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Revista Brasileira de História da Educação

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Revista

Conselho DiretorWenceslau Gonçalves Neto (UFU); José Gonçalves Gondra (Uerj); Rosa Lydia Teixeira Corrêa (PUC-PR);Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (UFPB).

Comissão EditorialBruno Bontempi Junior (USP)Lucia Maria da Franca Rocha (UFBA)Heloísa Helena Pimenta Rocha (Unicamp)Flávia Obino Corrêa Werle (Unisinos)Secretária – Patrícia Aparecida do Amparo

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Ana Waleska (PUC-RIO); Cinthya Greive Veiga (UFMG); Ana Magaldi (Uerj); Diana Vidal (USP); Maria Rita de Almeida Toledo (Unifesp); Marlos Bessa (UFJF); Claudia Alves (UFF); Cleonara Schwartz (Ufes); Maria Betania Barbosa Albuquerque (Uepa); Carlos Humberto Alves Corrêa (Ufam); Maria Nepomuceno (UCG); Elisabete Madureira (UFMT); Claudia Engler Cury (UFPB); Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas (UFS); Jacy Menezes (Uneb); Adriana P. Silva (Uepe); Silvia Brito (UFMS); Marias das Dores Daros (UFSC); Carlos Eduardo Vieira (UFPR); Eliane Peres (UFPEL); Terezinha Oliveira (UEM); Rosa Fátima de Souza (Unesp); José Gerardo Vasconcelos (UFC); Cesar Augusto de Castro (Ufma).

Membros internacionais:Adrian Ascolani (Argentina); Frank Simon (Bélgica); Jaime Caiceo Escudero (Chile); Alberto Martinez Boom (Colômbia); Gabriela Ossenbach (Espanha); Karl Lorenz (EUA); Jean Hébrard (França); David Crook (Inglaterra); Paolo Bianchini (Itália).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação quadrimestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901CEP 13084-008 – Barão Geraldo

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3249-2800

e-mail: [email protected]

Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é uma sociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica de direito privado. Tem como objetivos congregar profissionais brasileiros que realizam atividades de pesquisa e/ou docência em História da Educação e estimular estudos interdisciplinares, promovendo intercâmbios com entidades congêneres nacionais e internacionais e especialistas de áreas afins. É filiada à ISCHE (International Standing Conference for the History of Education), a Associação Internacional de História da Educação.

Diretoria NacionalPresidente: Wenceslau Gonçalves Neto (UFU)Vice-presidente: José Gonçalves Gondra (Uerj)Secretária: Rosa Lydia Teixeira Corrêa (PUC-PR)Tesoureiro: Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (UFPB)

Diretores RegionaisNorte:Titular:Sônia Maria da Silva Araújo (UFPA)Suplente:Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel (Ufam)Nordeste:Titular:Antonio de Pádua Carvalho Lopes (UFPI)Suplente:Maria das Graças Loyola Madeira (Ufal)Centro-Oeste:Titular:Diane Valdez (UFG)Suplente:Elizabeth Figueiredo de Sá (SME-Cuiabá)Sudeste:Titular:Regina Helena Silva Simões (Ufes)Suplente:Ester Buffa (Ufscar/Uninove)Sul:Titular:Norberto Dalabrida (Udesc)Suplente:Marcus Levy Albino Bencostta (UFPR)

SecretariaRevista Brasileira de História da EducaçãoFaculdade de Educação da USPAvenida da Universidade, 308Bloco A – Sala 23105508-900 – São Paulo-SP Tel.: (11)3091-3195 – ramal: 8294E-mail: [email protected]

Indexada em/Indexed in:

• BBE–BibliografiaBrasileiradaEducação/Centro de Informação e Biblioteca em Educação (Brasil-cibec/inep) http://www.inep.gov.br/pesquisa/thesaurus

• Edubase–BasedeDadosdaUnicamp (Brasil, FE/Unicamp) http://www.bibli.fae.unicamp.br/edubase.htm

• DivisãodePeriódicosdaUnB(Brasil) http://www.bce.unb.br

•BasededadosdaFundaçãoCarlosChagas http://www.fcc.org.br/biblioteca/dbfcc.html

• IRESIE–BancodeDatossobreEducaciónIberoamericana

http://132.248.192.241/ñiisue/www/index.html• Latindex–SistemaRegionaldeInformación

en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal

http://www.latindex.unam.mx• Clase–Basededatosbibliográficade

revistas de ciências sociales y humanas http://dgb.unam.mx/clase.html

Versão on-line/version online:http://www.sbhe.org.br/

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Revista Brasileira deHISTóRIA EDUCAÇÃO

SBHESociedade Brasileira de História da Educação

da

janeiro/abril 2010 no 22

ISSN 1519-5902

Apoio:

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EditoRA AutoREs AssociAdos LtdA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de oliveira, 901 | Barão Geraldo | cEP 13084-008campinas-sP | telefone/Fax: (55) (19) 3289-5930e-mail: [email protected] | catálogo on-line: www.autoresassociados.com.br

conselho Editorial “Prof. casemiro dos Reis Filho”Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialRodrigo Nascimento

RevisãoEdson Estavarengo Júnior

diagramação e composiçãoMM Design

Projeto Gráfico, Arte-FinalÉrica Bombardi

impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação, SBHE, Ed. Autores Associados, SP-Campinas, 2001

QuadrimestralPublicação da Sociedade Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

Revista Brasileira de História da Educação, n. 22, 216 p., jan.-abr. 2010.

