoiaram aquele homem do mal supremo, Saddam Hussein, muito depois de ele ter cometido esses crimes terríveis, e depois da primeira guerra com o Iraque. (tradução nossa)132

A guerra sendo um ato de violência ainda hoje precisa ser revestido de um

motivo nobre, justo, para que as atrocidades cometidas possam ser de certa forma

minimizadas perante os olhos da comunidade internacional. Bush tentou fazer isso

ao declarar que a invasão do Iraque era um ato de legítima defesa preventiva. Ele

mais uma vez colocou em prática a doutrina iniciada pós 11 de setembro133 ao

declarar Saddam Hussein como uma ameaça à segurança dos Estados Unidos e,

também, ao afirmar que deveriam agir de forma preventiva antes que a suposta

ameaça se concretizasse.

A legítima defesa, conforme visto, é uma reação a uma agressão injusta. O

que é condenado é o ataque e a defesa é vista como um ato inescapável e,

portanto, necessário para a sobrevivência. Já a prevenção consiste em defender-se

de um ato que está na iminência de ocorrer.

Com a Segunda Guerra do Golfo, entrou em pauta a discussão acerca do

cabimento da legítima defesa preventiva. Enquanto a legítima defesa em sua forma

132 “[...] by exemplary action. Distinguished commentators may then explain that the law is a flexible living instrument, so that the new norm is now available as a guide to action. It is understood that only those with the guns can establish norms and modify international law. The selected target must meet several conditions. It must be defenceless, important enough to be worth the trouble, an imminent threat to our survival and an ultimate evil. Iraq qualified on all counts. The first two conditions are obvious. For the third, it suffices to repeat the orations of Bush, Blair, and their colleagues: the dictator "is assembling the world's most dangerous weapons [in order to] dominate, intimidate or attack"; and he "has already used them on whole villages leaving thousands of his own citizens dead, blind or transfigured. If this is not evil then evil has no meaning." Bush's eloquent denunciation surely rings true. And those who contributed to enhancing evil should certainly not enjoy impunity: among them, the speaker of these lofty words and his current associates, and all those who joined them in the years when they were supporting that man of ultimate evil, Saddam Hussein, long after he had committed these terrible crimes, and after the first war with Iraq.” 133 A primeira vez que a Doutrina Bush foi posta em prática foi com a invasão do Afeganistão, deflagrada no ano de 2001.

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301

original é bem aceita pela comunidade internacional, a sua forma preventiva provoca

polêmicas e debates. Como o conceito de legítima defesa preventiva já foi abordado

no tópico anterior, vamos nos ater aqui somente à sua aplicação prática na Guerra

do Iraque.

Segundo visto anteriormente, para que uma ação militar seja vista como legal

perante o direito internacional, é necessário que ela tenha o aval do Conselho de

Segurança. No caso da Guerra do Iraque, ela é claramente ilegal, vez que os

Estados Unidos não obtiveram o apoio da ONU e muito menos da opinião pública

internacional. Byers (2007, p. 104) faz referência a esse tema ao dizer que,

Em seguida à guerra, a generalizada oposição à Doutrina Bush ficou evidente nos discursos de abertura da 58ª sessão da Assembléia Geral da ONU em setembro de 2003. Hidipo Hamutenya, o ministro de Relações Exteriores da Namíbia, observou que “o tema central que percorre praticamente todos os discursos dessa sessão é a exortação a um retorno ao diálogo multilateral, à persuasão e à ação coletiva, como únicas formas apropriadas de resolver os muitos conflitos com que se defronta a comunidade internacional”.

Pode-se perceber, portanto, o quão impopular e ilegal foi a decisão do

governo Bush em atacar preventivamente o Iraque. Diferentemente do que

aconteceu no Afeganistão em 2001. A guerra travada contra esse país, mais

especificamente contra a Al-Qaeda e seu líder Osama Bin Laden e contra o regime

que supostamente lhe teria dado apoio, o talibã, ocorreu logo depois dos atentados

de 11 de setembro e, graças a isso, os Estados Unidos conseguiram o consenso

internacional de que sua atitude advinha do direito de legítima defesa, “Ademais,

como é notório, Estados Unidos e Reino Unido não deram evidências suficientes das

atividades de Saddam Hussein, suas intenções e pretensas conexões com

organizações terroristas” (PALACIOS JR., 2013, p. 138).

Palacios Jr. conclui ao dizer que é importante acreditar no poder do Conselho

de Segurança em resolver conflitos. Já não há mais os vetos automáticos como

acontecia durante a Guerra Fria, desta forma, segundo o referido autor, o poder está

mais equilibrado no Conselho. Assim sendo, a preempção ou prevenção, “[...]

podem ser descartadas como legais no direito internacional vigente” (PALACIOS

JR., 2013, p. 142).

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Até agora vimos a Guerra do Iraque sob dois prismas, o da legitimidade e o

da legalidade. Palacios Jr. (2013) a analisa ainda sobre um terceiro prisma, o qual

chama de “utilidade”, conceito este que está ligado com a Teoria Realista das

Relações Internacionais e busca analisar se a guerra preventiva é ou não útil.

Apesar de ter abordado brevemente referida teoria, não adentraremos na análise

feita pelo autor, pois seria necessário fazer um estudo mais aprofundado acerca do

realismo, o que nos distanciaria do objeto do presente artigo, qual seja, analisar a

eficácia ou não da proibição da guerra no âmbito internacional.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente trabalho buscou-se, primeiramente, entender o

significado da guerra, dando ênfase ao entendimento da ONU. Em segundo lugar,

compreender como o direito internacional vê o uso da força e, finalmente, analisar

um caso concreto para observar como os referidos entendimentos são aplicados na

prática.

O estudo de caso foi feito a partir da Guerra do Iraque de 2003, porém, foi

abordada também a Guerra do Golfo, elemento indispensável para compreender a

posição em que o Iraque estava quando foi invadido pelos Estados Unidos. A Guerra

do Golfo também foi útil para fazermos um contraponto da atitude norte-americana,

enquanto nela os Estados Unidos se preocuparam em buscar a autorização do

Conselho de Segurança para usar a força contra Saddam Hussein, na invasão de

2003 o mesmo não ocorreu.

Os Estados Unidos tentaram justificar a guerra usando o argumento da

legítima defesa preventiva, pois, segundo eles, o Iraque possuía armas de

destruição em massa, o que colocava em risco a segurança dos Estados Unidos e

de seus aliados. Com exceção do Reino Unido, os demais Estados encararam essa

justificativa com desconfiança e não aprovaram a invasão perante o Conselho de

Segurança. Mesmo assim, mesmo sem essa autorização os Estados Unidos

invadiram o Iraque.

O presidente George W. Bush conseguiu a autorização do Congresso Norte-

Americano e o apoio da opinião pública interna, fatos suficientes para justificar a

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invasão. O que se viu na esfera internacional foi o total desrespeito pelas leis e pela

decisão da maioria. Não apenas isso, o Conselho de Segurança, que havia se

fortalecido no período pós-Guerra Fria e durante a Guerra do Golfo, se mostrou

completamente impotente perante a maior potência hegemônica.

A invasão do Iraque serviu para mostrar o quão correto estavam os realistas

ao declarar o âmbito internacional como um ambiente anárquico, imperando a busca

pelo poder e os interesses particulares dos Estados. Pelo menos em relação aos

Estados Unidos, que têm poder o suficiente para, em certa medida, mandar e

desmandar ao seu bel prazer, que podem escolher quando querem seguir as regras

do jogo e quando é melhor alterá-las, ou tentar alterá-las, como fizeram com o

argumento da legítima defesa preventiva.

Eles tentaram mudar e alargar o entendimento de legítima defesa preventiva

para que melhor se encaixasse aos seus interesses. Tentativa frustrada, já que logo

os demais Estados perceberam o perigo que esse novo entendimento representava

para eles. Assim, os Estados Unidos se viram obrigados a modificar o seu

entendimento anterior, se adaptando mais às regras de direito internacional.

Dessa forma, sem o apoio do Conselho de Segurança e menos ainda da

opinião pública internacional, a Guerra do Iraque pode ser considerada não apenas

ilegal, mas também ilegítima. A sua deflagração juntou dois conceitos que nem

sempre andam juntos, legalidade e legitimidade, ao evidenciar o quão ilegítimo

poderia ser um ato ilegal. Além disso, a guerra demonstrou a impotência da ONU

perante os Estados Unidos e que a proibição do uso da força precisa de mais do que

acordos internacionais para ser colocada em prática num ambiente internacional

predominantemente anárquico e com atores soberanos.

REFERÊNCIAS

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A MULTIPARENTALIDADE ENQUANTO NOVA RELAÇÃO DE FILIAÇÃO NO

DIREITO DE FAMÍLIA

THE MULTI PARENTING AS NEW MEMBERSHIP RELATION IN FAMILY LAW

Nicole Pangracio Vieira134

Adriana Martins Silva135

SUMÁRIO

Resumo 1 Introdução 2 A família a partir do Código Civil de 1916. 2.1 Noções gerais 2.2 Filiação e as presunções de paternidade e maternidade 3 Família contemporânea 3.1 Aspectos gerais 3.2 Verdade jurídica 3.3 Verdade biológica 3.4 Verdade socioafetiva 4 Multiparentalidade 4.1 Aspectos gerais 4.2 Atuação do poder judiciário brasileiro 4.2.1 Analise jurisprudencial acerca da multiparentalidade 4.2.2 Pesquisa empírica junto à 1ª Vara da Infância e Juventude do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Estado do Paraná 5 Considerações Finais Referências

RESUMO

O presente texto objetiva investigar as novas relações de filiação dentro da família contemporânea, com base no princípio da afetividade. O conceito de família e, consequentemente, o de filiação passaram por diversas modificações, sendo que a cada dia surgem novas composições familiares e a ciência jurídica não dá conta de acompanhar as relações que se formam no mundo dos fatos. Diante dessa perspectiva, faz-se necessário, em um primeiro momento, a análise da família tradicional, suas funções, perspectivas e a maneira como era tratada a filiação nesse contexto familiar. Posteriormente, vislumbram-se as principais mudanças que se deram no âmbito do Direito de Família, com a queda do patriarcalismo, a emancipação feminina, a igualdade entre os filhos, a pluralidade familiar, o reconhecimento da união homoafetiva e a popularização do uso das técnicas de reprodução humana assistida. Outrossim, com o reconhecimento das novas entidades familiares, o afeto passa a ser o elemento preponderante na determinação do vinculo filiatório, que pode ser alcançado e exercido das mais variadas formas, conforme demonstrado através de pesquisa jurisprudencial e empírica. Palavras-chave: relações de filiação, família contemporânea, princípio da afetividade, técnicas de reprodução humana assistida, multiparentalidade.

134 Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). [email protected]. 135 Mestre em Direito Empresarial. Especialista em Direito Processual Civil. Advogada nas áreas cível e empresarial. Atualmente é professora de Direito Civil, Família e Empresarial no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Professora na graduação de direito de Família e Sucessões e pós-graduação. Orientadora do Grupo de Pesquisa Direito da Personalidade no âmbito Global no Centro Universitário UNINTER. [email protected].

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ABSTRACT

This paper aims to investigate the new membership relations within the contemporary family, based on the principle of affection. The concept of family and consequently the membership went through several changes, and each day brings new family compositions and legal science does not account to track the relationships that form the world of facts. Given this perspective, it is necessary, at first, the analysis of the traditional family, their roles, perspectives and the way the membership was dealt with in that family context. Later, glimpse up the major changes that occurred in the Family Law, with the fall of patriarchy, women's emancipation, equality between children, family pluralism, recognition of homosexual union and the popularization of the use of assisted techniques human reproduction. Furthermore, with the recognition of new family entities, affection becomes the dominant element in determining the filiation link, which can be achieved and exercised in many different ways, as demonstrated through case law and empirical research. Keywords: filiation relations, contemporary family, principle of affection, assisted human reproduction techniques, multi parenting.

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como escopo a investigação das novas relações de

filiação, que surgem a partir da construção de novas relações familiares e demandam

cada vez mais a atenção do Poder Judiciário, bem como do legislador brasileiro, em

razão de seus desdobramentos e suas constantes inovações.

Primeiramente, serão explorados os principais elementos da família clássica, a

qual era caracterizada como patriarcal, hierarquizada, matrimonial e heterossexual,

além de exercer funções patrimoniais, assistencialistas e religiosas.

Essa família era baseada nos regimes de presunções de paternidade e

maternidade. Além disso, valorizava demasiadamente o núcleo familiar constituído

pelo matrimônio, bem como os filhos advindos desse matrimônio. Em contrapartida,

deixava a margem os filhos havidos fora do casamento, que era discriminados e

excluído de qualquer tutela jurisdicional.

Posteriormente, serão analisadas as mudanças sociais, econômicas e

tecnológicas, que culminaram em intensas modificações no modelo tradicional de

família, trazendo as principais funções e características da família contemporânea.

Essa família está baseada em princípios constitucionais como a dignidade da

pessoa humana, pluralidade familiar, isonomia e democracia, além disso, preocupa-se

com o bem-estar e a individualidade de seus membros, enquanto sujeitos de direito

merecedores de respeito, afeto e cuidados.

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Com as novas configurações familiares, exige-se uma releitura no que se

refere a matéria da filiação, de modo que é possível chegar a três verdades.

A verdade jurídica, que determina a filiação por meio das presunções de

paternidade e maternidade e das decisões judiciais, a verdade biológica, que determina

a filiação por intermédio da Engenharia Genética e, portanto, através da correspondência

entre materiais genéticos e, por fim, a verdade socioafetiva, que determina o vínculo

filiatório por meio da constatação do exercício de uma parentalidade de modo efetivo

e com a existência de vínculos de afinidade e afetividade.

Por fim, serão analisadas algumas decisões judiciais cujo objeto é o exercício

da multiparentalidade, bem como uma ação de adoção unilateral, resultado de

pesquisa empírica realizada junto a Vara da Infância e da Juventude do Foro Central

da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Estado do Paraná, mediante

autorização judicial e assunção do compromisso de manter o sigilo das informações,

por tratar-se de processo que tramita em segredo de justiça.

2 A FAMÍLIA A PARTIR DO CÓDIGO CIVIL DE 1916

2.1 NOÇÕES GERAIS

A família tradicional era constituída basicamente pelo homem, pela mulher e

seus respectivos filhos, frutos do casamento. Esse modelo de família era caracterizado

como patriarcal, hierárquico, matrimonial, patrimonializado e heterossexual.136

Patriarcal, pois tudo estava eminentemente ligado ao pai, chefe da família, ao

qual esposa e filhos deviam obediência e respeito. Já a hierarquia decorria da

patriarcalidade, uma vez que era o pai o detentor do poder familiar e, portanto, era

quem determinava as regras ao seu núcleo familiar. Matrimonial, pois estava

iminentemente baseado no casamento. Patrimonializado haja vista que tinha a

finalidade econômica de gerar e preservar patrimônio. E por fim, heterossexual,

porque, obrigatoriamente, constituída por indivíduos de sexos opostos.

136 Conjunto de expressões utilizadas por Maria Berenice Dias. (DIAS, 2013. p.44).

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Uma das principais funções inerentes à família tradicional era a reprodução.

Isso porque era importante que a prole fosse numerosa, uma vez que os filhos eram

utilizados para "produzir mais, defender a terra e o Estado" (PEREIRA, R. da C.

1999, p.103). Desse modo, o casamento deveria gerar muitos filhos, os quais

representavam a mão de obra utilizada para o trabalho e a produção.

A prole também deveria ser numerosa em razão da função assistencialista

que a família possuía. Isso porque na doença e na velhice dos pais, não havia mais

ninguém para assumir os cuidados com os mesmos senão os próprios filhos.

Por fim, a família tradicional tinha funções religiosas, como a propagação do

casamento, considerado como a única maneira legítima para a construção do vínculo

familiar, o que representava uma maneira da Igreja moralizar as relações sexuais.

Por outro lado, as relações não constituídas por meio do casamento válido eram

desprovidas de qualquer reconhecimento e valor jurídicos, e portanto, não recebiam

qualquer proteção do Estado, além de serem tidas como imorais pela Igreja.

Em síntese, a família tradicional pode ser resumida da seguinte maneira:

A preocupação com o aspecto econômico da família levou o Código Civil de 1916 para a opção patrimonialista, elegendo a proteção do patrimônio como objetivo maior. A esse propósito alinharam-se o autoritarismo e a discriminação nas relações familiares, onde o marido, o casamento civil e a exclusividade dos filhos legítimos eram os pontos maiores. Sob a proteção do formalismo e da aparência, as famílias escondiam suas mazelas, os filhos extramatrimoniais eram execrados, as concubinas apedrejadas e a mulher, no próprio lar, era vitimizada. (SEREJO, 2004, p.17).

Portanto, a família baseada no sagrado matrimônio, era a única reconhecida

como legítima. Isso porque, "Tem-se, assim, a noção explicita trazida pelo legislador

de 1916 de que família e casamento se tratavam de uma coisa só, una e indivisível,

na medida em que aquela não existia legalmente sem este" (GRISARD, 2005, p.30).

Desse modo, a família matrimonializada era extremamente valorizada, além

de ser a única que recebia tutela estatal, razão pela qual as demais entidades

familiares constituídas à época não eram reconhecidas como tais, além de serem

menosprezadas e totalmente deixadas de lado pelo legislador de 1916.

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2.2 FILIAÇÃO E AS PRESUNÇÕES DE PATERNIDADE E MATERNIDADE

Tendo em vista que o Código civilista de 1916 somente tutelava os núcleos

familiares advindos do matrimonio, não podia ser diferente no que se refere à matéria

de filiação.

No sistema jurídico então vigente, as relações de filiação possuíam tratamento

diferenciado, conforme a existência ou não de um vínculo matrimonial entre os genitores.

Portanto, ao tratar da filiação, a sistemática codificada de 1916 fazia distinção

entre os filhos havidos dentro do sagrado matrimônio, e os filhos havidos fora deste,

além de admitir a adoção, que deveria preencher uma série de requisitos para ser

concretizada.

Essa diferenciação, feita pela codificação então vigente, mostrava-se como

uma desumana maneira de classificar os filhos, haja vista que os penalizava pelos

atos praticados por seus genitores e sua situação jurídica irregular. Além disso,

eximia o genitor de suas responsabilidades como pai, deixando os filhos à margem

de qualquer assistência material ou emocional.

Dada a impossibilidade de se determinar com absoluta certeza a maternidade

e a paternidade, o Código Civil Brasileiro de 1916 adotou o sistema de presunções

para a determinação da filiação.

Essas presunções contidas no referido Código de 1916 justificavam-se a medida

em que o objetivo do legislador da época era preservar a família matrimonializada e

manter sua harmonia.

Assim, presumia-se, sempre, que a mulher casada, quando grávida, havia

sido fecundada pelo próprio marido, garantindo assim a segurança e a paz familiar

(GONÇALVES, 2012, p.320).

Quanto à maternidade, dizia-se no Direito Romano que "semper certa est",

que significa que "a mãe é sempre certa". A presunção de que a mãe é sempre certa

vigorava em razão da maternidade ser mais facilmente constatada, dados os sinais

e modificações, notórios, no corpo feminino em razão da gestação e do parto.

Assim, gestação e parto eram os fatores que determinavam a maternidade,

além de obstacularizar a investigação de maternidade da mulher casada.

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Quanto à paternidade, que era tida sempre como incerta ("pater semper

incertus est"), havia a presunção "pater is est quem justae nuptiae demonstrant", que

significa que, "pai é aquele que as núpcias demonstram". Ou seja, a paternidade era

atribuída àquele que as núpcias demonstrassem, portanto, ao marido da mãe. Isso

porque, dada a colocação da mulher na sociedade à época, não se admitia a

possibilidade de que a mesma pudesse manter relações sexuais com qualquer outra

pessoa que não fosse o seu próprio marido.

Cumpre informar que o Direito Romano já se preocupava com a certeza da

filiação para que houvesse a transmissão do patrimônio, do nome e do culto familiar

do pai, aos filhos homens, exclusivamente. Isso porque sem a certeza da filiação

instaurar-se-ia uma desordem, um verdadeiro caos. Assim, os romanos resolveram

esse impasse criando a presunção pater is est quem justae nuptiae demonstrant,

sendo que todo o dilema relacionado à filiação na cultura romana foi herdado pela

cultura ocidental, que passou a incorporar todo o sistema de presunções (LEITE In:

WAMBIER; LEITE, 1999, p.188-189).

Dessa forma, tem-se na codificação de 1916 que, quando o filho fosse concebido

na constância do casamento, o pai era, presumidamente, o marido da mãe. Isso

porque, tratava-se de uma época em que, segundo Fabiola Santos Albuquerque "a

fidelidade feminina e a monogamia eram essenciais ao modelo patriarcal e patrimonial,

pois representavam a certeza da legitimidade dos filhos e a preservação do patrimônio

da família" (ALBUQUERQUE In: TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p.203).

As presunções de paternidade eram tão significativas que nem mesmo o

adultério da mulher ou a confissão materna bastavam para o afastamento da

presunção pater is est.

Assim, com o regime das presunções, muitas vezes, abdicava-se da verdade

real em nome da moral e da boa fama, pois se tratava de uma sociedade extremamente

moralista e de seguidora de valores religiosos.

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313

3 FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA

3.1 ASPECTOS GERAIS

O modelo tradicional de família passou e ainda tem passado por diversas

transformações em sua estrutura.

A família contemporânea prima pelos princípios da afetividade, da dignidade

da pessoa humana, da pluralidade das formas de família, além das ideias de proteção,

liberdade e igualdade entre seus membros.

Segundo Maria Berenice Dias:

A vastidão de mudanças das estruturas políticas, econômicas e sociais produziu reflexos nas relações jurídico-familiares. Ainda que continue a família a ser essencial para a própria existência da sociedade e do Estado, houve uma completa reformulação do seu conceito. As ideias de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo voltaram-se à proteção da pessoa humana. (DIAS, 2013, p.39).

O que contribuiu para esta significativa mudança foi a redução do número de

filhos, bem como a emancipação feminina, o uso de métodos contraceptivos e a

inserção da mulher no mercado de trabalho, que a levaram a passar mais tempo

fora do lar, assim como lhe conferiram maior autonomia. Com isso, o homem deixou

de ser o único provedor do sustento da família, passando também a participar das

tarefas domésticas. (DIAS, 2013, p.39).

Com isso, além do homem precisar repensar acerca do exercício da paternidade,

a mulher passou a ter independência financeira, deixando de depender do marido

para o seu próprio sustento e o sustento da prole. Por esta razão, a família deixa de

ter motivações econômicas e passa a ter motivações afetivas. (PEREIRA, C. M.

2012, p. 211).

A família deixou de ser somente um instrumento para reprodução e um

mecanismo de controle social utilizado pela Igreja e pelo Estado, entidades que

também passaram por um processo de distanciamento entre si e passou a ser uma

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entidade primordialmente baseada no amor, na convivência e nos vínculos de afeto

e afinidade compartilhados entre seus membros.

Segundo Lourival Serejo, em que pese a família esteja em permanente

inovação, é possível destacar algumas características que se encontram presentes

na maioria das famílias atualmente, a saber: a despatrimonialização, ou seja, a

substituição da preocupação em acumular bens pela valorização das relações

familiares autênticas, a valorização dos aspectos afetivos, a igualdade entre os

filhos, a desbiologização do conceito de paternidade, além do companheirismo e da

democracia interna. (2004, p.23).

A família passou a ser reconhecida pela Constituição Federal de 1988 nos

seus mais diversos formatos, além de receber especial proteção do mesmo.

Assim, o texto constitucional confere expressa proteção às famílias constituídas

por meio do casamento, à união estável e à família monoparental, conforme previsto

no artigo 226, parágrafos 1.o a 4.o, da Constituição Federal.

Contudo, em que pese nem todas entidades familiares estejam expressamente

previstas no texto constitucional, entende-se que, em razão da adoção da dignidade

da pessoa humana, como fundamento para a constituição do Estado Democrático

de Direito, conforme consta ao artigo 1.o, inciso III, adotou-se no ordenamento

jurídico o princípio da pluralidade das formas de família, estendendo, portanto, integral

proteção à demais entidades familiares, ainda que não expressamente previstas.

A esse respeito destaca-se que, ano de 2011, o Superior Tribunal de Justiça

aprovou, por unanimidade, o reconhecimento da união de pessoas do sexo137, com

iguais direitos e deveres, ao julgar duas Ação de Controle de Constitucionalidade,

sendo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e a Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (APDF) 132, sob a relatoria do Ministro

Ayres Britto.

Ainda, no que se refere às novas relações familiares, Waldyr Grisard Filho, a

partir de pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, entre

os anos de 1993 e 2007, verifica que o divórcio é uma realidade cada vez mais

137 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n.o 4.277. Relator: Min. AYRES BRITO. Julgamento: 05/05/2011. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJe-198 DIVULG 13/10/2011 PUBLIC 14/10/2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/ 20627236/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-4277-df-stf>. Acesso em 22 fev. 2015.

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frequente nas famílias brasileira, sendo que o mesmo dá lugar a novas composições

familiares, chamadas de famílias reconstituídas ou recompostas. (2010, p. 77-85).

Assim, segundo constatação da síntese de indicadores sociais do ano 2012,

formulada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi possível

constatar que houve um aumento na taxa de separações conjugais e divórcios, bem

como na taxa de recasamentos.138

Portanto, as famílias reconstituías são um fenômeno social complexo, que faz

parte da realidade social da família brasileira.

Além disso, as novas técnicas de reprodução humana assistida trouxeram

uma quebra de paradigmas para o Direito de Família, haja vista que com elas, as

presunções de paternidade e maternidade, contidas no Código Civil de 1916 e

mantidas pelo código Civil de 2002 perdem sua lógica. Isso porque, a Engenharia

Genética permite que, além dos casais heteroafetivos, também os homoafetivos e as

pessoas solteiras utilizem-se nessas técnicas.

As referidas técnicas trazem, ainda, inovações nunca antes imaginadas, como

a possibilidade de fecundação da mulher após a morte do seu marido, a utilização

de material genético de terceiros, alheios a relação conjugal, através dos bancos de

sêmen e de óvulos, bem como a utilização da gestação por substituição, por meio da

doação altruística de útero.

Desse modo, caem por terra as soluções jurídicas encontradas pelo Direito

para determinar a filiação de um indivíduo, tendo em vista que a concepção por meio

das técnicas laboratoriais independe do vínculo de matrimonio e da existência de

relações sexuais.

Dessa maneira, a atual ideia de família não está mais ligada aos paradigmas

do casamento, do sexo, da procriação e da preservação do patrimônio. Está baseada

em vínculos de afeto e mútuo respeito entre seus membros, cujo objetivo principal é

a união dos indivíduos de modo a compartilhar seus projetos de vida.

Ressalta-se que as mudanças ocorridas no tradicional modelo de família

também se refletiram, consequentemente, no instituto jurídico da filiação:

138 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira – 2012. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2015.

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316

Assim, com o surgimento e o reconhecimento de novas entidades familiares,

surgiram também novos tipos de relações dentro do núcleo familiar e como

consequência, novas modalidades de filiação.

3.2 VERDADE JURÍDICA

A verdade jurídica ou legal trata do vínculo de filiação que é determinado por

meio da lei, ou seja, se perfaz através das presunções impostas pelo legislador no

artigo 1.597 do Código Civil de 2002 ou por meio da adoção.

Assim, o legislador ainda continua a presumir que mater semper certa est, de

modo que a maternidade é determinada pela gestação, bem como pelo parto. Além

disso, continua a fazer presunções quanto aos filhos havidos dentro do casamento

dos pais, conforme se verifica no artigo supracitado do Código Civil.

Além de manter as presunções já previstas no Código Civil de 1916

(art. 1.597, incisos I e II), o Código Civil de 2002 ainda ampliou o seu rol, estendendo

o regime de presunções também às técnicas de reprodução humana assistida

homóloga, heteróloga e via embriões excedentários (art. 1.597, incisos III, IV e V).

Com isso, é possível concluir que com a inclusão dos incisos III, IV e V do

artigo 1.597 é um indicador de que o legislador passou a considerar o afeto como

um dos elementos a serem levados em conta para a determinação da filiação.

Partindo para a análise das presunções elencadas no artigo supracitado, no

inciso I há a presunção de que foram concebidos na constância do casamento, os

filhos nascidos pelo menos 180 (cento e oitenta) dias depois de estabelecida a

convivência conjugal entre os pais. Ressalta-se que para que haja a presunção de

paternidade não basta apenas a celebração do casamento, é necessária a vivência

conjunta do casal, pois leva-se em conta a coabitação, bem como a monogamia

entre o casal.

Também se presumem concebidos na constância do casamento, os filhos

nascidos nos 300 (trezentos) dias subsequentes à dissolução da sociedade

conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento (inciso

II), sendo que esse prazo se justifica a medida em que a gestação humana não dura

mais do que 09 (nove) meses.

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Maria Helena Diniz, no entanto, alerta que essa presunção é afastada caso

prove-se que os pais se encontravam separados de fato à época da concepção do

filho. Isso porque, com a ausência de coabitação antes da dissolução da sociedade

conjugal não há elementos capazes de sustentar a presunção de paternidade.

(2014, p.507).

Destaca-se que as presunções contidas nos incisos I e II pressupõe que haja

a coabitação marido e mulher, a manutenção de relações sexuais entre eles, bem

como que haja monogamia na sociedade conjugal.

Os filhos havidos por fecundação artificial homóloga (inciso III), serão presumidos

concebidos na constância do casamento, o que não gera maiores discussões, tendo

em vista que o material genético utilizado é o do próprio marido.

Contudo, no que se refere à inseminação artificial post mortem do genitor,

para que seja realizada, é necessário que esteja em conformidade com Resolução

n.o 2.013/2013, do Conselho Federal de Medicina. Segundo a referida Resolução, é

imprescindível a anuência prévia do doador do material genético, nesse caso o

próprio marido da mãe.

Os filhos havidos a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,

decorrentes de concepção artificial homóloga (inciso IV) serão presumidos concebidos

durante a constância da sociedade conjugal, desde que haja a expressa anuência

do casal, após os esclarecimentos que se fizerem necessários a respeito da técnica

de reprodução humana in vitro, em respeito à Resolução do Conselho Federal de

Medicina supracitada.

Quanto aos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga (inciso V), os

mesmos serão considerados concebidos durante o casamento, desde que haja prévia e

expressa autorização do marido, com base na Resolução n.o 2.013/2013 do Conselho

Federal de Medicina, conforme já demonstrado anteriormente. Ou seja, havendo

autorização do marido para a técnica de reprodução assistida heteróloga, a criança

será presumida como filha daquele que autorizou a utilização da técnica.

Havendo o consentimento informado por parte do marido para a inseminação

artificial heteróloga, não há que se falar na possibilidade de impugnação de paternidade.

Isso porque, conforme ressalta Eduardo de Oliveira Leite, trata-se se uma filiação

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baseada em laços jurídicos e afetivos, de modo que a verdade jurídica e socioafetiva

sobrepõem-se a verdade biológica (2005, p. 206).

Jorge Shiguemitsu Fujita chama a atenção para a possibilidade de fecundação

utilizando-se o sêmen do marido e o óvulo de uma doadora anônima, o que caracterizaria

outro tipo de reprodução assistida heteróloga, em que há vínculo biológico por parte

do pai e socioafetivo por parte da mãe (FUJITA, 2011, p. 30).

Além disso, há ainda, a "fecundação humana totalmente heteróloga", a qual

utiliza sêmen e óvulo de doadores anônimos, de modo que não há vínculo genético

com nenhum dos pais, mas há uma filiação socioafetiva em relação a ambos (2011,

p. 30).

Contudo, em que pese o regime as presunções ainda apareçam de maneira

significativa em nossa codificação civilista, destaca-se que as mesmas não são

absolutas, mas relativas. Ou seja, admitem prova em contrário, com a possibilidade

de proposição de ação de negatória de paternidade e maternidade, excetuando-se

as hipóteses de inseminação artificial em que foi dado o consentimento informado.

3.3 VERDADE BIOLÓGICA

A verdade biológica, por sua vez, está eminentemente ligada a critérios

científicos para sua determinação e está eminentemente baseada no "exame de

DNA", através do qual é possível chegar à chamada "verdade real".

Com o advento do exame de ácido desoxirribonucleico, popularmente

conhecido como "exame de DNA", há uma certa superação das presunções de

paternidade, que, no entanto, continuam a existir concomitantemente. Isso porque, o

fator biológico torna-se preponderante para a determinação da filiação.

Assim, levando-se em conta o fator biológico, a simples análise científica e a

correspondência entre os materiais genéticos analisados, é possível a determinação da

paternidade e a maternidade de um indivíduo, com uma precisão de, aproximadamente,

99,999%. Portanto, traz a possibilidade de descobrir a ascendência genética do

indivíduo com absoluta certeza.

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Assim o exame de ácido desoxirribonucleico revolucionou a prova de paternidade

e maternidade, pois através de técnicas laboratoriais pode-se identificar precisamente

se há correspondência genética entre pai e filho ou mãe e filho.

Em razão da precisão que o exame de DNA traz, Rose Melo Vesceslau afirma

que o mundo jurídico passou por um "deslumbramento", de modo que por muitas

vezes relacionou as questões ligadas à filiação somente aos vínculos sanguíneos

(2004, p.89).

Para a autora, há também uma mudança no que se refere às presunções, de

modo que "[...] de presunções que se justificavam pela impossibilidade da certeza

biológica, passa-se à presunção pater is est quem sanguis demonstrant, ou seja, pai

é aquele que de demonstrar o vínculo sanguíneo" (2004, p.89).

Destaca-se que o exame de DNA não tem apenas a finalidade de determinar a

filiação biológica, mas também de garantir ao indivíduo seu direito ao conhecimento

da ascendência genética, que se encontra albergado no princípio da dignidade da

pessoa humana (artigo 1.o, inciso III, da Constituição Federal).

Por esta razão, cumpre ressaltar que os recursos científicos utilizados para a

determinação da filiação biológica as relações paterno-filiais não se resumem

apenas a critérios biológicos. Isso porque, muito mais relevante é a convivência

entre pais e filhos, os valores morais e éticos passados naquele para esses, além do

suporte emocional e material, em detrimento à correspondência genética,

demonstrando que nem sempre há uma relação direta entre pai e genitor e mãe e

genitora. Razão pela qual a verdade socioafetiva vem suprir essa lacuna.

3.4 VERDADE SOCIOAFETIVA

A verdade socioafetiva, por sua vez, decorre em razão do reconhecimento

jurídico de uma parentalidade fática consolidada pelo tempo, que pode ou não estar

vinculada à verdade biológica.

Não restam dúvidas a respeito da relevância das técnicas laboratoriais para a

determinação da filiação biológica, principalmente como meios de prova hábeis a dar

certeza absoluta acerca da compatibilidade genética entre indivíduos. Além disso,

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essas técnicas representam um importante instrumento para garantir o conhecimento à

origem genética de cada ser humano.

Ocorre que, por um determinado período houve um certo deslumbramento no

que diz respeito à Engenharia Genética, tendo em vista que os resultados trazidos

pela mesma se tornaram os principais senão os únicos meios para a determinação

da filiação.

Contudo o fator genético tornou-se insuficiente como elemento capaz de

determinar a filiação de uma pessoa. Isso porque não é possível resumir as relações

familiares à sequências genéticas correspondentes, haja vista que a família representa

na sociedade contemporânea um organismo de convivência, segurança, respeito e

trocas entre os seus integrantes.

Portanto, a verdade biológica perde sua essencialidade e passa-se a buscar

outras formas para a determinação das relações de filiação. É nesse momento que a

verdade sociofetiva mostra-se como uma solução para esse impasse.

Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, em que pese a parentalidade socioafetiva

ainda não esteja expressa no ordenamento jurídico, o Direito não pode ignorar a sua

existência nas relações familiares. De acordo com esse autor, é daí que se extrai a

importância da interpretação da norma jurídica por meio de princípios, em especial,

o princípio da afetividade (PEREIRA, R. da C. 2012, p.217).

Segundo Luiz Edson Fachin, a verdade socioafetiva está ligada a noção de

"posse do estado de filho", a qual se revela quando pai e filho, efetivamente, tratam-se

como tal e expõe essa qualidade ao demais membros da sociedade. Desse modo, o

pai que empresta seu patronímico ao filho, bem como lhe assiste em suas necessidades

materiais, afetivas e psicológicas e, por fim, expõe todo esse contexto perante terceiros

exerce a verdadeira paternidade socioafetiva. Assim, a posse do estado de filho

caracteriza-se por meio dos requisitos do nomem, tractatus e fama, respectivamente

(1996, p.59).

Ressalta-se que não há a necessidade de que a trilogia clássica (nomen,

tractus e fama) estejam presentes concomitantemente, haja vista que não se trata

de um rol exaustivo, de modo que existem outras possibilidades diversas para se

expor as relações de afetividade e afinidade dentro do núcleo familiar (FACHIN,

1996, p.68).

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Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro não preveja, expressamente, a

posse do estado de filho, ela pode ser um dos fatos geradores da filiação socioafetiva

em razão do artigo 1.605, inciso II, do Código Civil, de modo que o julgador poderá

utilizar-se de princípios constitucionais que permeiam as relações de filiação para

analisar o caso concreto (CASSETTARI, 2014, p.35).

Em contrapartida, Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues

defendem que a posse do estado de filho trata-se apenas de uma maneira hábil para

comprovar o vínculo afetivo constituído entre pais e filhos de criação, contudo, a

mesma não é capaz de constituir o próprio vínculo, que se dá a partir do exercício

dos deveres inerentes ao poder familiar (TEIXEIRA-RODRIGUES, 2009, p.38).

Assim colocam as autoras supramencionadas:

O que constitui a essência da socioafetividade é o exercício fático da autoridade parental, ou seja, é o fato de alguém, que não é o genitor biológico, desincumbir-se de praticar as condutas necessárias para criar e educar filhos menores com o escopo de edificar sua personalidade, independentemente de vínculos consanguíneos que geram tal a obrigação legal. Portanto, nesse novo vínculo de parentesco, não é a paternidade ou a maternidade que ocasiona a titularidade da autoridade parental e o dever de exercê-la em prol dos filhos menores. É o próprio exercício da autoridade parental, externado sob a roupagem de condutas objetivas como criar, educar e assistir a prole, que acaba por gerar o vínculo jurídico da parentalidade. (TEIXEIRA-RODRIGUES, 2009, p.38).

Segundo Rodrigo Cunha Pereira, ao fazer uma análise psicanalítica das

relações familiares, o que determina, para a psicanálise, a constituição de um núcleo

familiar é a sua organização psicanalítica. Assim, o mais importante é saber qual

posição cada membro ocupa dentro do seio da família (lugar do pai, lugar da mãe,

lugar do filho), de modo que qualquer indivíduo poderá ocupar esses lugares, desde

que exerça tal função, sem que para isso hajam laços biológicos envolvidos

(PEREIRA, R. da C., 1999, p. 74).