A RBHE tem o objetivo de divulgar a produçao científica nacional e internacional sobre História e Historiografia da Educação, que se revele de interesse para as grandes áreas de pesquisa em Educação e em História, abrindo novos horizontes de discussão e estimulando debates interdisciplinares.

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Sumário

EditoRiAL 9

dossiê: Viagens de educadores, circulação e produção de modelos pedagógicos 13

ApresentaçãoJosé Gonçalves Gondra

o olhar comparativo: Estevão de oliveira e os grupos escolares em Minas, noRio e em são Paulo 17Carla Simone ChamonLuciano Mendes de Faria Filho

Viajar para legitimar: Armanda Álvaro Alberto na comissão de intercâmbioBrasil-uruguai (1931) 43Ana Chrystina Venancio Mignot

Exemplaridade institucional e renovação pedagógica: reflexões a partir dasviagens de professores do instituto de odivelas 65Joaquim Pintassilgo

Olhar o outro, ver a si: um professor primário brasileiro no “Velho Mundo”(1890-1892) 87Alessandra Frota Martinez de SchuelerJosé Gonçalves Gondra

ARtiGos

Manuais e programas escolares franceses de história e de geografia: identidades,globalização e construção europeia (1995-2002) 113Claude Carpentiertradução: dislane Zerbinatti Moraes

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Ensino de história e cultura escolar: fontes e questões metodológicas 141Antonio Simplício Neto

As escolas públicas de primeiras letras de meninas: das normas às práticas 169Mônica Yumi Jinzenji

ENtREVistA

siete preguntas a Antonio Viñao Frago 199Por Marcus Taborda

oRiENtAÇÃo Aos coLABoRAdoREs 213

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EditoRiAL 9

dossier: Educators’ trips, circulation and production of pedagogical models 13

PresentationJosé Gonçalves Gondra

the comparative look: Estevão de oliveira and the elementary schools in Minas,Rio and são Paulo 18Carla Simone Chamon Luciano Mendes de Faria Filho

to travel to legitimize: Armanda Álvaro Alberto in the commission ofBrazil-uruguay interchange (1931) 44Ana Chrystina Venancio Mignot

institucional exemplary and pedagogical renewal: reflections from the travel ofteachers of the instituto de odivelas [odivelas institute] 66Joaquim Pintassilgo

Look at the other one, see yourself: a Brazilian primary teacher in the“old world” (1890-1892) 88Alessandra Frota Martinez de SchuelerJosé Gonçalves Gondra

ARticLEs

French textbooks and scholar programs of history and geography: identities,globalization and European construction (1995-2002) 114Claude CarpentierTranslated by Dislane Zerbinatti Moraes

Contents

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History teaching and school culture: autorithy and methodological questions 142Antonio Simplício Neto

the elementary public schools for girls: from norms to practices 170Mônica Yumi Jinzenji

iNtERViEW

seven questions to Antonio Viñao Frago 199By Marcus Taborda

GuidEs FoR AutHoRs 213

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Editorial

9Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 9-11, jan./abr. 2010

Editorial

Neste número 22 da Revista Brasileira de História da Educação (RBHE), a comissão Editorial vem saudar a nova diretoria da socie-dade Brasileira de História da Educação, nas pessoas dos Professores doutores Wenceslau Gonçalves Neto e José Gonçalves Gondra. Eleita por sufrágio dos associados, essa diretoria tomou posse na Assembleia Geral da entidade, que teve lugar durante o iX congresso iberoamericano de História da Educação Latino-americana, realizado em novembro de 2009 na capital do Rio de Janeiro. desejamos todo o sucesso aos colegas que assumiram os diversos cargos e responsabilidades concernentes à gestão da entidade que há uma década legitimamente representa a comu-nidade brasileira de historiadores da educação. saudamos, igualmente, a diretoria que encerrou o mandato sob merecidos aplausos, nas pessoas da Professora doutora cláudia Alves e do Professor doutor Wenceslau Gonçalves Neto, cujo apoio generoso e incondicional à RBHE permitiu à Revista a manutenção de sua excelente qualidade e representatividade.

A própria comissão Editorial, por sua vez, foi recomposta, em obediência ao revezamento previsto no Estatuto. A referida Assembleia Geral endossou as indicações de duas novas colegas para a sua composição, a Professora doutora Heloísa Helena Pimenta Rocha (Unicamp) e a Professora doutora Flávia obino corrêa Werle (Unisinos), a quem, publicamente, damos as boas-vindas neste Editorial. Expressamos, além disso, o nosso agradecimento e a devida reverência

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Editorial

10 Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 9-11, jan./abr. 2010

ao competente trabalho realizado nesta comissão pelos colegas dislane Zerbinatti Moraes e carlos Eduardo Vieira, a quem as professoras vieram substituir. A RBHE conta também, a partir deste número, com novos conselhos Editoriais, compostos por renomados historiadores da educação, que representam programas e instituições de ensino e pesquisa de todo o país, bem como dos países com os quais nossa comunidade mantém relações mais próximas. A todos os membros dos conselhos agradecemos pelo aceite e expressamos a honra de poder contar com suas preciosas colaborações.

Neste número, que abre o conjunto de três edições para as quais obtivemos os recursos do Edital Mct/cNPq-MEc/capes nº 16/2009 - Editoração e Publicação de Periódicos Científicos Brasileiros, a RBHE traz o dossiê “Viagens de educadores, circulação e produção de modelos pedagógicos”, organizado por José Gonçalves Gondra, cujos artigos ver-sam sobre a interessante e, ao menos entre nós, pouco explorada temática das viagens de educadores. como Gondra bem expressa na apresentação do dossiê, os artigos de carla simone chamon e Luciano Mendes de Faria Filho, Ana chrystina Venancio Mignot, Joaquim Pintassilgo e Alessandra Frota Martinez de schueler trazem os momentos decisivos em que tais viajantes tornaram-se vetores da circulação de livros, ideias e modelos pedagógicos, compondo em seu conjunto um instigante panorama para novas pesquisas e debates.

Apresentamos, também, o artigo de claude carpentier, “Manuais e programas escolares franceses de história e geografia: identidades, glo-balização e construção europeia (1995-2002)”, em tradução de dislane Zerbinatti Moraes, que, ancorado em substantiva documentação, trata do modo como os manuais e programas dessas disciplinas têm apresentado aos secundaristas franceses a problemática questão do duplo processo de globalização e de construção da identidade europeia. o artigo de Antonio simplício Neto, “Ensino de história e cultura escolar: fontes e questões metodológicas”, articulando discussão teórica e pesquisa com documentação escolar, defende uma história das disciplinas que privile-gie a análise das práticas escolares, a fim de superar interpretações que sobrelevam as problemáticas externas e que tendem a empobrecer o

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Editorial

11Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 9-11, jan./abr. 2010

papel da escola e de seus agentes na produção dos saberes disciplinares. o artigo de Mônica Yumi Jinzenji, “As escolas públicas de primeiras letras de meninas: das normas às práticas”, trata da organização dessas escolas em Minas Gerais no século XiX, com especial atenção para as tensões entre controle e resistência que povoaram o cotidiano de pro-fessoras, alunas e suas famílias. Esta edição encerra-se com a entrevista do reconhecido historiador da educação espanhol, Antonio Viñao Frago, que, respondendo a Marcus taborda, aborda tópicos de grande interesse para historiadores da cultura e da educação e para educadores, tais como a importância do espaço e do tempo na organização e cultura escolares, a realização histórica da utopia da escola para todos e o propalado ana-cronismo da instituição escolar na sociedade contemporânea.

uma ótima leitura a todos!

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José Gonçalves GoNdRA

13Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 13-16, jan./abr. 2010

Dossiê: Viagens de educadores, circulação e produção de modelos

pedagógicos

Apresentação

José Gonçalves Gondra

desde os antigos, as viagens têm se proliferado e, de modo geral, podem ser compreendidas com base em suas motivações, itinerário, duração, produtos e efeitos. A literatura de viagem, por sua vez, tem se constituído em objeto de inúmeras reflexões no campo da história e da literatura, por exemplo. No entanto, no campo da educação, esse tipo de discurso não tem recebido muita atenção e, quando é referido, cumpre mais a função de ilustrar determinados aspectos, sem se problematizar o próprio estatuto do relato dos viajantes – em especial o de educadores –, o modo como narram suas viagens e os efeitos destas.

Em geral, as viagens dos educadores funcionam como técnica de investigação e de conhecimento, como prática de observar, experimentar, comparar e produzir conhecimento sobre o outro. A experiência da obser-vação, e o que se observa, tem se tornado uma experiência significativa de vários homens e mulheres, em tempos e espaços diversos, inclusive na de educadores envolvidos com os sistemas de instrução, com as escolas e com os problemas da educação.

Professores, diretores de escola, inspetores de ensino, médicos, bacharéis, jornalistas, religiosos e políticos envolvidos com projetos educacionais enfrentaram as viagens, por vezes em condições adversas, como forma de testemunhar o que se fazia no espaço do outro. Esse

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dossiê: Viagens de educadores, circulação e produção de modelos pedagógicos

14 Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 13-16, jan./abr. 2010

esforço terminava por investir o viajante de um saber que incrementava seu capital intelectual e político. com isto, o relato da viagem, menos que uma descrição imparcial, transforma-se em um efetivo instrumento e forma de exercício de poder. Nessa direção, trabalhamos com a hipótese de que as viagens funcionam como dispositivo comparativo e, ao mesmo tempo, um observatório privilegiado para refletir-se acerca da circulação de ideias, projetos e modelos educacionais em curso.