Já para Jorge Shiguemitsu Fujita, na mesma linha de Ana Carolina Brochado

Teixeira e Renata de Lima Rodrigues, a filiação socioafetiva dá-se por meio do

exercício da paternidade e da maternidade responsável, com a convivência diária e o

amor e o respeito dados aos filhos. Isso porque, para o autor ser pai e mãe é prover

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as necessidades básicas do filho, corrigir seus erros, dar limites, sofrer com seus

fracassos e celebrar as suas conquitas, além de ensinar valores como a

honestidade, a lealdade e a solidariedade ao próximo. É, portanto, preparar os filhos

para tenham uma vida digna (2011, p.109).

Cristiano Cassettari, por sua vez, entende que a parentalidade socioafetiva pode

ser caracterizada como um vínculo de parentesco civil, formado entre indivíduos que

não estão ligados por laços biológicos, contudo, tendo em vista a forte vinculação

afetiva que os liga, vivem como se fossem de fato parentes. O referido autor

defende, ainda, que, caso reste comprovado o exercício da parentalidade afetiva,

filhos afetivos e filhos biológicos deverão ter igualdade de direitos, em razão da

isonomia prevista pela Constituição Federal (2014, p. 16).

Por fim, Liziane Aparecida Motta e José Sebastião de Oliveira perfeitamente

do que se trata a perentalidade socioafetiva:

O verdadeiro sentido das relações pai-mãe-filho transcende a lei e o sangue, não podendo ser determinadas de forma escrita nem comprovadas cientificamente, pois tais vínculos são mais sólidos e mais profundos, são "invisíveis" aos olhos científicos, mas são visíveis para aqueles que não têm os olhos limitados, que podem enxergar os verdadeiros laços que fazem de alguém um "pai": os laços afetivos, de tal forma que os verdadeiros pais são aqueles que amam e dedicam sua vida a uma criança, pois o amor depende de tê-lo e se dispor a dá-lo. (MOTTA-OLIVEIRA, 2007, p. 551).

A verdade socioafetiva trata-se, portanto, de um importante vetor para a

caracterização do vínculo filiatório, haja vista que é uma construção diuturna de

afeto, respeito, amor e cuidados, consolidada ao longo do tempo e que independe

de vínculos jurídicos ou biológicos. A sua presença seve ser observada pelo

magistrado no caso concreto, de modo a garantir ao indivíduo sua verdadeira

parentalidade e consequentemente, assegurar-lhe o direito a dignidade humana, a

igualdade entre os filhos e a pluralidade familiar.

Ressalta-se por fim, que dadas as três vertentes da filiação: verdade jurídica,

verdade biológica e verdade socioafetiva, o ideal seria que o vínculo filiatório

conectasse todas elas. Contudo, ocorre que, pode ser que em determinados casos

elas não só estejam desconectadas, mas também sejam conflitantes entre si.

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Nesses casos, cabe valorar o vínculo paterno-filial que decorre do afeto e se trata da

verdadeira parentalidade (NOGUEIRA, 2001, p.88).

4 MULTIPARENTALIDADE

4.1 ASPETOS GERAIS

A multiparentalidade ou pluriparentalidade consiste na possibilidade de,

concomitantemente, um indivíduo possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe

para fins de filiação, de modo que essas relações produzem efeitos jurídicos em

relação a todos os envolvidos (FARIAS-RESENVALD, 2014, p.623).

No que se refere ao assunto, Belmiro Pedro Welter elaborou a Teoria

Tridimencional do Direito de Família, sustentando que o ser humano possui três

dimensões: biológica, afetiva e ontológica. O autor conceitua sua tese da seguinte

forma:

Em decorrência da teoria tridimensional do direito de família, há necessidade premente da doutrina e da jurisprudência avançarem mais um pouco, não admitindo apenas a existência do mundo genético ou do mundo afetivo, mas, sim, conceder ao ser humano o direito ao mundo biológico e ao mundo afetivo, isso porque o ser humano é detentor de três mundos, genético-afetivo-ontológico, pelo que ele tem o direito (a): à a sua singularidade, ao seu mundo real, em suas perspectiva verdadeira; (b) ao relacionamento com a família e a sociedade (mundo afetivo); (c) à transmissão às gerações, por exemplo, de sua compleição física, os gestos, a voz, a escrita, a origem da humanidade, a imagem corporal e, principalmente, de todas as particularidades do seu DNA (mundo genético), para que haja a pacificação familiar e social, uma dos maiores fundamentos do Estado Constitucional. (WELTER, 2009, p. 123).

Desse modo, segundo Belmiro Pedro Welter, tendo em vista a perspectiva

tridimensional do Direito de Família, não deve haver prevalência da parentalidade

socioafetiva em face da biológica ou da biológica em face da socioafetiva, haja vista

que ambas podem perfeitamente coexistir.

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Portanto, estreia-se a possibilidade, como dito anteriormente, do indivídio obter

uma multiplicidade de vínculos filiatórios, com a coexistência de dois pais e/ou duas

mães, biológicos ou socioafetivos, sem que haja para tanto, qualquer tipo de distinção.

Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues defendem que

para o exercício da multiparentalidade não há que se falar em relações de caráteres

excludentes ou impeditivos, mas sim em caráter inclusivo. Isso porque, para as

referidas autoras, "trata-se da multiplicidade de papéis que são todos cabíveis em

uma relação parental, mesmo que se trate se paternidade e/ou maternidade" (2009,

p.45).

Segundo as referidas autoras, trata-se de uma realidade social bastante

comum na prática, cabendo ao Direito o dever de jurisdicizá-lo, uma vez que se cuida

da estruturação da personalidade da criança e do adolescente, de seu crescimento

sadio, bem como a proteção aos seus direitos fundamentais, enquanto pessoas em

peculiar situação de desenvolvimento. (2009, p.45).

Ressalta-se que o fenômeno da multiparentalidade é recorrente no cenário

das famílias reconstituídas, haja vista que as relações de madrastio e padrastio

podem criar vínculos de afeto e afinidade e, portanto, constituir uma parentalidade

socioafetiva, sem, contudo, prejudicar o vínculo biológico já constituído.

(CASSETTARI, 2014, p.54-56).

A esse respeito, Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues

defendem a multiparentalidade "como alternativa de tutela jurídica para um fenômeno já

existente em nossa sociedade, que é fruto precipuamente, da liberdade de

(des)constituição familiar e da consequente formação de famílias reconstituídas"

(2009, p.46).

Além do reconhecimento da multiparentalidade nas famílias reconstituídas, o

referido autor pondera ainda que:

Essa hipótese é viável em várias oportunidades, tais como nos casos em que for possível somar a parentalidade biológica e socioafetiva, sem que uma exclua a outra, e, ainda, na adoção homoafetiva, ou na reprodução medicamente assistida entre casais homossexuais, em que o adotado passaria a ter duas mães ou dois pais. (CASSETTARI, 2014, p.147).

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No que se refere à multiparentalidade como fruto da inseminação artificial por

casais do mesmo sexo, conforme Christiano Cassetari, esse tipo de demanda

começou a surgir no judiciário brasileiro quando os tribunais começaram a conceder

a adoção conjunta para casais homoafetivos. (CASSETARI, 2014, p.152).

Na dupla maternidade, é comum que uma das mulheres doe o óvulo (a ser

fecundado pelo sêmen de um doador anônimo), enquanto a outra gesta a criança.

Contudo, pode também ocorrer, em que pesa mais incomum, que apenas uma das

mulheres forneça o material genético e geste a criança. Ou, ainda, pode ocorrer que

uma delas forneça o material genético e a gestação se dê por meio de substituição

(CASSETTARI, 2014, p. 152-159), conforme as regras estabelecidas pelo Conselho

Federal de Medicina.

Já na dupla paternidade, ocorre que o sêmen de um dos homens da relação

homoafetiva fecunda o óvulo de uma doadora anônima. Posteriormente, o embrião é

implantado no útero de outra mulher para que se desenvolva, ou seja, há a utilização

da gestação por substituição (CASSETTARI, 2014, p. 159-161).

No que diz respeito ao registro, o artigo 10, inciso II, do Código Civil, determina a

averbação no registro civil dos atos judiciais ou extrajudiciais relacionados à

filiação.139 Assim, Chistiano Cassettari entende que "isso se dá em razão de que

o registro civil é o cartório que guarda toda a história de vida da pessoa, no que

tange à sua existência, ao seu nome, sua parentalidade, seu estado civil, e sobre a

perda personalidade". (2014, p.179).

Com a Lei n.o 11.924, de 17 de abril de 2009, que alterou o texto da Lei de

Registros Públicos (Lei n.o 6.015, de 31 de dezembro de 1973), incluindo o parágrafo

8.o, ao artigo 57140, estreou-se a possibilidade de que o enteado ou enteada possa

139 "Art. 10. Far-se-á averbação em registro público: […] II - dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação;" 140 "Art. 57. A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência

do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei.

[…] § 8.o O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo,

poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família."

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incluir ao seu nome, o nome familiar do padrasto ou madrasta, desde que haja a

concordância dos mesmos.

Além disso, tendo em vista as padronizações das certidões de nascimento,

casamento e óbito, por meio dos Provimentos n.o 2, de 27 de abril de 2009 e n.o 3,

de 17 de novembro de 2009, ambos do Conselho Nacional de Justiça, o campo

referente à filiação, que antes era ocupado pelas designações "pai" e "mãe", deu

lugar a designação "filiação", de maneira genérica. Além disso, o campo referente

aos avós, que antes era ocupado pela designação "avós paternos” “avós maternos", foi

substituído apenas por "avós".

Entende-se, com a padronização das certidões de nascimento e a vedação

para que que conste a origem do vínculo filiatório no referido registro, resta afastada

qualquer possibilidade de designação discriminatória relativa a filiação do indivíduo e

portanto, os Provimentos retromencionados estão em acordo com os princípios

constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade entre as filiações.

4.2 ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

4.2.1 Análise jurisprudencial acerca da multiparentalidade

O primeiro caso a ser analisado trata a respeito da dupla maternidade, que

ocorreu perante a Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado

do Piauí141.

Trata-se de Pedido de Providências, ajuizado por duas mães que pretendiam

que a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Piauí determinasse, ao 3.o Cartório

de Registro Civil da Comarca de Teresina/PI, que procedesse o registro de nascimento

de uma criança, em nome de ambas.

O argumento utilizado pelas requerentes foi de que tanto aquela que deu à luz

é mãe por ter gestado a infante, quanto aquela que cedeu o óvulo para que

houvesse a concepção da criança a partir de técnica de reprodução humana

assistida. 141 BRASIL. Tribunal de Justiça do Piauí. Pedido de Providências 0001313-38.2013.8.18.0139.

Relator: Desembargador: Francisco Antônio Paes Landim Filho. Julgamento: 19/12/2013. Órgão Julgador: Corregedoria-Geral de Justiça. (Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivos/ 2013/12/art20131220-07.pdf>. Acesso em 22 mar. 2015).

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Ressalta-se que as requerentes mantinham união estável e utilizaram-se de

tratamento de reprodução humana assistida, com a finalidade de terem um filho.

Assim, uma delas cedeu o óvulo, que foi fecundado por meio de técnicas laboratoriais,

pelo gameta masculino de um doador anônimo. Enquanto a outra, gestou a criança.

Quando do nascimento da infante, somente a requerente gestante constou

como mãe na certidão de nascimento. Por esta razão as requerentes pleitearam o

direito de que aquela que cedeu o óvulo também figurasse como mãe na certidão

de nascimento.

A decisão do Desembargador supramencionado citou ainda alguns precedentes

encontrados na jurisprudência brasileira, em primeiro e em segundo grau, em que se

admitiu a possibilidade de registro civil de crianças em nome de duas mães.

Em sua decisão, proferida no dia 19 de dezembro de 2013, o Corregedor-

Geral deferiu o pedido administrativo formulado pelas requerentes. Determinou-se

então que o 3.o Cartório de Registro Civil, hora requerido, procedesse o registro da

doadora do óvulo, também como mãe da infante, juntamente com a gestante, já

devidamente registrada como mãe.

Além disso, o Excelentíssimo Corregedor deu à esta decisão caráter normativo,

de modo a orientar os demais Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais do

Estado do Piauí, determinando que procedam o registro de duas mães, quando

atendidos os demais requisitos legais e regulamentares, nas hipóteses em que,

cumulativamente, ambas mantiverem união estável e que, em procedimento de

reprodução assistida, comprovadamente, uma delas tenha fornecido o óvulo e a

outra gestado a criança.

Outro caso envolvendo as novas relações de filiação trata da filiação multiparental

ocorreu perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo142.

Trata-se de ação declaratória de maternidade socioafetiva c/c retificação de

assento de nascimento, a qual foi julgada parcialmente procedente pelo juízo de

primeiro grau, incluindo o patronímico da coautora no assento de nascimento do

142 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. APL 64222620118260286 SP 00064-

26.2011.8.26.0286. Relator: Alcides Leopoldo e Silva Junior. Julgamento: 14/08/2012. Órgão Julgador: 1.a Câmara de Direito Privado. Publicação: 14/08/2012. Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/jurisprudencias/201208162006190.tjsp_multiparent.PDF>. Acesso em: 22 mar. 2015.

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jovem. Contudo, sem reconhecer a maternidade socioafetiva que a requerente

exercia em relação ao mesmo.

Irresignados com a decisão do juízo a quo os requerentes interpuseram

recurso de apelação pretendendo a reforma da decisão.

Verifica-se que no presente caso a requerente não optou pela adoção unilateral

em respeito a mãe biológica do jovem, que faleceu três dias após o parto, em razão de

um acidente vascular celebral. Além disso, a autora mantinha relacionamento estreito

com a família da mãe biológica falecida.

Tendo em vista o falecimento da mãe biológica do jovem, o pai do mesmo

causou-se certo tempo depois com a autora, que criou o menino como se seu filho

fosse desde a tenra idade.

Por fim, com base na filiação socioafetiva, o Tribunal de Justiça do Estado de

São Paulo deu provimento ao recurso de apelação, declarando a maternidade

socioafetiva da requerente em relação ao jovem, de modo a mesma passou a

constar como mãe no assento de nascimento. Ao mesmo tempo, não houve prejuízo

a maternidade biológica da mãe falecida, que continuou constando no assento de

nascimento do jovem.

O terceiro julgado a ser analisado também envolve a filiação multiparental que

ocorreu perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul143.

Trata-se de ação declaratória de multiparentalidade, ajuizada por duas

mulheres e um homem, os quais pretendiam o deferimento do registro civil para que

os três constassem como pais de uma recém-nascida.

Ocorre que as duas mulheres mantinham relação homoafetiva desde o ano

de 2008, sendo que em 2014 casaram-se. O casal mantinha relacionamento de

amizade com o homem em questão e desde 2012 o trio preparava-se para ter um

filho em conjunto. Assim, uma das mulheres foi fecundada pelo referido amigo.

Quando do nascimento da criança, a mesma foi registrada em nome da mãe

gestante e do genitor (amigo do casal de mulheres homoafetivas) e, portanto, os

pais biológicos da infante. Os requerentes então ingressaram com a ação a fim

143 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. APL 70062692876 RS 92.2014.8.21.7000.

Relator: José Pedro de Oliveira Eckert. Julgamento: 12/02/2015. Órgão Julgador: 8.a Câmara Cível. Disponível em: <http://www.direitohomoafetivo.com.br/anexos/juris/1452__df0d938eddd 73f1480acda277712a4d6.pdf>. Acesso em: 22 mar. 2015.

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requerer a inclusão da outra companheira no assento de nascimento da menina e,

como consequência, obter o reconhecimento da filiação multiparental da mesma.

Contudo, o juízo de primeiro grau proferiu sentença que indeferiu o inicial,

entendendo pela impossibilidade jurídica do pedido.

Inconformado, o trio interpôs apelação pretendendo a reforma da decisão.

Ao julgar o mérito da demanda o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

entendeu que não há na Lei de Registros Públicos (Lei n.o 6.015/73) qualquer óbice

que proíba que no registro nascimento de uma pessoa natural sejam inseridos duas

mães e um pai.

Além disso, o voto do relator levou em consideração o intuito do trio em,

comprovadamente, formar uma família, o que ficou comprovado através da procura

por uma psiquiatra para acompanha-los, além da preparação que se preocuparam

em realizar junto com suas respectivas famílias.

Por fim, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul julgou

procedente o recurso de apelação, desconstituindo a sentença proferida pelo juízo a

quo e julgando procedente o pedido de reconhecimento de multiparentalidade.

Assim, determinou-se a retificação do registro de nascimento da recém-

nascida, com a finalidade de incluir a companheira da mãe biológica também como

mãe, razão pela qual a certidão de nascimento da menina, ao final, constou com

duas mães, um pai e seis avós.

Portanto, ao final da presente análise jurisprudencial, verifica-se que o que há

em comum nos três casos explorados é o reconhecimento, pelo Poder Judiciário, do

afeto como um vetor determinante para o estabelecimento da filiação de um indivíduo.

Independentemente da estruturação familiar estabelecida, se heteroafetiva,

homoafetiva, pluriafetiva ou reconstituída, uma vez verificada a presença de vínculos

de afetividade e afinidade na relação paterno-filial, a mesma deve ser reconhecida

pela Ciência do Direito como uma maneira de prestar tutela a essas relações sociais

que estão postas no mundo dos fatos.

Assim, não há relevância no modo como se dá a concepção e o nascimento,

a parentalidade socioafetiva deve ser levada em consideração como uma

construção estabelecida entre os membros da entidade familiar, podendo, inclusive,

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conviver concomitantemente e em perfeita harmonia com a parentalidade biológica e

registral.

4.2.2 Pesquisa Empírica junto à 1.a Vara da Infância e da Juventude do Foro Central

da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Estado do Paraná

Em pesquisa empírica junto a Primeira Vara da Infância e da Juventude do

Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Estado do Paraná, foi

possível verificar, na prática, a realidade de uma família multiparental.

Nesse estudo foi utilizada uma Ação de Adoção Unilateral, que tramitou

perante a Vara supramencionada, mediante a autorização da Excelentíssima

Senhora Doutora Juíza de Direito Lídia Munhoz Mattos Guedes, com o escopo da

Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Paraná (Anexo 4).

Tendo em vista o respeito ao segredo de justiça, foram utilizados nomes

fictícios, bem como alteradas datas e omitidos fatos de menor relevância para a

elucidação dos fatos, a fim de resguardar as partes envolvidas.

Trata-se de ação de adoção unilateral e consequente extinção do poder

familiar pela morte do pai biológico, inicialmente proposta perante as Varas de

Família e Sucessões do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de

Curitiba, do Estado do Paraná.

O requerente, Mario, aduziu na inicial ser casado com Rosana há,

aproximadamente 02 (dois) anos, sendo que ambos se conheciam desde a

adolescência. Ao iniciar relacionamento amoroso com Mario, Rosana já possuía um

filho biológico, Matheus, com Carlos, seu antigo companheiro.

Quando Mario e Rosana iniciaram o relacionamento amoroso Matheus contava

com apenas 01 (um) ano de idade e, desde então, o requerente passou a assumir

os cuidados paternais para com o infante, assistindo-o em seus direitos materiais,

educacionais, afetivos e psicológicos.

Ressalta-se que a genitora apresentou concordância com o pedido formulado

pelo requerente.

Ocorre que, em que meados do ano de 2010 o pai biológico de Matheus

faleceu em decorrência de um trágico acidente de transito.

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Carlos então ajuizou a ação aqui analisada, entendendo que com a morte do

genitor, restaria extinto o poder familiar, com base no artigo 1.635, inciso I, do

Código Civil. Além disso, afirmou que, antes da morte de Carlos, o contato entre pai

e filho era esporádico.

Em contrapartida o requerente alegou que havia construído com Matheus

uma verdadeira paternidade socioafetiva, construída ao longo dos anos de

convivência e baseada nos laços de amor, respeito, afeto e amizade.

Ao receber a inicial, o Juiz de Direito da Vara de Família e Sucessões

entendeu-se incompetente para julgar e processar o feito, em razão do artigo 5.o da

Resolução n.o 07/2008 do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná,

declinando a competência às Varas da Infância e da Juventude do Foto Central da

Região Metropolitana de Curitiba.

Recebidos os autos junto a 1.a Promotoria da Infância e Juventude, determinou-se

a remessa os mesmo à equipe técnica atuante naquele juízo a fim de avaliar a

motivação e conveniência da medida pleiteada.

A equipe técnica então se manifestou favoravelmente a concessão do pleito,

uma vez que foi constatada forte vinculação afetiva entre Matheus e Mario, além de

ambos identificarem-se como pai e filho.

Ocorre que, após a realização da oitiva da genitora em audiência, a qual

expressou sua concordância com o pedido do marido, a magistrada tomou o cuidado

de determinar a colheita do consentimento dos avós paternos do menino.

Os avós paternos, por sua vez, citados e intimados por meio de carta precatória,

apresentaram contestação, discordando do pedido de adoção unilateral formulado

por Mario, haja vista que, em que pese morassem distantes de Matheus (em outro

Estado) possuíam uma relação familiar e de convivência com ele. Alegaram que

somente não possuíam mais contato com o neto em razão da impossibilidade de

custear os valores de deslocamento e, ainda, tendo em vista falecimento de seu filho

Carlos, a aproximação com Rosana e o neto restou prejudicada.

Os avós paternos alegaram, ainda, que Matheus possuía um irmão paterno,

sendo que o deferimento do pedido de adoção unilateral implicaria no rompimento

dos vínculos familiares existentes entre irmãos.

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Por fim, os avós paternos comprovaram, por meio de fotos, a existência de

laços afetivos com Matheus e de contato, ainda que não frequente, entre os familiares

paternos e o menino. Além disso, restou comprovado o auxílio financeiro prestado

ao menino, por meio de depósitos bancários, que contribuíam para a assistência

material dada à criança.

O Ministério Público manifestou-se pela parcial procedência do pedido, com a

finalidade de reconhecer a paternidade socioafetiva exercida pelo requerente, incluindo

o nome do mesmo no registro de nascimento de Matheus, sem, contudo, proceder a

exclusão da paternidade biológica, tendo em vista os superiores interesses da criança.

Contudo, por outro lado, também levou em consideração a existência da

vinculação afetiva entre o requerente e o infante, sendo que aquele sempre exerceu

o papel de pai na vida do menino, conforme ficou demonstrado pelo estudo social

apresentado pelo Núcleo Psicossocial.

Assim, apresentou-se a possibilidade de se considerar o exercício da dupla

paternidade. Isso porque, defendeu a promotora de justiça, que o ordenamento

jurídico reconhece a existência da paternidade em decorrência do vínculo biológico,

bem como da paternidade afetiva, não havendo, a princípio, prevalência de uma

sobre a outra.

O requerente então manifestou-se, concordando com a possibilidade

alternativa de aplicação da dupla paternidade e entendendo ser possível que as

partes vivam em harmonia, em razão do bem-estar de Matheus.

Já os requeridos, em que pese devidamente intimados por meio de seu

procurador, deixaram de manifesta-se no prazo legal.

A Juíza de Direito então proferiu sentença acolhendo o parecer do Ministério

Público. Assim, considerando a existência dos laços biológicos e afetivos, a

magistrada entendeu pela possibilidade de aplicação da dupla paternidade ao caso

em tela, de modo que o feito foi julgado parcialmente procedente a fim de determinar

a inclusão do nome do requerente e seus ascendentes ao registro de nascimento de

Matheus, sem, contudo, proceder a exclusão do pai biológico e seus ascendentes.

O infante manteve o matrimônio do pai biológico, incluindo o do pai

socioafetivo, sendo que, ao final, seu em registro de nascimento constou-se uma

mãe, dois pais e seis avós.

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Portanto, da análise do presente caso foi possível constatar a constante

necessidade do Direito em criar soluções jurídicas, nem sempre convencionais, para

tutelar as novas relações de filiação que se perfazem nas, também novas, relações

familiares.

Desse modo, verifica-se que no caso em tela, foi perfeitamente possível

atender às demandas de todas as partes envolvidas sem a necessidade de adotar o

vínculo biológico em detrimento do vínculo socioafetivo e vice-versa.

Com a solução da dupla paternidade dada ao caso, foi possível reconhecer a

paternidade exercida pela requerente em relação ao infante, evitar o sofrimento da

família paterna com mais uma perda (dessa vez em relação ao neto) e, dessa

maneira, atender aos superiores interesses da criança, que ao final, além de adotar

o nome familiar do requerente, ainda teve a benesse ver constar em sua certidão de

nascimento a presença de uma mãe, dois pais e seis avós.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste trabalho foi possível constatar que a família tradicional estava

extremamente ligada ao sagrado matrimônio, além disso, possuía características

patriarcais e patrimonialistas.

Tendo em vista as características da família tradicional citadas acima e, ainda,

com a intenção de manter a paz familiar, a supremacia do homem sobre a mulher e

o objetivo de gerar e manter o patrimônio dentro de um núcleo familiar restrito, o Código

Civil de 1916 somente tutelava as relações familiares advindas do casamento.

No que se refere a filiação não era diferente, uma vez que o referido Código

civilista somente concedia proteção aos filhos havidos dentro do casamento válido

entre os pais, de modo que deixava a margem de proteção a prole havida fora do

mesmo, além de conceder-lhe tratamento discriminatório. Isso porque essa prole,

tida como ilegítima, era impedida de ser reconhecida, além de restar afastada dos

direitos sucessórios, bem como da possibilidade de pedir alimentos.

Ocorre que, após várias mudanças no contexto social, econômico e tecnológico,

as relações familiares também se modificaram bastante. Assim, com a emancipação

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feminina, a Lei do divórcio, a redução do número de filhos e a superveniência das

modernas técnicas de reprodução humana assistida, houve uma verdadeira revolução

no Direito de Família, dando origem à família da maneira como conhecemos hoje, a

família comtemporânea.

A família comtemporânea deixou de ter preocupações eminentemente

patrimonialistas e passou a preocuparar-se com a questões como a felicidade, o

respeito, a cumplicidade e o amor compartilhado entre seus membros.

As mudanças ocorridas nas relações familiares refletiram-se também nas

relações de filiação.

O texto constitucional, que se trata de um verdadeiro “estatuto da filiação”,

além de conceder a família especial proteção do Estado, inaugurou uma família

baseada em princípios como a dignidade da pessoa humana, a igualdade entre as

filiações, a pluralidade familiar, a democracia interna, e a afetividade, de modo que

as decisões tomadas no âmbito do Direito de Família devem estar sempre em

sintonia com esse conjunto de princípios.

Dentro desse novo contexto familiar e legislativo determina-se a filiação por meio

de três verdades: a verdade jurídica, a verdade biológica e a verdade socioafetiva.

A verdade jurídica corresponde ao regime das presunções de paternidade e

maternidade, ainda utilizado pelo Código Civil de 2002, além das decisões judiciais

que determinam vínculos filiatórios.

A verdade biológica está ligada ao uso da Engenharia Genética, a qual

permite, por meio do exame de DNA, que se obtenha certeza absoluta no que diz

respeito a procedência indivíduo.

Por fim, a verdade socioafetiva trata-se da parentalidade exercida em relação

a um filho com o qual não se tem qualquer vínculo de sangue. Ou seja, para a

determinação da filiação leva-se os vínculos de afeto e afinidade constituídos dentro

da entidade familiar.

Por fim, pretendeu-se demonstrar como se dá a multiparentalidade enquanto

uma nova relação de filiação inserida no Direito de Família.

A multiparentalidade trata-se de uma realidade vivida por diversas famílias

brasileiras, tendo em vista os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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(IBGE), que indicam um grande aumento no número de divórcios e recasamentos,

gerando a formação das famílias reconstituídas.

Além disso, o referido fenômeno pode ocorrer por meio da adoção ou do uso

das técnicas de reprodução humana assistida por casais homoafetivos, realidade

também cada dia mais vivenciada no Brasil.

Assim, a multiparentalidade é um fato social cada vez mais comum nas

famílias brasileiras, aonde mais de uma pessoa exerce a mesma função parental em

relação a outra.

Essa nova relação de filiação, portanto, merece também proteção estatal e deve

ser cautelosamente analisada pelo magistrado no caso concreto, sob a perspectiva

de que a verdade biológica e a verdade socioafetiva podem coexistir de forma

harmoniosa, conforme foi possível constatar através da análise jurisprudencial

realizada, bem como por meio da pesquisa empírica integrante desta pesquisa.

Por fim, importante destacar que o grande objetivo deste trabalho foi

demonstrar que cada indivíduo possui liberdade para consolidar o vínculo filiatório

da maneira que entender mais pertinente e adequada para sua vida. Ou seja, a

relação de filiação poderá concretizar-se das mais variadas formas e dentro dos

mais diversos núcleos familiares, cabendo ao Direito reconhecer e tutelar esses

vínculos filiatórios mesmo que esses não estejam previstos em lei. Isso porque

tratam-se relações postas e vividas por muitos brasileiros, os quais não podem ficar

a margem de proteção jurídica, portanto, precisam e merecem tutela jusrisdicional

adequada para o reconhecimento da verdadeira filiação.

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O VAZIO DE PENSAMENTO COMO PREMISSA DO ANTISSEMITISMO

GENERALIZADO NA ALEMANHA NAZISTA

THE EMPTNESS OF THOUGHT AS A PREMISE OF ANTI-SEMITISM

WIDESPREAD IN NAZI GERMANY

Raissa Mariana da Silva Rosa144

Marcelo Bueno Mendes145

SUMÁRIO

Resumo. Abstract 1 Introdução 2 O Vazio de Pensamento por Hannah Arendt 2.1 O Julgamento de Eichmann 2.2 O Experimento de Milgram e o Caso Eichmann 2.3 O Vazio de Pensamento Como Base Para a Disseminação dos Ideais Nazistas 3 A Banalidade do Mal por Hannah Arendt 3.1 A Banalidade do Mal Observada na População Alemã e o Extermínio dos Judeus 4 Contrapontos à Teoria de Hannah Arendt 5 O Vazio de Pensamento na Atualidade 6 Considerações Finais. Referências

RESUMO

O vazio de pensamento conceituado pela autora Hannah Arendt não teve desde a sua concepção uma definição clara, exigindo dos leitores uma ampla pesquisa e leitura de várias de suas obras a fim de identificar o que a autora queria explicar com tal conceito. Desde suas primeiras obras Hannah Arendt intrigava quem as lia, pois esperava-se de uma autora judia uma defesa incondicional de seu povo, porém esta não se limitou a defender quem quer que fosse com unhas e dentes sem uma profunda análise antes. A partir do momento em que se fala do vazio de pensamento há que se falar também da banalidade do mal, outro conceito criado por Hannah que se encontra diretamente ligado ao vazio de pensamento. Não há como fazer análise do vazio de pensamento sem relacioná-lo a banalidade do mal que se encontra nos seres humanos desde os primórdios da vida em sociedade. Questionando até que ponto este vazio influencia a sociedade alemã a seguir as ideias de Hitler é possível também entender a sociedade moderna e seus anseios. O Holocausto sofrido pela população alemã deixa marcas até os dias atuais, o que faz todas as nações lembrarem que fazer parte de uma sociedade moderna não significa estar protegido de atos de crueldade. O grande questionamento realizado acerca deste recorte historiográfico da Segunda Guerra Mundial é o que motivaria indivíduos a aceitarem ideias de cunho tão extremo, alegando inclusive não ter consciência do que ocorria na época dos massacres à população judaica, bem como a outros segregados naquele tempo.

144 Acadêmica de Direito do Unicuritiba. [email protected]. 145 Mestre em Direito (UFSC); Especialista em Direito Empresarial Instituto Brasileiro de Estudos

Jurídicos); Titular de Direito Processual Civil I, História do Direito, Teoria Geral do Processo e Direito e Cinema (Unicuritiba). [email protected].

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Palavras-chave: vazio de pensamento; banalidade do mal; Hannah Arendt; Nazismo; Judeus.

ABSTRACT

The emptiness of thought conceptualized by the author Hannah Arendt hasn’t had a clear definition since its inception, requiring of its readers extensive research and the reading of several of her works in order to identify what the author wanted to explain with this concept. Since her early works Hannah Arendt intrigued those who read them, since it was expected from a Jewish author an unconditional defense of her people. But she would not not just defend whoever it was without a thorough analysis before. From the moment that we speak about emptiness of thought we must also speak about banality of evil, another concept created by Hannah that is directly connected to the emptiness of thought. There is no way to analyze the emptiness of thought without relating it to banality of evil, which is in human beings since the dawn of life in society. Questioning the extent to which this gap influences the German society after Hitler's ideas can also make us understand modern society and its aspirations. The Holocaust suffered by the German population leaves its mark to this day, remembering all nations that being part of a modern society does not mean being protected from acts of cruelty. The big question held about this historiographical clipping of the Second World War is what would motivate individuals to accept imprint extreme ideas, and even claiming to be unaware of what was happening at the time of the Jewish population massacres, as well as other segregated at that time. Keywords: emptiness of thought; banality of evil; Hannah Arendt; Nazism; Jews.

1 INTRODUÇÃO

O estudo abordado neste trabalho visa esclarecer até onde o vazio de

pensamento, conceito criado pela filósofa Hannah Arendt, influencia diretamente as

decisões tomadas em massa frente à oferta de uma ideologia fascista ou extrema,

levando-se em conta o recorte histórico da Alemanha Nazista, no qual ocorreu o

maior massacre humano da história moderna.

Justifica-se a importância deste estudo em face o comportamento humano

intrigar as mais variadas áreas científicas, desde a antropologia, passando pela

sociologia e a psicanálise, até o estudo do Direito em si, pois para manter a Justiça

em sua forma máxima há a necessidade de compreender as atitudes humanas

como um todo.

A pesquisa a ser explicitada neste artigo não serve apenas como uma análise

de um período histórico isolado da humanidade em que houve um lapso de

consciência generalizado, mas sim o esclarecimento de uma conduta realizada pela

massa praticada desde a história antiga que culminou na explosão de atos

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condenáveis que resultaram no Holocausto, bem como reconhecer atitudes

específicas daquele momento histórico que se verificam até os dias de hoje em

movimentos extremistas ao redor do mundo.

Dessa forma, ao analisar profundamente as causas do ódio generalizado,

podem-se evitar novas ocorrências de massacres e condutas vazias na atualidade.

Condutas estas que se verificam com facilidade em uma simples leitura dos

noticiários do dia.

A grande questão que torna a pesquisa abordada neste trabalho necessária

encontra-se no fato de hoje em dia haver uma crença de que não se repetiria

nenhum ato ocorrido no Holocausto, pois há esse pensamento de que a sociedade

atual está muito mais desenvolvida e blindada contra atos de extrema crueldade.

Porém, esta ideia de que a sociedade estava em um momento de

desenvolvimento alto e grandes descobertas científicas capazes de tornar os seres

humanos mais avançados, já existia na época da Segunda Guerra Mundial e esse

foi um dos maiores motivos que fez com que as nações se chocassem ainda mais

com as condutas verificadas no Holocausto: esperava-se que em uma sociedade

naquele patamar não fosse possível encontrar registros de tais barbáries cometidas

pelo próprio Estado.

Para entender o que levou tal sociedade agir daquela maneira é preciso fazer

uma abordagem histórica da Alemanha da época, bem como a origem do

antissemistismo no mundo e, principalmente, naquela sociedade.

Ao estudar a origem do antissemitismo é possível diagnosticar desvios de

conduta que se repetem hoje, levando a uma reflexão sobre a importância do estudo

da história, o qual sempre revela o que se deve evitar para manter o bem-estar

social da humanidade, pois não esquecendo o passado é possível evitar que se

repitam erros no futuro.

Portanto, o estudo desta problemática a ser abordada, a qual se refere a um

passado histórico, continua tendo relevância na atualidade, por isso faz-se

necessária esta abordagem de tema, cuja análise trará respostas à grandes

questionamentos feitos hoje por toda a sociedade.

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Os conceitos criados por Hannah Arendt do vazio de pensamento e do mal

banal não perderam sentido com o passar do tempo, mas sim, continuam relevantes

nos acontecimentos que são observados no mundo atual.

Há que se afirmar que seus conceitos continuam polêmicos, pois trazem

problemáticas que enfraquecem a ideia de perfeição do ser humano e de

superioridade comparado com outros animais.

Quando se fragiliza esta ideia, quando se coloca o ser humano como capaz

de atrocidades, há revolta por parte daqueles que não admitem o que Hannah

Arendt explica em sua filosofia como correto, porém, é com dados e ideias

contrapostas que se constroem teorias mais fortes e sólidas.

São debates que levam o ser humano a chegar a conclusões mais sábias e

complexas, pois com opiniões iguais não é possível trazer grandes mudanças para a

humanidade.

Após explicitar os principais pontos desta pesquisa e as obras que a

embasaram, resta esclarecer que esta contribuirá para o desenvolvimento da ciência

social.

Ainda, muitas obras serão adicionadas a este trabalho, com o fim de resultar

em uma pesquisa completa e sólida.

2 O VAZIO DE PENSAMENTO POR HANNAH ARENDT

Para entender as atrocidades que estão em questão neste trabalho, faz-se

necessário o esclarecimento do que seria o vazio de pensamento, conceito citado

por Hannah Arendt (2008, 336 p.) em seu livro “Eichmann em Jerusalém”.

Para explicar o que seria este vazio, foi necessária a utilização do

entendimento da autora Nadia Souki (1998, p. 119) acerca do explanado por

Hannah Arendt:

[…]é importante observar que o termo “vazio de pensamento” não se encontra suficientemente delimitado e nem localizado especificamente na obra de Hannah Arendt. Mas ele pode ser destacado sempre apresentando as seguintes características: encontra-se salpicado em diversos pontos de sua reflexão sobre o mal com os nomes de “ausência de pensamento”, “superficialidade” e “irreflexão” e se acha sempre associado a banalidade do mal.

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Com base nesse vazio pode-se fazer o questionamento de até que ponto este

seria responsável pela criação de um pensamento único para uma massa

generalizada da população, a qual facilita a disseminação de ideias de pobreza

intelectual até mesmo para aqueles que têm uma boa formação acadêmica.

Extrair a ideia de que o mal está diretamente ligado a este vazio de

pensamento é necessária, pois está presente nas ideias de Hannah Arendt, em face

o mal consistir em uma ideia superficial, não haver profundidade nele, por isso pode-

se dizer que ambos têm uma ligação. Essa ausência do pensar e refletir resulta em

ideias de pobreza intelectual, corriqueiramente perversas.

Este conceito foi criado por Hannah Arendt (ARENDT, 2008. 336 p.) em

seu livro “Eichmann em Jerusalém”, no qual é feita uma análise do comportamento

humano usando como exemplo o nazista Adolf Eichmann, grande responsável pelo

extermínio judeu na Alemanha nazista, também chamado de “a solução final”.

O vazio quando associado ao conceito de massa carrega um peso de

responsabilidade muito grande, no sentido de que tudo que é falado é absorvido,

não há um filtro entre o que está sendo proferido e o que será aceito pelos ouvintes.

Associado a este vazio já pré-existente, o partido nazista procurava manter a

massa em sua situação de ignorância, alimentava essa falta de raciocínio lógico e

pensamento crítico, para que pudesse cada vez mais introduzir suas ideias sem

questionamento algum.