Neste dossiê, viagens de brasileiros e portugueses são exploradas como condição para pensar esse tipo específico de literatura pedagógica e, do mesmo modo, para dar a ver homologias e diferenças no que motiva, nos destinos e nos efeitos das viagens aqui analisadas1. Acreditamos que esse procedimento possibilita aos historiadores da educação construir um entendimento adicional acerca das conexões nacionais, continentais e intercontinentais dos modelos pedagógicos em múltiplas escalas (lo-cal, regional, nacional e transnacional) e, por conseguinte, repensar as classificações com que frequentemente operamos.

iniciamos o dossiê com as viagens no interior da nação, privilegiando a viagem que o inspetor técnico de ensino Estevão de oliveira empreende

1. Este dossiê reúne, com ligeiras mudanças, os textos apresentados na sessão coorde-nada homônima, apresentada durante o Vii congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, ocorrido na universidade do Porto, em junho de 2008. Essa sessão contou com a participação de Rogério Fernandes, professor jubilado da Faculdade de Psicologia e de ciências da Educação de Lisboa que, na ocasião, apresentou o trabalho intitulado “irene Lisboa e Áurea Judite Amaral: duas viagens na Educação Nova”. segundo o autor, as viagens dessas duas educadoras (irene Lisboa, 1892-1958 e Áurea Judite Amaral, 1889-1977) podem ser consideradas expressões de uma tendência identificada em Portugal, desde os começos do século XX, para procurar, no exterior, modelos pedagógicos que respondessem às dificuldades do ensino. Foi esse um dos objetivos do decreto de 29 de maio de 1907, que instituía um concurso para bolsas de estudo, visitas ou estágios em instituições situadas em outros países europeus, tendo sido nesse quadro, que diversos educadores portugueses visitaram Genebra, capital da teoria da Escola Nova, entre os quais as duas educadoras em questão. uma versão desse texto pode ser encontrada no livro Viagens Pedagógicas, publicado em 2007 pela editora cortez, sob a organização de Ana chrystina Mignot e José Gondra. Além dos integrantes deste dossiê, esse livro contém artigos de Antonio Viñao, Pedro L. Moreno-Martínez, clarice Nunes, Jussara santos Pimenta, Marta chagas de carvalho e Jean Houssaye.

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José Gonçalves GoNdRA

15Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 13-16, jan./abr. 2010

ao Rio de Janeiro e são Paulo, no início do século XX. comissionado pelo governo do estado de Minas Gerais para visitar as escolas paulistas e cariocas, procura reunir elementos no intuito de delinear um plano de reforma para o ensino público primário e normal mineiro. o objetivo era levantar e organizar informações necessárias que habilitassem o le-gislador mineiro “a introduzir melhoramentos na organização do ensino público”.

Na sequência, exploramos duas viagens continentais, uma na América do sul e uma na Europa. No caso latino-americano, examina-mos a viagem que Armanda Álvaro Alberto realizou a Montevidéo, na primavera de 1931. integrava a Embaixada de intercâmbio intelectual, nomeada por Belisario Penna – que ocupava interinamente a pasta do Ministério da Educação e saúde – em cumprimento do decreto presi-dencial que regulamentava a execução do convênio assinado entre os dois países com a finalidade de promover, anualmente, “o intercâmbio de professores e alunos ou qualquer outro ato de aproximação espiritual entre estes dois países”.

No caso da viagem dentro da Europa, ela nos remete à prática de uma instituição: o instituto Feminino de Educação e trabalho, atual instituto de odivelas. Nesse artigo, o centro consiste no estudo de via-gens pedagógicas realizadas por três professores desse estabelecimento, em um período delimitado, os anos 1920. Nesse caso, os professores se dirigiram à Alemanha, Bélgica e suíça, com o espírito assemelhado ao de outros colegas portugueses e brasileiros.

Por fim, examinamos uma viagem intercontinental, entre Brasil e Europa, baseados no estudo do relatório de um professor público pri-mário da capital do Brasil. Luiz Augusto dos Reis, em viagem oficial entre 1890 e 1892, teve oportunidade de visitar escolas e instituições educacionais em Portugal, Espanha, França e Bélgica. como se pode observar, o endereço do outro parece mesmo estar acompanhado da vontade de observar um sistema considerado mais desenvolvido para e, de acordo com o exame do mesmo, dimensionar e articular medidas a serem executadas no plano local.

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dossiê: Viagens de educadores, circulação e produção de modelos pedagógicos

16 Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 13-16, jan./abr. 2010

A variedade de destinos constitui-se sinal de que os deslocamentos não possuíam uma única direção. os vapores e diligências conduziram educadores a destinos diversos, ainda que todos, de algum modo, es-tivessem comprometidos com o sonho de pensar sua experiência em contraste com o que se pode ver, ouvir, ler e sentir em contato com a experiência do outro.

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carla simone cHAMoN e Luciano Mendes de FARiA FiLHo

Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 17-41, jan./abr. 2010 17

O olhar comparativo:

Estevão de Oliveira e os grupos escolares em Minas, no Rio e em São Paulo

carla simone chamon*

Luciano Mendes de Faria Filho**

Resumo: Este artigo analisa o relatório produzido pelo inspetor de ensino de Minas Gerais, Estevão de oliveira, em virtude da viagem realizada, em 1902, para os estados de são Paulo e Rio de Janeiro, com o objetivo de delinear um plano de reforma para o ensino público primário e normal mineiro. Nessa viagem, Estevão visitou algumas escolas e observou os modelos escolares e os métodos pedagógicos ali adotados, refletindo, por comparação, sobre o estado da instrução mineira, sendo lugar comum de toda a argumentação o atraso de Minas Gerais em relação aos estados visitados. Por meio do exercício comparativo, Estevão construiu o outro e a si mesmo (no caso, Minas Gerais) a partir de semelhanças e diferenças, em um esforço contínuo de estabelecimento de uma classificação dos três estados dentro do Brasil.

Palavras-chave:viagem; comparação; grupos escolares; reforma do ensino.

* Professora do centro Federal de Educação tecnológica de Minas Gerais, formada em história pela uFMG e doutora em educação pela uFMG.

** Professor associado da universidade Federal de Minas Gerais (uFMG), doutor em história da educação, pesquisador do conselho Nacional de desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) vinculado ao GEPHE-UFMG.

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o olhar comparativo

18 Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 17-41, jan./abr. 2010

The comparative look:

Estevão de Oliveira and the elementary schools in Minas, Rio and São Paulo

carla simone chamon Luciano Mendes de Faria Filho

Abstract: this article analyzes the report produced by Estevão de oliveira – educational supervisor in Minas Gerais – as a result of the journey undertaken in 1902 to são Paulo and Rio de Janeiro. the purpose was to outline the public primary and normal teaching reform in Minas Gerais. in this trip, Estevão visited some schools and observed the educational models and the pedagogical methods adopted there, reflecting, by comparison, about the stage of education in Minas Gerais, constantly showing how behind it was in relation to the visited states. By means of comparative exercise, Estevão built the other and himself (in this case, Minas Gerais) from similarities and differences, in a continuous effort to classify the three states within Brazil.

Keywords:trip; comparison; elementary schools; educational reform.

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carla simone cHAMoN e Luciano Mendes de FARiA FiLHo

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No início de 1902, o inspetor técnico de ensino, Estevão de oliveira, foi comissionado pelo governo do estado de Minas Gerais para visitar as escolas paulistas e cariocas no intuito de delinear um plano de reforma para o ensino público primário e Normal mineiro:

Com o intuito de reunir as necessárias informações que habilitem o legis-lador mineiro a introduzir melhoramentos na organização do ensino público neste estado, o governo comissionou, em 6 de fevereiro do ano próximo passado, o sr. Major Estevão de oliveira para estudar a organização do ensino nos estados de são Paulo e Rio de Janeiro, apresentando minucioso relatório em que compendiasse as observações feitas e as ideias por elas despertadas [Relatório da Secretaria do Interior, 1903, p. 92].

Na viagem realizada para os estados de são Paulo e Rio de Janeiro, Estevão de oliveira observou de perto os modelos escolares e os métodos pedagógicos ali adotados, refletindo, por comparação, sobre o estado da instrução em Minas. Suas observações e reflexões resultaram na elabora-ção de um relatório, em que Estevão traçava um plano de reforma para auxiliar o Estado na tarefa de modernizar e tornar mais eficiente o ensino nas escolas mineiras. Publicado na forma de livro pela Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, ainda em 1902, o relato de Estevão ganhava o título de Reforma do ensino primário e Normal em Minas Gerais.

A produção desse relatório completava a experiência de viagem do inspetor, pretendendo ser a transcrição para o papel daquilo que Estevão pôde ver e experimentar nos estados visitados. Reflexão transformada em escrita, em que o olho era ordenado pela mão, o relatório era uma prestação de contas ao governo de sua viagem comissionada, ao mesmo tempo em que era o momento de compartilhar percepções, opiniões e conhecimentos sobre um outro com seus contemporâneos.

Ao tomar esse relato – Reforma do ensino primário e Normal em Minas Gerais – como objeto de análise, o que se pretende aqui é perceber como, nesse movimento, Estevão buscou, a partir de uma retórica da alteridade, transcrever esse outro por meio de um exercício comparativo, inscrevendo o mundo que ele contava, no interior do mundo ao qual se

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dirigia. segundo François Hartog (1999, p. 240), esse exercício permite construir o outro a partir de semelhanças e de diferenças, traçando e abolindo, simultaneamente, as fronteiras entre eles. Na busca de uma transcrição possível, a distância entre dois mundos (o que se conta e o mundo em que se conta) mantém-se e reduz-se ao mesmo tempo, ou seja, no exercício comparativo, o relato sobre o outro constitui-se numa espécie de “corte-sutura”: “a marca sempre presente do corte entre am-bos, bem como o signo, sempre retomado, de sua sutura” (Hartog, 1999, p. 254). Aqui, opera-se um distanciamento e um corte entre esses dois mundos: o adiantamento do outro e o atraso e a ignorância do “nós”, ao mesmo tempo em que se opera uma sutura, uma aproximação: o mundo atrasado pode assimilar os códigos da civilização. Nesse movimento, a narrativa de Estevão traçava um limite, uma fronteira entre o lá e o cá, ao mesmo tempo em que tornava “possível uma ultrapassagem” (certeau, 1982, p. 93).

Ao comparar e colocar em relação o nós e os outros, era como se Estevão de oliveira se perguntasse: como nós nos vemos quando olha-mos os outros? A resposta, como veremos, era a constatação do atraso no estado da instrução pública mineira.

Além disso, o exercício comparativo permitiu a Estevão ir além de uma mera descrição da viagem e do que ele viu lá, possibilitando uma “atitude reflexiva transposta para o papel” (Pimentel, 1998, p. 12). Nesse sentido, o relatório era mais do que um compêndio das observações feitas, apresentando, logo no início, “as ideias por elas despertadas”.