Assim, explica Nádia Souki (SOUKI, 1998. p. 122) sobre o vazio de

pensamento:

O totalitarismo, apoiando-se em uma massa atomizada, procura torná-la sempre mais atomizada e amorfa; massa de indivíduos isolados, anônimos, sem interesses pessoais, sem poder, pois homens isolados sem interesses em comum não tem nenhum poder. Nesse contexto, o senso comum é uma categoria capital para a reflexão sobre o fato político, porque ele é, precisamente, o contrário do isolamento que age sobre a via da aniquilação da esfera política. Aqui o senso comum se caracteriza como o sentido do real, condicionando o indivíduo a se relacionar com a realidade do mundo em que vive, a dominá-la, julgá-la, a se adaptar, a modificá-la, enfim, de ser ele. Assim, a dominação totalitária passa pela destruição desse sentido da realidade, dessa faculdade que se apoia na presença do outro.

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Conforme se depreende do trecho acima, há uma distorção da realidade por

parte do opressor, o qual incentiva cada vez mais a transformação da realidade do

oprimido, para que este confie e necessite apenas do opressor, sem querer buscar o

que está fora do domínio.

O dominado não pode enxergar mais do que lhe é posto, do que é dito. Não

pode haver nem um mínimo sequer de dúvida por parte do oprimido quanto a

idoneidade de seu opressor.

O opressor deve ser visto como herói, como o salvador dos miseráveis, como

aquele que traz o alimento para os filhos do oprimido. Ele deve ser visto como o

único com a verdade absoluta, inquestionável.

A autora Nadia Souki salienta, ainda, que para manter a massa sob controle,

o isolamento desta é essencial, pois a desorienta.

Um ser isolado não possui parâmetros para medir o que é correto. Esta falta

de base para tomar decisões mantêm os oprimidos da massa cada vez mais

isolados dentro do regime.

Não há como comparar uma coisa com si mesma, por isso o isolamento é tão

necessário para a manipulação das massas ser eficaz.

Ainda, quanto aos instrumentos de dominação para manter a massa sempre

no caminho designado, Hannah Arendt traz o medo como a principal delas.

Para ela, o medo seria maior que o próprio sonho de buscar uma vida melhor,

que o desejo de um mundo perfeito. O medo leva os indivíduos de volta ao estado

selvagem, do instinto, no qual o cérebro não toma decisões meticulosamente

pensadas, mas sim decisões rápidas e por meio de atalhos chega a solução, uma

decisão.

Assim, dificilmente um indivíduo faria escolhas de forma pacífica e com um

tempo duradouro, tais escolhas, quando há medo, são derivadas de um raciocínio

atropelado, curto, sucinto e mastigado.

A pressa dos tempos modernos acarreta um encurtamento dos raciocínios,

uma necessidade do pronto, do imediato, do fácil e eficaz.

Hannah Arendt cita Eichmann como um exemplo de ser que deixou seu

pensamento esvaziar-se diante de outras necessidades, como a de ascender como

um famoso militar, trazer à sua família o que tanto sonhava.

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O vazio de pensamento que se identifica em Eichmann está relacionado ao

fato de ele ser apenas um burocrata que nunca teve um raciocínio muito incentivado.

O que o motivava era provar para sua família que seria capaz de se tornar uma

figura pública e importante, não tinha nada contra os judeus em específico, apenas

colocou seus interesses em um patamar que não possibilitava que qualquer outro

questionamento o tirasse de seu foco.

Ainda, uma forma bem explícita de mostrar que Eichmann apenas não

questionou suas atitudes é o fato de ele ter afirmado que não matou nenhum judeu,

que não matou nenhuma pessoa sequer.

Para ele o que fez foi apenas obedecer a ordens, pois era isso que o

satisfazia, para Eichmann uma ordem não cumprida significava uma falha e isso o

torturava por dentro.

Conforme se observa, inclusive das próprias palavras de Eichmann, ele não

se considerava responsável direto pela morte dos judeus, ou pela morte de qualquer

ser humano. Apenas seguiu as ordens que lhe foram redigidas, sem questionar se

havia fundamento naquelas, ou se estavam de acordo com seus valores.

Porém, não haviam valores como os que se espera de um indivíduo social em

Eichmann, havia nele um valor relacionado apenas visando sua ascensão na

carreira.

2.1 O JULGAMENTO DE EICHMANN

O julgamento de Eichmann é considerado até os dias de hoje como um

marco para aqueles que estudam a filosofia e a moral. Observar durante dias aquele

indivíduo que tanto intrigou a sociedade era um privilégio que nem todos

perceberam a priori, porém com o passar de pouco tempo, durante o julgamento, as

nações que o acompanhavam começaram a observar que aquele julgamento não

seria somente de um homem, mas de todos os seres humanos como um todo.

Ainda, ao chegar ao julgamento de Eichmann o que se esperava era

encontrar um ser humano que causasse repúdio e que notavelmente fosse cheio de

fúria e maldade, um ser que exteriorizasse totalmente seus ideais extremos.

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Porém, o que se encontrou foi um homem normal, não fervoroso, sem ódio

aparente, apenas um burocrata que seguia ordens sem questioná-las, alguém que

ignorava qualquer consequência de seus atos.

Sobre a personalidade de Eichmann assim descreve Christophe Dejours

(2000. p. 109):

Não se trata de um herói, nem de um fanático, nem de um doente, nem de um grande perverso, nem de um paranóico, nem de um “personagem”. Ele não tem originalidade. Não dá margem a nenhum comentário particular. Não desperta a curiosidade nem o desejo de compreender ou interpretar. Não é enigmático. Não é nem atraente nem repulsivo. É fundamentalmente insignificante.

Conforme o acima explanado, Eichmann não poderia ser chamado de

monstro, apesar de ter sido responsável pela ordem que determinou a execução de

atos terríveis e condenáveis, isso não se via em sua face nem em seu

comportamento.

A única coisa que realmente assustava em sua personalidade era o fato de

ser “humano demais para aqueles que o assistiam, bem como pelo fato de não

transparecer nenhum sentimento de remorso ou de consciência do que estava

ocorrendo.

Era apenas um burocrata, alguém que seguiu ordens, não se sentiu

responsável por nenhuma morte, afirmou nunca ter matado nenhum ser humano,

nem tem problemas com os judeus, possuindo inclusive amigos da família que eram

judeus.

Característica principal de sua personalidade, a falta de pensamento crítico

foi crucial para que ele executasse muito bem suas funções, visando apenas subir

em sua carreira e se tornar alguém conhecido.

Cansado de ser apenas um trabalhador, Eichmann se inscreveu na SS com

o único objetivo de mudar seu caminho, ser outra pessoa, puramente uma ideia de

carreira.

Eichmann não era capaz de raciocinar, questionar, criar. Seguia regras sem

questionar, proferia ordens de execução de seres humanos com facilidade, porque

isso era o ordenado e, contanto que ele cumprisse a missão, tudo estaria em seu

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devido lugar. Vergonha para ele era uma missão com falha, uma execução não

lograda, levar uma vida comum como a que sempre detestou.

Hannah Arendt explica que Eichmann inclusive preferiria a morte por

condenação do que morrer naturalmente apenas levando uma vida monótona e

comum em sua cidade natal.

Ainda, segundo Hannah Arendt, o que decepcionou e entristeceu

profundamente Eichmann não foi o fato de ter sido responsável pela morte de várias

pessoas sem ao menos questionar o que estava fazendo, mas sim, não ter

alcançado patente maior em sua breve carreira na SS.

Essa afirmação demonstra claramente aspectos da personalidade de

Eichmann, a qual serve de base para vários estudos acerca do que é o mal e como

ele se apresenta no cotidiano dos indivíduos.

2.2 O EXPERIMENTO DE MILGRAM E O CASO EICHMANN

O julgamento de Eichmann chamou atenção de muitas pessoas em face ter

ido contra o que todos esperavam de sua personalidade. A expectativa de um

homem muito diferente do comum e extremamente cruel não foi cumprida.

Os seres humanos tendem a colocar o mal como algo antagônico ao seu

próprio ser, algo distante e impossível de alcançar. Porém, quando o mundo tomou

conhecimento de que Eichmann não era um ser tão diferente, nem possuía maldade

além do que é intrínseco ao homem médio ter, houve um choque, uma quebra de

paradigma.

Assim explica Luiz Felipe Pondé (2009. Acesso em: 07 jun. 2015) em um

texto que, relacionando-se com o nazismo, esclarece muito bem a forma como os

seres humanos encaram o mal, como é possível ver no excerto abaixo:

[...]A frase "humanizar o nazista" me soa estranha, apesar de que sei que os hipócritas a consideram óbvia como uma manhã de sol. "Humanizar o nazista" me soa como "cachorrar o cachorro", "arvorizar a árvore", "baratizar a barata". Absurdo? Não, porque os nazistas e seus colaboradores silenciosos são tão humanos quanto você e eu. E não me venha dizer, entre dois goles de vinho, que não. Humano nunca foi sinônimo de retidão moral. Optamos racionalmente pelo Mal. "Racionalmente" aqui quer dizer "atos justificados do ponto de vista dos nossos interesses cotidianos" e "Mal" aqui significa "ser cruel com os indefesos". A (falsa) indignação com a afirmação da humanidade dos nazistas por parte dos hipócritas já anuncia a farsa

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moral: nego a justificação silenciosa (humana e banal) do ato cruel para defender minha imagem de "bom". E por quê? Porque não suporto que desnudem o fato de que eu, provavelmente, agiria da mesma forma naquela situação. Nosso hipócrita perde o sono com isso. Sente-se nu. E por quê? Façamos uma pequena sociologia desta farsa. Há um conforto canalha em remeter os anos nazistas a algum tipo de monstruosidade. Perceber a humanidade do nazista não é desculpá-lo ou justificá-lo moralmente, mas sim iluminar nosso parentesco com ele, é denunciar um cotidiano de pequenos interesses e medos que sufocam o mal-estar moral numa praga de fungos. É aí que reside a farsa moral: remeter o nazismo a uma monstruosidade é supor que foi algo "não humano" que o produziu. Essa suposição é a farsa moral: o monstro nele provaria que estamos a salvo. A verdade é que a maioria esmagadora agiria como todos os que colaboraram durante o terror fascista. Denunciaríamos judeus, gays, ciganos, comunistas, desgraçados de todos os tipos. E por alguma causa maior? Não, denunciaríamos apenas para garantir nosso cotidiano.

Como é possível observar no texto de Pondé, há uma clara tentativa de

distanciamento da figura do mal por parte dos indivíduos considerados comuns,

como se o mal não fosse algo inerente ao ser humano.

Transformar os soldados nazistas em monstros que detêm condutas nada

comuns na sociedade é tarefa fácil. A dificuldade se encontra quando há a

necessidade de olhar para os próprios cidadãos alemães e reconhecer o mesmo mal

neles, olhar para a própria condição humana e enxergar ali o mal que tanto é

condenado pelo homem médio.

A partir deste questionamento sobre onde pode se encontrar o mal, outros

surgiram, como: seria este mal característica pura de um homem que trabalhava em

prol do nazismo ou seria algo encontrado em todo ser humano e, mais, seria a pura

burocracia de Eichmann e sua facilidade de seguir ordens, algo característico

apenas de sua personalidade, ou algo inerente a todo ser humano?

Para responder alguns destes questionamentos, em 1963, um ano após a

execução de Adolf Eichmann, o cientista Stanley Milgram (1963, p. 371–378)

elaborou um estudo baseado em um experimento chamado de “Behavioral Study of

Obedience” ou, em português, “Estudo Comportamental da Obediência”.

O estudo consistiu em colocar pessoas comuns para punir outras pessoas

também comuns, sendo que quem fizesse o papel de professor no estudo seria

responsável por dar um choque em quem faria o papel de aluno a cada erro que o

este cometesse.

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Os indivíduos responsáveis por punir tinham a sua frente uma série de botões

com a quantidade de volts do choque que seria aplicado no suposto aluno, assim, os

professores sabiam a quantidade de volts que usariam para punir o aluno e também

haviam informações sobre o nível de periculosidade dos choques.

Ainda, os indivíduos que respondiam como professores podiam ouvir, a cada

punição que aplicavam, os gritos e manifestações de dor dos alunos punidos, vindos

da outra sala, o que não os impediu de ir até o fim com o aumento dos choques.

No início da pesquisa, Milgram esperava que o nível de pessoas que fossem

se furtar de aplicar choques fortíssimos em pessoas que supostamente estariam

sofrendo, seria baixo, porém, ao concluir a pesquisa, Milgram ficou surpreso ao

descobrir que mais da metade dos indivíduos analisados aceitaram, apenas por

causa da ordem dada por uma suposta autoridade, punir pessoas sem qualquer

outro motivo.

Esta pesquisa mostra que os seres humanos respondem com violência a

qualquer estímulo simples ou ordem, não importa se advindas de autoridade

suprema ou apenas de um ser que se apresentou como tal.

Os indivíduos pesquisados neste experimento de Milgram puniram outras

pessoas apenas para não sofrerem o pequeno mal-estar de dizer “não” à ordem do

orientador da pesquisa.

Isto reforça a ideia que Pondé expôs em seu texto, no qual afirma que por

pequenas coisas o ser humano é capaz de agir conforme o comandado, não

hesitando em machucar outros.

Vale ressaltar ainda, que esse pensamento burocrata de seguir ordens sem

questionamentos, geralmente vem acompanhada da ideia de realizar uma atividade

em prol de um bem maior, de um fim nobre.

Essa característica de buscar o bem maior tem grande efeito quando se trata

de reunir massas grandes em um único objetivo.

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2.3 O VAZIO DE PENSAMENTO COMO BASE PARA A DISSEMINAÇÃO DOS

IDEAIS NAZISTAS

O vazio de pensamento foi de suma importância para a disseminação das

ideias nazistas por todos os países em que o nacional socialismo passou. Uma

mente sem pensamento crítico ou vazia torna a imposição de uma ideia absurda

muito mais simples e rápida.

Em uma mente com tal vazio, a aceitação a primeira ideia simples que é

imposta parece a melhor solução quando a mente esta ocupada com a miséria, a

falta de dinheiro, de alimentos, a impotência de um pai ou uma mãe frente a fome do

filho. Todos estes fatores levam a um raciocínio mais curto, no qual o cérebro

procura atalhos para uma solução rápida.

Diante do desespero, a mente humana não verifica uma infinidade de opções,

apenas a que é colocada em sua frente como a mais simples, e os participantes e

seguidores de Hitler sabiam muito bem aproveitar este vazio que prevalecia na

mente dos cidadãos.

O atalho buscado pela mente para a solução mais rápida não é consequência

de uma ausência de conhecimentos científicos ou da alta escolaridade do individuo.

O vazio de pensamento não escolhe “vitimas” de acordo com a capacidade

mental, mas sim da situação em que o indivíduo se encontra no momento das

decisões.

Como se pode observar, o vazio de pensamento é a única explicação

encontrada por alguém que aceitou as ideias extremas propostas pelo regime

nazista.

Não há como dizer que, racionalmente, questionando e levando em conta

todos os prós e contras de tais ideais, alguém em sã consciência aceitaria que seu

país assassinasse seus próprios nacionais, pois isso colocaria em risco os próprios

detentores desta ideia.

Quando há a aceitação de que alguns seres humanos sofram a execução e

marginalização está se colocando em risco a própria segurança jurídica. Coloca-se

em exposição a fragilidade do ser humano.

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Ao ignorar que milhões de judeus estavam sendo mortos, a própria população

alemã colocou em risco sua integridade. A proteção de um povo não visa somente a

segurança dele, mas sim a de todos que vivem em sociedade.

Assim, o que fez muitos se perderem em seus próprios questionamentos

sobre ética e moral foi o fato de não os colocar em pauta ao tomar decisões.

Hitler tinha profundo conhecimento da fraqueza da nação que pretendia

dominar, nesse sentido. Ele possuía muitas técnicas de domínio mental, usando,

para isso, a situação econômica miserável em que se encontrava a Alemanha pós

primeira guerra mundial.

Como Alcir Lenharo (1995, p.14) menciona sobre o conhecimento que Hitler

possuía acerca da mente humana “A partir de suas próprias fraquezas, Hitler sabia

lidar com “a má consciência, o sentimento de culpabilidade, o furor contra o mundo,

o instinto revolucionário, a concentração inconsciente dos desejos explosivos de

compensação…” O ditador tinha experiência própria sobre como lidar e esconder

sentimentos que pudessem tirar seus objetivos de perto.

Usando técnicas de publicidade e propagandas direcionadas à nichos

específicos, Hitler conseguiu transformar individuais em massas de manobra, as

quais não possuíam opinião própria nem questionavam ordens, apenas seguiam a

ordem dada.

Como bem observa Alcir Lenharo (1995, p. 15), ao analisar a forma como o

nazismo atingiu proporções não previstas:

A novidade do nazismo era sua força psicológica, que predispunha todos, trabalhadores ou não, a aceitarem ou assumirem seu corpo ideológico. Os recalques sexuais e a energia psicossocial das massas eram canalizados para um envolvimento contagiante com as propostas do movimento, e isto apesar de que elas se voltassem contra os interesses dos próprios trabalhadores.

Ainda, as propagandas que se espalharam pela Alemanha, como cita

Lenharo sobre o que Hannah Arendt assimilou do pensamento nazista, não traziam

técnicas inovadoras quanto ao seu conteúdo, pois continuavam a colocar os judeus

como inimigos.

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Independente de seus papeis, seja como chefes ou como empregados, como

ricos ou pobres, os judeus sempre eram colocados como dominadores,

manipuladores e mentirosos, que buscavam apenas a exploração da população

supostamente mais pura e merecedora do aval de Hitler.

Ademais, além de denegrir a imagem dos judeus frente ao restante da

população, o nacional socialismo objetivou incutir profundamente na vida e no dia a

dia de casa cidadão não judeu a necessidade de se distanciar de tal povo, a

necessidade de ser diferente dos judeus, de não ter relação alguma com sua cultura,

modo de viver, religião ou costumes.

Dessa forma, Hitler incentivou a população a tornar atos corriqueiros em

minuciosas práticas de distanciamento dos judeus, numa tentativa de criar em si

próprios a identidade dos arianos, supostamente merecedores dos benefícios

oferecidos pelo líder.

Grande arma de conquista do nazismo, a propaganda aliada ao vazio de

pensamento foi essencial para a proliferação dos ideais extremos de Hitler, o qual

sempre soube aproveitar esta ferramenta para espalhar seus ideais pela nação.

Muito antes de colocar em prática suas técnicas de dominação, Hitler tinha

tudo muito bem planejado, sabendo colocar minuciosamente a propaganda a seu

favor, de forma a evitar que houvesse um incentivo ao pensamento, ao uso da

razão.

Sempre focado em manter a massa inerte e apática ao que ocorria a sua

volta, Hitler usou a mídia como um comunicador de verdades que eram aceitas e

digeridas sem o menor questionamento.

3 A BANALIDADE DO MAL POR HANNAH ARENDT

Hannah Arendt não conceituou a banalidade do mal de forma direta e incisiva.

Em suas obras não é possível encontrar um conceito exato de tal fenômeno, apenas

algumas passagens citando como esta banalidade podia ser percebida nos atos de

Eichmann.

O mal não é citado por Hannah como uma entidade que se apodera das

mentes de pessoas inocentes, mas sim algo que já está dentro de cada ser.

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O mal faz parte do ser humano, da mente humana, de cada ato. Porém o uso

da racionalidade leva os indivíduos a controlarem esse mal de forma eficaz, evitando

que este absorva todos os seus atos.

Não há como mencionar o mal sem uma ligação direta com o vazio de

pensamento que o descontrola. Este vazio é essencial para que o mal responda por

todas as decisões que indivíduo deve tomar.

Quando este mal se torna intrínseco ao ser, responsável por todos os seus

atos, ele se banaliza, se torna corriqueiro.

O mal torna-se a regra e não a exceção. Se torna o opressor dos

questionamentos, assim como ocorre em um regime ditatorial.

Por isso o conceito de vazio de pensamento é tão importante para a

compreensão da banalidade do mal, pois em uma mente sem pensamento crítico o

instinto toma as decisões, e o instinto não é um estado mental delicado nem social.

É momento extremo, de decisões que não são tomadas corriqueiramente.

O mal em sua banalidade, impede que o indivíduo enxergue seus atos como

de crueldade ou que questione a moralidade de seus atos.

O que Hannah Arendt trouxe à tona que chocou muitas pessoas foi o fato de

colocar o mal como algo inerente ao homem, como algo de que todos estão sujeitos,

um sentimento que não atinge uma parcela apenas da população, mas sim todos os

seres.

Ao colocar o mal tão próximo do homem médio, foi criticada, por não colocar

o cidadão comum distante do mal.

Se um cidadão comum assume que o mal é algo corriqueiro, que ele mesmo

possui dentro de si, estaria assumindo que ele próprio seria capaz de atrocidades

terríveis se colocado em uma certa situação. Cada um tem em si um “gatilho” que

dispara e coloca o mal no controle, seja uma situação do dia a dia ou um

acontecimento que coloca em risco seus filhos.

Não há como afirmar que todos os seres precisam do mesmo precursor para

tomar decisões crueis, mas é notável que o ser humano possui em si uma

predisposição a defender o que considera correto, não importando o que seria

necessário para manter sua opinião segura.

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Há que se esclarecer que a banalidade aqui exposta e citada por Hannah

Arendt não significa que o mal é algo fácil de ser superado, que é banal no sentido

que sem importância e relevância.

A banalidade aqui mencionada significa que está presente no cotidiano dos

indivíduos, que não é algo específico de um ser maligno, mas sim algo do próprio

ser humano.

3.1 A BANALIDADE DO MAL OBSERVADA NA POPULAÇÃO ALEMÃ E O

EXTERMÍNIO DOS JUDEUS

Ao buscar fatos e passagens literárias que demonstrem como o mal foi

disseminado por qualquer indivíduo na época da segunda guerra mundial, não há

dificuldade em encontrar fatos que demonstrem atos terríveis, executados sem o

menor remorso, sem o mínimo de questionamento, como se fossem atos do dia a

dia.

A morte se tornou casual e não algo a ser questionado. A vida não possuía

mais valor, nem era encarada como um direito de todos, direito este que o Estado

tinha a obrigação de proteger sem ressalvas.

Porém, na Segunda Guerra Mundial, recorte historiográfico conhecido por ter

marcado as relações internacionais no mundo, o Estado não cumpriu seu papel de

protetor.

O grande divisor de águas que este momento histórico causou foi resultado

de o estado ter assassinado seus próprios nacionais. Guerras e homicídios em

massa sempre ocorreram ao longo da historia mundial, porem nunca havia ocorrido

um massacre em que o responsável pela proteção foi também o responsável pelo

assassinato de seus protegidos.

A partir do momento em que o protetor ofendeu a integridade do protegido, as

outras nações começaram a questionar até onde seria seguro para as pessoas

apenas um ente ser responsável por salvaguardar seus direitos.

Dessa forma, apos a segunda guerra, as nações unidas passaram a existir

para resguardar os direitos daqueles que ficaram sem proteção devido a um Estado

opressor.

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Após este breve histórico, há que se mencionar, de forma exemplificativa,

como o mal em sua forma banal, presente em qualquer homem médio, foi

encontrado nos responsáveis por execuções na Alemanha Nazista, conforme pode-

se verificar na passagem a seguir, presente no livro de William Wallace Shirer (1962,

p. 42):

Eram então fuzilados, ajoelhados ou de pé, por pelotões a moda militar, e os cadáveres lançados no fosso. Nunca permiti que se fuzilasse um a um. Ordenei que vários homens deviam atirar ao mesmo tempo, a fim de evitar responsabilidades pessoais. Outros chefes de grupos exigiam que as vitimas se deitassem, no chão, para serem atiradas na nuca. Eu desaprovava tais métodos. “Por que? ” - Indagou Amen. “Porque era, psicologicamente, um pesadíssimo fardo a suportar, tanto para as vitimas como para aqueles que executavam”

Através desta passagem fica evidente que, para os alemães, o fardo de ser

um soldado a serviço de Hitler não era tarefa fácil, inclusive muitas vezes seguir as

ordens dadas trazia consequências psicológicas aos seus praticantes, ou seja, para

aqueles alemães, seus soldados executavam um serviço de alta importância para a

manutenção do bem-estar social que se construiu na época.

Assim, os nazistas se preocuparam em amenizar o pesar de quem executava

os judeus, sem nem ao menos levar em consideração a possível dor dos milhões de

judeus e outros povos sendo executados todos os dias em prol de um ideal extremo

que havia sido inserido na sociedade alemã da época.

A crueldade se espalhou em proporções tão desmedidas que os opressores

se preocupavam com seu “trabalho árduo” de executar pessoas que supostamente

estariam dificultando seus trabalhos.

Claramente o mal é banal, dessas situações pode-se extrair que a população

alemã deixou aflorar em si, como consequência do vazio de pensamento, a maldade

em suas proporções mais extremas. Já nos soldados que executavam os judeus,

buscavam cada vez mais tornar seu trabalho fácil e rápido.

Aqueles que facilitavam a execução dos judeus ganharam papel de

extraordinários e de muita bondade, pois facilitaram a vida dos que tinham contato

direto com os cadáveres dos executados.

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A banalidade do mal era tão intensa que não permitia que os soldados

nazistas enxergassem o que tinham em sua frente. O resultado de sua própria

violência apenas os fazia reclamar de dores de cabeça.

Nem um corpo de um inocente era capaz de trazer à vida o pensamento do

soldado, tão incutido era o ideal que lhe fora apresentado.

4 CONTRAPONTOS A TEORIA DE HANNAH ARENDT

Hannah Arendt obviamente não tem sua teoria aceita por todos no meio

filosófico, suas teorias são duramente criticadas inclusive por autores judeus e a

sociedade judaica em si.

Quando Arendt escreveu sobre o que viu no julgamento de Eichmann, com

sinceridade, não foi bem aceita, pois todos esperavam que ela o descrevesse dentro

daquilo que se espera de um psicopata monstruoso.

Como Hannah Arendt não viu em Eichmann nada além de um burocrata, um

ser humano comum, que se assemelhava a qualquer ser humano, suas teorias

foram consideradas polêmicas, pois assim ela estaria afirmando que qualquer

indivíduo poderia praticar o que Eichmann fez, o que Hitler fez, o que todo o Partido

Nazista e a SS fizeram.

Hannah demonstrou a dura realidade: que qualquer ser humano seria capaz

da mesma atitude e isso não é algo que toda a sociedade estava preparada para

ouvir.

Arendt também atribuiu a atitude de Eichmann à um vazio de pensamento,

que o impulsionava a agir da forma que agiu, um vazio que possibilitava o mal de

não ser questionado por ele.

Porém, alguns autores consideram que o que fez os compactuantes do

nazismo a agirem da forma documentada foi outro motivo. Foi o fato de a Alemanha

estar em uma fase fragilizada e vulnerável a qualquer comando. Alguns autores

inclusive atribuem isso à uma ideia de estupidez da população alemã, como pode se

observar do explanado pelo autor Eric Voegelin (2008, p. 55):

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Então, aí tendes o problema da degeneração da sociedade. Se alguém na posição de Hitler dá ordens para matar - instruções para um crime sem nenhuma base legal e pelo qual ele próprio é um criminoso no sentido do Direito penal -, essas ordens serão simplesmente cumpridas porque a condição moral da população é tão baixa que as pessoas não podem distinguir entre legalidade e ilegalidade, criminalidade e não-criminalidade.

Como pode se observar no excerto acima, o autor atribui as atitudes da

população alemã, ao seguir as ordens dadas por Hitler, a uma “degeneração” da

população, no sentido de que os atos cometidos por ela são derivados de uma

população fragilizada, uma população que estava enfraquecida pelo pós-guerra e

que, por isso, não possuía um pensamento crítico disponível de forma fácil.

Ainda, o autor Norbert Elias (1997, p. 270) esclarece em sua obra que “o

principal problema pelo homicídio em massa, em nome de uma nação, de homens,

mulheres e crianças de um grupo estranho, não reside no ato em si, mas, antes, em

sua incompatibilidade com os padrões que passaram a ser considerados as marcas

distintivas das sociedades mais altamente desenvolvidas do nosso tempo. ”

Essa ilusão seria responsável pela cegueira temporária que leva uma

população inteira a ignorar mortes em massa ocorrendo dentro de seu país, leva os

cidadãos a crerem que tudo está em seu devido lugar e que não há

questionamentos a serem feitos.

Apesar de haverem teorias alheas as de Hannah Arendt, todas elas tentam

explicar o que ocorre para que uma sociedade mude seu curso de forma a se

direcionara a um caminho de violência a destruição.

Porém, ainda hoje há questionamentos sem respostas, tornando necessária e

relevante a pesquisa acerca deste assunto.

5 O VAZIO DE PENSAMENTO NA ATUALIDADE

Atualmente é possível observar na sociedade movimentos que demonstram

claramente a personificação dos conceitos expostos por Hannah Arendt.

Um grande exemplo hoje é a existência do Estado Islâmico e toda a influência

que tem causado sobre indivíduos buscando vidas diferentes.

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360

A grande marca do Estado Islâmico é o fato de conseguirem agregar em seu

movimento jovens que nem sequer possuíam uma crença religiosa, jovens de países

distantes que deixam o conforto de suas casas para se juntarem a um movimento

que nada tem a ver com sua realidade.

E o grande questionamento é o por quê? Por que esses indivíduos

abandonam suas vidas nos países em que se estabeleceram para se juntar a um

movimento extremista?

Uma possibilidade de resposta para explicar o por quê de o Estado Islâmico

investir seu tempo tentando convencer principalmente mulheres a se juntarem ao

movimento, se encontra numa tentativa de romantização da guerra.

Essa visão romantizada que o Estado Islâmico coloca em seus chamados é

de extrema importância para que os indivíduos cedam a ideia de fazer parte do

movimento.

Colocar essa ideia de bem maior, assim como Hitler fez, romantiza a guerra,

torna a ideia de executar outro ser humano em apenas um passo para derrubar o

verdadeiro mal, que é aquele descrito pelo Estado Islâmico.

Assim como Hitler, os seguidores do Estado Islâmico, ao colocar frases na

internet chamando novos seguidores, sabem exatamente onde se encontra a

fragilidade dos receptores dessas mensagens.

Sabem que aqueles jovens que as estão lendo estão em busca de sem

sentirem parte de um todo, de se sentirem relevantes para o mundo, para sua nação

ou religião, e é esse sentimento que leva milhares de jovens a abandonarem o

conforte de suas casas para se juntarem a movimentos extremistas, procuram um

significado, procuram significar alguma coisa.

Conforme reportagem realizada pela BBC146, um jovem que perdeu seu irmão

para o Estado Islâmico resolveu fazer a experiência de entrar em contato com esse

movimento, para entender de que forma eles realizavam sua abordagem para

angariar novos seguidores.

146 Reportagem exibida pelo site da BBC ‘A tática do Estado Islâmico para me recrutar - e como eu resisti. BBC, Brasil, 24 de agosto de 2015. Disponível em:<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150824_ei_tatica_radical_fd> . Acesso em: 11 setembro 2015.

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361

Ao iniciar esse experimento, sua surpresa se deu quando notou que a

abordagem feita pelo Estado Islâmico não era agressiva e nem pressionava os

receptores, mas sim explicava quem era o real inimigos para eles.

Ao invés de afirmar que o Estado islâmico era a única salvação, eles

colocavam outros indivíduos como seus inimigos, fazendo o receptor dessas

mensagens nutrir sentimentos de ódio por aqueles e começar a compactuar com as

ideias extremistas do movimento.

Conforme o jovem que realizou o experimento tinha cada vez mais contato

com as informações repassadas pelo Estado Islâmico, mais ele acreditava no que

lhe era dito, chegando a ter o sentimento de satisfação ao vídeo da execução de um

indivíduo.

Assim, quando o jovem percebeu, já estava totalmente envolvido com as

ideias do movimento, desejando inclusive fazer parte deste. O que o fez retomar a

consciência foi pensar que sua família sofreria caso ele se juntasse ao Estado

Islâmico, como fez seu irmão.

Dessa forma, pode se questionar: se este rapaz não tivesse uma família no

país onde estava, ele pensaria duas vezes antes de se alias ao Estado Islâmico?

Ainda, mais uma vez, resta confirmado que não há hoje uma sociedade

civilizada o suficiente para que se erradique qualquer ideal extrema e violento.

Seres humanos sempre buscam um propósito e assim que o encontram, dão

tudo de si para alcançá-lo, seja ele uma coisa simples do dia a dia, ou a

disseminação de uma população inteira.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do estudo das teorias dos autores abordados neste artigo percebeu-se que

há muitas controvérsias acerca da origem do mal na humanidade, bem como de que

forma o conceito de vazio de pensamento influenciaria este mal, tornando-o tomador

de decisões no lugar da racionalidade.

Assim, facilmente notou-se que acerca da teoria de mal banal não há um

pensamento pacificado dentro da filosofia ou da psicologia.

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Neste viés, não se pode afirmar com certeza quais fatores foram

responsáveis pela prática de atos cruéis pela Alemanha sob o governo nazista, se

foi a miséria crescente que assolou o país, a necessidade do povo atingido pelo pós-

guerra de possuir um líder que os orientasse a uma melhora na economia, ou

também se nenhum desses fatores tiveram importância para influenciar toda uma

sociedade.

Essa afirmação de que qualquer ser humano seria capaz de realizar os

mesmos atos praticados pelos nazistas levou a autora Hannah Arendt a ser

considerada extremamente polêmica, sendo criticada inclusive pelo povo judeu.

O que se pode concluir acerca da banalidade do mal conceituada pela autora

é que essa banalidade significa que o mal faria parte do cotidiano de cada ser

humano, seria intrínseco a este, presente em tudo que o indivíduo planeja, sendo

apenas controlado, pelo raciocínio crítico e pelo questionamento moral de suas

atitudes.

Quando um ser humano possui este pensamento crítico capaz de fazê-lo

questionar seus atos e de que forma poderia agir sem prejudicar outro ser humano,

há um controle desse mal banal, coloca-se um limite aos atos a serem praticados.

Já quando este indivíduo não se questiona acerca de seus atos, deixando-se

levar por qualquer influência externa e pelo seu simples interesse egoístico o mal

domina suas atitudes, possibilitando qualquer ato motivado por qualquer coisa, por

mais simples que seja.

Uma ordem de um suposto superior hierárquico, ou alguém que

supostamente detém mais conhecimento que ele, seus próprios interesses, a prática

do tão citado “bem maior”. Todas essas influências podem levar um indivíduo a

práticas questionáveis do viés da sanidade.

Dessa forma, neste trabalho a grande questão abordada foi até que ponto a

construção de um pensamento crítico seria eficaz para controlar o mal que já é

intrínseco ao ser humano?

A resposta que se encontrou foi que este vazio que leva o ser a agir sem

questionamentos não está ligado a conhecimentos acadêmicos, mas sim ao

sentimento do indivíduo como reconhecido perante a sociedade.

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O ser humano tem a necessidade de existir perante todos, de ser

reconhecido, de realizar feitos históricos, de se sentir parte de algo maior, um todo.

Esse sentimento impulsiona o ser a buscar de qualquer maneira seu papel

adequado perante a sociedade. Seja ele o de um pai provedor de alimentos para os

filhos, ou até mesmo um tenente que cumpre perfeitamente seu papel de executar

ordens de superiores hierárquicos.

Foi esse sentimento que Hitler de forma extremamente perspicaz observou

que a sociedade alemã pedia, essa busca por relevância.

Colocando, diante de uma sociedade totalmente fragilizada, uma resposta

para seus problemas, Hitler conquistou de forma eficaz muitos seguidores.

Apesar de ter contrapostos, a teoria de Hannah Arendt é sólida, porém

polêmica, pois coloca qualquer ser humano de qualquer época paralelo as atitudes

dos nazistas, coloca qualquer indivíduo como capaz de executar o que assassinos

fizeram.

O presente estudo buscou delimitar qual o limite da racionalidade sobre o

instinto quando se trata de situações extremas a que o ser humano é exposto.

Porém não busca delimitar uma única resposta para todos os

questionamentos anteriormente citados nesta pesquisa.

Por fim ressalta-se que ainda há muito o que se explorar quando se trata da

condição do ser humano perante a sociedade e também perante si mesmo, restando

ainda muita área para pesquisa neste sentido.

REFERÊNCIAS

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DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. 3 Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. 160 p.

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LENHARO, Alcir. Nazismo: o triunfo da vontade . 5. ed. São Paulo: Atica, 1995. 93 p. (Princípios ; v.94.)

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MILGRAM, Stanley. Behavioral Study of Obedience. Journal of Abnormal and Social Psychology, USA, n.67, p 371–378, 1963.

PONDÉ, Luiz Felipe. Pequena Sociologia do Fungo. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 de julho de 2009. Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2707200922.htm#_=_> . Acesso em: 07 jun. 2015.

SHIRER, Willian Lawrence. Ascensão e queda do terceiro Reich. Rio de Janeiro: Civilização, 1962. 382 p.

SOUKI, Nadia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. 147 p.

VOEGELIN, Eric. Hitler e os alemães. Rio de Janeiro: É, 2008.

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A ELABORAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA E A INFLUÊNCIA

EXERCIDA PELA CATEGORIA GÊNERO

THE ELABORATION AND APPLICATION OF MARIA DA PENHA LAW AND THE

INFLUENCE EXERCISED BY GENDER CATEGORY

Temis Cristina Koga147

Maria Luisa Scaramella148

SUMÁRIO

Resumo 1 Introdução 2 O direito como regulador de condutas 3 A relação entre gênero e violência 3.1 A concepção do gênero sob uma perspectiva feminista 3.2 A violência de gênero 4 Breve exposição do processo de elaboração da Lei Maria da Penha 5 Resultados práticos 5.1 Pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) 5.2 Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil 6 Considerações Finais. Referências

RESUMO

O presente artigo pretende demonstrar o processo de elaboração e aplicação da Lei Maria da Penha e a influência exercida pela categoria gênero nesse processo. Para isso, é necessário realizar uma breve exposição sobre a função do direito como responsável para promover a regulação das condutas humanas, atestando ainda seus aspectos sociais, tendo em vista ser fruto da sociedade que está inserido e por ser instrumento que confere legitimidade a determinados grupos e demandas sociais. Demonstrando assim que, por vezes, no momento da aplicação da lei, pode haver a influência de valores e pensamentos preconceituosos emanados pela sociedade. Pretende-se estudar o conceito de gênero a partir das principais autoras feministas, evidenciando a importância dessa categoria para compreender a complexa relação social entre homens e mulheres. Analisando ainda de que maneira as desigualdades sociais entre os sexos se manifesta por meio da violência de gênero e suas principais correntes teóricas. Faz-se mister demonstrar a influência do movimento feminista no Brasil, bem como das Convenções Internacionais Ratificadas pelo Brasil para elaboração da Lei Maria da Penha. Por fim, a partir da análise de dados concretos, fornecidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), bem como pelo Mapa da Violência 2015, verificar a eficácia da nova legislação no combate à violência de gênero e na redução da desigualdade entre os sexos. Concluindo que, apesar dos avanços trazidos pela legislação resta evidente que para a sua plena eficácia se faz necessária a progressiva mudança nas formas de compreender as categorias masculino e feminino. Dessa forma, é essencial que ocorra uma reforma intelectual e moral dos

147 Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba - Unicuritiba.([email protected]) 148 Atualmente é professora no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com estágio no "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (ITEM), na "École Normale Supérieure" (2006-2007), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). É pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), na Universidade Estadual de São Paulo (USP).