Essas ideias despertadas na viagem – o visto – articulavam-se, no caso de Estevão de oliveira, ao já sabido por ele. A densidade do relatório, o visto e observado que ali tomaram a forma de escrita, estavam ancorados na experiência e no conhecimento sobre o assunto, adquiridos por Estevão de oliveira ao longo de sua trajetória até aquele momento. Por isso, para reforço e credibilidade de seu relato, ele elaborou seu texto a partir do que viu, ouviu e leu, utilizando informações advindas de três tipos de fontes: a) uma literatura de ampla circulação entre a intelectualidade de seu tempo, notadamente o Dictionaire de pédagogie, de Buisson, e os livros Pedagogie historique, de Rousselot, Education intelectuale, moral

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et physique, de spencer, e os trabalhos de Ryan sobre higiene escolar. No caso do Brasil, os pareceres de Rui Barbosa sobre instrução pública foram os textos mais abundantemente citados. No entanto, a esses autores somavam-se outros tantos, como Rabelais, Montaigne e vários outros, clássicos ou contemporâneos; b) a legislação educacional, em vigor, das províncias/estados de Minas, Rio e são Paulo nas últimas décadas, assim como informações oriundas dos relatórios de inspetores e demais autoridades educacionais dos três estados; c) as informações colhidas in loco nas visitas realizadas ao Rio de Janeiro e a são Paulo.

Além disso, antes da viagem e da produção do relatório, Estevão já se (pre)ocupava com a causa educacional, sendo sua trajetória mar-cada pela defesa e articulação entre educação e República: “Fora dessa especialidade [a crônica política], apenas um assunto lhe interessava e no que era igualmente versado – a instrução, devido ter exercido o magistério e vários cargos que condiziam com a instrução pública” (Correio de Minas, 27 ago. 1926). Nesse sentido, a viagem e a produção do relatório somavam-se a um engajamento de Estevão de oliveira, o que fazia dele um intelectual da educação naquele momento, produtor de diagnósticos e prognósticos com vistas a uma intervenção eficaz no ensino público mineiro.

Estevão de Oliveira e a causa educacional

Estevão de oliveira1 nasceu em 28 de janeiro de 1853 na freguesia são José do turvo, município de Piraí, província do Rio de Janeiro. de origem modesta, Estevão era filho do professor Cesário José Cardoso de Oliveira e de Joaquina Maria de Oliveira, tendo ficado órfão de mãe

1. As informações biográficas aqui apresentadas foram baseadas principalmente nos trabalhos de Abílio Barreto (1926, 1953) sobre Estevão de oliveira e em algumas notas de caráter biográfico escritas por jornalistas, como prefácio de seus livros, ou publicadas em jornais por ocasião de sua eleição para a Academia Mineira de Letras e por ocasião de sua morte.

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aos 9 anos de idade e de pai aos 12. Foi, por isso, criado por seus avós maternos. Casou-se em 1882 e teve seis filhos. Morou em Cataguazes, campo Limpo (MG) e estabeleceu-se em Juiz de Fora no ano de 1893, onde permaneceu até a sua morte, em 1926.

segundo seus biógrafos, sua formação escolar ocorreu tardiamente. Aos 21 anos, sabendo apenas ler e escrever, completou seu curso primário numa escola particular em cataguazes, matriculando-se, logo em seguida, no colégio Luiz do Lago, em Volta Grande, município de Além Paraíba, como aluno de preparatórios, onde estudou por dois anos. Ao lado dessa educação escolar, Estevão dedicou-se a estudar sozinho a pedagogia, a língua inglesa e a literatura latina.

Profissionalmente, atuou como professor de ensino primário e se-cundário, inspetor de ensino, jornalista, literato e tradutor dos clássicos latinos. iniciou na carreira de professor público de primeiras letras em 1879, na pequena localidade mineira de Empoçado, sendo transferi-do, em 1884, para campo Limpo. Foi inspetor do primeiro distrito de imigração2 e inspetor extraordinário de ensino em fins da década de 1890. Em 1902, foi encarregado pelo governo do Estado de estudar a organização do ensino primário em são Paulo e Rio de Janeiro, de cuja viagem resultou a publicação do relatório Reforma do ensino primário e Normal em Minas (oliveira, 1902). depois disso, exerceu a função de inspetor técnico de ensino até 1909, cargo ao qual retornou alguns anos depois e permaneceu até a sua morte, em 1926. Foi também professor de latim em colégios de Juiz de Fora, fiscal geral dos exames parcelados do Estado, membro fundador da Academia Mineira de Letras, criada em 1910 – renunciando à “imortalidade” pouco antes de falecer – e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.

sua atuação no jornalismo iniciou-se em 1885, quando ainda morava em cataguazes, onde fundou seu primeiro jornal, intitulado O Povo (1885-1889). Fundou e dirigiu, também, os jornais O Popular (cataguazes, 1889-1893), Minas Livre (Juiz de Fora, 1893) e Correio

2. Essa inspetoria foi criada no final da década de 1890 e teve curta duração.

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de Minas (Juiz de Fora, 1894-1914)3, além de ter colaborado em jornais cariocas e mineiros. defensor da República, da abolição da escravatura e da educação, Estevão de oliveira trabalhou em torno de trinta anos no jornalismo, tendo feito muitos discípulos nesse meio, além de um grupo privilegiado de interlocutores e amigos.