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indivíduos que integram a sociedade, que de certo modo, afetará os aplicadores do direito, que são aqueles que efetivamente aplicam e interpretam a lei. Palavras-chave: direito, gênero, violência de gênero, movimento feminista no Brasil, Lei Maria da Penha.

ABSTRACT

This article intends to demonstrate the process of preparing and implementing the Maria da Penha Law and the influence of gender category in this process. For this, it is necessary to make a short explanation on the function of the right as responsible for promoting the regulation of human conduct, proving its social aspects, in order to be the resulto f society which is part and be an instrument for giver legitimacy to certain groups and social demands. Demonstrating that sometimes, at the time the application of the law, may be the influence of values and prejudiced thoughts emanating from society. It intends to study the concept of gender from the most important feminist writers, highligthing the importance of this category to understand the complex social relationships between men and women. Analyzing how social inequalities between the sexes is manifested through gender violence and the most importante theoretical currents. Is required demonstrate the influence of the feminist movement in Brazil, as the International Conventions ratified by Brazil for the preparation of the Maria da Penha Law. Finally, from the concrete analysis of data provided by the Institute of Applied Economic Research (IPEA) and the Map of Violence 2015, demonstrating the effectiveness of the new legislation to combat gender violence and reducing gender inequality. Concluding that, despite the advances brought about by the legislation it is evidente that to be fully effective if the progressive change in the ways of understanding the man and women categories is necessary. It is essential that occurs an intelectual and moral reformo f individuals in society, which in some way affect the legal professionals, those that effectively apply and interpret the law.

Keywords: right, gender, gender violence, women's movement in Brazil, Maria da Penha Law.

1 INTRODUÇÃO

Os movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento de um grupo

específico ou de uma demanda social são extremamente importantes em nossa

sociedade. Quando ocorre o questionamento das bases que estruturam uma

comunidade, por meio da crítica a valores, cultura e costumes, os movimentos

conferem visibilidade para questões antes ignoradas pela sociedade. O fenômeno

da violência de gênero, por longo período, restou desamparado pelo poder público,

sendo considerada como pertencente ao espaço privado.

Na década de 70 prevalecia a crença de que as diferenciações sexuais entre

homens e mulheres definiam seus papéis na sociedade. Essa teoria, chamada de

“determinismo biológico”, foi extremamente questionada por diversas escritoras

feministas. O movimento feminista no Brasil exerceu grande contribuição nesse

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processo, pois questionou a suposta naturalidade e universalidade presente nessa

teoria, visto que se baseava em fatores meramente biológicos.

Nesse contexto, o conceito de gênero foi introduzido nos estudos, para

romper com a “unidade biológica”, evidenciando que as desigualdades entre os

sexos derivam da construção social, que definem os papéis destinados a homens e

mulheres. Rompe-se assim, com a premissa de que a mulher é naturalmente inferior

ao homem, para compreender que tal concepção é fruto de conceitos

arraigadamente culturais, o que torna possível sua desconstrução por meio da

perspectiva de gênero.

A introdução do conceito de gênero nos estudos da mulher permitiu analisar

de maneira mais aprofundada, o fenômeno da violência de gênero, decorrente da

desigualdade social entre os sexos. Conforme se pretende demonstrar, esse tipo de

violência pode ser explicado por três vertentes diferentes, que se propõem a estudar

as suas razões e fundamentos.

Por meio da expressiva participação do movimento feminista no contexto

nacional, bem como pela luta individual da Sr.ª Maria da Penha Maia Fernandes,

houve um grande avanço na conquista dos direitos humanos das mulheres.

Pretende-se demonstrar a influência igualmente exercida pelas Convenções

Internacionais ratificadas pelo Brasil, nesse processo, que culminou na elaboração

da Lei Maria da Penha.

Demonstrando, por fim, de que modo o gênero influencia no momento da

aplicação da lei, e se essa influência é negativa. De modo a compreender a situação

da violência no contexto atual, será feita análise da pesquisa divulgada em 04 de

março de 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que possui

como foco a eficácia da Lei Maria da Penha. Outrossim, pela exposição dos dados

do Mapa da Violência 2015, no que concerne aos homicídios de mulheres no

território nacional.

2 O DIREITO COMO REGULADOR DE CONDUTAS

Para a Teoria Geral do Direito, o Direito possui função de regular as condutas

humanas de determinada sociedade nacional. Sua construção se faz no âmbito da

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sociedade no qual está inserido, de modo que ali nasce e se desenvolve. O direito é

uma construção social, ou seja, ele é fruto da cultura, costumes, história e das

influências de grupos dominantes. Sendo assim, muitas vezes está vinculado a

grupos hegemônicos, mas quando colocado em contextos democráticos deve

conseguir mediar distintas comunidades morais, devendo levar em conta outros

grupos sociais.

Nesse sentido, o autor Norberto Bobbio parte do ponto de vista normativo

para iniciar seu estudo acerca da Teoria Geral do Direito.

[...] O direito é um fenômeno social, tem origem na sociedade. [...] Duas pessoas isoladas que se encontram apenas para estabelecer entre elas a regulamentação de certos interesses mútuos não constituem ainda direito; o direito só nascerá quando essa regulamentação se tornar de certo modo estável e der origem a uma organização permanente da atividade dos dois indivíduos. (BOBBIO, 2010, p. 26)

O direito como ciência, não é neutro, justamente por nascer e se desenvolver

em sociedade e, por vezes, acaba sendo reflexo de costumes e valores da

comunidade em que está inserido. Nesse sentido, as normas jurídicas são

elaboradas para regular a vida em sociedade dos indivíduos, de modo a aperfeiçoá-

los, sendo que o processo de coerção é exercido desde o nascimento do sujeito.

Diante dessa constatação de que o direito não é neutro, justifica-se a

necessidade de estabelecer uma clara distinção entre lei e moral. A antropóloga Rita

Laura Segato estabelece que essa diferenciação é necessária pois vivemos em um

Estado Democrático de Direito, existindo diversas comunidades morais em uma

mesma sociedade nacional. Assim, é preciso que a lei não se confunda com a

moral, pois ela é instrumento que confere legitimidade a grupos sociais e demandas

por reconhecimento de direitos. Além dessa legitimação, ela deve ser mediadora dos

eventuais conflitos que possam surgir entre esses grupos.

[...] Nesta perspectiva, o texto da lei é uma narrativa mestra da nação, e disso deriva a luta para inscrever uma posição na lei e obter legitimidade e audibilidade dentro dessa narrativa. Tratam-se de verdadeiras e importantes lutas simbólicas. Alguns exemplos, entre outros possíveis, como a luta em torno da questão do aborto ou do casamento gay, são particularmente reveladores, pois neles está em jogo não meramente a legislação sobre as práticas concretas – capazes de encontrar caminho com ou sem a lei – mas

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a inscrição das mesmas e, com isso, o próprio status de existência e legitimidade, na nação, das comunidades morais que as endossam. (SEGATO, 2006, p. 212)

Ainda, em linha com a exposição de Segato, a cultura é constituída de

costumes, de modo que esses representam as formas de pensar, agir e as maneiras

de interação das pessoas em sociedade. Nesse sentido, a cultura (também

entendida como moral), não deve ser confundida com a própria lei, caso contrário,

essa não estaria cumprido sua função de ser imparcial e instrumento destinado a

regular condutas.

No entanto, quando a lei adota o pensamento dominante de um grupo

específico de uma comunidade moral, ou seja, quando corporifica determinada

“tradição”, ocorre o que a autora chama de “localismo nacionalizado”, acarretando a

globalização de valores culturais próprios daquela comunidade moral. Essa situação

é extremamente prejudicial pois a lei acaba se confundido com a própria cultura e

com os costumes.

[...] Quando a lei adere a uma das tradições, ou seja, a um dos códigos morais particulares que convivem sob a administração de um Estado nacional, e se auto-representa como algo indiferenciado com relação a esse código, encontramo-nos diante do que poderíamos chamar de “localismo nacionalizado”, dirigindo ao universo da nação a mesma crítica que levou Boaventura de Sousa Santos a formular a categoria “localismo globalizado” para descrever o processo arbitrário de globalização de valores locais. (SEGATO, 2006, p. 212)

Nesse sentido, a premissa de que a lei confere status de legitimidade a

determinados grupos sociais é imprescindível para compreender o desenvolvimento

do presente trabalho. As demandas sociais que lutam por reconhecimento de

categorias e direitos são essenciais na recusa de conceitos pré-estabelecidos que

ensejam, por vezes, práticas discriminatórias. Nesse contexto de questionamento,

os movimentos sociais nascem.

Nesse sentido, o direito como norma jurídica é resultado de um processo de

construção social e histórica, altamente elaborado que possui a finalidade de regular

as condutas humanas. De acordo com Alícia E. C. Ruiz, no livro “El Derecho en el

Género y el Género en el Derecho”, o Direito possui maior carga valorativa do que

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apenas a letra da lei, ele é resultado de construções e valores sociais, crenças e

mitos que são intrínsecos às sociedades.

O discurso jurídico é produto das heranças culturais, sendo formulado por

meio de um entrelaçamento de discursos e prática sociais, resultado da cultura de

determinada comunidade. Evidencia-se assim que, o discurso jurídico e por

consequência, as leis que compõem o sistema, mudam à medida em que há a

transformações dos padrões sociais. Porém, tal mudança ocorre de forma lenta e

gradual.

[...] O discurso jurídico constrói-se em um entrelaçamento de discursos sociais diversos, aludidos e eludidos em cada trecho dessa construção - e não por causalidade-. O direito não advém nem da pura razão, nem de deus, é parte da cultura, é contingente e cambiante. É opaco, as ficções atravessam-no e sua trama é a de um relato peculiar que constitui realidades e sujeitos, que legitima ou deslegitima pedaços do mundo, que "naturaliza" e declara verdadeiros só o que inclui em seu texto determinadas formas. O direito tem um vínculo com o poder e com a violência (sobretudo com esta última), inseparável e necessariamente oculto. (tradução nossa).149 (RUIZ, 2009, p. 158)

Para Ruiz, a priori, o direito possui duas funções. Por um lado, ele é resultado

da criação pelos valores sociais, cultura e costumes e, por outro, possui um poder

de criação, tendo em vista a qualidade de nominação que possui, conferindo

visibilidade a grupos específicos, sendo capaz de influenciar em determinadas

práticas sociais e discursos jurídicos.

Analisando essa função do direito no caso concreto, a elaboração da Lei

Maria da Penha (n.º 11.340/2006) representa de modo satisfatório a interação entre

lei e moral, discutida acima. Citada lei é resultado de uma intensa luta feminista no

contexto nacional, bem como pelo caso paradigmático envolvendo a Sra. Maria da

Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica, para obter o reconhecimento

de uma demanda social específica, que, além da morte de muitas mulheres,

149 [...] El discurso jurídico se construye en un entretejido de discursos sociales diversos, aludidos y eludidos en cada tramo de esa construcción - y no por azar-. El derecho no deviene ni de la pura razón, ni de dios, es parte de la cultura, es contingente y cambiante. Es opaco, las ficciones lo atraviesan y su trama es la de un relato peculiar que constituye realidades y sujetos, que legitima o deslegitima pedazos del mundo, que “naturaliza” y declara verdaderos sólo lo que incluye en su texto bajo determinadas formas. El derecho tiene un vínculo con el poder y con la violencia (sobre todo con esta última) inescindible y necesariamente oculto.

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acarreta prejuízos sociais e inclusive econômicos. Assim, a criação da lei representa

um avanço significativo para a desnaturalização da violência contra a mulher, até

então concebida como normal.

Rita Laura Segato defende que a lei a moral são “sistemas” que embora

diferenciados, tendem a interagir em determinada época e em determinada

sociedade. Sob esse aspecto, tem-se que diante de uma sociedade patriarcal como

a brasileira, as relações hierarquizadas tendem a relegar a mulher a um segundo

plano no contexto social, como forma de discriminação. Assim, o direito deve

funcionar como instrumento que concede reequilíbrio às relações de gênero,

buscando sempre promover a concretização do princípio da igualdade, estabelecido

na Constituição Federal.

No entanto, a imparcialidade como objetivo do discurso jurídico encontra

óbice quando os valores sociais são confundidos com o próprio direito. Conforme

será delineado no decorrer desse trabalho, as desigualdades existentes entre os

sexos não são naturais, mas fruto de um processo de construção social, que se

manifesta por meio da violência de gênero. Não obstante a existência de lei

específica para coibir e punir esse fenômeno, ela não será plenamente eficaz

enquanto a estrutura atual de dominação social não for modificada.

3 A RELAÇÃO ENTRE GÊNERO E VIOLÊNCIA

Nesse capítulo, pretende-se analisar, primeiramente, o conceito de gênero

como categoria analítica, a maneira como ele foi introduzido nos estudos feministas

e as principais correntes que se propõem a estudá-lo. Após, será feita análise da

relação da violência contra a mulher sob a perspectiva de gênero e quais as teorias

centrais que auxiliam a compreender de maneira mais eficaz esse fenômeno social.

3.1 A CONCEPÇÃO DO GÊNERO SOB UMA PERSPECTIVA FEMINISTA

As relações sociais entre homens e mulheres fazem parte de um processo de

construção social altamente elaborado que define quais os papéis destinados a cada

um dos sexos, no âmbito social. As desigualdades existentes são fruto de uma

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concepção cultural de elevada carga valorativa que exerce influência no modo como

homens e mulheres devem ser comportar, pensar e agir. No entanto, a explicação

das raízes da desigualdade entre os sexos nem sempre se deu dessa forma.

Na década de 70 predominava a crença de que as diferenciações sexuais

definiam as atribuições de homens e mulheres. Essa teoria, chamada de

“determinismo biológico” foi extremamente questionada por diversas escritoras

feministas, como Gayle Rubin, John Scott, Linda Nicholson, dentre outras, cujas

obras contribuíram para a difusão dessa categoria como essencial para

compreender os relacionamentos sociais. A título de conhecimento, essa teoria

postulava uma ligação direta entre os comportamentos sociais com a biologia.

No entanto, desvincular os predicativos femininos e masculinos às

explicações biológicas, permite questionar as premissas supostamente naturais dos

comportamentos sociais. O movimento feminista teve papel fundamental nesse

processo, pois passou a indagar a suposta naturalidade e universalidade presente

nessa teoria.

Nesse contexto, o conceito de gênero foi implementado nos estudos

feministas de modo a auxiliar na compreensão dos comportamentos sociais e na

relação complexa que envolve os sexos. Assim, o gênero, como categoria analítica,

permitiu refutar essa “unidade biológica” presente na teoria do determinismo

biológico, introduzindo outros parâmetros para enriquecer a análise da categoria

“feminino” e “masculino”.

Ampliou-se a discussão sobre a disparidade de poder entre os sexos,

analisando a superioridade de um sexo sobre outro, partindo de uma perspectiva

histórica e cultural. De acordo com esse novo conceito, as desigualdades sociais

entre homens e mulheres são consequência da construção social e cultural dos

papéis sociais destinados a cada um dos sexos.

A ideia central para conceituação do termo gênero surgiu com a escritora

francesa Simone de Beauvoir, em 1949, em seu livro “O segundo Sexo”, onde

defende a necessidade de compreender a categoria “mulher” de modo diverso da

biologia. Apesar das diferenças entre os sexos se dar de maneira visível, a análise

não pode ser feita dessa maneira. A investigação feita na sociedade hodierna, sobre

os comportamentos sociais, não deve estabelecer tão somente a igualdade ou

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pontuar as diferenças, mas compreender a rede complexa que envolve os sexos. A

relação entre identidades masculinas e identidades femininas não se dá de maneira

dicotômica, mas é fruto de um intenso processo de construção que se renova com o

tempo.

É válido lembrar que no processo de construção do mundo social, existem

alguns “conceitos irredutíveis” amplamente arraigados no ideário social que tendem

a serem reafirmados pela vida cotidiana. A escritora Alícia E. C. Ruiz, em seu artigo

“De cómo el derecho nos hace mujeres y hombres” explica a existência dessas

categorias supostamente fixas.

[...] O mundo social constrói-se, e assim se constroem, também, as identidades individuais e sociais. Nessa construção há núcleos duros (mais ou menos irredutíveis) que parecem pôr em questão a afirmação precedente (a das identidades construídas e que sustentam as referências à permanência e ao reconhecimento do “feminino” fora de qualquer contexto “terrenal”. (tradução nossa).150

Esses conceitos intrínsecos à sociedade, tidos como “irredutíveis”, são

extremamente importantes no debate, inclusive no campo feminista. A “categoria

mulher”, apesar de ser compreendida como aparentemente imutável, assim não é,

pois é passível de mudança a partir do questionamento de suas raízes conceituais,

sendo possibilitado pela categoria de gênero.

Os citados “núcleos irredutíveis”, representam aquilo que a sociedade julga

como correto e aceitável, de modo que foram formados pela vida cotidiana e na

convivência entre os indivíduos. Dentre os inúmeros efeitos dessa ideia destacam-se

as convenções sociais e culturais que, por exemplo, impõem um padrão de

comportamento que se espera dos membros da sociedade, em função de

qualificações determinadas por esses conceitos inflexíveis. Assim, a resposta

150 RUIZ, Alicia E. C. De cómo el derecho nos hace mujeres y hombres. Rev. Facul.Dir.da.UFPR. v. 36, 2001. p.7-15. Disponível em:<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CCEQFjAAahUKEwitfONuOvHAhVJH5AKHb_GCNM&url=http%3A%2F%2Fojs.c3sl.ufpr.br%2Fojs%2Findex.php%2Fdireito%2Farticle%2Fdownload%2F1778%2F1475&usg=AFQjCNH3o0zq3Y1h6IgA2_ZfPae48_gWjw > Acesso em: 07 nov. 2015. p. 7. [...] El mundo social se construye, y así se construyen, también, las identidades individuales y sociales. En esa construcción hay núcleos duros (más o menos irreductibles) que parecen poner en cuestíon la afirmacíon precedente (la de las identidades construidas y que sostienen las referencias a la permanencia y al reconocimiento de "lo femenino" fuera de cualquir contexto "terrenal".

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discriminatória é uma reação ao desvio de conduta, tratando-se de uma coação

moral e endógena, um controle interno de condutas promovido pela própria

sociedade.

De acordo com Beauvoir “a alteridade é uma categoria fundamental do

pensamento humano. Nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem

colocar imediatamente a outra diante de si.” (BEAUVOIR, 2009, p. 17) Assim, parte-

se do pressuposto básico de que a capacidade de compreender o “outro” na

plenitude de sua dignidade é fundamental, vez que toda identidade é relacional, pois

precisamos do outro para nos conhecer. Conforme será exposto no decorrer desse

trabalho, o que difere a violência de gênero dos demais tipos de violência é a

questão da alteridade, pois o “agressor” não enxerga a “vítima” como um ser de

igual poder, mas sim um ser inferior.

Com relação à categoria mulher, a autora discorre:

[...] Nem sempre houve proletários, sempre houve mulheres. Elas são mulheres em virtude de sua estrutura fisiológica; por mais longe que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem; sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu. É, em parte, porque escapa ao caráter acidental do fato histórico que a alteridade aparece aqui como um absoluto. Uma situação que se criou através dos tempos pode desfazer-se num dado tempo: os negros do Haiti, entre outros, o provaram bem. Parece, ao contrário, que uma condição natural desafia qualquer mudança. (BEAUVOIR, 2009, p. 19)

A autora ainda esclarece que não é apenas a condição biológica que define

os sexos, mas sim a própria sociedade, juntamente com a cultura, realiza essa

definição.

[...] Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. (BEAUVOIR, 2009, p. 361)

A sociedade participa ativamente do processo de construção das categorias

sociais, determinando maneiras de ser e agir dos indivíduos que a compõem. Por

meio dessa perspectiva, é possível compreender que a posição da mulher na

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sociedade, está intimamente vinculada aos conceitos que a definem e tendem a

confiná-la em seu sexo.

Com o texto pioneiro sobre o gênero nos estudos feministas, intitulado “The

traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ off Sex.” Gayle Rubin trouxe

elementos preciosos para refutar a teoria do determinismo biológico. Por meio da

utilização dos ensinamentos de Claude Lévi-Strauss e Sigmund Freud para definir o

sistema sexo/gênero proposto pela autora, e largamente utilizado por diversas

autoras feministas, sendo possível compreender a “construção social” do gênero

como fruto de um processo social de dominação. Apesar de tais autores não

tratarem de forma direta a questão da subordinação da mulher, trazem elementos

conceituais importantes à discussão. (RUBIN, 1993, p.2)

Assim, o termo “sexo” foi utilizado como base para construção do termo

gênero, ou seja, o uso de um termo não exclui o outro. Da mesma forma que o

termo questiona a distinção supostamente natural da categoria masculino/feminino,

as invoca para construir o conceito de gênero.

No fim da década de 1980, o artigo de Joan Scott, “Gênero: uma categoria útil

de análise histórica” apresentou uma visão pós-estruturalista trazendo elementos

importantes para a discussão da categoria gênero.

Scott inicia seu texto fazendo uma crítica à análise do termo gênero em seu

viés descritivo, que pode ser feito de três maneiras distintas. A primeira delas é a

utilização do termo gênero como sinônimo de mulher, que na realizada não

questiona as desigualdades sociais entre os sexos, sendo utilizado apenas para não

repetir o termo “mulher”. A segunda utilização fundamenta-se na perspectiva de que,

quando se trata da história das mulheres, indissociavelmente deve-se falar da

história dos homens, afirmando que "o mundo das mulheres faz parte do mundo dos

homens". Por fim, o terceiro uso rejeita o determinismo biológico e aplica o termo

gênero para designar as relações sociais entre os sexos.

No entanto, de acordo com a autora, ainda que a utilização do termo gênero

em seu aspecto descritivo indique as construções sociais que as categorias

possuem, em nada questionam as estruturas de poder que ocasionam as

desigualdades sexuais. No fim, essas teorias apenas repetem conceitos que perdem

a força, com o passar do tempo e não são úteis para as mudanças históricas que se

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pretende e que se necessita. Sendo necessário então, analisar de maneira mais

aprofundada as razões das disparidades de poder entre os sexos.

No intuito de repensar os paradigmas históricos existentes, o gênero foi

inserido nos estudos sociais. Assim, por meio da pesquisa direcionada às mulheres

seria possível questionar e transformar as premissas existentes sobre a construção

da história.

[...] O termo gênero faz parte da tentativa empreendida pelas feministas contemporâneas para reivindicar um certo terreno de definição, para sublinhar a incapacidade das teorias existentes para explicar as persistentes desigualdades entre as mulheres e os homens. (SCOTT, 1995, p. 85)

Diante da incapacidade das teorias existentes, o termo gênero surgiu em um

contexto de efervescência, onde o que se buscava não era uma origem única da

desigualdade, mas sim a partir da análise das relações intercruzadas que originam

essas desigualdades.

Tendo em vista a importância desse conceito, Linda Nicholson se propôs a

estudar essa categoria a partir de dois significados distintos. O primeiro significado é

do “gênero” compreendido sempre em oposição ao sexo, partindo da premissa de

que os comportamentos humanos e personalidades são socialmente construídos.

Nesse primeiro entendimento, o gênero é pensado não com relação ao “corpo” (sexo

biológico), mas sim como uma construção social do masculino e feminino. Nessa

perspectiva, é possível concluir que, se a interpretação social dos “corpos” é

realizada a partir do gênero, então o “sexo” está subsumido ao gênero, ou seja, esse

o abrange. No entanto, não significa dizer que um é sinônimo de outro.

O segundo significado atribuído por Nicholson, para compreender o termo

gênero, é de que a construção do caráter humano é decorrente da construção

social. Para a teoria da “socialização”, é no ambiente social que o indivíduo constrói

o seu caráter, mas não se rejeita que a biologia fornece o suporte para sua

construção. Em outras, palavras, o conceito de gênero necessita do “sexo” para

complementá-lo.

Nicholson afirma que essa relação entre biologia e socialização é importante

para construção social do gênero, quando pensamos que o “corpo” é um porta

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cabides, ao passo que aquilo que se coloca no cabide seriam os costumes, cultura e

valores sociais. Ou seja, o “corpo” seria a base para que, a partir desse ritual de

construção social, o indivíduo possa formar o seu caráter.

[...] Tal concepção do relacionamento entre biologia e socialização torna possível o que pode ser descrito como uma espécie de noção "porta casacos" da identidade: o corpo é visto como um tipo de cabide de pé no qual são jogados diferentes artefatos culturais, especificamente os relativos a personalidade e comportamento. Quando se pensa o corpo como um cabide no qual são "jogados" certos aspectos de personalidade e comportamento, pode-se pensar no relacionamento entre os dados do "cabide" e aquilo que nele é jogado como algo mais fraco do que determinista, porém mais forte do que acidental.151

A partir dos anos 1980, passou-se a falar de estudo sobre as mulheres, ao

invés de condição feminina, pois se percebe que não existe apenas uma condição,

mas várias que tendem a relegar a mulher a um segundo plano do contexto social.

As desigualdades sociais relacionadas ao sexo, não são naturais, mas fazem

parte de um processo de construção e reafirmação de valores culturais muito

antigos, que somente são reproduzidos com discursos que inferiorizam as mulheres

e determinam os papéis que devem desempenhar, sobretudo no ambiente privado.

Apesar das diversas teorias feministas existentes, elas compartilham algumas

ideais centrais. A subordinação da mulher é pensada como algo que varia com o

tempo (período histórico) e cultura (lugar do mundo onde é estudada). No entanto,

tal subordinação é tida como universal, pois parece ocorrer em todos os lugares do

mundo, podendo se manifestar de maneiras diversas.

No que concerne ao termo gênero, o seu uso implicou tanto na utilização de

posições teóricas, quanto de abordagens descritivas. Os (as) historiadores (as)

feministas buscavam encontrar formulações teóricas para entender as

desigualdades sociais e principalmente, fugir das abordagens descritivas que não

questionam as razões das desigualdades, apenas repetem conceitos. Ou seja,

essas perspectivas não procuram mudar paradigmas sociais e não questionam as

estruturas de poder que originam as desigualdades sociais.

151 NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, 2000. v. 8, n. 2, p. 4. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/11917>. Acesso em: 7 jun. 2015.

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3.2 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O conceito de gênero pavimentou a compreensão de que há uma construção

social e cultural das categorias “masculino” e “feminino”. Diante disso, uma das

formas de manifestação das desigualdades entre os sexos, se realiza por meio da

violência de gênero. É importante delinear que esse tipo de violência se difere dos

demais, não por ser mais grave, mas por possuir alta carga simbólica.

O estudo da violência contra as mulheres teve início nos anos 80,

principalmente por grupos feministas, como resultado de mudanças tanto no âmbito

social quanto político no Brasil. Os movimentos sociais feministas são responsáveis

por influenciar o aprofundamento dos estudos sobre a violência, sendo introduzido o

conceito de gênero.

Para Lourdes Maria Bandeira, o que difere a violência de gênero dos outros

tipos de violência é a questão da alteridade, que seria a capacidade de compreender

o outro na plenitude da sua dignidade. Há um senso comum de que precisamos uns

dos outros para atingir o autoconhecimento. Nesse sentido, a violência de gênero

acontece de maneira diversa, não porque o agressor visualiza a vítima como sujeito

de igual direito, mas sim como um ser inferior, com base nas hierarquias sociais.

[...] Afinal, é pela perspectiva de gênero que se entende o fato de a violência contra as mulheres emergir da questão da alteridade, enquanto fundamento distinto de outras violências. Ou seja, esse tipo de violência não se refere a atitudes e pensamentos de aniquilação do outro, que venha a ser uma pessoa considerada igual ou que é vista nas mesmas condições de existência e valor que seu perpetrador. Pelo contrário, tal violência ocorre motivada pelas expressões de desigualdades baseadas na condição de sexo, a qual começa no universo familiar, onde as relações de gênero se constituem nos protótipos de relações hierárquicas. ” (BANDEIRA, 2014, p.450)

No artigo intitulado "Violência contra as mulheres e violência de gênero: notas

sobre os Estudos Feministas no Brasil", das professoras Cecillia Macdowell Santos e

Wânia Pasinato Izumino, estabelecem que para estudar o fenômeno da violência

contra as mulheres e entender a posição delas em relação à violência, é necessário

distinguir três correntes teóricas que auxiliam a entender tal fato.

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A primeira corrente teórica, denominada “dominação masculina”, parte da

concepção da condição humana para início de estudo. Essa corrente projeta a

violência contra as mulheres como uma forma de manifestação das diferenças

hierárquicas de poder. Assim, a violência é resultado de uma concepção da

condição "feminina" supostamente inferior à condição "masculina". Essas diferenças

hierárquicas são fruto de um discurso masculino que incide principalmente no corpo

da mulher.

Marilena Chauí define a violência como uma manifestação dispare de poder,

que incide tanto em diferentes classes sociais, como em pessoas individualizadas,

como por exemplo, a mulher.

[...] Entenderemos por violência uma realização determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão de normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. (CHAUÍ, et. al., 1985, p. 43)

Nesse sentido, a violência transcende o simples descumprimento de normas,

de modo que somente a elaboração de novas leis não é, por si só, capaz de fazer

diminuir a sua ocorrência. Trata-se na verdade, de uma das formas, e talvez uma

das mais cruéis, de manifestação da desigualdade entre os sexos. A opressão da

mulher ocorre por meio da violência, sendo que não se trata somente da violência

física, mas também psicológica e moral.

Chauí acredita haver uma cumplicidade da mulher em relação à violência,

podendo ser notada quando ela recebe e reproduz essa violência. Por meio da

perspectiva de gênero como construção social e cultural dos papéis masculinos e

femininos, a autora fundamenta sua teoria. Assim, essa cumplicidade seria resultado

da concepção da mulher como ser dependente e inferior ao homem. Para ela, a

própria mulher é responsável pela reprodução de sua condição de “inferior”.

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No entanto, a violência de gênero, como forma de manifestação da

desigualdade entre os sexos, faz com que a suposta inferioridade da mulher em

relação ao homem passe a ser considerada como real para as mulheres que sofrem

essa agressão. Assim, apesar de ocorrer muitas vezes a reprodução dessa condição

pelas mulheres, não se pode dizer que é fruto da livre consciência da mulher, mas

sim de uma imposição e enraizamento dessa crença. O que em nada diminui o fato

de que se trata de uma violação gravíssima de direitos humanos.

Para a autora Heleieth Saffioti, as leis são importantes quando grupos são

discriminados e podem recorrer à justiça, no entanto, a simples edição de novas leis

não são suficientes para modificar a estrutura social dominante.

[...] Estruturas de dominação não se transformam meramente através da legislação. Esta é importante na medida em que permite a qualquer cidadão prejudicado pelas práticas discriminatórias recorrer à justiça. Todavia, enquanto perdurarem discriminações legitimadas pela ideologia dominante, especialmente contra a mulher, os próprios agentes da justiça tenderão a interpretar as ocorrências que devem julgar à luz do sistema de idéias justificador do presente estado das coisas. (SAFFIOTI, 1990, p. 15)

É possível perceber que a legislação de determinada sociedade é

influenciada pela cultura e pela ideologia dominante. Apesar da necessidade de o

direito ser neutro para não prejudicar grupos socialmente discriminados, por vezes,

não consegue cumprir tal função de modo isonômico quando a cultura prevalece. No

caso da violência de gênero existe uma legislação específica para o fim de coibi-la, a

Lei Maria da Penha. No entanto, enquanto a cultura discriminatória não for

modificada, a aplicação dessa lei terá eficácia limitada aos padrões considerados

corretos da sociedade. Como se pretende demonstrar adiante, os operadores do

direito não são livres de valores subjetivos e crenças individuais socialmente

construídos, assim, pode-se perceber uma certa imparcialidade no discurso jurídico.

Para a autora Heleiteth Saffioti, a naturalização da condição feminina possui

grande influência pela sociedade, "isto é, tenta fazer crer que a atribuição do espaço

doméstico à mulher decorre da sua capacidade de ser mãe" (SAFFIOTI, 1990, p. 9)

ou seja, o espaço privado como próprio da mulher não seria assim percebido se não

houvesse uma naturalização pela sociedade.

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A segundo corrente teórica parte de uma perspectiva marxista e patriarcal.

Diferentemente de Chauí que defende que a violência é resultado da manifestação

hierárquica de poder entre os sexos, essa corrente estabelece uma relação entre a

dominação masculina e os sistemas capitalista e racista.

Segundo Heleieth Saffioti, que introduziu essa perspectiva de dominação

masculina no Brasil, o patriarcado constitui em um sistema de exploração que possui

relação direta com o campo econômico. Para ela, ocorre uma socialização do

homem para esse “dominar” a mulher, sendo resultado da violência uma

“socialização machista”.152

Em seu livro "O poder do Macho", Saffioti esclarece que a sociedade não está

dividida somente entre homens opressores e mulheres oprimidas. Ambos os sexos

oprimem, sejam pessoas do mesmo sexo, ou do sexo oposto. Assim, os estudos

feministas não devem ter como foco somente o patriarcado, pois esse não é o único

princípio estruturante da sociedade. Por isso se faz necessário articular a teoria de

Saffioti, com a teoria de Chauí, para compreender melhor o fenômeno social da

violência.

Nesse sistema, a violência contra as mulheres resulta da dominação

masculina e do "poder do macho", bem como a sujeição feminina a essa situação.

Diferentemente de Chauí, Saffioti não acredita que as mulheres sejam cúmplices de

tal violência, mas sim vítimas de um sistema de dominação patriarcal. A dominação

da mulher ultrapassa classes sociais, sendo legitimada também por grandes

religiões (SAFFIOTI, 1990, p. 21). Para Saffioti, é nítido o processo de construção

social da inferioridade da mulher, sendo necessário falar também do processo de

construção social da superioridade masculina.

[...] Assim, torna-se bem claro o processo de construção social da inferioridade. O processo correlato é o da construção social da superioridade. Da mesma forma, como não há ricos sem pobres, não há superiores sem inferiores. Logo a construção social da supremacia masculina exige a construção social da inferioridade feminina. Mulher dócil é a contrapartida de homem macho. Mulher frágil é a contraparte de homem

152 SANTOS, Cecília Macdowell. IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as mulheres e Violência de gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. Estudios Interdisciplinários de América Latina y El Caribe, da Universidade de Tel Aviv. 2005, p.4. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wpcontent/uploads/2012/08/SANTOS_IZUMINO_VCMVG2005.pdf> Acesso em: 31 ago. 2015.

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forte. Mulher emotiva é a outra metade de homem racional. Mulher inferior é a outra face da moeda do macho superior. (1990, p. 29)

Todavia, em contraponto com a teoria adotada por Saffioti, Suely Souza de

Almeida em seu artigo "Essa violência mal-dita", defende que o patriarcado não é

suficiente para explicar a ocorrência da violência de gênero e demonstra não

concordar com a dualidade supostamente fixa de vítima e agressor, pois essa

passividade e mobilidade não explicam a ocorrência desse fenômeno.

[...] A violência de gênero, conquanto relacional, é construída em bases hierarquizadas, objetivando-se nas relações entre sujeitos que se inserem desigualmente na estrutura familiar e societal. Assim, enquanto tendencialmente essas relações subjugarem a categoria feminina, a violência de gênero produzirá exponencialmente vítimas mulheres. Na medida em que homens e mulheres se apropriam e intervêm contraditoriamente nessas relações, a violência de gênero pode também vitimizar homens. (ALMEIDA, 2007, p. 28)

Uma terceira corrente teórica, exemplificada pelos trabalhos de Maria

Filomena Gregori, utiliza uma mitigação da teoria da dominação masculina e da

teoria da vitimização. De acordo com Gregori, a violência nos relacionamentos

conjugais pode ser considerada uma forma, ainda que cruel, de comunicação entre

os casais, na qual a violência é uma forma de justificativa das suas práticas.

Diferentemente do exposto por Chauí, Gregori rejeita a teoria da dominação

masculina pois considera que a mulher possui autonomia na relação e não é um

sujeito silenciado pela violência. Para ela, deve haver um limite entre a dualidade

vítima e agressor, admitindo que, por vezes, a mulher é cúmplice da reprodução dos

papéis de gênero, socialmente construídos. Quando uma mulher relata a agressão

sofrida pelo marido, por exemplo, ela possui o domínio dos fatos e de certo modo,

pode manipular a situação. Gregori entende que ao narrar a violência, a mulher

automaticamente reproduz os papéis de gênero.

[...] Para a autora, a mulher é protagonista nas cenas de violência conjugal e se representa como “vítima” e “não-sujeito” quando denuncia, através de queixa, tais cenas. Nestas queixas, a mulher reforça a reprodução dos papéis de gênero. Ela coopera na sua produção como “não-sujeito” e se coloca em uma posição de vítima, porque assim obtém proteção e prazer. Mas Gregori reconhece que o medo da violência também alimenta a cumplicidade da mulher. Salienta que ‘é o corpo da mulher que sofre os

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maiores danos, é nela que o medo se instala. E, paradoxalmente, é ela que vai se aprisionando ao criar sua própria vitimização’. 153

Essa perspectiva de relativização da dualidade vítima e agressor é

extremamente importante pois inaugura uma nova forma de analisar a violência

contra a mulher. Assim, no início dos anos 90 passa-se a discutir a cumplicidade da

mulher e começa-se a utilizar a expressão “mulheres em situação de violência”, em

vez do antigo termo “mulheres vítimas de violência”.

[...] Ao nosso ver, Gregori traz uma importante contribuição aos estudos sobre a violência contra as mulheres. É necessário relativizar o modelo de dominação masculina e vitimização feminina para que se investigue o contexto no qual ocorre a violência. As pesquisas sobre o tema vêm demonstrando que a mulher não é mera vítima, no sentido de que, ao denunciar a violência conjugal, ela tanto resiste quanto perpetua os papéis sociais que muitas vezes a colocam em posição de vítima. O discurso vitimista não só limita a análise da dinâmica desse tipo de violência como também não oferece uma alternativa para a mulher. 154

Como conclusão, as autoras entendem que somente utilizar a teoria da

dominação masculina não é suficiente para compreender o fenômeno da violência

contra a mulher e a forma como as mulheres reagem à essa violência. Defendem a

abordagem feita pela Saffioti da violência como uma relação de poder, mas não de

forma imutável e abstrata, na qual o homem exerce poder sobre a mulher, mas em

um contexto em que ambos exercem poder, apesar de ser desigual.

Deve ocorrer uma relativização da cumplicidade defendida por Chauí, pois a

mulher em situação de violência não é destituída de autonomia.

[...] Em suma, devemos relativizar a perspectiva teórica da dominação-vitimização. Essa relativização faz-se ainda mais necessária para que possamos compreender como não apenas as mulheres, senão também os

153 SANTOS, Cecília Macdowell. IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as mulheres e Violência de gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. Estudios Interdisciplinários de América Latina y El Caribe, da Universidade de Tel Aviv. 2005, p.7. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wpcontent/uploads/2012/08/SANTOS_IZUMINO_VCMVG2005.pdf> Acesso em: 31 ago. 2015. 154 SANTOS, Cecília Macdowell. IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as mulheres e Violência de gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil.Estudios Interdisciplinários de América Latina y El Caribe…Acesso em: 31 ago. 2015. p.8

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homens praticam e conferem significado a violência contra as mulheres em específicos contextos socioculturais.155

Por fim, argumentam que a teoria da vitimização se torna prejudicial para a

própria mulher, pois no momento da narrativa dos fatos ocorre uma culpabilização

das mulheres pelos operadores do direito que não compreendem a situação da

violência de gênero como um crime. Percebe-se a necessidade de articulação da

esfera pública com a esfera privada, bem como a evidência de que a esfera privada

não deve ser isenta de proteção pelo poder público. A compreensão da categoria de

gênero como essencial para decifrar o fenômeno da violência, sendo estabelecida

dentro de um arranjo social e cultural, fez com que se tornasse necessária a edição

de uma lei específica para coibir e punir a violência de gênero, tendo em vista a

demanda social por reconhecimento.

Diante de todo o exposto nesse capítulo conclui-se que a violência de gênero

é uma forma de manifestação da desigualdade entre os sexos e que deve ser

analisada sob uma perspectiva sociocultural, ou seja, dentro do contexto em que

está inserida, devendo ser percebida como violação dos direitos humanos das

mulheres. Não obstante a mulher seja considerada “vítima” dessa situação, ela

poderá ser considerada “cúmplice” quando reproduzir sua situação de suposta

inferioridade em relação ao homem.

4 BREVE EXPOSIÇÃO DO PROCESSO DE ELABORAÇÃO DA LEI MARIA DA

PENHA

O movimento feminista no Brasil possuiu papel fundamental na concretização

dos direitos humanos das mulheres e no reconhecimento de que a violência de

gênero ocorrida tanto no ambiente público quanto no privado, é resultado das

desigualdades sociais entre os sexos e discriminações de gênero. As lutas por

reconhecimento, principalmente como fruto do movimento das mulheres no Brasil,

155 SANTOS, Cecília Macdowell. IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as mulheres e Violência de gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. Estudios Interdisciplinários de América Latina y El Caribe, da Universidade de Tel Aviv. 2005, p.15. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wpcontent/uploads/2012/08/SANTOS_IZUMINO_VCMVG2005.pdf> Acesso em: 31 ago. 2015.

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COLETÂNEA 2 – HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

385

sobretudo pelo caso paradigmático da Sra. Maria da Penha, conferiram visibilidade

para um fenômeno social até então ignorado pelo Estado Brasileiro.

Anteriormente à edição da Lei Maria da Penha, os crimes de violência contra

as mulheres eram julgados perante o Juizado Especial Criminal, regido pela Lei n.º

9.099/1995, pois eram compreendidos como crimes de menor potencial ofensivo.

No entanto, os aplicadores da lei não reconheciam a violência de gênero

como resultado da estrutura desigual da sociedade. Ademais, esse tipo específico

de violência tratada como menor potencial ofensivo não era suficiente para combatê-

la, pois a violência doméstica pode se perpetuar por anos. Diante desses fatores,

resultava, muitas vezes, na ineficiência dos juizados para efetivamente punir os

agressores.

A militância feminista foi essencial para atestar a insuficiência dos Juizados

Especiais Criminais, na promoção da efetiva punição dos agressores, bem como a

insuficiência das penas alternativas (penas pecuniárias e trabalhos alternativos),

muito desacreditas pela sociedade brasileira, para tratar de uma violência de gênero

que possui raízes eminentemente simbólicas.

No contexto externo, as convenções internacionais ratificadas pelo Brasil,

como a Convenção Belém do Pará (Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a

Violência Contra as Mulheres), bem como a Convenção sobre a Eliminação de

Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), conferiram

parâmetros importantes no processo de elaboração da Lei Maria da Penha. A

primeira, conceituando violência de gênero, e a segunda, conferindo mecanismos

acessíveis a qualquer pessoa para denunciação de qualquer forma de discriminação

contra a mulher e de violação de direitos humanos.

Após constatado o descaso do Estado Brasileiro no caso da Maria da Penha

Maia Fernandes, e também pela ausência em conceder uma resposta mais eficaz às

vítimas de violência de gênero, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da

OEA publicou o relatório n.º 54, com recomendação ao Brasil para simplificar os

procedimentos judiciais penais e estabelecer formas alternativas às judiciais, que

sejam efetivas na solução dos conflitos intrafamiliares, bem como “sensibilizar” a

gravidade da violência e demonstrar os efeitos penais que ela pode ocasionar.

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Ressalte-se que essa condenação apenas foi possível pela grande

participação do movimento feminista no Brasil, mediante diversas reinvindicações de

gênero e demandas por reconhecimento da violência como um problema social que,

além da morte de muitas mulheres, afeta outros campos sociais, inclusive

econômicos.

5 RESULTADOS PRÁTICOS

Pretende-se analisar, a partir de dados concretos, a eficácia da Lei Maria da

Penha a partir da pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(IPEA) em 04 de março de 2015, bem como pelos dados do Mapa da Violência

2015, divulgados em 09 de novembro de 2015.

5.1 PESQUISA DIVULGADA PELO INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA

APLICADA (IPEA)

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) realizou uma pesquisa

com o fulcro de analisar a efetividade da Lei Maria da Penha na redução das taxas

de homicídio de mulheres. De acordo com a pesquisa, a citada legislação alterou o

tratamento conferido à violência doméstica pelo Estado em três aspectos.

Incialmente, houve o aumento de pena ao agressor, tornando mais “oneroso”

cometer violência doméstica. Houve também um maior empoderamento das

mulheres em situação de violência, bem como a instituição pela lei, da violação de

direitos humanos causada pela violência doméstica. Por último, com a integralidade

do sistema, há possibilidade de um atendimento mais completo às mulheres nessa

situação, dependendo, obviamente, da instituição dessa nova forma de tratamento

no âmbito nacional.

Assim, seria possível supor que, com o aumento da pena aos agressores e a

maior visibilidade conferia pela lei após a sua publicação, haveria uma consequente

redução nos casos de violência contra a mulher em todo o território nacional, pois a

probabilidade de condenação seria maior, bem como pelo maior empoderamento

das mulheres as denúncias seriam crescentes.

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387

Considerando o estudo de Soares, o Instituto partiu do pressuposto de que a

violência doméstica ocorre em ciclos, divididos em três níveis. O primeiro nível inicia-

se com pequenas discussões no relacionamento do casal, crises de ciúmes,

desentendimentos, agressões verbais, violência psicológica e etc. O segundo ciclo

seria a fase mais crítica da violência, vez que ela se manifesta por meio de

agressões físicas, estupros e nos casos mais graves, homicídio. De modo que o

terceiro ciclo seria a fase do arrependimento do agressor e promessas de melhoras

no comportamento, nos casos onde não ocorreu a morte da vítima.

Importante salientar que a Lei Maria da Penha não possui como objetivo tratar

sobre o homicídio de mulheres, tendo em vista já existir disposição no Código Penal

sobre esse crime.156 No entanto, a pesquisa baseou-se nesse fenômeno, (segunda

fase da violência doméstica), para realizar a comparação entre o período anterior e

posterior à lei. Para isso, houve a utilização do método "diferenças em diferenças",

comparando assim a taxa de homicídio de homens, com a taxa de homicídio de

mulheres.157

De acordo com os autores da pesquisa, seria possível presumir que após a

publicação da lei, ocorreria uma diminuição nas taxas de homicídios de mulheres em

todo o país, tendo em vista a publicidade ocasionada pela nova legislação.

Considerando então que a violência doméstica ocorre em ciclos, com a

probabilidade maior de o agressor ser punido, haveria uma diminuição das

agressões no âmbito privado e a consequente redução nas taxas de homicídio.

Porém, apesar desse ser o resultado esperado, a pesquisa mostrou que, não

obstante a lei ser de âmbito nacional, não atingiu o território de forma isonômica. No

relatório elaborado pelo Instituto, contém a seguinte conclusão:

[…] Entretanto, a despeito de a LMP ser de âmbito nacional, discutimos que os seus efeitos deveriam se dar de forma heterogênea no território nacional, uma vez que o aumento da probabilidade de condenação depende da institucionalização dos serviços descritos na lei. Portanto, nos locais onde a sociedade e o poder público não se mobilizaram para implantar delegacias de mulheres, juizados especiais, casas de abrigo etc., é razoável imaginar

156 Ressalte-se que o crime de feminicídio passou a integrar o rol dos crimes hediondos, constituindo uma majorante no tipo penal homicídio. A Lei n. º 13.104/2015, publicada no dia 09 de março de 2015, alterou o artigo 121 do Código Penal. Conforme estabelece a lei, o crime de feminicídio é aquele praticado em razão de “sexo feminino”. 157 Houve uma comparação entre o homicídio de homens, que ocorrem principalmente no espaço público, como homicídio de mulheres, cujas taxas são maiores no âmbito doméstico.

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que a crença dos residentes não tenha mudado substancialmente no que se refere ao aumento da probabilidade de punição.158

Conclui-se então que, nos locais onde não houve a devida implementação

das políticas públicas estabelecidas pela Lei, não houve redução nas taxas de

homicídio de mulheres. Essa conclusão deriva da premissa de que é por meio das

políticas públicas que se torna possível e viável alterar a moral vigente e não apenas

por meio da lei penal.

Assim, a redução constatada pela análise do território nacional, ocorreu de

maneira heterogênea. Verificaram ainda que após a implementação da Lei e em

face da ampla divulgação ocorrida dos novos procedimentos e possibilidades de

punição, houve redução das taxas de homicídio, sobretudo nas regiões mais

violentas.

[...] Com o passar do tempo, tendo em vista que em muitas regiões os serviços previstos pela lei não foram implementados, é razoável imaginar que houvesse uma atualização das crenças dos ofensores em potencial no sentido de uma menor punição. Com isso, é razoável imaginar que o efeito da LMP não tenha se dado de forma homogênea, não apenas do ponto de vista espacial, mas também temporal.159

Por fim, os resultados indicam que houve uma diminuição na taxa de

homicídio de mulheres dentro das residências em 10%160. Conclui-se então que

após a publicação da Lei Maria da Penha, em 07 de agosto de 2006, ocorreu uma

redução das agressões e a consequente redução nos homicídios de mulheres. No

entanto, conforme constatado pela pesquisa, a redução não foi proporcional em

todas as regiões, pela falta de implementação das diversas políticas públicas

estipuladas pela lei.

158 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Texto para discussão 2048. Avaliando a efetividade da Lei Maria da Penha. Brasília, mar. 2015. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2048.pdf>. Acesso em: 7 set. 2015. p. 33. 159 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Texto para discussão 2048. Avaliando a efetividade da Lei Maria da Penha. Brasília, mar. 2015. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2048.pdf>. Acesso em: 7 set. 2015. p. 34. 160 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Pesquisa avalia efetividade da lei maria da penha. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=24610> Acesso em: 09 set. 2015.

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5.2 MAPA DA VIOLÊNCIA 2015: HOMICÍDIO DE MULHERES NO BRASIL

Nesse tópico, pretende-se analisar os dados do Mapa da Violência, elaborado

pela Faculdade Latino – Americana de Ciências Sociais (Flacso), divulgado no dia

09 de novembro de 2015, que contém análise minuciosa da situação brasileira com

relação a taxa de homicídio de mulheres.

Diante das limitações atualmente existentes, tanto com relação a análise da

efetividade da Lei Maria da Penha (n.º 11.340/2006), bem como da recém-criada Lei

do Feminicídio (n.º 13.104/2015), a pesquisa divulgada é imprescindível para

enriquecer a análise da situação do Brasil em relação à violência de gênero.

Outrossim, diante da ausência de informações mais completas para promover uma

análise mais aprofundada, quanto à idade das vítimas, cor, a localidade das

agressões, dentre outros parâmetros. Nesse sentido, o Mapa da Violência 2015

apresenta de forma satisfatória os dados relacionados à taxa de homicídio de

mulheres.

Insta salientar que a fonte utilizada para analisar a taxa de homicídios no país

é do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), da Secretaria de Vigilância em

Saúde (SVS), Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde (OMS).

De acordo com os dados fornecidos pela OMS, no Brasil, a taxa de homicídio

de mulheres é de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres. Esse índice elevado coloca o

Brasil na 5ª posição no contexto internacional, entre 83 países do mundo. Importante

salientar que dentre os países analisados, a taxa média de homicídio de mulheres é

de 2,0 por 100 mil mulheres. Ou seja, a taxa do Brasil resulta 2,4 vezes maior que a

média internacional. Diante desses índices excessivamente elevados e alarmantes,

uma das conclusões possíveis, é de que a situação da violência de gênero é

resultado da sociedade que carrega traços machistas e conservadores, na qual a

mulher continua sendo considerada um ser inferior ao homem. Ressaltando assim, a

maneira cruel que a desigualdades sociais entre os sexos se manifesta, que afeta a

sociedade como um todo.

No ano de publicação da Lei Maria da Penha, 2006, a pesquisa demonstrou

que houve redução nas taxas de homicídio de mulheres apenas nos seguintes

Estados: Rondônia, Espírito Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Tal

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COLETÂNEA 2 – HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

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informação corrobora com a pesquisa realizada pelo IPEA, no sentido da

desproporcionalidade das taxas apresentadas.

A pesquisa divulgada constatou que apesar da média nacional ser

excessivamente elevada, os índices não são equivalentes em todo o território

nacional. Por exemplo, as capitais Vitória, Maceió, João Pessoa ou Fortaleza,

apresentaram taxas exageradas de 10 homicídios por 100 mil mulheres. Sendo

necessário aprofundar os estudos para compreender as razões dessas regiões

apresentarem maior índice de violência.

Outro resultado relevante da pesquisa indicou que meninas e mulheres

negras são o perfil preferencial das mulheres vítimas de homicídio. Concluiu-se que

houve queda na taxa de homicídio de mulheres brancas, entre o período de 2003 a

2013, de 3,6 para 3,2 por 100 mil, representando uma queda de 11,9%. Em

contrapartida, os homicídios de mulheres negras vêm aumentando

significativamente. No mesmo período analisado, houve o crescimento de 4,5 para

5,4 por 100 mil mulheres, ou seja, um aumento de 19,5%.

Com relação a idade das vítimas, a pesquisa demonstrou que há uma

prevalência entre 18 e 30 anos de idade. Ainda, em comparação ao homicídio de

homens, as mortes das mulheres são causadas predominantemente por força física,

objeto cortante, com menor participação de armas de fogo. E com relação ao lugar

onde o homicídio acontece, foi possível constatar que a agressão no domicílio tem

mais incidência entre mulheres do que entre os homens, de modo que as mulheres

são vitimadas por pessoas conhecidas, diferentemente do que ocorre em relação

aos homens.

A pesquisa ainda, permite concluir que:

[...] Se a impunidade é amplamente prevalecente nos homicídios dolosos em geral, com muito mais razão, pensamos, deve ser norma nos casos de homicídio de mulheres. A normalidade da violência contra a mulher no horizonte cultural do patriarcalismo justifica, e mesmo “autoriza” que o homem pratique essa violência, com a finalidade de punir e corrigir comportamentos femininos que transgridem o papel esperado da mãe, de esposa e de dona de casa.161

161 WAISEKFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil. Brasília, 2015, p. 75. Disponível em: < http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf> Acesso em: 12 de nov. 2015.

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391

Diante da elucidação prática, com a transcrição dos dados acima, é possível

concluir que a sociedade hodierna carrega traços sexistas e conservadores, cujos

valores e costumes ensejam práticas discriminatórias com relação à mulher, de

modo que a violência de gênero é uma manifestação desse quadro. Os dados

divulgados pelo Mapa da Violência 2015 confirmam a afirmativa precedente,

alertando para a eminente necessidade de modificar esse pensamento

aparentemente hegemônico. Ademais, os dados da presente pesquisa apontam

para uma “combinação cruel” entre sexismo e racismo, de modo que é necessário

um estudo mais aprofundado para compreender as razões dessa ligação.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo expôs, a relevância de estudar a categoria gênero de

modo a compreender a complexa relação social entre homens e mulheres. Partiu-se

da premissa de que o gênero é um conceito poderoso que permite analisar de uma

maneira mais crítica, as relações sociais sob uma perspectiva histórica e cultural.

Ademais, ele auxilia a questionar as construções sociais a respeito do masculino e

feminino. Diante dessa relevância da categoria gênero, foi essencial identificar a

influência que ele exerceu tanto no processo de elaboração, quanto a manifestação

de sua influência no momento da aplicação da Lei Maria da Penha (n.º

11.340/2006).

Pela perspectiva de gênero, refutou-se a teoria do determinismo biológico que

postulava uma ligação direta entre os comportamentos sociais com a biologia, de

modo a compreender que as desigualdades entre os sexos não são naturais e

universalizáveis, mas sim socialmente construídas.

Essa nova visão de compreender as categorias masculino e feminino

influenciou na forma como a violência contra a mulher era percebida e até então,

naturalizada pela sociedade. A violência é uma forma expressiva de manifestação

da desigualdade entre os sexos que acontece dentro de uma relação de poder.

Assim, abriu-se a discussão de que a violência de gênero se manifesta de diversas

maneiras, podendo ser física, sexual, moral, psicológica, mas é inclusive simbólica.

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O movimento feminista exerceu papel fundamental nesse processo, por meio

das diversas reinvindicações de gênero e demandas pelo reconhecimento da

violência como um problema social e de violação de direitos humanos que, além da

morte de muitas mulheres, afeta outros campos sociais e inclusive econômicos.

Por meio do descaso constatado do Estado Brasileiro em promover uma

resposta mais eficaz às vítimas da violência de gênero, bem como diante do caso

paradigmático da Sr.ª Maria da Penha Maia Fernandes, ante a impunidade em

relação à violência doméstica por ela sofrida, houve a condenação do Brasil por

negligência, omissão e tolerância em relação à violência contra as mulheres. Assim,

foi condenado pela OEA a promover práticas que reduzam as discriminações e

desenvolver maneiras para coibir e punir a violência.

A edição da Lei Maria da Penha representa uma conquista na luta pelos

direitos das mulheres, sendo uma vitória, do movimento feminista e mais um avanço

no que tange ao reconhecimento legal da igualdade através de um tratamento

específico em relação à violência de gênero. Diante da constada influência que o

gênero exerceu no momento da elaboração da lei, foi necessário estudar sua

influência na aplicação da lei.

A perspectiva do gênero no direito possui a virtude ser sempre crítica. O

direito, aqui entendido não somente como lei e normas jurídicas, mas como discurso

jurídico e social, é fruto de um intenso processo de construção social, onde são

inseridos valores, cultura e costumes da sociedade. O direito possui a função

primordial de regular as condutas humanas de modo a aperfeiçoar os indivíduos que

vivem em sociedade. Ele dota de sentido, confere legitimidade a grupos sociais e

serve como intermediador dos conflitos que possam existir.

Diante dessa função, deveria haver uma clara distinção entre direito e moral,

de modo que o discurso jurídico não poderia corporificar determinado pensamento

dominante de uma comunidade moral para a resolução dos conflitos, pois não

estaria cumprindo sua função de ser imparcial. Essa imparcialidade do direito, deve

ser observada, inclusive, pelos operadores jurídicos, ou seja, os sujeitos que

efetivamente interpretam e aplicam a lei.

Existem conceitos e padrões de comportamentos, arraigados na ideologia da

sociedade brasileira, que cristalizam não apenas preconceitos, mas maneiras de agir

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e pensar dos indivíduos da sociedade. Esses conceitos apenas se formaram a partir

da vida cotidiana e pela convivência entre os indivíduos e, por vezes, influenciam o

modo como a lei é aplicada.

Assim, o problema da desigualdade entre os sexos que se manifesta por meio

da violência de gênero, não se soluciona apenas modificando o texto das normas ou

elaboração de novas leis, mas sim com a modificação do sistema de valores (cultura

e costumes), pois a cultura é dinâmica e o direito tende a acompanhá-la.

Diante dessas constatações, a parte final do presente estudo se propôs a

analisar os dados divulgados pelo IPEA, analisando a eficácia da Lei Maria da

Penha, bem como pelo Mapa da Violência 2015, com índices específicos com

relação à taxa de homicídio de mulheres no Brasil.

A pesquisa do IPEA demonstrou que desde a publicação da lei em 2006

houve redução em 10% na taxa de homicídio de mulheres, comparada com a taxa

de homicídio de homens. No entanto, conforme corroborado pelo Mapa da Violência,

apenas em cinco estados brasileiros foi registrado efetiva redução de homicídio de

mulheres.

A constatação de que a redução não foi proporcional em todas as regiões do

Brasil é resultado da falta de implementação das diversas políticas públicas

estipuladas pela lei. Também, a falta de especialização dos profissionais tem

contribuído para a permanência de atendimento discriminatórios e prejudiciais às

mulheres em situação de violência.

Outro dado alarmante apresentado pelo Mapa da Violência é o cruzamento de

dois fatores extremamente preocupantes no Brasil, o sexismo e o racismo. Os

índices indicam que as mulheres e meninas negras são as maiores vítimas da

violência de gênero, o que aponta para a eminente necessidade da criação de uma

consciência pública de não tolerância a qualquer forma de discriminação, seja ela de

cor, raça, origem, sexo, etc.

Como conclusão, a Lei Maria da Penha representa um grande avanço na

conquista dos direitos humanos das mulheres, no entanto, sua eficácia se apresenta

de forma bastante limitada, conforme comprovam os dados apresentados. Assim,

para além da edição e aplicação da lei, se faz necessária a modificação e

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COLETÂNEA 2 – HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

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conscientização social da forma como a categoria mulher é compreendida na

sociedade, assim como o fenômeno da violência.

Enquanto não forem alterados os padrões culturais e a forma de compreender

a violência, a lei não terá plena eficácia. Ademais, não é possível atribuir somente ao

sistema penal à resolução de uma patologia social que apresenta raízes

eminentemente simbólicas. No entanto, tal constatação aponta, ao mesmo tempo,

para a importância indiscutível da Lei Maria da Penha.

REFERÊNCIAS

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LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA: CONFLITO ENTRE OS

DIREITOS FUNDAMENTAIS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO E

O DIREITO À HONRA E PRIVACIDADE

FREEDOM OF JOURNALISTIC INFORMATION: CONFLICT BETWEEN THE

FUNDAMENTAL RIGHTS TO FREEDOM OF EXPRESSION AND INFORMATION

AND THE RIGHT TO HONOR AND PRIVACY

Thatianna Freitas de Souza162

Luiz Gustavo Andrade163

SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Direito-valor fundamental à liberdade e à intimidade 2.1 As gerações dos direitos fundamentais 2.2. Os direitos-valores fundamentais 2.3 A liberdade, a intimidade e a honra enquanto direitos fundamentais 3 Liberdade de expressão pelos meios de comunicação 3.1 A liberdade de imprensa 3.2 Disciplina constitucional da liberdade de imprensa no Brasil 3.3 O julgamento da ADPF130/STF 4 O abuso na liberdade de expressão jornalística: reparação dos danos à honra 4.1 Direito de resposta e o compromisso jornalístico com a verdade 4.2 A tutela reparatória contra os meios de comunicação: critérios de solução do conflito entre liberdade de expressão e direito à honra 4.3 O conflito na jurisprudência: análise de casos 5 Considerações finais. Referências.

RESUMO

O presente texto tem como tema principal o conflito entre os direitos fundamentais à liberdade de

expressão e informação e o direito à honra e privacidade. A necessidade de assegurar tais direitos

reside no fato de que eles são essenciais em um Estado Democrático de Direito. A Constituição

Federal Brasileira de 1988 protege ambos os direitos e desta forma não há preponderância de um

sobre o outro, uma vez que pode haver proteção de mais de um direito concomitantemente. É a

análise de cada caso concreto que vai determinar qual direito prevalece. Para tanto há alguns

elementos a serem observados, como o interesse público, a relevância e a veracidade da notícia. A

Constituição garante a liberdade em suas diferentes formas. No que diz respeito aos meios de

comunicação, o artigo 5º, X, CF, traz que é livre a expressão da atividade de comunicação,

independentemente de censura ou licença. Este respaldo constitucional é importante, pois a Lei de

Imprensa (Lei nº 5.250/67) foi declarada inconstitucional no ano de 2009. Por meio do julgamento da

162 Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). 163 Advogado. Mestre em Direito. Professor da Graduação e da Pós-Graduação do curso de Direito Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).

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Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 130/STF, os Ministros do Supremo

Tribunal Federal entenderam que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela atual Constituição,

visto que foi criada na época de ditadura militar no país. Ao final, conclui-se que a liberdade de

expressão propicia aos jornalistas, e também ao público leitor, ouvinte e telespectador, autonomia

para debater sobre os principais acontecimentos, sendo de extrema importância em um país

democrático, onde prevalecem as diferentes formas de liberdades.

Palavras-chave: direitos fundamentais, liberdade de expressão, de informação e de imprensa, direito

à honra e privacidade.

ABSTRACT

This paper has as its main theme the conflict between the fundamental rights to freedom of expression and information and the right to honor and privacy. The need to ensure these rights lies in the fact that they are essential in a democratic state. The Brazilian Constitution of 1988 protects both rights and there is no preponderance of one over the other, since there may be more than one right concomitantly protection. It is the analysis of each case that will determine which right prevails. Therefore there are some elements to be observed, as the public interest, the relevance and accuracy of the news. The Constitution guarantees the freedom in his different forms. With regard to the media, the article 5º, X, CF, brings that is free the communication's activity, regardless of censorship or license. This constitutional support is important, since the Press Law (Law nº 5.250 / 67) was declared unconstitutional in 2009. Through the judgment of the non-compliance of Fundamental Precept ADPF 130 /STF, the Justices of the Supreme Court understood that the Press Law was not recepcionada by the current Constitution, because it was created at the time of military dictatorship in the country. Finally, it is concluded that freedom of expression provide to the journalists and also to the readers, listeners and viewers, autonomy to discuss the main events, being extremely important in a democratic country, where prevail different forms of freedoms.

Key-words: fundamental rights, freedom of expression, information and press, right to honor and privacy.

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa foi desenvolvida a partir da conceituação e análise de

julgados referentes à colisão dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e

informação e o direito à honra e à privacidade.

Para tanto, constatou-se a necessidade de estudar os conceitos pertinentes

ao tema, como os direitos-valores fundamentais, o papel dos veículos de

comunicação e a sua função de dizer a verdade e noticiar fatos de interesse público.

Em um primeiro momento, são apresentadas considerações sobre os direitos

fundamentais, principalmente a liberdade e privacidade. Em uma segunda ocasião,

aborda-se sobre a liberdade de expressão pelos meios de comunicação e a

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liberdade de imprensa no Brasil. Ressalta-se a significância do julgamento da

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 130/STF, por meio da

qual os Ministros do Supremo Tribunal Federal entenderam que a Lei de Imprensa

não foi recepcionada pela atual Constituição, sendo declarada inconstitucional em

2009.

Por último, são apresentadas algumas jurisprudências com o intuito de

verificar como o Poder Judiciário tem se posicionado em relação à colisão entre

estes direitos e qual deve prevalecer, visto que, na atualidade, ganhou destaque o

interesse pela vida do próximo em virtude da facilidade com que é possível enviar,

reproduzir e disponibilizar uma imagem ou informação através da Internet, do celular

e das redes sociais.

2 DIREITO-VALOR FUNDAMENTAL À LIBERDADE E À INTIMIDADE

2.1 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais estão previstos na Constituição Federal Brasileira de

1988. O Capítulo referente a estes direitos e deveres apresenta um rol de direitos

garantidos aos cidadãos, entre os quais a liberdade, a igualdade e a livre

manifestação do pensamento.

Destaca-se a classificação apresentada pela doutrina, que divide os direitos

fundamentais em gerações: primeira, segunda e terceira. Os direitos de primeira

geração são conhecidos como direitos individuais, que surgiram com a ideia de

Estado de Direito, submisso a uma Constituição. São direitos que conferem poder

aos cidadãos e limites ao Estado, que deveria proteger esses direitos, mas “sem

qualquer interferência arbitrária perante as relações sociais. ” (ARAUJO; NUNES

JÚNIOR, 2014, p. 159). Como exemplo de direitos desta geração, cita-se o direito à

vida, à intimidade, à liberdade, à inviolabilidade de domicílio, à propriedade e à

igualdade.

Enquanto os direitos de primeira geração são um não fazer do Estado; os de

segunda são um fazer do Estado, ou seja, almeja a presença do Estado nos

problemas existentes, com o objetivo de diminuir a desigualdade. Assim, abrangem

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os direitos sociais, econômicos e culturais. Nas palavras de Ingo Sarlet Wolfgang

(2007, p. 57), “estes direitos fundamentais caracterizam-se, ainda hoje, por

outorgarem ao indivíduo direitos e prestações sociais estatais, como assistência

social, saúde, educação, trabalho,” entre outros. Assim, a intervenção do Estado

seria com o intuito de propiciar uma vida melhor ao cidadão, de modo a garantir um

mínimo à sua sobrevivência.

Em relação aos direitos fundamentais de terceira geração, Luiz Alberto Araujo

(2014, p. 160) explica que são direitos relacionados “à essência do ser humano, sua

razão de existir, ao destino da humanidade, pensando o ser humano enquanto

gênero e não adstrito ao indivíduo ou mesmo a uma coletividade determinada”.

Diferentemente dos direitos de primeira e segunda geração, nesta fase a questão

não é a intervenção ou não do Estado, mas sim, o ser humano como grupo, como

coletividade.

Paulo Gustavo Gonet (2011, p. 156) conclui de maneira adequada a diferença

entre os direitos fundamentais de cada geração, dado que “a distinção é

estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que

esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica”.

A distinção dos direitos em gerações é oportuna, mas isto não significa que

por estarem em tal geração eles não serão resguardados. “Os direitos de cada

geração persistem válidos juntamente com os direitos da nova geração.” (MENDES,

2011, p. 156). Para exemplificar, cita-se o direito à intimidade e à vida privada. Com

o advento da Internet e das redes sociais tornou-se mais comum a publicação de

fotos e o interesse pela vida alheia. Assim, o direito à intimidade passou a ser

tutelado de maneira mais intensa, embora nunca tenha sido deixado de ser

protegido.

2.2 OS DIREITOS-VALORES FUNDAMENTAIS

Luiz Alberto Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2014, p. 153) conceituam

os direitos fundamentais como uma categoria jurídica instituída com a finalidade de

proteger a dignidade humana em todas as dimensões. Nesta lógica, José Afonso da

Silva (2010, p. 178) traz que os direitos fundamentais são compreendidos como

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princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de

cada ordenamento jurídico.

Assim, os direitos fundamentais apresentam inúmeras particularidades, dentre

as características estão a universalidade, já que estes direitos abrangem todos os

seres humanos, sem distinção de raça, cor, idade e sexo, por exemplo; a

limitabilidade dos direitos fundamentais, dado que estes não são absolutos, mas

limitáveis (ARAUJO, 2014, p. 164), ou seja, à proporção que o exercício de um

direito fundamental esbarra em outro, não há como cogitar a prevalência de um ou

de outro.

Quando há conflito entre dois direitos fundamentais, “hipótese em que o

exercício de um implicará a invasão do âmbito de proteção de outro,” (CAPEZ, 2013,

p. 65) deve-se fazer uma ponderação entre ambos; a irrenunciabilidade, ou seja,

“são intrínsecos ao ser humano,” (ARAUJO, 2014, p. 168) não se extinguem pelo

uso nem podem ser vendidos ou cedidos; a inalienabilidade, uma vez que “não são

passíveis de serem comercializados;” (VASCONCELOS, 2013, p. 124) a

concorrência dos direitos fundamentais, “tal característica revela que os direitos

fundamentais são acumuláveis pelo indivíduo” (ARAUJO, 2014, p. 168). Um

exemplo seria o profissional jornalista que “exerce o direito de informação, opinião e

comunicação.” (CAPEZ, 2013, p. 65).

Pode-se dizer que os direitos fundamentais são heterogêneos e variáveis e

existem para resguardar a dignidade humana, já que garantem proteção, afastando

abusos tanto de autoridades públicas quanto de terceiros. Desta maneira, os

direitos-garantias fundamentais não são concorrentes entre si, pois pode haver

proteção de mais de um direito concomitantemente.

2.3 A LIBERDADE, A INTIMIDADE E A HONRA ENQUANTO DIREITOS

FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais possuem indiscutível destaque dentro de uma

ordem jurídica. A Constituição Federal elenca estes direitos e a liberdade, enquanto

direito fundamental de primeira geração, pode ser vista como um direito universal e

reconhecida a todos.

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A consagração da liberdade de expressão como direito fundamental ganha

um maior significado em um Estado Democrático de Direito, pois tal liberdade é

constitutiva da ideia e proativa da democracia. (BORNHOLDT, 2010, p. 81).

Paulo Gustavo Branco (2011, p. 296-297) apresenta como liberdade de

expressão a de comunicação de pensamentos, de ideias, de informações e de

expressões não verbais (comportamentais, musicais, por imagem, etc.), tendo cada

uma um grau de proteção variado, mas, de alguma forma, todas estão amparadas

pela Lei Maior (SILVA, 2010, p. 246). Consequentemente, não importa a maneira de

expressar ou manifestar a opinião, seja por meio da fala ou da escrita, ambas

recebem amparo legal.

Ocorre uma proteção tanto na esfera individual quanto na coletiva dos direitos

à liberdade de se manifestar. Seja para a pessoa, ao ler uma notícia e querer emitir

sua opinião sobre ela, seja para os veículos de comunicação, por meio de um

editorial ou algum artigo de opinião divulgado no jornal ou revista, por exemplo.

Além da liberdade de expressão, há a liberdade de informação, que está

relacionada às diferentes maneiras de transmitir informações, principalmente nos

dias de hoje, já que a rede mundial de computadores mudou o jeito de comunicar.

Se antigamente as pessoas esperavam a edição do jornal circular, hoje, os meios

atualizam suas páginas eletrônicas de hora em hora, minuto a minuto.

Consequentemente, tornou-se mais fácil a divulgação de uma notícia.

A liberdade de informação é importante para o desenvolvimento da sociedade,

em razão de os temas divulgados na mídia serem os debatidos pelas pessoas. Tal

como foi analisada a liberdade como direito fundamental, pertinente também o

estudo da intimidade e da honra enquanto direitos fundamentais.

A Constituição, em seu artigo 5º, estabelece que são invioláveis a intimidade,

a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização

pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Para analisar os aspectos destes direitos, faz-se necessário definir honra e

privacidade. José Afonso da Silva (2010, p. 209) conceitua honra como o conjunto

de qualidades que caracterizam a dignidade de alguém, o respeito dos concidadãos,

o bom nome, a reputação. Para Luiz Araujo (2014, p. 205), o conceito de honra

protege a dignidade do indivíduo, enquanto o conceito de dignidade pode sofrer

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modificações segundo as condições de tempo e lugar, por isto pode haver variação

na definição de honra.

Salienta-se que o direito à honra está relacionado com o direito à privacidade,

uma vez que está estritamente ligado à vida íntima da pessoa, pois, como visto, a

honra também diz respeito à reputação e a dignidade do ser humano. No

entendimento de José Afonso da Silva (2010, p. 209), aquilo que se quer manter em

segredo entra no campo da privacidade e é exatamente neste ponto que o direito à

honra se cruza com o direito à privacidade.

Assim, privacidade pode ser conceituada como um “conjunto de informação

acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou

comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder

ser legalmente sujeito.” (SILVA, 2010, p. 208). Conclui-se que, a honra pode ser

violada sem que daí decorra a violação da privacidade e vice-versa. (CALDAS,

2007, p. 32).

Com isto, a privacidade está relacionada ao fato de se ter o direito de manter

em sigilo ou no seu âmbito privado certas informações relacionadas à sua vida.

Cabe a cada um optar com quem quer dividir seus segredos e os acontecimentos de

sua vida. Ou seja, o que alguém decide expor, passa a ser de interesse de terceiros.

3 LIBERDADE DE EXPRESSÃO PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

3.1 A LIBERDADE DE IMPRENSA

Na acepção de José Afonso da Silva (2010, p. 247), a imprensa,

independentemente do meio utilizado, seja escrito, falado, televisado ou sonoro,

constitui um poderoso instrumento destinado a propiciar a ampla transmissão de

informações, notícias, doutrinas e até sensacionalismos. Luis Gustavo Grandinetti

(2003, p. 40) conceitua liberdade de imprensa como a liberdade de emissão de

pensamento, da narração de acontecimentos e de registrar a história presente.

A liberdade de imprensa está associada à ideia de os veículos publicarem as

informações sem a restrição do Poder Público, na medida em que a democracia

permite a livre circulação de pensamento. O direito à liberdade de imprensa alcança

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qualquer meio de transmissão de notícias. Na atualidade, ressalta-se a importância

da Internet e, consequentemente, dos canais e portais online dos principais jornais e

revistas do país, como meio de comunicação e de liberdade de manifestação de

pensamento.

Conforme exposto no Código de Ética dos Jornalistas, a liberdade de

imprensa, como pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a

responsabilidade social. Sendo que, a obstrução direta ou indireta à livre divulgação

da informação, a aplicação de censura e a indução à autocensura são delitos contra

a sociedade.1 Não obstante, o profissional de comunicação não deve sofrer

censuras nem restrições, pois possui o dever de publicar uma notícia.

3.2 DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA NO BRASIL

A Constituição Federal Brasileira, em seu corpo normativo, garante

expressamente como direito fundamental a liberdade de expressão, sendo a

liberdade de comunicação um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Ela traz

um capítulo específico sobre os meios de comunicação social, que engloba os

artigos 220 até 224. Nas palavras de Edilsom Farias (2004, p. 55), comunicação

social seria um objeto de uma garantia institucional conferida aos meios de

comunicação de massa para fazerem circular os pensamentos, as ideias, as

opiniões, as crenças, os juízos de valor, os fatos, as informações e as notícias de

transcendência pública.

Os meios de comunicação são uma considerável ferramenta de poder, que

deve ser usada com parcimônia e com os devidos cuidados, já que as notícias

publicadas afetam a vida de todos, mesmo indiretamente aqueles que não são

efetivamente os entrevistados e as fontes das reportagens. Eles influenciam a

opinião pública, tendo a capacidade de induzir o pensamento do seu público acerca

dos fatos transmitidos. Consequentemente, mostra-se essencial a divulgação de

assuntos pertinentes à formação do cidadão e a preocupação de informar de forma

correta.

1 CÓDIGO DE ÉTICA DOS JORNALISTAS BRASILEIROS. Federação Nacional dos Jornalistas. Vitória, ES, 04 agosto 2007. Disponível em: <http://www.fenaj.org.br/materia.php?id=1811>. Acesso em: 02 out. 2014.