Sua produção literária e técnico-pedagógica foi significativa. Uma de suas primeiras publicações foi um trabalho sobre instrução pública, em 1884, cuja edição, segundo seus biógrafos, teria se esgotado rapidamen-te4. Publicou também Pela República (1896), livro de crônicas políticas; Reforma de ensino público primário e Normal em Minas Gerais (1902), relatório sobre a organização do ensino em são Paulo e Rio de Janeiro e plano de reforma da instrução pública em Minas; Crônicas e traduções (1908), coletânea de crônicas escritas para o jornal Correio de Minas, sob o pseudônimo de Neophito e tradução de algumas odes de Horácio Flacco; Rudimentos de história pátria (1909), compêndio para uso nas escolas primárias mineiras; Notas e epístolas (1911), coletânea de cartas políticas por ocasião da campanha civilista. traduziu ainda o segundo livro da Eneida e obras de cícero, Virgílio, Horácio e tito Lívio em Traduções avulsas (1924).

No desempenho de diferentes papéis, jornalista, professor e inspetor técnico de ensino, Estevão de oliveira produziu uma representação ne-gativa da instrução pública primária em território mineiro. Nos primeiros anos do período republicano, suas denúncias sobre a precariedade das escolas, a ausência de mobília adequada, de materiais didáticos e de métodos de ensino, a falta de preparo do professorado, os baixos salários, o desinteresse de pais e alunos eram frequentes5. Resultado do descaso do governo, ou de políticas públicas equivocadas, o ensino em Minas Gerais possuía, segundo ele, uma face “tradicionalmente atrasada e ro-tineira” (Oliveira, 1902, p. 4). Em Minas, estado de grandes proporções

3. Em 1914, o jornal Correio de Minas passa a ser dirigido pelos filhos de Estevão de oliveira.

4. Não foi possível, até o momento, localizar essa obra.5. sobre a representação negativa da instrução pública no início da república ver:

Faria Filho, 2000; Veiga, 1999.

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geográfica e populacional, tudo estava “por ser feito no departamento do ensino primário”, porque era “ilógico e descoordenado” o pouco que já havia sido implantado (idem, p. 3).

contudo, Estevão não foi apenas um crítico ferrenho do estado da instrução. Foi também um propositor: se apontava o estado lastimável do ensino público, não deixava de apontar soluções. Nesse movimento, Estevão desenvolveu uma fórmula que, com variações de palavras, mas não de sentidos, vai perpassar a sua participação nesse debate e encon-trar uma elaboração mais densa no relatório de 1902: uniformização do ensino e formação do professor.

desde o início do período republicano, essa fórmula aparecia nos editoriais do seu jornal Minas Livre, quando Estevão empregava sua pena jornalística para denunciar as mazelas do ensino no Estado. segundo ele, as novas políticas implementadas nesse ramo da administração pública nada mais faziam do que deitar remendo novo em panos velhos. No caso do provimento de cadeiras no ensino primário, Estevão argumentava que não bastava o estabelecimento de concursos, o que aparentemente levaria ao ingresso de pessoal qualificado no magistério, sendo antes necessário uniformizar o ensino e preparar o professor:

os professores, portanto, que forem nomeados em virtude do concurso a que se vai proceder, obedecerão aos velhos processos da condenada pedagogia, não sendo presumível que se apresente pessoal idôneo para a regência de tais cadeiras, visto como em nada melhorou-se a sorte do professorado.

continuaremos a ver, impassíveis, a ignorância patrocinada pelos poderes públicos empolgar as cadeiras de ensino, quando o simples bom senso admi-nistrativo nos está indicando a conveniência de adiar-se, por algum tempo, o preenchimento de vagas no magistério primário, pelas circunstâncias em que o congresso colocou o problema.

Além de passar tal serviço à competência das municipalidades, é fácil supor-se que a reforma do ensino cogite dos meios de uniformizar-se o ensino em todo o Estado, bem como dos meios de elevar-se o nível social do professorado. Aos conselhos municipais caberá, certamente, presidir a escolha do professorado, decretando-lhe os vencimentos, bem como criando

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verbas para o serviço de custeio. ora, não podendo ser outra a organização do ensino, não nos parece razoável que se preencham agora algumas dezenas de cadeiras, segundo os moldes antigos, e com professores de duvidosa capaci-dade, operando-se assim uma divisão perniciosa no sistema do ensino. seria conveniente antes, espaçar-se por algum tempo a nomeação de professores primários, a fim de que a reforma fosse completa, e produzisse os consequentes resultados [Minas Livre, 12 jul. 1891, p. 1].

Estevão insistiu nessa questão em outros editorias, nos quais aponta-va sempre a necessidade de “sistematizar preceitos e regras gerais sobre a capacidade profissional dos educadores, sobre as disciplinas e meios para a educação cívica”, bem como sobre a necessidade de se “criar escolas Normais de aprendizagem” (Minas Livre, 3 set. 1891, p. 1).

A preocupação com o estabelecimento de um plano uniforme de ensino para o estado e com a qualificação do professorado se completava com a preocupação com os métodos de ensino e livros didáticos, com as matérias a serem ensinadas, com a elevação dos vencimentos dos pro-fessores, com a edificação de prédios apropriados para o ensino e com uma fiscalização eficaz e profissionalizada que permitisse acompanhar de perto todo esse processo, impedindo o desvirtuamento ou mesmo o não cumprimento da reforma. com relação a esse último ponto, Estevão afirmava que a inspeção técnica do ensino, “propugnada pelos idôneos e, apregoada sempre como indispensável e vantajosa”, era condição para a moralização desse ramo da administração pública. Por isso, criticava duramente a gratuidade do encargo de inspetor, o que impedia a sua efetivação e independência dos chefes locais (oliveira, 1901, p. 761).