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Em contraponto com o poder dado aos meios de comunicação, Álvaro

Rodrigues Júnior (2009, p. 144) destaca que deve haver limites, sendo

imprescindível a existência de controles efetivos sobre os veículos, devendo ser

fixadas as respectivas responsabilidades pela ação ou omissão inadequadas ao

regime democrático, visando garantir, antes de tudo, uma ordem de valores fundada

no caráter transcendente da dignidade da pessoa. Fábio Costa (2013, p. 62) ressalta

ainda que o exercício da liberdade de comunicação deve ser feito sempre com o

respeito necessário à dignidade humana, devendo ter uma ponderação ao analisar

as normas constitucionais.

Com isto, quando houver violação de um direito subjetivo, quem for

prejudicado pode procurar o Poder Judiciário, para que este decida, com cautela,

qual a melhor resolução do conflito, analisando-se caso a caso. O que deve ser

avaliado é se os meios de comunicação não excederam seu poder ou desviaram a

sua finalidade de informar sobre fatos relevantes e de interesse público, não

divulgando a intimidade, seja de alguém anônimo, seja de alguma celebridade.

Diante da explanação sobre liberdade de imprensa, salienta-se a importância

de analisar a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, declarada pelo STF, por

meio do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental –

ADPF 130/STF.

3.3 O JULGAMENTO DA ADPF 130/STF2

Antes de considerar o julgamento feito pelo Supremo Tribunal Federal que

culminou na incompatibilidade da Lei de Imprensa com o texto constitucional de

1988, importante acentuar sobre suas prerrogativas e como se chegou à conclusão

de que ela era incompatível com a Carta Magna.

A Lei nº 5.250/67, Lei de Imprensa, criada no período da ditadura militar no

país (1964-1985), possuía como escopo restringir as atividades da imprensa e punir

os jornalistas e os meios de comunicação que se opusessem ao regime vigente.

2 O conteúdo referente a este subcapítulo é uma condensação do texto da ADPF 130, com o ponto de vista dos Ministros em relação à Lei de Imprensa. As informações foram retiradas da leitura da própria ADPF, sendo utilizados trechos da explanação dos Ministros em relação ao voto proferido.

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A maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal entendeu que a Lei de

Imprensa não foi recepcionada pela atual Constituição, por isso, ela teve sua

inconstitucionalidade declarada pelo STF por meio do julgamento da Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 130/DF, publicada em 30 de abril

de 2009.

Prevista no artigo 102, §1º, da CF, a ADPF é ação autônoma de controle de

constitucionalidade, sendo uma fórmula processual subsidiária do controle

concentrado de constitucionalidade, por isso, é a via adequada à impugnação de

norma pré-constitucional. Toda lei ou ato do poder público que viole a Constituição

poderá ser evitado ou reparado por meio de uma ADPF, mesmo que esta norma

pré-constitucional seja anterior à Constituição de 1988. 3

No caso da Lei de Imprensa, entendeu-se que a ADPF era a forma mais

adequada para revogá-la, porque a incompatibilidade da lei dizia respeito aos

direitos fundamentais (liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de

expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, liberdade de exercício

profissional) previstos na Constituição.

Com isto, insta salientar sobre a votação dos Ministros sobre a

inconstitucionalidade da Lei de Imprensa. Na sessão presidida pelo Ministro Gilmar

Mendes, por sete votos contra quatro, a Lei de Imprensa foi revogada, deixando de

existir, entre outras medidas, penas de prisão específicas para jornalistas.

Diante do exposto, segue uma análise compilada sobre a ADPF 1304, com

enfoque principalmente nos votos dos Ministros e nos principais argumentos para a

revogação da Lei de Imprensa.

Ao se discutir se a Lei de Imprensa seria ou não inconstitucional, parcial ou

totalmente, o Ministro Ayres Britto, relator, julgou procedente a ação proposta pelo

Partido Democrático Trabalhista, PDT, para o efeito de declarar a não receptividade

por parte da Constituição Federal de toda a Lei de Imprensa.

3 A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) só é cabível para lei posterior a Constituição Federal de 1998. A Ação tem por finalidade declarar que uma lei ou parte dela é inconstitucional, ou seja, contrária a Constituição da República. Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=124>. Acesso em: 20 mar. 2015. 4 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-DF, de 30 de abril de 2009. Relator Ministro Carlos Britto. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>. Acesso em: 16 out. 2014.

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Acompanhou o voto do relator o Ministro Eros Roberto Grau, que decretou

seu voto na sede de liminar e o então Ministro à época, Carlos Alberto Menezes

Direito, segundo o qual a Lei de Imprensa limitava os direitos, os quais não são

passíveis de restrições, já que a própria Constituição não os restringem. Para a

Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, a liberdade de comunicação é um verdadeiro

pilar para o Estado Democrático de Direito, não sendo compreensível com qualquer

tipo de restrição.

No entendimento do Ministro Ricardo Lewandowski, havia incompatibilidade

da Lei de Imprensa com a Constituição, visto que aquela foi editada em um período

autoritário, tendo como objetivo cercear as liberdades. Para o Ministro Antônio Cezar

Peluso, a liberdade da imprensa é plena nos limites que lhe reserva a Constituição.

No entendimento do Ministro nem todos os dispositivos da lei seriam

inconstitucionais, mas optou por declará-la inconstitucional para que não houvesse

insegurança jurídica. Para o Ministro Celso de Mello, a revogação da Lei de

Imprensa traria mais benefícios do que empecilhos, dado que a Constituição já

estabelece proteção no exercício da atividade jornalística.

Foram votos vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Ellen

Gracie, que julgaram improcedente alguns artigos da Lei de Imprensa. No

entendimento da Ministra, a ofensa proferida por intermédio de meios de

comunicação, quanto maior for a sua extensão, em maior gravame trará e, portanto,

maior reprovabilidade merecerá. Nesta concepção, para o Ministro Gilmar Mendes, a

Constituição nunca concedeu caráter absoluto à liberdade de expressão nem

suprimiu a possibilidade de restrição por parte dos poderes.

O Ministro Marco Aurélio, vencido integralmente, foi o único a votar totalmente

improcedente a ação, dado que a supressão da lei não beneficiaria a sociedade,

sendo prejudicial tanto para os jornalistas, quanto para os cidadãos que têm acesso

à informação veiculada. Outra indagação oportuna feita pelo Ministro seria de o fato

de a Lei de Impresa estar vigente há quarenta e dois anos (no período em que foi

revogada), sendo que a Constituição consta de mais de 26 anos (em 2014).

Da análise da votação dos Ministros, tem-se que, por mais que o

entendimento deles tenha sido o de que a Lei de Imprensa não condiz com o

período vigente, a imprensa é essencial para o país e utilizar-se do fundamento de

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408

que foi criada em período de ditadura militar no Brasil, torna possível afirmar que

outras leis também seriam inconstitucionais, pois foram criadas na mesma época

que a Lei de Imprensa, como o Código de Processo Civil brasileiro, de 1973.

Assim, não se pode assegurar que a Lei de Imprensa seria totalmente

inconstitucional, visto que, alguns artigos, por exemplo, os referentes à calúnia,

injúria e difamação, seriam compatíveis com o ordenamento jurídico, com previsão

no Código Penal Brasileiro.

Com a revogação da Lei de Imprensa, as atividades jornalísticas e os

profissionais de imprensa passaram a ter suas responsabilidades submetidas a

outras leis e códigos vigentes no país, como o Código de Ética do Jornalista, o

Código Civil e o Código Penal. Assim, não seria por falta de lei que jornalistas

podem desrespeitar os limites existentes. Por mais que a Lei de Imprensa tenha sido

revogada, do modo como ocorre com outras profissões, existe o Código de Ética

que deve ser seguido e respeitado e nele há os direitos, deveres e obrigações da

categoria.

4 O ABUSO NA LIBERDADE DE EXPRESSÃO JORNALÍSTICA: REPARAÇÃO

DOS DANOS À HONRA

Como uma das funções da atividade jornalística é informar, cabe ao

profissional checar o conteúdo repassado para que a notícia transmitida seja a mais

fiel à realidade. Por isso, um quesito a ser analisado é o direito de resposta. Quando

houver algum dano a ser reparado, a pessoa ofendida pode se valer deste direito a

partir do momento em que ele garante à parte insultada reparar a ofensa sofrida

devido a um fato veiculado, proporcionando a possibilidade de retificação, de forma

a esclarecer ou corrigir o erro.

Para que seja garantido o direito de resposta, torna-se necessário que o

veículo de comunicação tenha prejudicado, de algum modo, a pessoa. A este

respeito, tem-se que nem sempre o que é publicado pela imprensa é objeto de

reparação, apenas os casos em que for comprovada a má-fé por parte do

profissional é que há o direito. Assim, a verdade dos fatos divulgados torna-se um

fator determinante para contrabalancear qual direito prevalecer.

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409

4.1 DIREITO DE RESPOSTA E O COMPROMISSO JORNALÍSTICO COM A

VERDADE

A função do jornalista é informar, de forma clara, concisa e objetiva, sobre os

principais acontecimentos diários, de modo a manter os telespectadores, ouvintes e

leitores informados sobre os assuntos mais pertinentes que acontecem em sua

região, no Brasil e no mundo.

Além da busca pela verdade dos acontecimentos, existe uma série de

observações a serem consideradas para a realização de uma reportagem, como o

devido cuidado com as palavras e termos utilizados, a qualidade da fonte, ouvir os

dois lados da história, salvaguardar o entrevistado, respeitando sua privacidade, a

relevância da informação noticiada e a apuração e checagem da mesma, que deve

ser de maneira prudente e sem deturpações. De acordo com Edilsom Farias (2004,

p. 87), é dever de o profissional checar a idoneidade das notícias antes de sua

divulgação, especialmente averiguando e comparando as fontes das informações, a

fim de que o informador possa lograr uma comunicação honesta e correta dos fatos.

Quando ocorre de uma notícia ser veiculada de forma errônea, a pessoa que

se sentir prejudicada ou ofendida pelo evento noticioso possui o direito de resposta

assegurado. Na compreensão de Vidal Serrano Nunes Júnior (2011, p. 140-141), o

direito de resposta pode ser considerado como uma espécie de contracrítica, já que

pode ser analisado sob a ótica de que tal direito permite não só a retificação de uma

informação erroneamente disponibilizada, como também possibilita a oportunidade

de quem sofreu a crítica se posicionar sobre o fato. Ou seja, o direito de resposta

“confere ao autor da resposta a possibilidade de se apresentar à coletividade

segundo a sua própria visão, em contraste à visão apresentada pelo profissional da

imprensa”.

Com isto, aquele que se sentir ofendido tem o direito de se defender,

utilizando-se dos mesmos meios pelos quais teve sua imagem denegrida.

Exemplificando, se foi veiculado no jornal impresso em determinado dia da semana,

a resposta tem de ser no mesmo dia, na mesma página e editoria, tendo em vista

que faz diferença a circulação ser no dia de semana ou no domingo, por exemplo.

Isto ocorre para que o direito de resposta seja a mais real possível.

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410

Logo, percebe-se a importância de a notícia ser pautada pela verdade,

ouvindo os dois lados envolvidos na história, sem favorecimento de alguém,

buscando-se a imparcialidade e a pluralidade. E para isto, o jornalista deve

investigar o tema, escutar fontes, levantar e checar os fatos. Sabe-se que na busca

do furo -divulgar a informação antes dos demais veículos- alguns profissionais

acabam repassando a informação sem a devida precaução.

Como é dever de o jornalista informar a verdade, faz-se necessário o direito

de resposta a fim de coibir qualquer prática que fira a dignidade e honra da pessoa.

Cabe também àquele que se sentir ofendido a via judicial como meio de reparar o

dano moral existente.

4.2 A TUTELA REPARATÓRIA CONTRA OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO:

CRITÉRIOS DE SOLUÇÃO DO CONFLITO ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO

E DIREITO À HONRA

Cabível questionar também se os meios de comunicação deveriam atuar de

maneira preventiva, evitando publicar notícias que não sejam de interesse público ou

sem a devida verificação das fontes ou atuariam repressivamente, ou seja, arcariam

com as possíveis consequências do ato. Segundo Luiz Guilherme Marinoni, a tutela

inibitória trata-se de ‘ação de conhecimento’ de natureza preventiva, destinada a

impedir a prática, a repetição ou a continuação do ilícito. Constitui ação de

conhecimento que efetivamente pode inibir o ilícito.5

Assim, os veículos de comunicação, ao atuarem de forma preventiva,

estariam se precavendo contra a possibilidade de incorrer em ilícito e na

possibilidade de sofrer algum tipo de ação. Impõe-se, assim, uma obrigação de não

fazer, como traz o artigo 461, do Código de Processo Civil, que na ação que tenha

por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a

tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências

que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.6

5 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitória e Tutela de Remoção do Ilícito. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/luiz%20g%20marinoni%282%29%20-%20formatado.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2015. 6 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em: 21 jan. 2015.

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411

Logo, a tutela inibitória se diferencia da ressarcitória, pois esta é utilizada

quando ocorreu o dano. Nos casos que envolvem os veículos de comunicação, por

exemplo, estes já teriam publicado a matéria sem as devidas providências

incorrendo em algum erro. Consequentemente, a pessoa que tiver sua imagem

exposta em uma publicação ou for citada indevidamente em alguma notícia,

sofrendo algum tipo de dano, pode ingressar com ação por dano material como

modo de ressarcir o prejuízo e também pedir o direito de resposta. Trata-se do uso

da tutela reparatória, que tem por fundamento o ressarcimento por parte de quem

sofreu o dano.

Luiz Guilherme Marinoni (2006, p. 36) afirma ainda que a tutela inibitória visa

a prevenir o ilícito, culminando por apresentar-se, assim, como uma tutela anterior à

sua prática. Quando se pensa em tutela inibitória, imagina-se uma tutela que tem por

fim impedir a prática, a continuação ou a repetição do ilícito, e não uma tutela

dirigida à reparação do dano. Ou seja, a questão gera no fato de que seria possível

o Judiciário atuar antes da publicação da notícia, proibindo sua veiculação por parte

da imprensa.

O entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça é o de que a

aplicação da tutela inibitória contra o exercício do jornalismo violaria o direto à

liberdade de imprensa e à informação. A Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso

que envolveu o jornalista Juca Kfouri e o Deputado Estadual Fernando Capez7,

indeferiu o recurso promovido pelo deputado, o qual pleiteava que o jornalista

ficasse impedido de publicar novos textos que pudessem ofender sua imagem, sob

o argumento de que o deferimento da tutela inibitória neste caso acarretaria em um

risco de “dano excessivo e desproporcional à imprensa em geral e à própria

sociedade, capaz de abalar as bases constitucionais sob as quais construímos

nosso regime democrático.”8 A Ministra concluiu que o dano que a tutela inibitória

causaria à classe dos jornalistas, aos meios de comunicação e à sociedade em geral

era substancialmente maior do que aquele a que estaria potencialmente sujeito o

7 Caso julgado pelo Recurso Especial nº 1.388.994 - SP (2013/0110749-5), que discutia o cabimento da tutela inibitória para proteção de direitos da personalidade, especificamente diante da alegação de ameaça de ofensa à honra subjetiva em matérias de cunho jornalístico. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/tutela-inibitoria-fernando-capez-juca.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2015. 8 Tutela inibitória contra jornalista viola direito à informação. Revista Consultor Jurídico. 25 de outubro de 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-out-25/tutela-inibitoria-jornalista-negada-violar-direito-informacao>. Acesso em: 21 jan. 2015.

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412

deputado. Não justificaria, no caso em questão, que o jornalista fosse restringido na

sua liberdade de expressão, já que não há indícios de risco de ofensas futuras.

Assim, a tutela inibitória poderia ser aplicada em situações específicas,

quando houvesse iminência de ocorrer um dano. Por exemplo, quando o profissional

fosse reincidente, ou seja, teria que provar que o veículo sempre apresenta matéria

de cunho negativo ou difamatório quando faz referência a determinada pessoa.

A partir do estudo sobre tutela reparatória e inibitória, passa-se a questão

sobre a colisão dos direitos fundamentais. No entendimento de Débora Gozzo

(2012, p. 69), se a informação divulgada denigre a honra ou a imagem de alguém,

viola o seu direito à intimidade ou à vida privada, será considerada um abuso no

direito de informar, extrapolando o seu direito fundamental consistente na liberdade

de informação. Para a autora, as violações do direito à imagem podem ser tuteladas

compreendendo providências de ordem tanto administrativa, penal, quanto na esfera

civil, na qual se pode aplicar a penalidade de indenização, fixando-a em

consonância com a notoriedade da pessoa e o seu ilícito. (GOZZO, 2012, p. 68).

Luís Roberto Barroso (2003) sustenta que a divulgação de uma notícia falsa,

em detrimento do direito da personalidade de outrem, não constitui direito

fundamental do emissor, já que os veículos de comunicação têm o dever de apurar,

com boa-fé e dentro dos critérios da razoabilidade, a correção do fato a qual darão

publicidade.

Nesta compreensão, pondera-se o direito à liberdade de expressão na

proporção que é essencial para todos. Se a notícia a ser publicada for de relevância

não haveria empecilho para tal, mas se não for de interesse público, não há motivos

para expor o indivíduo. Desta forma, a questão é analisar o que é interesse público e

o que não é. Para Cláudio Luiz Bueno de Godoy (2008, p. 60), torna-se necessário

verificar se, no caso concreto, o sacrifício da honra, privacidade ou imagem de

alguém se impõe diante de determinada informação que se faça revestida de

interesse social, coletivo, sem o que não se justifica a invasão da esfera íntima do

indivíduo.

Outro critério a ser analisado está relacionado à veracidade dos fatos

alegados. Para Cláudio Godoy (2008, p. 60), a notícia veiculada com o fim precípuo

de causar escândalo e dele se tirar proveito, nada mais é senão do que um

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413

verdadeiro abuso do direito de informar. Nesta linha de raciocínio, o entendimento

do STF é que a verdade do que é publicado é condição indispensável para a

configuração do interesse público da informação, o que evitaria a responsabilização

civil de quem divulga a matéria. Assim, conclui-se que a verdade da informação

noticiada é condição essencial para que prepondere o direito de informação.

Para Luiz Grandinetti Castanho de Carvalho (1999, p. 92), a resolução do

conflito entre a informação jornalística e os direitos da personalidade está no

interesse público, que deve presidir a composição da controvérsia. Se a reportagem

busca atender ao interesse público, e, razoavelmente, viola os direitos da

personalidade, prevalece, em tese, aquele e não estes. Deste modo, ressalta-se que

a veracidade da informação deve ser analisada em conjunto com o interesse

público.

Um aspecto preponderante diz respeito ao princípio da proporcionalidade, que

trata sobre a ponderação que deve haver entre os direitos tutelados. Nas palavras

de Alexandre Guimarães Gavião Pinto, a liberdade de expressão não pode ser

considerada um direito absoluto, havendo restrição e mitigação à liberdade de

imprensa, com vistas a preservar outros direitos individuais tão relevantes, como os

direitos da personalidade.9

Para concluir o raciocínio de proporcionalidade, Débora Gozzo (2012, p. 71)

salienta a importância de analisar o caso concreto, a fim de constatar se o sacrifício

dos direitos da personalidade se impõe diante de determinada informação que, de

alguma forma, se faça revestida de interesse social, coletivo, sem o qual não se

justifica a invasão da esfera íntima do indivíduo.

Diante do exposto, pode-se concluir que o melhor modo de resolver o conflito

é a análise do caso concreto, pois só avaliando cada situação fática será possível

encontrar a melhor forma de solucionar a colisão dos direitos. Há situações em que

determinado tema em pauta é de relevância para a população e, por isso, deve ser

repassado. Mas em outros, percebe-se que foi violado o direito, que a reportagem foi

realizada de maneira sensacionalista.

9 PINTO, Alexandre Guimarães Gavião. Dois Pesos e Uma Medida: conflito entre liberdade de expressão e direito à privacidade só pode ser resolvido pelo princípio da proporcionalidade. Revista Jurídica. Edição 105. Ano 2015. Disponível em: <http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/36/dois-pesos-e-uma-medida-conflito-entre-liberdade-de-141577-1.asp>. Acesso em: 21 jan. 2015.

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414

Assim, para saber qual posicionamento tem sido adotado pelos tribunais, a

seguir serão observadas algumas decisões acerca da colisão entre direito à

liberdade de imprensa e o direito à honra.

4.3 O CONFLITO NA JURISPRUDÊNCIA: ANÁLISE DE CASOS

Para verificar qual direito preponderar, o Poder Judiciário deve considerar

cada caso concreto, levando em conta o interesse prevalecente e, se efetivamente,

existe algum direito a ser reparado. O Superior Tribunal de Justiça tem-se valido da

técnica de ponderação de princípios para solucionar conflitos, a fim de que haja

limites à liberdade de informar, como forma de salvaguardar quem foi lesado. O que

norteia a aplicação desses princípios e a escolha de um ou outro direito é o

interesse da informação. Se uma notícia ou reportagem sobre determinada pessoa

veicula um dado que, de fato, interessa à coletividade, a balança tende para a

liberdade de imprensa.10 Portanto, passa-se ao exame de algumas decisões dos

tribunais a respeito do tema.

O primeiro caso estudado foi o Recurso Especial nº 595.600 - SC -

2003/0177033-2,11 que está relacionado a questão se a pessoa que realizou topless

em uma praia, ou seja, em um lugar público, teria o direito de imagem resguardado.

No caso em tela, a autora ajuizou ação de indenização por danos materiais e morais

contra Zero Hora Editora Jornalística S.A. tendo em vista a publicação desautorizada

dela, fotografada na praia, em um momento de lazer, fazendo topless.

Os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça entenderam,

por unanimidade, não conhecer o recurso, já que a autora, por sua vontade livre e

consciente, realizou o ato em local público, expondo-se à apreciação das pessoas

que ali se faziam presentes, sendo que a fotografia não foi obtida em propriedade

particular ou em ambiente privado.

10 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. O conflito entre liberdade de informação e proteção da personalidade na visão do STJ. 19 julho 2009. Disponível em:<http://stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=92895>. Acesso em: 25 jan. 2015. 11 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Min. Rel. Cesar Asfor Rocha, j. 18.03.2004. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19398367/recurso-especial-resp-595600-sc-2003-0177033-2/inteiro-teor-19398368>. Acesso em: 20 jan. 2015.

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415

Segundo a decisão, a partir do momento em que a autora não teve objeção

alguma de que pessoas pudessem observar sua intimidade, não pode ela ir à

Justiça alegar que sua honra foi violada pelo fato de o jornal Diário Catarinense ter

publicado uma foto obtida naquele momento numa praia lotada e em pleno feriado.

O segundo julgado analisado foi o Recurso Especial nº 1.05.278 - SE -

2007/0264631-0.12 O caso também está relacionado à publicação de uma fotografia

por um veículo de comunicação sem a devida autorização. Mas, diferentemente do

caso relatado acima, neste, o Jornal CINFORM -Central de Informações Comercias

Ltda.- publicou sem a anuência da autora a fotografia de seu marido ainda nas

ferragens do ônibus envolvido em um acidente, o qual culminou na morte dele.

Segundo a autora, a fotografia, que mostrava seu marido morto e ensanguentado,

causou-lhe constrangimento e dano moral. Nas palavras do relator, o Ministro Luis

Felipe Salomão, nessa situação não restaria dúvida da preponderância do princípio

constitucional da dignidade da pessoa e do direto à inviolabilidade da honra e da

imagem frente ao suposto caráter de utilidade pública que se pretenda conferir à

publicação. Assim, como a imagem reproduzida pelo veículo de comunicação não

acrescentaria em nada ao fato ocorrido, não haveria necessidade de reproduzi-la.

No caso em tela, entendeu-se que o direito à dignidade prevaleceu sobre o direito à

liberdade de expressão.

Outro recurso analisado foi o Recurso Especial nº 1.414.004 - DF –

2013/0274641.13 Este caso se refere à questão da honra. Ricardo Feitosa Rique

ajuizou ação em face do jornal Correio Brasiliense S.A., que, de acordo com o autor,

teria publicado matéria jornalística atentatória a sua honra e a sua imagem. A

sentença foi julgada procedente e o veículo teve que pagar indenização por danos

morais além de conceder o direito de resposta, com publicação no mesmo caderno,

no mesmo dia da semana e com o mesmo destaque dado à publicação ofensiva.

Baseado na ideia de que a liberdade de informação deve sempre ser

confrontada com a utilidade e o interesse público de seu conteúdo, sendo certo que

12 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Min. Rel. Luis Felipe Salomão, j. 04.11.2010. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/17380430/recurso-especial-resp-1005278-se-2007-0264631-0/relatorio-e-voto-17862431>. Acesso em: 22 jan. 2015. 13 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Min. Rel. Nancy Andrighi, j. 18.02.2014. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24976400/recurso-especial-resp-1414004-df-2013-0274641-5-stj/inteiro-teor-24976401>. Acesso em: 20 jan. 2015.

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no particular a matéria jornalística careceu de qualquer proveito de ordem pública,

invadindo despropositadamente a intimidade do recorrido, a Terceira Turma, por

unanimidade, negou provimento ao recurso, prevalecendo o direito à honra do

cidadão.

Outro recurso analisado foi o Recurso Especial nº 984.803 – ES –

2007/0209936-1.14 De relatório da Ministra Nancy Andrighi, o caso trata da

responsabilidade civil por parte das empresas de comunicação ao repassarem

dados falsos ou distorcidos ou inexistência de interesse público ao divulgar

determinada informação. Hélio de Oliveira Dorea ajuizou ação de reparação por

danos morais e materiais contra a empresa Globo Comunicações e Participações

S.A. em razão de reportagem veiculada no programa Fantástico sobre suposta

corrupção na Prefeitura da cidade de São Gonçalo (RJ). A reportagem realizada

pela empresa Globo indicou o autor como suspeito de integrar organização

criminosa. Para sustentar tal afirmação, levou ao ar prova testemunhal, depoimento

de um Procurador da República, além de a reportagem tentar ouvir o requerido,

colocando no ar a palavra do advogado. Desta forma, os Ministros entenderam que

a empresa atuou com a diligência devida, não extrapolando os limites impostos à

liberdade de informação. A suspeita que recaía sobre o recorrido, de fato, existia e

era, à época, fidedigna. Na compreensão dos Ministros, se hoje já não pesam sobre

o recorrido essas suspeitas, isso não faz com que o passado se altere. Neste caso,

preponderou a liberdade de imprensa.

Por último, a Apelação Cível nº 7005898755315, que apresenta o caso de

Rodrigo Dias Afonso, o qual ajuizou demanda indenizatória contra o Jornal Minuano,

do Rio Grande do Sul. Pela argumentação do magistrado, foi possível observar que

não houve, por parte da reportagem realizada pela empresa, a intenção de atingir a

honra ou difundir informação falsa e mentirosa sobre o autor. Um dos

embasamentos utilizados no voto foi o de que à denúncia feita pela reportagem não

14 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Min. Rel. Des. Nancy Andrighi, j. 26.05.2009. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6061749/recurso-especial-resp-984803-es-2007-0209936-1/relatorio-e-voto-12194116>. Acesso em: 21 jan. 2015. 15 BRASIL, Décima Câmara Cível, Rel. Túlio de Oliveira Martins, j. 29.05.2014. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/124114829/apelacao-civel-ac-70058987553-rs/inteiro-teor-124114839>. Acesso em: 23 jan. 2015.

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417

decorreu de um ato ilícito, mas do exercício regular da atividade jornalística,

instrumentalizada através do direito à liberdade de comunicação e expressão.

Desta forma, os Desembargadores da Décima Câmara Cível do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio Grande do Sul votaram, por unanimidade, em negar

provimento à apelação cível, concluindo que a ré possui o direito de emitir suas

opiniões, contudo está limitada pelo respeito à imagem das pessoas físicas ou

jurídicas em relação as quais se manifesta. Prevaleceu no caso o direito a liberdade

de expressão.

Da apreciação dos julgados, pode-se concluir que os Ministros sempre

ressaltam que a liberdade de informação deve estar relacionada ao dever de

veracidade e da importância que o fato noticiado tem para a população, visto que

dados divulgados equivocadamente influenciam na opinião pública, podendo

acarretar prejuízos a quem teve seu nome relacionado a um acontecimento, por

exemplo. Destarte, destaca-se que a notícia publicada sempre deve considerar o

interesse público e a relevância do dado divulgado para que não infrinja na vida

privada.

Marcelo Novelino (2008, p. 297-298) elenca alguns elementos para que ocorra

a preponderância do direito de informação. Segundo o autor, a divulgação de uma

informação deve ser admitida quando concorrerem os seguintes fatores: a licitude da

informação; a forma adequada de transmissão e a contribuição para o debate de

interesse geral ou relevância para a formação da opinião pública, eixo em torno do

qual gira o direito à informação. Evidencia-se ainda que a divulgação da notícia deve

ser de interesse público, não apenas de ‘interesse do público’.

Assim, a partir da leitura do relatório e dos votos dos Ministros, conclui-se que

não há uma solução pré-definida para casos de colisão entre os direitos à liberdade

de expressão e à honra. A ponderação vai depender da análise dos fatos concretos,

uma vez que ambos os direitos estão no mesmo patamar de proteção constitucional.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou abordar a colisão entre os direitos fundamentais à

liberdade de expressão e informação e o direito à honra e à privacidade. A

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Constituição Federal Brasileira de 1988 assegura ambos os direitos, por isso não há

prevalência de um sobre o outro. O que deve ocorrer é a observância do caso real

para se verificar qual direito sopesou.

O exame dos casos concretos revelou critérios utilizados pela jurisprudência

para solucionar o conflito, dentre eles, a veracidade da notícia e o interesse público.

Da leitura deles, pode-se perceber que o interesse público é um dos principais

pontos a ser observados para a ponderação dos direitos, sendo dever dos jornalistas

publicarem notícias de interesse coletivo.

Outro ponto em debate está relacionado à veracidade das matérias

veiculadas. Uma lição retirada dos julgados analisados é a de que a notícia, além de

ter relevância pública, também deve ser verdadeira e correta. Reportagens

produzidas sem os cuidados necessários tornam-se propícias a erros e,

consequentemente, geram direito de resposta e de reparação por danos.

É certo que os meios de comunicação, ao publicarem informação falsa ou

com conteúdo deturpado, devem ser responsabilizados por ocasionarem dano à

imagem de alguém, porquanto a pessoa tem o direito de ter sua privacidade

resguardada. Existe o direito de resposta, porém com a rapidez com que uma notícia

é repassada na atualidade, muitas vezes este direito perde sua função de corrigir o

erro. O público pode ter assistido ou lido a notícia “errada”, mas não ter visto a

correção dela e, até que seja feita a retratação, a honra ou a dignidade do ser

humano já podem ter sido violadas. Talvez, um instrumento voltado à preservação

da honra e da imagem, coibindo condutas reincidentes de abuso na liberdade de

imprensa, seja o uso de tutela inibitória, de modo que ela possa impedir a

continuação ou a repetição do ato ilícito.

Assim, os meios de comunicação se eximem de culpa quando buscam fontes

fidedignas, exercem atividade investigativa, ouvem as partes interessadas, entre

outros.

Os Tribunais utilizam-se da ponderação para solucionar os conflitos, de modo

a impor restrições à liberdade de informar e também como forma de resguardar

quem foi lesado. O direito à informação não elimina as garantias individuais,

devendo atentar-se ao dever de veracidade, ao qual estão vinculados os órgãos de

imprensa, pois a falsidade dos dados divulgados manipula em vez de formar a

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opinião pública, bem como ao interesse público, pois nem toda informação

verdadeira é relevante para o convívio em sociedade.

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DIREITO DESPORTIVO BRASILEIRO E SEUS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

BRAZILIAN SPORTS LAW AND IT IS CONSTITUTIONAL PRINCIPLES

Weslley Fernando do Nascimento16

Maria da Glória Colucci17

SUMÁRIO

Resumo 1 Introdução 2 Direito Desportivo. 2.1 Conceito 2.1.1 Antecedentes da Legislação Desportiva 2.1.2 Correlação com Ramos do Direito Positivo. 3 Princípios do Direito Desportivo 3.1 Conceito 3.2 Princípios Constitucionais 4 Considerações Finais. Referências

RESUMO

O presente texto objetiva apresentar aspectos do Direito Desportivo, abordando a importância do regime jurídico com análise das legislações antecedentes, a correlação com os diversificados ramos do Direito Positivo, demonstrando de tal forma os princípios quer fundamentam o Direito Desportivo. Pretende-se, portanto, demonstrar a importância do Direito Desportivo na tutela de direito dos praticantes de desportos em todas suas manifestações, elencando-se os princípios constitucionais que visam a uniformização da matéria para análise dos casos concretos, observado as peculiaridades das diferentes regiões. Palavras-chave: direito desportivo, legislação desportiva, princípios constitucionais do direito desportivo.

ABSTRACT

This article has as objective to introduce aspects of the Sports Law, approaching the importance of the legal regime with analysis of the previous laws, the interconnection with the different fields of the Positive Law, showing in this way the principles that substantiate the Sports Law. Therefore, it was intended to demonstrate the importance of the Sports Law, under the scope of its practitioners’ rights in all of its manifestations, pointing the constitutional principles that aim at the regulation of the matter for analysis of the real cases, observing the peculiarities of each region. Keywords: Sports Rights, Sports Law, constitutional principles of the sports law.

16 Acadêmico de Direito do Unicuritiba e integrante do Grupo de Pesquisa em Biodireito e Bioética – Jus Vitae. [email protected] 17 Mestre em Direito Público (UFPR); Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); Titular de Teoria Geral do Direito (Unicuritiba), Orientadora do Grupo de Pesquisa em Biodireito e Bioética – Jus Vitae do Unicuritiba.

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1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa será desenvolvida analisando a pertinência do Direito

Desportivo no desenvolvimento das práticas desportivas. Investigando, assim, de

qual forma e até que ponto o Direito Desportivo colabora com o desenvolvimento

dos seus praticantes.

Apresentar-se-á os antecedentes das legislações desportivas no Brasil,

aprofundando-se nas evoluções que ocorreram com o passar dos anos, até à

aplicação da legislação contemporânea do Direito Desportivo.

Constatar-se-á a correlação dos diferentes ramos do Direito Desportivo, haja

vista que este se complementa por meio de outras fontes do Direito.

Neste sentido, proporcionar-se-á os princípios constitucionais que

fundamentam o Direito Desportivo, visando exemplificar a necessidade dos

princípios na promoção da uniformização do ordenamento brasileiro, estabelecendo

inclusive, mesmo que de forma breve a as funções dos princípios.

Por fim, explorar-se-á a sinergia dos regramentos do Direito Desportivo, seus

princípios na ampliação e garantia do desporto.

Portanto, a pesquisa tem como objetivo, demonstrar abrangência do tema

abordado e suas principais características e sua aplicação atualmente.

2 DIREITO DESPORTIVO

2.1 CONCEITO

Em razão dos inevitáveis reflexos da prática desportiva sobre a vida dos

cidadãos e sua profissionalização a cada dia, cabe ao Direito Desportivo não só a

tutela do acesso ao esporte, mas a prevenção e repressão dos conflitos dele

resultantes.

Neste sentido, a começar da definição de Direito, do qual derivam diversas

particularizações (ramos), poder-se-á chegar ao Direito Desportivo.

Quanto ao Direito, conceitua Vicente Ráo:

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É o direito um sistema de disciplina social fundado na natureza humana que, estabelecendo nas relações entre os homens uma proporção de reciprocidade nos poderes e deveres que lhes atribui, regula as condições existenciais dos indivíduos e dos grupos sociais e, em conseqüência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público.18

Roberto Lyra Filho, afirma que o Direito “[...] se enriquece nos movimentos de

libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e

opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão novas

conquistas.”19 Ainda, segundo Norberto Bobbio, o direito pode ser:

Entendido como um conjunto de discursos, de comunicações linguísticas; discursos dos legisladores (as leis e os códigos), discursos dos juízes (as sentenças), discursos das pessoas privadas (os testamentos e os contratos realizados).20

Para Emannuel Kant o direito “[...] é o conjunto das condições segundo as

quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros, de acordo com

uma lei geral de liberdade”.21 Já Rudolf Von Ihering, define o direito como “[...] a

soma das condições de existência social, no seu amplo sentido, assegurada pelo

Estado através da coação”.22

O Direito Desportivo não é diferente, atuando com a união de normas e

princípios que regulam a prática desportiva, sendo que a “[...] a normatização

sistematizada dos desportos brasileiros começou com base no Decreto – Lei nº

3199 de 1941, de Getúlio Vargas e Capanema, e nos demais textos posteriormente

editados que constituíram o Conselho Nacional de Desportos.”23

Atualmente, relacionado ao desporto, destacam-se no ordenamento jurídico

brasileiro a Constituição Federal e o disposto nos artigos 5º, 6º, 24, 217

(dispositivos); os Decretos: 4.201 de 2002 (Conselho Nacional do Esporte), 4.668 de

2003 (Ministério do Esporte), 6.180 de 2007 (Incentivo ao Desporto - regulamento);

18RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 31. 19LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 86. 20 OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. Bobbio e a Filosofia dos Juristas. Porto Alegre: Fabris, 1994, p.115 21 SOUZA, Pedro Trengrouse Laignier de. Princípios de Direito Desportivo. Florianópolis, 16.mar.2011. p. 5. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/13780-13781-1-PB.pdf>. Acesso em : 16.jun.2015. 22 Ibid., p. 5. 23 VASCONCELLOS, 2011, p. 187.

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Leis: 9.615 de 1998 (Lei Pelé), 10.891 de 2004 (Bolsa Atleta), 11.438 de 2006

(Incentivo ao Desporto) e 10.671 de 2003 (Estatuto do Torcedor).

Apesar de ser uma atividade antiga no País, com início oficial em 1941,

quando foi criado o Conselho Nacional de Desporto24, esta área foi pouco explorada,

tendo enfoque jurídico a partir da Constituição da República de 1988, quando

reconheceu no art. 217, “[...] a Justiça Desportiva como órgão competente para

apreciar e julgar as demandas decorrentes dos conflitos na seara esportiva e criou

os pilares do reconhecimento do Direito Desportivo como um ramo de Direito.”25

Para Valed Perry, “[...] o Direito Desportivo é o complexo de normas e regras

que regem o desporto no Mundo inteiro e cuja inobservância pode acarretar a

marginalização total de uma Associação Nacional do concerto mundial esportivo.”26

Já o professor Eduardo Viana, define o Direito Desportivo como “[...] conjunto

de normas escritas ou consuetudinárias que regulam a organização e a prática do

desporto e, em geral, de quantas questões jurídicas situam a existência do desporto

como fenômeno da vida social.”27

Diante das diversas normas e princípios específicos do Direito Desportivo, o

mesmo destacou-se no ramo das matérias autônomas, visto seus pressupostos

estabelecidos doutrinariamente, pelo meio jurisprudencial e, principalmente, na

demonstração de diversos princípios e normas que são utilizadas para este tema.

Ensina Yan Meirelles:

Outro fator que demonstra a autonomia do Direito Esportivo é a existência de ordenamento jurídico próprio, de natureza administrativa, mas reconhecido constitucionalmente. Regido por princípios e normas específicas, consolidadas através do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).28

Caracteriza-se desta forma, o Direito, bem como o Direito Desportivo como

fato social. Como ensina Pedro Souza:

24 BARAN, Katia. Uma área a ser explorada. Caderno Justiça & Direito: Gazeta do Povo. 2013 Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-direito/uma-area-a-ser-explorada-e9nmk81ysrvm w00zqulc2bia6> Acesso 30.out.2014. 25 MEIRELLES, Yan. Direito Desportivo: Ramo Autônomo. JusBrasil, 2011. Disponível em: <http://por-leitores.jusbrasil.com.br/noticias/2543749/direito-desportivo-ramo-autonomo>. Acesso em: 31.out.2014 26 PERRY, Valed. Direito Desportivo: Temas. Rio de Janeiro: CBF, 1981, p.81. 27 SILVA, Eduardo Augusto Viana da. O Autoritarismo, o Casuísmo e as Inconstitucionalidades na Legislação Desportiva Brasileira. Rio de Janeiro, Ed. 4º Centenário, 1997. p.37. 28MEIRELLES, 2011.

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As fontes históricas não nos parecem, em si mesmas, fontes de direito, apenas condicionantes do fato social que é, este sim, indubitavelmente, fonte de direito. A norma, por sua vez, é o resultado do fato social, é a forma pela qual ele se traduz no mundo jurídico.29

A autonomia e os princípios próprios do Direito Desportivo foram atribuídos

pela Constituição Federal de 1988, no entanto, existe no Direito Desportivo

correlação com outros ramos do Direito Positivo.

2.1.1 Antecedentes da Legislação Brasileira

Estudos datam o surgimento do deporto no Brasil em meados da década de

30, época onde imperava a desorganização nos esportes brasileiros, principalmente,

devido a conflitos quanto às deliberações em participações internacionais, levando o

Governo a promover medidas que buscassem solucionar estes tipos de impasses.

Relata Valed Perry:

Fora de tais normas legais, o deporto regia-se pela sumária legislação das entidades dos diversos ramos desportivos, com obediência relativa aos preceitos internacionais, sem a menor interferência do Governo, em qualquer sentido, com organização precária, circunstâncias que mais põem em relevo o esforço e o sacrifício dos dirigentes da época, plantando as sementes que frutificariam na potência esportiva em que se torna, aos poucos, o nosso país. Tal desorganização e falta de preceitos legais estruturais do desporto ocasionaram, então, cisões que tantos malefícios causaram, sobretudo no futebol, onde se degladiaram entidades nacionais e entidades estaduais de direção, num desgaste de valores de esforços e de trabalho, umas à margem da filiação internacional, outras desfrutando dela, mas desfalcadas pela luta.30

Os conflitos ocorridos com o profissionalismo do desporto obrigaram a

normatização destes, assim, a primeira lei que regulamentou o esporte no Brasil foi

publicada em 1941, época de Getúlio Vargas no poder, um modelo arcaico copiado

do formato nazista existente na época. Carlos Miguel Castex Aidar afirma que:

29 SOUZA, 2011, p. 12. 30 TUBINO, Manoel José Gomes. 500 anos de legislação esportiva brasileira. Rio de Janeiro: Shape, 2002. p.25.

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Até o ano de 1941 não existia nenhuma legislação que regulamentasse o desporto, absolutamente nada, apenas um apanhado de pessoas que praticavam o esporte, mas não havia lei nenhuma que regulamentasse sequer a atividade esportiva, quanto mais a atividade administrativa ou a atividade jurídica da modalidade esportiva.31

A primeira legislação esportiva primava pelas normas gerais que

regulamentariam os esportes, promovendo de certo modo sua burocratização, o

Decreto-lei nº 3.199 de 194132 em seu artigo 1º criou o Conselho Nacional de

Desportos (CND), sendo este o órgão que passaria a reger as atividades como um

todo.

Alguns instrumentos legais foram desenvolvidos pela deliberação do

Conselho Nacional de Desporto e explicam o desenvolvimento e a preparação do

Estado para normatizar o esporte no Brasil, tais como: Decreto-lei nº 526 de 1938,

Decreto-lei nº 1.056 de 1939, Decreto-lei nº 1.212 de 1939, Decreto-lei nº 10.409 de

1939 e o Decreto-lei nº 11.119 de 1940.

No ano de 1975 foi promulgada a Lei nº 6.251 que representava a postura do

Estado quanto às atividades desportivas, como ensina Álvaro Melo Filho:

Outrossim, acresça-se que a Lei nº 6.251, condensava no CND funções legislativas, executivas e judicantes, tomando-o o órgão que fazia a norma, exercia atos de fiscalização e controle e julgava matérias desportivas, reunindo em um só órgão todas as funções entregues na República Federativa do Brasil a três poderes distintos e inconfundíveis.33

A Lei nº 6.251 de 1975, veio para promover a modernização necessária ao

desporto brasileiro à época, promovendo sua organização mesmo com a tutela do

Estado nestes processos de modernização, neste sentido aduz Carlos Aidar:

Essa lei distingue as diversas modalidades esportivas e as classifica como desporto comunitário, estudantil, militar e classista. O comunitário como sendo praticado por entidades esportivas, o desporto como nós conhecemos e já praticados em termos profissionais, o estudantil como

31 AIDAR, Carlos Miguel Castex. Direito Desportivo. Campinas: Jurídica, 2000. p. 18. 32 Decreto-Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del3199.htm> 33 MELO FILHO, Álvaro. Lei Pelé: comentários à Lei nº 9.615/98. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1998. p.30

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desporto de aprendizagem e lazer; o militar praticado pelas forças armadas; e por fim, o classista praticado no âmbito das empresas.34

Em 1985, com a Nova República, o Brasil desenvolveu novos conceitos de

esportes, baseado em diferentes países, sendo a reformulação iniciativa do

Ministério de Educação e Cultura (MEC), por meio do Decreto nº 91.452 de 1985,

apresentando a Comissão de Reformulação do Esporte Brasileiro.

O Conselho Nacional dos Desportos visando todas as reformulações

existentes e buscando aperfeiçoamento, promoveu alterações que viriam favorecer a

constitucionalização do desporto na Constituição Federal de 1988.

Em 1993, foi sancionada a Lei nº 8.762 e 1993, também chamada de Lei Zico,

explorando-se, principalmente, o indivíduo praticante das atividades desportivas,

contrariando legislações anteriores que buscavam tão somente as imposições

burocráticas constantes aos fatos desportivos, a respectiva Lei dava cumprimento ao

previsto no artigo 217 da Constituição Federal.

A Lei Zico, vigorou até à criação da Lei nº 9.615 de 1998, denominada de Lei

Pelé, destacando Carlos Aidar que:

É evidente que a Lei nº 9.615/1998 (Lei Pelé) não poderia ser uma mudança radical da Lei nº 8.672/1993, pois ambas fazem parte do mesmo processo de transformação iniciado em 1985 e que ganhou força com a Constituição Federal de 1988. Desse modo, uma grande parte da Lei Zico foi repetida na Lei Pelé, principalmente a parte inicial, que tratou dos conceitos, princípios e definições de referência. Por outro lado, a nova lei do esporte brasileiro diferenciou-se com algumas evoluções extremamente relevantes em relação à lei anterior.35

A ideia central desta lei é a regulação jurídica envolvendo a prática desportiva

e participação do Estado. Com a presente Lei, foram ofertadas maiores garantias

aos atletas profissionais e semi-profissionais quanto a suas obrigações.

2.1.2 Correlação com ramos do direito positivo

34 AIDAR, op. cit., p. 15. 35AIDAR. 2000, p. 25.

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O Direito Positivo tem como característica a correlação entre seus diversos

ramos, inclusive, Hans Kelsen, em alusão aos procedimentos de criação do Direito,

afirma que “[...] todas as formas de produção jurídica se apóiam na vontade do

Estado, inclusive os negócios jurídicos firmados entre particulares, que apenas

realizam a individualização de uma norma geral.”36

É imperiosa uma reflexão a respeito da disposição do Direito Desportivo no

ordenamento jurídico. Reconhece-se como maior e mais antiga, a divisão positivista

do Direito em dois subsistemas, sendo eles o Direito Público e o Direito Privado, em

relação ao seu critério de utilidade.37

Grande parte doutrinária entende a distinção entre os ramos positivados do

Direito, uma vez que “[...] a generalidade do interesse caracterizaria uma relação de

Direito Público, enquanto que a particularidade do interesse caracterizaria uma

relação de Direito Privado.”38

Enquanto no Direito Público encontra-se como uma das partes o Estado, o

qual posiciona-se em nível diverso dos demais, no Direito Privado as partes

encontram-se em um mesmo nível. Caracterizando-se como principais distinções

entre ambos os ramos, o objeto e à forma.

Uma vez feita a distinção entre Direito Público e Direito Privado, pode-se

situar a qual dos binômios o Direito Desportivo se adequaria, analisando o mesmo

como “[...] direito próprio na vida e nas relações do desporto e ainda que o Estado

não participe da sua elaboração o aceita e reconhece.”39

Ensina Eduardo Viana:

O direito desportivo se apresenta em sentido amplo e em sentido restrito. Em sentido amplo acompanha a formação do Direito Civil, do Direito Penal, do Direito Administrativo, do Direito do Trabalho, do Direito Financeiro, do Direito Comercial, etc. Já em sentido restrito é a soma das leis internas, criadas e formalizadas dentro e por inspiração do desporto.40

Assim, mesmo nos desportos de rendimento, onde existe o patrocínio de

empresas públicas e incentivos oriundos do Poder Público, deve-se associar o

36NADER, Paulo, Introdução ao Estudo do Direito, 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.115. 37 REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito: o Direito Público diria respeito às coisas do Estado, enquanto o Direito Privado seria relativo aos interesses individuais. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 341. 38 SOUZA, 2011, p. 15. 39 SOUZA, loc. cit. 40 SILVA, 1997, p.37.

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Direito Desportivo ao Direito Privado, pois a atividade do Poder Público tem visão de

coordenação, enquanto que no Direito Privado o conjunto de normas derivaria dos

particulares, sendo direcionado aos interessados, “[...] até mesmo porque suas

normas transcendem o próprio Estado projetando-se na esfera internacional, onde

atingem apenas aos particulares envolvidos com o Desporto.”41

É inevitável a correlação do Direito Desportivo com os demais ramos do

Direito, tendo em vista, por exemplo, a relação entre um jogador profissional e o

clube pelo qual exerce sua profissão é uma relação trabalhista e, como tal, sujeita à

legislação trabalhista do Estado em que se dá esta relação, como ensina Katia

Baran:

Apesar da atuação na Justiça Desportiva ser o ramo mais conhecido, há outras áreas do direito desportivo que vêm despontando como novos nichos de mercado. É o caso das relações trabalhistas no mundo esportivo, que envolvem desde questões contratuais de atletas até o apoio na área do marketing esportivo.42

Na esfera do Direito Civil destacam-se os contratos celebrados entre as

entidades desportivas com a mídia e os patrocinadores.

Do mesmo modo, seguem as obrigações relacionadas aos tributos das

entidades desportivas que estão vinculadas ao Direito Tributário.

Além das entidades desportivas, o Direito Desportivo alcança seus

espectadores, neste caso, torcedores, com o Direito do Consumidor, visto que os

torcedores equiparam-se ao consumidor, aplicando-se inclusive o Código de Defesa

do Consumidor subsidiariamente nas relações, lembra-se, é claro, que os torcedores

têm ao seu lado o Estatuto do Torcedor43. Ensina Pedro Souza:

Importante notar que esta inter-relação dá-se apenas onde as relações desportivas projetam-se para além da esfera do desporto, sendo inadmissível a interferência estatal na elaboração e aplicação do Direito Desportivo enquanto ramo autônomo do Direito, cujas normas originam-se em relações que transcendem o próprio Estado, repousam na essência das relações humanas e são mais antigas do que qualquer Estado que conhecemos nos dias de hoje.44

41 SOUZA, 2011, p. 15. 42 BARAN, 2013, p. 09. 43 Estatuto do Torcedor. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.671.htm>. Acesso em: 08.nov.2014. 44 SOUZA, 2011, p. 16.

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Com as diversas áreas de atuação, evidencia-se o quão significativo é o

aspecto jurídico correspondente ao desporto e devido a este fato, muito se repercute

quanto à criação de corpos exclusivos para o Direito Desportivo, um deles é a

criação de um Legislativo, como ensina Meirelles:

Paralelo à existência de correntes doutrinárias contrárias que justificam como ineficaz a criação de um corpo legislativo específico que discorra exclusivamente sobre o desporto, entendemos de forma diversa. Isso porque, a evolução social do desporto, as relações consectárias com os demais ramos jurídicos e a eminente necessidade de profissionalização das relações travadas nesse campo demonstram quanto é essencial à diferenciação autônoma dessa matéria.45

Atualmente, em razão do evidente crescimento das atividades desportivas,

bem como a constante diversidade social e grandes transformações nesta área, é

constante o aperfeiçoamento dos profissionais da área jurídica, visando o melhor

atendimento para aqueles que necessitam da Justiça Desportiva, até porque, “[...] às

vezes o advogado aventura na área sem conhecimento suficiente e acaba

ingressando na Justiça Comum.”46

Segundo o advogado desportista Domingos Moro, “[...] a função do advogado

é dar condições de jogo ao atleta e, quando você consegue isso, e coincidentemente

o atleta resolve a partida, é como se você tivesse entrado em campo.”47

Assim, o Direito Desportivo compreende a realidade de sua sociedade, bem

como suas especificidades, sendo muitas relações uniformizadas por meio dos

princípios presentes junto ao Direito Desportivo.

3 PRINCÍPIOS DO DIREITO DESPORTIVO

45 MEIRELLES, 2011. 46 QUADROS, Alexandre. Uma área a ser explorada. Caderno Justiça & Direito: Gazeta do Povo, Curitiba, 6.jun.2013. Disponível em: < http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-direito/uma-area-a-ser-exploradae9nmk 81ysrvmw00zqulc2bia6 > Acesso 30.out.2014 47 MORO, Domingos. Uma área a ser explorada. Caderno Justiça & Direito: Gazeta do Povo, Curitiba, 6.jun.2013. Disponível em: < http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-direito/uma-area-a-ser-exploradae9nmk81ysrv m w00zqulc2bia6 > Acesso 30.out.2014.

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3.1 CONCEITO

Inúmeros são os princípios envolvidos no ordenamento jurídico brasileiro,

sendo que alguns são comuns entre os diversificados ramos do Direito Positivo.

Os princípios funcionam como fundamentos para origem, interpretação e

aplicação do Direito, apresentando funções distintas quanto à sua aplicação.

Conceitua Pedro Souza:

Atualmente os Princípios de Direito encontram-se presentes no Ordenamento Jurídico de forma marcante, positivados ou não. Servem de mecanismo integrador e norteador da interpretação da norma, orienta a aplicação do Direito em todas as fases do processo e representam as premissas e garantias que servem de alicerce para todo o Ordenamento.48

A cerca das funções desempenhadas pelos princípios do Direito, destaca-se a

função informadora, normativa e interpretativa, conforme exemplifica Sergio Pinto

Martins:

A função informadora serve de inspiração ao legislador e de fundamento para as normas jurídicas. A função normativa atua como uma fonte supletiva, nas lacunas ou omissões da lei. A função interpretativa serve de critério orientador para os interpretes e aplicadores da lei.49

Quanto às funções dos princípios, complementa Paulo Marcos Schmitt:

Os princípios têm a função de auxiliar no processo interpretativo das regras, permitindo o adequando preenchimento de suas lacunas. As leis, normas e regulamentos em geral reconhecem, para solução de casos omissos, o uso da analogia, jurisprudência, costumes e princípios gerais de direito.50

48 SOUZA, Pedro Trengrouse Laignier de. Princípios de Direito Desportivo. Florianópolis, 16.mar.2011. p. 5. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/13780-13781-1-PB.pdf>. Acesso em : 07.nov.2015. 49 MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho – 14. Ed., São Paulo: Atlas, 2001, pág. 74. 50 SCHMITT, Paulo Marcos. Regime Jurídico e Princípios do Direito Desportivo. Curitiba, 14.abr.2007. p. 5. Disponível em: <http://www.esporte.pr.gov.br/arquivosFile/regime_ juridico.pdf>. Acesso em: 02.nov.2015.

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434

De tal modo, percebe-se que a utilização dos princípios é realizada visando a

promoção da uniformização do ordenamento, posto que estes estão presentes na

aplicação junto aos casos concretos.

3.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Ao tratar-se de Direito Desportivo, deve-se salientar que como garantia

constitucional qualquer ação que vise inibir a prática desportiva deve ser elencada

como atentado à Constituição. Inclusive, destaca-se que no mesmo capítulo

constitucional encontram-se a educação, a cultura e o deporto, o que demonstra a

interação entre os saberes propostas pelo legislador.

Assim como todo o Direito Positivo em si, o Direito Desportivo é pautado sob

princípios constitucionais, os quais baseiam a ordem jurídica podendo suas

características básicas serem relacionados da seguinte forma: “[...] a) abstração ou

generalidade; b) fundamentalidade; c) normogenética; d) proximidade da idéia de

direito e da compreensão de justiça; e) ponderação em caso de conflitos

hermenêuticos concretizantes.”51

O Princípio Federativo é o primeiro a aparecer no ordenamento, logo no artigo

primeiro da Constituição da República52, onde se define a organização político-

administrativa do Brasil, reconhecendo a autonomia dos entes que compõem a

Nação. Esse princípio refere-se à organização dos estados, inclusive, quanto às

suas competências, como leciona Gabriela Pietsch Serafim:

Acolheu-se um novo modelo de repartição de competências, abandonando-se elencos estanques, formais, exaustivos e exclusivos de competências outorgadas às entidades federadas. O quadro adotado foi definido por

51 QUARESMA, 2004 apud GUIMARAENS, Francisco de Os Princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro, Ed. Lúmen Iuris, 2001. p.389. 52 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

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competências exclusivas e privativas de cada qual das entidades, competências concorrentes e competências comuns.53

Tal organização, muito se assemelha com a divisão do desporto nacional,

onde existem ligas na seara municipal, federações correspondente ao Estado e

confederações ao se tratar da União, como exemplos, pode-se citar a Liga

Paranaense de Handebol (LHPR), Federação Paranaense de Futebol (FPF) e a

Confederação Brasileira de Futebol respectivamente, todos possuidores de

autonomia política e, também, administrativa. Analisa Pedro Souza:

A organização do desporto no Brasil está diretamente ligada ao modo de organização do próprio país e que o Princípio Federativo gravado em nossa Constituição é também um princípio observado pelo Ordenamento Jurídico-Desportivo Brasileiro.54

Salienta-se que a competência para legislar sobre o Desporto é concorrente

dos Estados, Distrito Federal e União.55

Decorrente do Princípio Federativo encontrou-se o Princípio da

Subsidiariedade cujo objetivo é, ao ver de Motebello,

[...] a busca por uma organização descentralizada de responsabilidades, orientando a que não se transfira a sociedades maiores e mais complexas aquilo que pode ser adequadamente promovido pela iniciativa dos próprios indivíduos e pelo trabalho de coletividades menores e mais afeitas às suas necessidades.56

Tal princípio serve de orientação desportiva, visto que busca proteger a

autonomia coletiva e particular, buscando que as entidades desportivas se

desenvolvam, como delineia Pedro Souza:

53SERAFIM, Gabriela Pietsch. O princípio federativo e autonomia dos entes federados. 28.fev.2014. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutr ina.trf4.jus.br/artigos/edic ao058/Gabriela_Serafin.html>. Acesso em: 15.jun.2015 54 SOUZA, 2011, p. 35. 55 Constituição Federal de 1988. Art. 24 inciso IX: Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: IX – educação, cultura, ensino e desporto. 56MONTEBELLO, Mariana, apud, GUIMARAENS, Francisco de Os Princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Iuris, 2001, p.483.

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A observância deste princípio é marcante na estrutura do Desporto no Brasil, pois cada organização desportiva, seja ela municipal, estadual ou nacional, tem a autonomia e a responsabilidade necessária à sua atuação independente, na busca por soluções para seus próprios problemas e fórmulas para seu próprio desenvolvimento.57

Um dos princípios fundamentais de todos os ramos do direito é o Princípio da

Legalidade, previsto no art. 5º, II da Constituição Federal.58.

Deste princípio é derivada a liberdade jurídico-desportiva, pois, tudo aquilo

que não é vedado expressamente pela lei, julga-se juridicamente permitido.

Preleciona Luciana Freitas Pereira:

Através deste princípio, procura-se proteger os indivíduos contra os arbítrios cometidos pelo Estado e até mesmo contra os arbítrios cometidos por outros particulares. Assim, os indivíduos têm ampla liberdade para fazerem o que quiserem, desde que não seja um ato, um comportamento ou uma atividade proibida por lei. Onde exprime a ideia geral de autonomia da vontade.59

Outros Princípios como os da Autonomia da Vontade, Livre Iniciativa e

Liberdade de Associação fortalecem o Direito Desportivo brasileiro, promovendo seu

contínuo desenvolvimento, observado que o desporto não é algo estanque e

encontra-se em constante aperfeiçoamento, neste sentido, conceitua Pedro Souza:

O Princípio da Liberdade de Associação é, pois, pedra de toque para o Direito Desportivo, mundial e pátrio. Ex vi dele é que se pode conceber a possibilidade de que pessoas interessadas em promover o desporto possam criar um clube, ou uma liga, que juntos integrarão uma Federação e que juntas constituirão a Confederação.60

Contudo, problemas são salientados ao falar-se de autonomia desportiva,

quando analisada especificamente, conforme Paulo Schmitt:

57 SOUZA, op. cit., p. 36. 58 Constituição Federal de 1988. Art. 5º, II: Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. 59 PEREIRA, Luciana Freitas. O princípio da legalidade na Constituição Federal: análise comparada dos princípios da reserva legal, legalidade ampla e legalidade estrita. Direitonet, 01.abr.2012. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7125/O-principio-da-legalidade-na-Constituicao-Federal-analise-comparada-dos-principios-da-reserva-legal-legalidade-ampla-e-legalidade-estrita>. Acesso em: 07.ago.2015. 60 SOUZA, 2011, p. 37.

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A autonomia desportiva, interpretada isoladamente, guarda congruência com preceitos perversos que preservam o interesse exclusivo e protecionista das entidades de prática e de administração do desporto (notadamente no futebol profissional) em detrimento dos interesses técnicos, de performance, de consumo, comerciais, institucionais e de todo o corpo social.61

Tais princípios, como o da Autonomia da Vontade, são reforçados em outros

artigos, como forma de resguardar expressamente os direitos assegurados à

sociedade, “[...] Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e

não-formais, como direito da cada um, observados: I – a autonomia das entidades

desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento. ”

As associações, inclusive, possuem proteção no texto constitucional quanto a

sua extinção e suspensão, que só acontece em decorrência de sentença transitada

em julgado, conforme Art. 5º, XIX da Constituição Federal.

Sobre a resolução de conflitos ligados ao desporto, preleciona Pedro Souza:

Questões de mérito puramente desportivo são de competência exclusiva das organizações do desporto, destarte, a contrario sensu, é evidente que a competência legislativa do Estado em matéria desportiva se limita às suas políticas, não sendo permitida sua interferência na organização, funcionamento e prática do desporto.62

Esgotada as vias administrativas na Justiça Desportiva, é permitida a parte o

ingresso na Justiça Comum, haja vista que a lei não exclui da apreciação do Poder

judiciário lesão ou ameaça a direito. No entanto, dificilmente a decisão apreciada na

Justiça Desportiva tem rumos diferentes quando na Justiça Comum.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente trabalho acadêmico foi a análise dos aspectos gerais

do Direito Desportivo, tema muito debatido atualmente, encontrando-se diversas

discussões e diferentes posicionamentos sobre o assunto.

61 SCHMITT, 2007. p. 08. 62 SOUZA, 2011, p. 38.

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O interesse pelo tema abordado no presente artigo acadêmico se deu em

virtude da elaboração de trabalho acadêmico apresentado como requisito parcial à

obtenção do grau de Bacharel em Direito e pela paixão pelo esporte.

O desenvolvimento lógico do presente trabalho decorreu da divisão em duas

partes.

No primeiro capítulo, foram explorados aspectos destacando a

instrumentalidade do desporto, conceituando o Direito Desportivo, relacionando-o

com os demais ramos do Direito e pesquisando os antecedentes da Legislação

brasileira.

A importância deste capítulo foi de identificar historicamente as conceituações

e as mudanças relevantes que auxiliaram no desenvolvimento das práticas

desportivas, bem como sua regulamentação para chegar ao patamar que é

encontrado atualmente, ressaltando as práticas desportivas como dever do Estado e

da União.

O segundo capítulo abordou obre os princípios constitucionais ligados ao

Direito Desportivo, promovendo a sua conceituação, além de, mesmo que de forma

breve estabelecer as funções dos princípios em nosso ordenamento.

Deste capítulo, extrai-se a relevância dos princípios para o desenvolvimento

dos fundamentos e garantias do Direito Desportivo, visando buscar o constante

aperfeiçoamento, promovendo a segurança jurídica.

Tecidas tais considerações, cumpre o presente trabalho acadêmico ser

complementação do trabalho apresentado para a obtenção do grau de Bacharel em

Direito, buscando complementar o tema apresentado com pesquisa doutrinária

pertinente.

REFERÊNCIAS

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O RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE UNIÕES POLIGÂMICAS PELO

DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO

THE RECOGNITION OF EXITENCE OF POLYGAMOUS UNIONS BY BRASILIAN

FAMILY LAW

Yasmin Ibrahim Charchich63

Francielli Morêz Gusso64

SUMÁRIO

Resumo Abstract 1 Introdução 2 Poligamia: aspectos gerais 2.1 Delimitações Conceituais Acerca da Poligamia 2.2 Aspectos Históricos Referentes ao Sistema Poligâmico 3 A Poligamia no Brasil 3.1 A Evolução do Conceito de Família no Brasil 3.2 Princípios 3.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana 3.2.2 Princípio da igualdade e respeito às diferenças 3.2.3 Princípio da liberdade 3.2.4 Princípio da afetividade 3.2.5 Princípio do pluralismo familiar 3.2.6 Princípio da função social da família 3.2.7 Princípio da mínima intervenção do estado no direito de família 3.2.8 Princípio da monogamia 3.3 Fundamentos Coibidores da Poligamia no Brasil 3.4 Concubinato, Poliamor e Poligamia Homoafetiva: Distinções à Poligamia no Direito de Família Brasileiro 3.4.1 Concubinato 3.4.2 Poliamor 3.4.3 Poligamia homoafetiva 4 Caso de Poligamia de Fato no Brasil 5 Considerações Finais Referências

RESUMO

O ordenamento jurídico brasileiro veda a constituição de uniões de cunho poligâmico. No entanto, a existência desse tipo de união matrimonial é cada vez mais comum, considerando-se a flexibilização do conceito atribuído à família contemporânea, bem como, a necessidade de organização familiar diferente do que ocorria antigamente. As uniões matrimoniais atuais não se pautam apenas com base na monogamia, tendo em vista que a sociedade contemporânea apresentou significativa evolução e se depara com situações que ultrapassam os limites previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Há, no art. 235 do Código Penal Brasileiro, vedação quanto à prática da bigamia e imputa-se crime com pena de reclusão de dois a seis anos para quem cometê-la. Ademais, no que tange à poligamia há interpretação extensiva quanto a este artigo, visto que, se há imputação de crime à prática da

63 Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba. 64 Bacharel em Direito pela PUCPR (2007); especialista em Sociologia Política pela UFPR (2008); Aperfeiçoamento em Propriedade Intelectual pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual - Genebra, Suíça (2010); Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela UNIBRASIL (2012); Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidad Pablo de Olavide - Sevilla, Espanha (2013); Doutoranda em Ciências Jurídicas e Políticas (com ênfase em Direitos Humanos) pela Universidad Pablo de Olavide - Sevilla, Espanha; Membro do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa (Secretaria Nacional de Direitos Humanos); Membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PR; Professora dos Cursos de Graduação em Direito do Centro Universitário Internacional UNINTER e do UNICURITIBA; Professora Convidada das Especializações em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, Comércio Exterior e Relações Internacionais da PUCPR.

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bigamia, entende-se que a poligamia também é considerada crime. O Código Civil Brasileiro também faz previsão quanto a proibição do estabelecimento de uniões poligâmicas, vez que no art. 1521, VI configura como impedimento matrimonial, o casamento de pessoas casadas. Palavras-chave: uniões poligâmicas, ordenamento jurídico brasileiro, monogamia, Código Penal Brasileiro, Código Civil Brasileiro.

ABSTRACT The Brazilian legal system prohibits poligamous unions. However, the existence of this type of marital union is increasingly common, considering the flexibility of the concept attributed to contemporary family as well as the need for different family organization of the past. Currently, marital unions are guided not only based on monogamy, given that contemporary society showed significant progress and facing situations that go beyond the limits set in Brazilian legal system. In art. 235 of the Brazilian Criminal Law, for instance, the practice of bigamy is imputed with criminal with imprisonment from two to six years for those who commit it. Furthermore, with respect to polygamy's broad interpretation on this article, since, if the practice of bigamy occurs and it is seen as a crime, it is understood that polygamy is also. The Brazilian Civil Law also makes provision as prohibiting establishment of polygamous unions, in art. 1521, VI configured as matrimonial impediment, the marriage of married people. Keywords: Polygamous Unions, Brazilian legal system, monogamy, Brazilian Criminal Law, Brazilian Civil Law.

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa foi elaborada com o objetivo de demonstrar que, embora

as uniões poligâmicas sejam proibidas pelo ordenamento jurídico pátrio, sua

existência é bastante comum em razão de necessidades sociais e culturais.

Além disso, é importante esclarecer que a Poligamia não é uma prática atual,

tendo em vista que seu surgimento se deu a partir da sociedade primitiva com a

necessidade de caça para a sobrevivência ocasionando, desse modo, certa

disparidade referente à quantidade de homens e de mulheres. Nesse contexto, sua

prática se tornou bastante comum em razão do baixo número de homens e da

grande quantidade de mulheres.

A sociedade contemporânea recebe novas formas de organização familiar

não apenas pautadas na máxima da monogamia podendo apresentar pluralidade de

pessoas envolvidas que vivem em condições análogas às condições dos cônjuges.

Isso ocorre em razão da flexibilização do conceito atribuído à família, que se

aperfeiçoa a cada dia devido à modernidade e aos avanços tecnológicos advindos

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do processo de globalização. Incorporam-se a esse conceito traços advindos das

famílias tradicionais, assim como características que sobrevindas do

desenvolvimento social.

No Brasil, a Poligamia é proibida por força de normas existentes no

ordenamento jurídico pátrio. O art. 235 do Código Penal Brasil veda expressamente

a prática da bigamia no Brasil, uma vez que configura como crime a existência de

dois casamentos simultâneos, imputando pena de reclusão de dois a seis anos para

que cometê-la. Em relação à Poligamia, não há norma que a proíba expressamente,

o que se utiliza é a interpretação extensiva quanto a esse artigo. O Código Civil

Brasileiro também prevê a proibição para a prática de relações poligâmicas, vez que

em seu art. 1521, VI, configura impedimento matrimonial o casamento de pessoas já

casadas.

Dessa forma, o objetivo central da presente pesquisa é esclarecer que

embora o ordenamento jurídico pátrio vede a prática da Poligamia, sua prática é

bastante comum, em razão da interpretação distinta quanto aos princípios

constitucionais bem como os princípios específicos do Direito de Família Brasileiro,

devido às necessidades e ao desenvolvimento social.

2 POLIGAMIA: ASPECTOS GERAIS

2.1 DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS ACERCA DA POLIGAMIA

As uniões poligâmicas são muito antigas e se caracterizam pela celebração

legal de mais de um casamento de forma simultânea. Rodrigo da Cunha Pereira

classifica a Poligamia da seguinte forma:

A palavra polygamia tem origem grega e, literalmente, significa a união de uma pessoa com muitos cônjuges ao mesmo tempo, referindo-se tanto ao homem quanto à mulher.65

65 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Disponível em: < http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/handle/1884/2272/Tese_Dr.%20Rodrigo%20da%20Cunha.pdf?sequence=1> Acesso em: 01 set, 2015.

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Dessa forma, Rodrigo Cunha Pereira ainda considera que a Poligamia se

subdivide em Poliandria, que se caracteriza pela união de uma mulher com mais de

um homem e a Poliginia, que consiste na união de um homem com mais de uma

mulher. 66

2.2 ASPECTOS HISTÓRICOS REFERENTES AO SISTEMA POLIGÂMICO

As necessidades humanas ao longo da história da humanidade constituíram-

se como importante influência quanto às formas de organização familiar, uma vez

que o processo de adaptação do ser humano ao meio no qual vive consistiu em fator

crucial para determinar o tipo familiar. Acredita-se, segundo Friedrich Engels, que a

cultura possuiu três estágios na pré-história: o selvagem, o da barbárie e a

civilização. A partir de pesquisas desenvolvidas por Morgan, concluiu-se que nas

sociedades primitivas a prática do comércio sexual promíscuo se fazia muito

presente, tendo em vista que uma mulher se vinculava a todos os homens, da

mesma forma que cada homem se vinculava a todas as mulheres. (ENGELS, 1984,

p. 65 e 66)

Sob este prisma, é possível destacar que as práticas de relações poligâmicas

são bastante antigas, considerando-se que as sociedades primitivas pautavam-se

nas necessidades naturais concernentes aos seres humanos em se relacionar com

mais de um companheiro simultaneamente, assim como têm os animais que

possuem diversas formas de vida sexual, conforme entendimento de Engels, razão

pela qual nessa época as uniões eram mais flexíveis, dificultando o reconhecimento

de paternidade de crianças geradas a partir dessas relações. (ENGELS, 1984, p. 65

e 66). Nessa época, as uniões pautavam-se na promiscuidade. 67

Ainda quanto a Poligamia na Antiguidade, Vitor Kumpel ressalta que nessa

época, aceitava-se apenas a poligamia masculina, em razão da necessidade do

homem em buscar meios para a sobrevivência, a exemplo da caça, ocasionando

assim a superior quantidade da população feminina em detrimento da masculina,

66 MARTINS, Lucia De. Compêndio de Sociologia, Edições 70, Lisboa, 2006, pp. 139-141. Disponível em: <http://emdefesadoprinc.blogspot.com.br/2012/12/poliandria-e-poliginia.html> Acesso em: 07 abr. 2015. 67 Razões da Permissibilidade da Poligamia no Islã. Disponível em: <http://www.islamreligion.com/pt/articles/328/> Acesso em: 08 abr. 2015.

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razão pela qual o homem se relacionava com mais de uma mulher simultaneamente.

A expectativa de vida feminina ser superior à masculina também contribuiu muito

para que a Poliginia fosse mais comum. Incentivava-se a Poliginia tendo em vista

que essa prática não era passível de incertezas quanto à transmissão de bens,

punindo-se assim, a ausência de fidelidade da mulher. A Poligamia era também

responsável por oferecer benefícios à sobrevivência, redução da prática de

adultérios e a existência de fidelidade, considerando-se que as mulheres convivam

juntas, reportando-se ao homem em comum. 68

3 A POLIGAMIA NO BRASIL

3.1 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA NO BRASIL

A determinação do conceito de família, embora polêmico, teve seu início na

Antiguidade, ainda que nesse período da história as relações fossem baseadas na

oportunidade de garantia da sobrevivência. Acredita-se que o primeiro significado

atribuído à família foi determinado pelo Direito Romano, de forma bastante distinta

do conceito utilizado pela atualidade, tendo em vista que o conceito hoje utilizado

sofreu diversas modificações devido às novas necessidades enfrentadas pela

sociedade moderna. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, P, 55 E 56) Segundo

Paulo Lôbo, para o Direito Romano, a palavra família era atribuída tão somente ao

conjunto de escravos (pais e filhos). (LÔBO, 2011, p. 18).

O que passou a caracterizar a família foi a figura do pater famílias, que

representava o chefe e que exercia poder de dominação em relação aos demais

componentes da família. O pater famílias era sempre do sexo masculino e o mais

velho para que pudesse exercer seu poder de mando sobre os demais,

estabelecendo dessa forma a ideia de hierarquia. Nessa época as mulheres eram

dominadas por seus maridos após a celebração do casamento, e ainda, deviam

obediência e respeito ao pater famílias. Além do casamento, institutos como o

68 KÜMPEL, Vitor Frederico. O concubinato sob uma perspectiva histórica (antigüidade). Disponível em: < http://jornal.jurid.com.br/materias/noticias/concubinato-sob-uma-perspectivahistorica-antiguidade> Acesso em: 28 maio. 2015.

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concubinato eram comuns na antiguidade romana. (GAGLIANO; PAMPLONA

FILHO, 2014, p. 55 e 56).

Ao longo da história da humanidade as relações familiares sofreram intensas

transformações em razão das necessidades apresentadas pela sociedade moderna.

Outras formas de constituir família têm sido constantemente incorporadas ao

conceito de família contemporâneo, fugindo dos preceitos estabelecidos por

doutrinas religiosas ou por ordenamentos jurídicos mais antigos. Houve uma

flexibilização do conceito de família, considerando-se as necessidades de tolerância

de novas relações que também podem ser consideradas de cunho familiar.

(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 55 e 56). Sobre esse assunto, pontua

Maria Berenice Dias que:

Essa visão hierarquizada da família, no entanto, vem sofrendo com o tempo uma profunda transformação. Além de ter havido uma significativa diminuição do número de seus componentes, também começou a haver um embaralhamento de papéis, e seus novos contornos estão a desafiar a possibilidade de encontrar-se um conceito único para sua identificação. Novos modelos familiares surgiram, muitos formados com pessoas que saíram de outras relações, constituindo novas estruturas de convívio sem que seus componentes tenham lugares definidos ou disponham de terminologia adequada. 69

Assim como Maria Berenice Dias, Paulo Lôbo expõe que diversas funções à

família foram atribuídas durante o seu desenvolvimento, como a função econômica,

política, procracional e religiosa passaram a ser incorporadas ao conceito de família,

considerando-se que a estrutura antiga baseava-se principalmente no

patriarcalismo. No entanto, as funções política e religiosa deixaram de fazer parte do

conceito de família com o decorrer do tempo, uma vez que substituiu-se a hierarquia

estrutural pela união baseada nos interesses. (LÔBO, 2011, p. 18).

69 DIAS, Maria Berenice. As Famílias e seus direitos. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/14_-_as_fam%EDlias_e_seus_direitos.pdf> Acesso: 20 mar. 2015.

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3.2 PRINCÍPIOS

3.2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A dignidade da pessoa humana é um dos princípios mais importantes para o

ordenamento jurídico brasileiro, vez que consiste num direito fundamental de

existência humana digna, respeitando suas necessidades básicas sejam elas

emocionais ou patrimoniais que permitam a busca pela felicidade. Esse princípio

está explicitamente previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988

(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014. p. 88). Constitui-se como princípio

norteador de todos os outros princípios do direito contemporâneo, uma vez que os

abrange devido ao fato de ser tido como macroprincípio.70 A esse respeito, os

autores Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona explicitam:

[...] podemos concluir que a dignidade humana somente é preservada na medida em que se garante o respeito à dimensão existencial do indivíduo, não apenas em sua esfera pessoal, mas, principalmente, no âmbito das suas relações sociais. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014. p. 88)

Sendo assim, esse princípio além de representar barreira quanto a atuação

estatal, impedindo que o Estado atue em determinadas situações capazes de

atentar ao princípio da dignidade da pessoa humana, ainda simboliza a atuação

positiva por parte do Estado em determinadas situações visando incentivar a

obediência ao princípio, garantindo a existência digna de todos. (GAGLIANO;

PAMPLONA FILHO, 2014. p. 88)

Quanto a sua eficiência no Direito de Família Brasileiro, Rosa Manerick,

embasada no entendimento de Fernando Dias Andrade, defende:

Afeto, igualdade e alteridade, pluralidade de famílias, melhor interesse da criança/adolescente, autonomia de vontade e intervenção mínima são os princípios fundamentais e norteadores do Direito de Família Contemporâneo, e sob os quais está o macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Esses são os ingredientes essenciais e necessários que

70 MANERICK, Rosa Maria dos Santos. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e sua efetividade no direito de família. Disponível em: <http://siaibib01.univali.br/pdf/Artigo%20Rosa%20Maria%20dos%20Santos%20Manerick.pdf> Acesso em: 01 set, 2015.

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nos guiarão para distinguir e recusar os juízos particularizados, como são os juízos morais, a moral do poder, a serviço dos bens. 71

Deste modo, é possível entender que no Direito de Família, o princípio da

dignidade da pessoa humana possui está intimamente atrelado aos demais

princípios na medida em que se relaciona com os Direitos Humanos. É possível

listar inúmeras situações existentes no Direito de Família que podem violar o

princípio em questão, como a não aceitação por parte do ordenamento jurídico de

outras maneiras de constituir família, que não a consagrada pela celebração do

casamento. A partir disso, percebe-se que o princípio da dignidade da pessoa

humana deve ser analisado em conformidade com os direitos humanos.72 A respeito

do princípio da dignidade da pessoa humana, Rosa Menerick conclui:

Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana significa para o Direito de Família a consideração e o respeito à autonomia dos sujeitos e à sua liberdade. Significa, em primeira e última análise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares. Neste sentido, podemos dizer que é indigno dar tratamento diferenciado às várias formas de filiação ou os vários tipos de constituição de família.73

Sendo assim, no que concerne às novas formas de constituição familiar, o

princípio da dignidade da pessoa é bastante relevante, considerando-se que além de

valorizar a existência digna de cada cidadão, ainda suscita a obediência de todos os

outros princípios que dele se originaram.

71 MANERICK, Rosa Maria dos Santos. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e sua efetividade no direito de família. Disponível em: <http://siaibib01.univali.br/pdf/Artigo%20Rosa%20Maria%20dos%20Santos%20Manerick.pdf> Acesso em: 01 set, 2015. 72 MANERICK, Rosa Maria dos Santos. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e sua efetividade no direito de família. Disponível em: <http://siaibib01.univali.br/pdf/Artigo%20Rosa%20Maria%20dos%20Santos%20Manerick.pdf> Acesso em: 01 set, 2015. 73 MANERICK, Rosa Maria dos Santos. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e sua efetividade no direito de família. Disponível em: <http://siaibib01.univali.br/pdf/Artigo%20Rosa%20Maria%20dos%20Santos%20Manerick.pdf> Acesso em: 01 set, 2015.

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3.2.2 Princípio da Igualdade e Respeito às Diferenças

Um princípio que também merece destaque é o princípio da igualdade, tendo

em vista que é considerado grande avanço para o Direito Brasileiro ao passo que a

Constituição Federal assegura a igualdade, em especial para o Direito de Família,

de homens e mulheres, equiparando os direitos e os deveres de cada um, sem trata-

los com distinção. Acerca desse princípio, Paulo Lôbo explica que a igualdade,

assim como seus consectários não devem olvidar nem desprezar as distinções

naturais existentes entre pessoas e entidades. Os sexos masculino e feminino

possuem suas diferenças, assim como pais e filhos, adultos, crianças e idosos,

igualmente são diferentes as entidades familiares. No entanto, essas diferenças não

podem ser capazes de justificar tratamento jurídico distinto no que concerne à

direitos e deveres à essas entidades. (LÔBO, 2011, p. 65).

A nova realidade social, de acordo estudos desenvolvidos pelo IBGE

permitem constatar que em razão das necessidades advindas da relação familiar

moderna, o papel da mulher tem se alterado com sua participação no mercado de

trabalho de forma intensa, permitindo a modificação da organização familiar.

(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 92 e 93). Sobre esse assunto, Maria

Berenice Dias expõe:

É necessária a igualdade na própria lei, ou seja, não basta que a lei seja aplicada igualmente para todos. O sistema jurídico assegura tratamento isonômico e proteção igualitária a todos os cidadãos no âmbito social. A ideia central é garantir a igualdade, o que interessa particularmente ao direito, pois está ligada a ideia de justiça. (DIAS, 2013. P. 69).

Esse princípio se faz presente no ordenamento jurídico, aa Constituição

Federal, nos art. 5º, I, art. 226, § 5º, além de estar presente em muitos outros

artigos. Quanto a sua presença no âmbito do Direito da Família, se encontra no art.

1511 do CC, que estabelece igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges

numa relação matrimonial. Além disso, outros artigos nesse mesmo diploma legal

pode conter normas que asseguram o direito à igualdade. (GAGLIANO; PAMPLONA

FILHO, 2014, p. 94).

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Maria Berenice Dias defende que o princípio da igualdade se direciona tanto

ao legislador quanto ao intérprete do direito, uma vez que é necessário que se

conheça a respeito do direito aplicado, na medida em que o juiz não pode prolatar

decisões que tratem as partes com desigualdade ou que privilegiem alguns em

detrimento de outros. É indispensável também, proporcionar direitos para aqueles

que a lei deixa de tutelar. Dessa forma, o princípio da igualdade se relaciona à ideia

de justiça, considerando-se que a prática da justiça deve se constituir em igualdade.

(DIAS, 2013, p. 69).

3.2.3 Princípio da Liberdade

O Princípio da Liberdade, tal como o princípio da igualdade, foi admitido como

direito fundamental como garantia da dignidade da pessoa humana. Destarte, há

complementariedade entre os princípios da igualdade e da liberdade, no sentido da

existência de um pressupor a existência do outro. (DIAS, 2013, p. 66). Acerca desse

princípio, Maria Berenice Dias acrescenta:

A Constituição, ao instaurar o regime democrático, revelou enorme preocupação em banir discriminações de qualquer ordem, deferindo à igualdade e à liberdade especial atenção no âmbito familiar. Todos têm a liberdade de escolher seu par, seja do sexo que for, bem como o tipo de entidade que quiser para constituir sua família. A isonomia de tratamento jurídico permite que se considerem iguais marido e mulher em relação ao papel que desempenham na chefia da sociedade conjugal. (DIAS, 2013, p. 66).

Assim como destacado acima, esse princípio consiste na livre escolha da

forma com que se pretende constituir ou extinguir a relação familiar, sem que se

estabeleçam limites ou imposições quanto aos moldes em que deve ser

estabelecida. No entanto, essa liberdade não está restrita apenas à constituição ou a

extinção do vínculo familiar, mas está atrelada também às liberdades que decorrem

do estabelecimento das entidades familiares, como por exemplo, a livre

administração do patrimônio ou a liberdade na maneira de agir. (LÔBO, 2011, p. 71).

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3.2.4 Princípio da Afetividade

O Princípio da Afetividade é de grande relevância, característico do Direito de

Família, por consistir em vínculo socioafetivo desenvolvido pelos membros de uma

família sem restringir as individualidades de cada um. Logo, permite a constituição

da família a partir de outros meios que não possuem reconhecimento no

ordenamento jurídico brasileiro e não apenas a formação da família a partir do

casamento ou de outros meios que possuem como base a o princípio da afetividade.

(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 102, 103 e 104). A esse princípio, Paulo

Lôbo expõe:

A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. (LÔBO, 2011, p. 69).

Encontra-se localizado implicitamente na Constituição, considerando-se que

descobriu nela os seus fundamentos básicos que ensejam o intenso

desenvolvimento social da família brasileira. (LÔBO, 2011, p. 71).

Ainda, é importante ressaltar que o art. 1593 do CC tem previsão quanto aos

fundamentos básicos quando determina a existência de parentesco tanto natural

quanto civil, de consanguinidade ou de outra origem. Sendo assim, entende-se de

que os parentescos não são apenas de natureza biológica, tendo em vista que há

possibilidade de existir parentesco estabelecido de outras maneiras, conforme

relações asseguradas pelo princípio da afetividade. (LÔBO, 2011, p. 72).

Vale destacar que Paulo Lôbo explicita que a doutrina brasileira encontrou

ampla aplicação do direito de família em situações como por o desenvolvimento da

personalidade dos integrantes pertencentes à família ou ainda a colisão de direitos

fundamentais. Impõe ainda quatros fundamentos essenciais amparados pelo

princípio da afetividade: igualdade dos filhos, seja qual for a origem, previsto no §6º

do art. 227 da CF; a adoção como opção afetiva sem exclusão da igualdade de

direitos entre o vínculo biológico e o adotivo, que encontra previsão nos §5º e §6º do

art. 227 da CF; comunidade estabelecida por um dos pais e seus descentes, com

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inclusão dos adotivos, previsto no §4º do art. 226 e o direito de conviver com a

família com prioridade quando se trata de criança, adolescente e jovem, conforme

prevê o art. 227 da CF. (LÔBO, 2011, p. 71).

Por fim, compreende-se que o princípio da afetividade é tido como norteador

do Direito de Família Brasileiro, vez que a partir dele se promove a valorização da

efetividade dentro de relação de âmbito familiar. (DIAS, 2013, p. 73).

3.2.5 Princípio do Pluralismo Familiar

Merece destaque da mesma forma, o Princípio do Pluralismo de entidades

familiares, que tem como base a evolução da sociedade a partir da Constituição

Federal de 1988, que reconhece apenas o casamento como legítimo enquanto os

outros vínculos que existem não possuem amparo. Sob essa perspectiva, tal

principio constitui-se na aceitação do Estado da possibilidade de estabelecer outros

vínculos familiares, conhecidos como arranjos familiares, diferentes daqueles

protegidos pela Constituição. Encontra-se implícito no art. 226, caput da Constituição

Federal. (DIAS, 2013, p. 70).

3.2.6 Princípio da Função Social da Família

Outro princípio de suma importância é o da função social da família. Pablo

Stolze e Rodolfo Pamplona, a respeito desse princípio, destacam:

De fato, a principal função da família é a sua característica de meio para a realização de nossos anseios e pretensões. Não é mais a família um fim em si mesmo, conforme já afirmamos, mas, sim, o meio social para a busca de nossa felicidade na relação com o outro. (GAGLIANO; FILHO, 2014, p. 113).

Se observado sobre um viés constitucional, esse princípio tem como principal

propósito garantir a felicidade de todos os integrantes da relação familiar, devendo

respeitar a individualidade e as particularidades de cada um. (GAGLIANO; FILHO,

2014, p. 113).

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3.2.7 Princípio da Mínima Intervenção do Estado no Direito de Família

O Princípio da Mínima Intervenção do Estado no Direito de Família é também

de grande relevância. É possível extrair, a partir da análise desse princípio, que não

deve o Estado se ingerir nas relações e vínculos familiares da mesma maneira como

interfere nas relações econômicas. (GAGLIANO; FILHO, 2014, p. 113).

3.2.8 Princípio da Monogamia

Ainda se discute quanto à eficácia do Princípio da Monogamia no

ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, mesmo que a fidelidade seja um

compromisso decorrente da união matrimonial monogâmica, as uniões poligâmicas

têm se mostrado cada vez mais frequentes, ainda que inaceitáveis para o

ordenamento jurídico pátrio. (DIAS, 2013, p. 63). Maria Berenice Dias, quanto ao

Princípio da Monogamia, destaca que:

O Estado tem interesse na mantença da estrutura familiar, a ponto de proclamar que a família é a base da sociedade. Por isso, a monogamia é considerava função ordenadora da família. A monogamia - que é a monogamia só para a mulher - não foi instituída em favor do amor. Trata-se de mera convenção decorrente do triunfo da propriedade privada sobre o estado condominial primitivo. Mas a uniconjugalidade, embora disponha de valor jurídico, não passa de um sistema de regras morais. De qualquer modo, seria irreal negar que a sociedade ocidental contemporânea é, efetivamente, centrada em um modelo familiar monogâmico, mas não cabe ao Estado, em efetivo desvio funcional, se apropriar deste lugar de interdição. (DIAS, 2013, p. 63).

Carlos Eduardo Pianosvski Ruzik, no mesmo sentido se posiciona:

A monogamia não é um princípio do direito estatal da família, mas uma regra restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas, constituídas sob a chancela prévia do Estado. No entanto, descabe realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade contra formações conjugais plurais não constituídas sob sua égide. Isso não significa, porém, que alguém que constitua famílias simultâneas, por meio de múltiplas conjugalidades, esteja, de antemão, alheio a qualquer eficácia jurídica. Principalmente, quando a pluralidade é pública e ostensiva, e mesmo assim ambas as famílias se mantêm íntegras, a simultaneidade não é desleal. (RUZIK, 2005, p. 221).

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A violação do princípio da monogamia não se encontra centrada na ideia de

relações extraconjugais, mas na constituição de família simultânea nessas

condições.74

Dessa forma, não é possível classificar a monogamia como um princípio

básico para o Direito de Família Brasileiro, posto que o desenvolvimento da

sociedade acarretou a flexibilização das uniões familiares. (GAGLIANO; FILHO,

2014, p. 120).

3.3 FUNDAMENTOS COIBIDORES DA POLIGAMIA NO BRASIL

O Brasil, assim como a maioria dos países ocidentais é de maioria cristã,

adepto da teoria de relações monogâmicas, ainda que a monogamia não seja mais

absoluta no rol de princípios que regem o Direito de Família Brasileiro, reconhecido

por parte dos autores apenas como uma função. Maria Berenice destaca que:

Em atenção ao preceito monogâmico, o Estado considera crime a bigamia (CP 235). Pessoas casadas são impedidas de casar (CC 1521 VI) e a bigamia torna nulo o casamento (CC 1548 II e 1521 VI). É anulável a doação feita pelo adultério a seu cúmplice (CC 550). A infidelidade servia de fundamento para a ação de separação, pois importava em grave violação dos deveres do casamento, tornando insuportável a vida em comum (CC 1572), de modo a comprovar a impossibilidade de comunhão de vida (CC 1573 I). Também se esforça o legislador em não emprestar efeitos jurídicos às relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos de casar, chamando-se de concubinato (CC 1727).( DIAS, 2013, p.63).

Assim como expõe Maria Berenice Dias, o art. 235 do Código Penal Brasileiro

traz a proibição quando da prática da bigamia, imputando pena de reclusão de dois

a seis anos para quem cometê-la. (DIAS, 2013, p.63). Sua redação traz que:

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento: Pena - reclusão, de dois a seis anos.

74 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/handle/1884/2272/Tese_Dr.%20Rodrigo%20da%20Cunha.pdf?sequence=1> Acesso em: 01 set, 2015.http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/handle/1884/2272/Tese_Dr.%20Rodrigo%20da%20Cunha.pdf?sequence=1> Acesso em: 01 set, 2015.

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§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos. § 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.75

Não obstante, no que se refere à Poligamia, o ordenamento jurídico não

possui norma que vede expressamente sua prática, o que se tem é interpretação

extensiva do referido artigo, visto que, se imputa-se crime à prática da bigamia,

entende-se, pela lógica, que a prática da Poligamia também é tida como crime, já

que se constitui em mais de dois casamentos simultâneos. 76

O Código Civil Brasileiro também apresenta vedação quanto à prática de

casamentos simultâneos, vez que configura como impedimento matrimonial o

casamento de pessoas casadas, conforme previsão no art. 1521, VI, CC.77

Art. 1.521. Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.78

Em suma, entende-se que esse artigo veda a prática da bigamia, prevista

como crime no Código Penal Brasileiro, assim como já exposto. Dessa forma,

significa que para seja possível a celebração de novo matrimônio, é necessário que

o anterior seja anulado em razão morte de um dos cônjuges, ou de ambos quando

for o caso, ou através do divórcio. Em contrapartida, em relação à união estável não

75 BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Decreto-Lei/Del2848.htm> Acesso em: 10 de abr. 2015. 76 CASTRO, Leonardo. Legislação comentada - arts. 235, 236 e 237 do CP. Disponível em: <http://leonardocastro2.jusbrasil.com.br/artigos/121943509/legislacao-comentada-arts-235-236-e-237-do-cp> Acesso em: 02 set, 2015.

77 CASTRO, Leonardo. Legislação comentada - arts. 235, 236 e 237 do CP. Disponível em: <http://leonardocastro2.jusbrasil.com.br/artigos/121943509/legislacao-comentada-arts-235-236-e-

237-do-cp> Acesso em: 02 set, 2015. 78 BRASIL. Código Civil. Decreto-Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 10 abr. 2015.

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456

há impedimento, considerando-se que se admite sua celebração quando houver

separação judicial ou de fato. (LÔBO, 2011, p. 110).

3.4 CONCUBINATO, POLIAMOR E POLIGAMIA HOMOAFETIVA: DISTINÇÕES À

POLIGAMIA NO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO

As uniões simultâneas se caracterizam pela constituição de duas ou mais

relações familiares dentro do mesmo espaço temporal, ou seja, constituem-se

famílias distintas, porém com o companheiro em comum. 79 São conhecidas como

uniões livres, que não dependem da celebração do matrimônio para acontecerem,

contudo, não possuem tutela jurisdicional do Estado nem tampouco do ordenamento

jurídico para o seu reconhecimento como legítimas (GAGLIANO; PAMPLONA

FILHO, 2014, p. 522 e 523). Acerca desse assunto, Maria Berenice Dias pontua:

[...] é indispensável ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de entidade familiar os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue assegurar. Por isso é necessário reconhecer que, independente da exclusividade do relacionamento ou da identidade sexual do par, as união de afeto merecem ser identificadas como entidade familiar, gerando direitos e obrigações aos seus integrantes.80

A maior parte da doutrina que trata do assunto concernente às uniões de

cunho livre defende que o reconhecimento das uniões simultâneas, no direito das

obrigações, não promoveria o enriquecimento ilícito do companheiro infiel, em

contrapartida, reconhece que se a segunda companheira estiver de boa-fé nas

uniões estáveis putativas aplicar-se-ão as mesmas peculiaridades atinentes às

uniões estáveis, desprezando assim, o vício. Já a doutrina minoritária firma

entendimento mais severo quanto ao reconhecimento de uniões simultâneas, haja

79 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional. Rio de Janeiro: Renover, 2005, p. 06. 80 DIAS, Maria Berenice. A família além dos mitos. Disponível em: < http://www.mariaberenice.com.br/uploads/a_fam%EDlia_al%E9m_dos_mitos.pdf> Acesso em: 25 ago, 2015.

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vista que não há as reconhece, por considerarem que essas uniões são capazes de

constituir o concubinato. 81

As uniões legalmente constituídas são geralmente pautadas na ideia de

fidelidade, considera-a um valor de essencial decorrente da ideia de monogamia,

reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro. A fidelidade é também

considerada um dever legal e deve constituída por intermédio dos deveres mútuos

dentro de uma relação matrimonial. Todavia, se o desenvolvimento da sociedade for

considerado, sua aplicação não é absoluta e por essa razão as uniões paralelas não

se preocupam quanto à garantia dessas características. (GAGLIANO; PAMPLONA

FILHO, 2014, p. 519).

A questão da lealdade também é relevante quando se trata de celebração de

matrimônio, considerando-se que as relações de cunho monogâmico são

absolutamente baseadas nessa característica. É observada normalmente nas uniões

estáveis, vez que, embora contraditória, pressupõe que os cônjuges devem

desenvolver comportamentos morais para que conservem a relação com caráter

exclusivo. 82

3.4.1 Concubinato

O concubinato é um instituto do Direito de Família previsto no art. 1727 do

Código civil, que possui a seguinte redação: "As relações não eventuais entre o

homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato."83. A partir disso,

o concubinato se caracteriza pela ausência de eventualidade, assim como pelo

vínculo entre parceiros impedidos de celebrar o casamento por força de lei. É um

tipo de união livre que tem como base o afeto e que se caracteriza pela

simultaneidade. Ainda que se constitua em união invisível, seus efeitos jurídicos

estão ganhando reconhecimento perante os Tribunais de Justiça do país. (DIAS,

2013. p. 47). Contudo, Paulo Lôbo aduz que alguns tribunais se negam a reconhecer

81 PONZONI, Laura de Toledo. Famílias Simultâneas: União Estável e Concubinato. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=461.> Acesso em: 27 mai, 2015. 82 MADALENO, Rolf. A união (ins)Estável (relações paralelas). Disponível em: <http://www.rolfmadaleno.com.br/novosite/conteudo.php?id=323> Acesso em: 26 mai, 2015. 83 BRASIL. Código Civil. Decreto-Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 10 abr. 2015.

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do concubinato como entidade familiar ao visar à equiparação quanto à união

estável. (LÔBO, 2011, p.170). No entanto, Maria Berenice Dias, destaca, a respeito

desse assunto que:

Presentes os requisitos legais, a justiça não pode deixar de reconhecer que configuram união estável, sob pena de dar uma resposta que afronta a ética, chancelando o enriquecimento injustificado. Depois de anos de convívio, descabido que o varão deixe a relação sem qualquer responsabilidade pelo de ele – e não ela – ter sido infiel. Ou seja, a repulsa aos vínculos afetivos concomitantes não os faz desaparecer, e a invisibilidade a que são condenados só privilegia o “bígamo”: concede ao infiel verdadeira carta de alforria, pois tudo pode fazer e nada pode lhe ser exigido. (DIAS, 2013. p. 47).

Ainda, é importante destacar que há punição para a companheira que é

cúmplice do adultério a impossibilitando de adquirir direitos que são garantidos à

consorte em razão da união estável. Mas, se a concubina provar que não conhece

da existência da união estável e que está agindo de boa-fé, a ligação decorrente do

concubinato será tida como sociedade de fato, pressupondo a existência de

obrigações mútuas. A esse respeito vale ressaltar o teor da Súmula 380 do Superior

Tribunal Federal que dispõe: "Comprovada a existência de sociedade de fato entre

os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio

adquirido pelo esforço comum.". Outra Súmula que trata desse assunto é a Súmula

382 do STF que possui a seguinte disposição: A vida em comum sob o mesmo teto,

more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato. 84

Acerca da Súmula 380 do STF85, Paulo Lôbo firmou entendimento no sentido

de que diante dos impedimentos elencados pela Constituição ou em outros diplomas

legais, que precedem o reconhecimento do concubinato como entidade familiar, não

havia solução no tocante ao direito de família. A solução sustenta-se apenas no

direito obrigacional com a caracterização da sociedade de fato e que ao ser

dissolvida promoveria a divisão do patrimônio presumido, obtido através do

84 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula 382. A vida em comum sob o mesmo teto

"more uxorio", não é indispensável à caracterização do concubinato. Disponível em: < http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/75/STF/382.htm > Acesso em: 27 mai, 2015. 85 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula 380. Comprovada a existência de

sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum. Disponível em: < http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/75/STF/380.htm > Acesso em: 27 mai, 2015.

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459

empenho comum. Antes da Constituição de 1988, o entendimento das Súmulas

representou grande avanço, em contrapartida, após a entrada em vigência, sua

utilização foi inutilizada, já que a união estável foi considerada entidade familiar.

Após a Constituição, o Código Civil de 2002 estruturou o instituto da união estável,

e, ainda que o legislador proteja o casamento, tratou-os de maneira equiparada.

(LÔBO, 2011, p. 170). Ainda, explica Paulo Lôbo que:

Reconhece-se que o concubinato é questão sensível e difícil, ante os valores monogâmicos majoritários da sociedade brasileira, o que torna sempre controvertida qualquer solução jurídica. De qualquer forma, além das consequências jurídicas positivas referidas (partilha de bens e indenização), apesar das justificadas críticas, o concubinato tem sido objeto de demandas de soluções equitativas ao Legislativo e ao Judiciário, o que demonstra que não pode ser qualificado como simples relação ilícita. (LÔBO, 2011, p. 170).

Se a existência da união estável do parceiro for de conhecimento da

companheira e haja a má-fé, nada lhe é assegurado. O que importa é o ânimo de

constituir família e não apenas o reconhecimento dos direitos patrimoniais

decorrentes do reconhecimento da sociedade de fato. Caso seja desconsiderada a

participação do cônjuge casado na relação de concubinato, ocorrerá afronta ao

princípio da liberdade de escolha da entidade familiar, já que seria o caso de

monoparentalidade forçada. (DIAS, 2013, p. 48).

Para negativa de efeitos jurídicos ao concubinato, há dois argumentos

essenciais. O primeiro consistiria na afronta às regras pertencentes ao sistema

monogâmico, ainda que a monogamia não seja um princípio absoluto, proíbe-se o

estabelecimento de múltiplas uniões familiares celebradas sob a chancela do

Estado. O segundo argumento seria que a entidade estatal deve amparar apenas

uma entidade familiar ao invés de várias simultaneamente. (DIAS, 2013, p. 48).

3.4.2 Poliamor

O Poliamor, também chamado de Poliamorismo, caracteriza-se por

compreender relações baseadas na liberdade afetiva, reconhecendo

simultaneamente a existência de várias relações afetivas conhecidas por seus

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integrantes, já que sabem e aceitam a existência de outras relações, partindo-se do

pressuposto de que uma união complementa a outra.86 Antônio Pilão e Mirian

Goldenberg salientam outras características importantes:

Por sua vez, o Poliamor seria marcado pelo combate ao "machismo" e a possibilidade de que tanto homens quanto mulheres amem da forma que desejam. Acredita-se que no Poliamor se é mais honesto "consigo mesmo", já que não é necessário se "moldar" ao(s) parceiro(s) como nas demais formas de conjugalidade, que têm mais regras, expectativas e ciúmes.87

A ideia de relações poliamorísticas pressupõe ser possível amar mais de uma

pessoa ao mesmo tempo já que não existe apenas amor por uma única pessoa.88

Quanto a este assunto, Noely Montes Morais, professora da PUCSP, Noely Montes

Morais, evidencia:

A etologia (estudo do comportamento animal), a biologia e a genética não confirmam a monogamia como padrão dominante nas espécies, incluindo a humana. E, apesar de não ser uma realidade bem recebida por grande parte da sociedade ocidental, as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 519).

Assim sendo, o Poliamor caracteriza-se como relação aberta, de cunho

liberal, em que cada integrante se relaciona, desenvolvendo vínculo de amor e de

afetividade, sem depender da aprovação dos demais envolvidos. Há uma nova

concepção da palavra amor, havendo o equilíbrio em razão da maior troca de amor

entre os participantes, optando também pelo companheirismo e pela amizade.

Quanto a poliafetividade, Maria Berenice acrescenta que:

86 PILÃO, Antônio Cerdeira; GOLDENBERG, Mirian. Poliamor e Monogamia: Construindo diferenças e hierarquias. Disponível em: < http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/article/viewFile/14231/8159> Acesso em: 28 mai, 2015. 87 PILÃO, Antônio Cerdeira; GOLDENBERG, Mirian. Poliamor e Monogamia: Construindo diferenças e hierarquias. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/article/viewFile/14231/8159> Acesso em: 28 mai, 2015. 88 PILÃO, Antônio Cerdeira; GOLDENBERG, Mirian. Poliamor e Monogamia: Construindo diferenças e hierarquias. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/article/viewFile/14231/8159> Acesso em: 28 mai, 2015.

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Assim, passou-se a reconhecer que o conceito de entidade familiar não pode ser engessado no modelo sacralizado do matrimônio. Desse modo, há que se reconhecer como transparente e honesta a instrumentalização levada a efeito, que traz a livre manifestação de vontade de todos, quanto aos efeitos da relação mantida a três. Lealdade não lhes faltou ao formalizarem o desejo de ver partilhado, de forma igualitária, direitos e deveres mútuos, aos moldes da união está estável, a evidenciar a postura ética dos firmatários. Não há como deixar de reconhecer a validade da escritura. Tivessem eles firmado dois ou três instrumentos declaratórios de uniões dúplices, a justiça não poderia eleger um dos relacionamentos como válido e negar a existência das demais manifestações. (DIAS, 2013, p. 54).

A partir do acima exposto, essas uniões necessitam de reconhecimento, já

que advém da vontade dos envolvidos, sem conflitar com princípios constitucionais

ou com princípios específicos do Direito de Família. A eficácia para produção de

efeitos jurídicos decorrentes de tais uniões é de suma importância, vez que delas

originam direitos que, embora não reconhecidas como entidades familiares, devem

ser garantidos aos integrantes.

3.4.3 Poligamia Homoafetiva

A Poligamia Homoafetiva encontra-se presente quando duas mulheres ou

dois homens, estabelecidos através de união estável, mantenham, simultaneamente

outra relação paralela. Essas uniões extraordinárias se caracterizam pela existência

de duas relações simultâneas e homessexuais que se prolongam no tempo, sendo

que a segunda relação não é de conhecimento de todos, assim como a primeira.

(MARTINEZ, 2014, p. 17).

Diante dessas características, dificulta-se a comprovação da existência de

ambas as relações, cabendo aos interessados se manifestarem no sentido de provar

que as relações subsistem simultaneamente. (MARTINEZ, 2014, p. 17).

Há três hipóteses em que é possível a caracterização das uniões

homoafetivas poligâmicas: existência de uma união legalizada e outra não; duas

uniões legalizadas e duas uniões não legalizadas. (MARTINEZ, 2014, p. 17).

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4 UM CASO DE POLIGAMIA DE FATO NO BRASIL

No Distrito Federal no ano de 2013, litigava-se a declaração de nulidade da

sentença que admitiu a existência de união estável entre a parte autora, mulher da

segunda relação paralela ao matrimônio e o de cujus, reputada entre o período de

30/09/1985 até 22/11/2012, data do falecimento, responsabilizando os réus no

pagamento de custas e honorários advocatícios totalizando em mil reais. 89 A

ementa do acórdão assim dispõe:

DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. IMPOSSIBILIDADE DE CARACTERIZAÇÃO ANTE A EXISTÊNCIA DE MATRIMÔNIO DO DE CUJUS. OCORRÊNCIA DE POLIGAMIA DE FATO. AUSÊNCIA DE SEPARAÇÃO DE FATO E DE DIREITO. PRECEDENTES DO STF, STJ E TJDFT. 1. O legislador cuidou de resguardar os direitos dos que convivem maritalmente fora do casamento, já que a Constituição Federal, considerou a união estável entidade familiar (art. 226, § 3º). 2. Porém, visando conceder proteção preferencial ao casamento, o legislador vedou a configuração da união estável caso um dos conviventes fosse casado, com a exceção se separado de fato ou judicialmente. (artigo 1.723, § 1º do Código Civil/2002). 3. A prova carreada aos autos revela que o de cujus manteve dois relacionamentos em concomitância com o casamento, extraconjugais e sucessivos, uma poligamia de fato, sem contudo, separar-se de fato de sua esposa, a apelante/ré. 4. Desta forma, não deve ser reconhecido como união estável o relacionamento estabelecido entre a apelada/autora e o falecido porquanto equivale a admitir como lícita e geradora de efeitos a figura da poligamia de fato. Seria o mesmo que premiar com direitos patrimoniais a quem praticou a conduta indesejável e vedada por lei, deixando a viúva legal, ora apelante/ré, cerceada dos seus direitos legalmente constituídos. Precedentes jurisprudenciais. 5. Recurso conhecido e provido.90

Reconheceu-se a existente a poligamia de fato, já que o de cujus, mantinha

relacionamento legalmente constituído e ainda possuía outros dois relacionamentos

89 DISTRITO FEDERAL. Apelação. 20130510057710APC, Relator: SEBASTIÃO COELHO,

Revisora: GISLENE PINHEIRO, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 20/08/2014, Publicado no DJE: 25/08/2014. Disponível em: < http://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordaoGet&idDocumento=813081 > Acesso em: 10 set, 2015. 90 DISTRITO FEDERAL. Apelação. 20130510057710APC, Relator: SEBASTIÃO COELHO, Revisora: GISLENE PINHEIRO, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 20/08/2014, Publicado no DJE: 25/08/2014. Disponível em: < http://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordaoGet&idDocumento=813081 > Acesso em: 10 set, 2015.

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463

simultâneos. Com a esposa de fato, possuía seis filhos. Outros três filhos pertenciam

à primeira relação paralela e um filho provindo do segundo relacionamento

paralelo.91

A ré comprovou ser esposa de fato e de direito do falecido, já que trouxe aos

autos documentos que atestam a convivência com o de cujus até o momento de seu

falecimento. Além de colacionar documentos como certidão de casamento, imposto

de renda do ano do óbito do falecido, certidão de nascimento dos filhos, colacionou

também a certidão de óbito que a deixava como viúva, apresentando o mesmo

endereço em que residia o de cujus. Em depoimento na audiência de instrução, a ré

defendeu que sabia do relacionamento do de cujus com a autora, mas manteve seu

relacionamento com o referido já que receava ser abandonada. Afirma ainda que

soube do filho do advindo do segundo relacionamento paralelo do de cujus no ato

em que solicitou a regularização da pensão por morte.92

Houve confirmação do relacionamento do de cujus com a segunda

companheira através das testemunhas arroladas pela autora que afirmaram a

existência de convivência capaz de caracterizar a união estável, tendo em vista que

se relacionavam como se marido e mulher fossem. No entanto, não se caracterizou

a união estável no presente caso tendo em visto a ausência do preenchimento de

alguns requisitos essenciais. No entanto, somente a presença desses requisitos não

se faz suficiente para que se defina a união estável. O § 1o do art. 1723 do CC

determina que além do preenchimento dos requisitos supramencionados, deve-se

observar se a presença de alguma hipótese de impedimentos previstos no art. 1521

do CC, com ressalva para aqueles que já foram casados, mas que estão separados

de fato ou judicialmente. Nesse caso, foi comprovado que a esposa de fato não se

encontrava separada de fato do de cujus de acordo com seu depoimento na

audiência de instrução. Diante disso, o pedido de reconhecimento de união estável

91 DISTRITO FEDERAL. Apelação. 20130510057710APC, Relator: SEBASTIÃO COELHO, Revisora: GISLENE PINHEIRO, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 20/08/2014, Publicado no DJE: 25/08/2014. Disponível em: < http://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordaoGet&idDocumento=813081 > Acesso em: 10 set, 2015 92 DISTRITO FEDERAL. Apelação. 20130510057710APC, Relator: SEBASTIÃO COELHO, Revisora: GISLENE PINHEIRO, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 20/08/2014, Publicado no DJE: 25/08/2014. Disponível em: < http://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordaoGet&idDocumento=813081 > Acesso em: 10 set, 2015.

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entre a autora e o de cujus foi negado considerando-se que ainda estivessem

presentes os requisitos que caracterizadores da união estável, inexistente o requisito

tocante à separação judicial ou de fato. Dessa forma, decretou-se a reforma total da

sentença que julgou procedente o pedido da parte autora, para que julgasse

improcedente.93

Com base no caso acima citado, é possível perceber que as uniões paralelas

se fazem cada vez mais comuns nas famílias brasileiras, mas, baseado no Princípio

da Monogamia, o ordenamento jurídico pátrio proíbe o estabelecimento de

matrimônios que possuam como base a poligamia. Diante disso, há constituição

relacionamentos poligâmicos extraconjugais ameaçando valores como a fidelidade e

a lealdade. A ausência de reconhecimento para uniões dessa natureza pelo

ordenamento jurídico pátrio acarreta supressão de direitos atinentes à mulher, que

não tendo reconhecido seu matrimônio carecerá de direitos que dela seriam

legítimos se reconhecida a união.94

Ainda, é de suma importância salientar, que no tocante aos benefícios da

Previdência Social, têm-se reconhecido o concubinato pelo INSS, ocasionando a

divisão da pensão por morte ou o auxílio reclusão entre a esposa de fato e a

companheira. No entanto, os tribunais não têm adotado esse entendimento. 95

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo científico abrange a questão referente à Poligamia no Brasil

que, embora não aceita pelo ordenamento jurídico pátrio, se faz presente em muitas

famílias brasileiras.

93 DISTRITO FEDERAL. Apelação. 20130510057710APC, Relator: SEBASTIÃO COELHO, Revisora: GISLENE PINHEIRO, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 20/08/2014, Publicado no DJE: 25/08/2014. Disponível em: < http://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordaoGet&idDocumento=813081 > Acesso em: 10 set, 2015. 94 DISTRITO FEDERAL. Apelação. 20130510057710APC, Relator: SEBASTIÃO COELHO, Revisora: GISLENE PINHEIRO, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 20/08/2014, Publicado no DJE: 25/08/2014. Disponível em: < http://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordaoGet&idDocumento=813081 > Acesso em: 10 set, 2015. 95 IBRAHIM, Fábio Zambitte. O concubinato na previdência social. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9792 > Acesso em: 10 set, 2015.

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Sendo um país predominantemente cristão, o Brasil legitima o princípio da

monogamia como essencial para o Direito de Família. Entretanto, o atual contexto

social do país é diverso do que preconiza tal princípio, motivo pelo qual, alguns

doutrinadores o reputam ultrapassado já que as relações familiares não se pautam

apenas no matrimônio, mas também em novas formas de constituição familiar

reconhecendo novas entidades, como o poliamorismo, que é um instituto recente e

que tem se tornado cada vez mais comum em decorrência da relativização do

conceito de família.

Dessa forma, a base das relações matrimoniais deixa de ser somente a

celebração do matrimônio e suas formalidades para que as relações baseadas na

afetividade possam ser incorporadas como entidades familiares, ainda que o

ordenamento pátrio não tenha se desenvolvido para tanto. Diferente da ideia de

tradicional relacionada à monogamia, essas relações são de cunho livre mesmo que

se façam cada vez mais presentes na sociedade brasileira, o ordenamento jurídico

não as reconhece como legítimas, já que tanto o Código Penal quanto o Código Civil

fazem previsão quanto a proibição da prática das relações poligâmicas. No Código

Penal Brasileiro, a prática da bigamia é caracterizada como crime, com punição

específica. Quanto a Poligamia, não há artigo que a proíba expressamente, no

entanto, a partir do Código Penal é possível interpretar-se extensivamente o artigo

que trata da bigamia. Já no Código Civil Brasileiro veda-se a constituição de uniões

poligâmicas na medida em que o casamento de pessoas já casadas sem que

estejam separadas de fato ou judicialmente é caracteriza como impedimento

matrimonial. Dessa forma, entende-se que não há tolerância quanto ao

reconhecimento da legalidade das uniões livres perante o ordenamento jurídico

pátrio.

Por fim, conclui-se, a partir das pesquisas realizadas, que o ordenamento

jurídico brasileiro ainda não se desenvolveu para acompanhar as evoluções vividas

no atual cenário social, o que faz com que muitas famílias brasileiras sejam

constituídas sem o amparo da lei.

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