Todas essas questões eram, no seu entendimento, de suma impor-tância para a república brasileira, sendo a difusão do “ensino primário por todas as camadas” matéria de “urgentíssima necessidade” e que justificavam o dispêndio de grandes somas financeiras (Minas Livre, 15 out. 1891, p. 1).

transformada em agenda política nos editoriais de seu jornal, a causa educacional ganhava densidade em seus relatórios de inspeção de ensino. Neles, Estevão de oliveira não apenas relatava o que via, mas

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analisava o estado da instrução pública mineira e voltava a reafirmar a sua fórmula. denunciando que o alegado progresso da educação escolar não saía do papel, Estevão afirmava que o que havia era uma “febre criadora de escolas e o seu consequente provimento provisório”, sem que, antes disso, houvesse um esforço em organizar uniformemente o ensino no Estado e propiciar condições de formação para o professorado. Para ele, essa situação de “suposta prosperidade no ensino primário”, medida pelo crescente número de escolas e de professores, acabava por contribuir “para a progressão geométrica do analfabetismo”, não sendo o ensino primário “inteira e convenientemente transformado” (oliveira, 1901, p. 758).

o compromisso e o engajamento de Estevão em relação à causa educacional estavam intimamente ligados a seu compromisso republi-cano, uma vez que, segundo ele, “o elemento popular analfabeto não é argamassa social, nem se valoriza para a conquista definitiva da liberdade, fundada na independência, no trabalho produtivo e na instrução elemen-tar” (oliveira, 1911, p. XLiV). Nesse sentido, sua intervenção no campo educacional estava ancorada na crença da importância da educação na transformação da sociedade em direção ao progresso moral e material, elementos fundamentais para a República que se consolidava.

Nas páginas de seu livro Pela Republica (1896), no qual Estevão reuniu artigos escritos como resposta aos monarquistas que criticavam o regime recém-instalado, a República estava sempre relacionada à liberdade, sendo apresentada como sinônimo de “governo de opinião”, “regime democrático”, lugar de “povo livre e soberano”. Assim, para que a implantação do “novo regime” (que era, ainda, mais crença que realidade, segundo ele) fosse feita com sucesso, uma das condições ne-cessárias era a adesão e a participação do povo. Essa questão aparecia com frequência nas páginas de seu jornal, como no editorial do Minas Livre, em 1891, em que Estevão criticava a imprensa ouro-pretana que não repassava proficuamente os despachos do governo para as demais localidades, impedindo com isso a apreciação e o exame crítico, por parte da população, dos negócios do Estado:

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sem esse exame, feito com critério e oportunidade, nenhuma opinião pode-se formar na massa dos dirigidos, de modo a rodear-se o governo, me-recidamente, do apoio popular necessário à sua existência e fortaleza, ou a alienar a simpatia pública, quando se houver afastado da melhor orientação governamental [3 set. 1891, p. 1].

sem “apreciação dos negócios públicos”, num regime de “absolu-ta publicidade”, sem uma opinião formada, não se concretizaria, para Estevão, a verdadeira soberania popular, característica primordial da República. Nessa questão, Estevão destacava o papel a ser cumprido pelo jornal e pela escola, como instrumentos capazes de retirar o povo do caos para a “existência política” (oliveira, 1901, p. 756): a imprensa permi-tiria a circulação de fatos relacionados aos negócios públicos e a escola ensinaria às crianças “a compreensão exata dos seus futuros deveres na sociedade e perante o Estado” (oliveira, 1902, p. 4), num processo, ao mesmo tempo, de integração e de homogeneização social.

Provavelmente, em função dessa estreita ligação entre educação do povo e regime republicano e das suas críticas ácidas, mas bem fun-damentadas e acompanhadas de reflexões propositivas elaboradas na sua função de jornalista e de inspetor de ensino, Estevão de oliveira foi comissionado pelo governo do Estado de Minas Gerais, no primeiro semestre de 1902, para visitar as escolas paulistas e cariocas. Nas ideias despertadas nessa visita e transformadas em relato, o visto e o ouvido articulavam-se ao já sabido por Estevão, que, ao propor os caminhos para a regeneração do ensino mineiro, repetia, de forma mais acabada e elaborada, a sua antiga fórmula:

Quem diz “resolver o problema do ensino primário”, ou antes, e muito mais propriamente, aliás, quem diz “lançar os fundamentos de racional organização”, para seu ulterior desenvolvimento coordenado, implica neces-sariamente, como ideias primárias concebidas a priori:

a) Fundação da escolab) Formação do professorado

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[...] fundação da escola significa: criar institutos de ensino primário, em que tudo seja previsto, desde higiene até as menores regras em particularidades pedagógicas; [...] formação do professorado quer dizer: preparar pessoal téc-nico competente para execução de um plano logicamente traçado de antemão [...] [oliveira, 1902, p. 3-4].

O relatório de 1902: o olhar comparativo de Estevão de Oliveira

No relatório produzido por Estevão de oliveira em 1902, a defesa da uniformização do ensino e da formação do professor tantas vezes repetida ganhou densidade, seja pela utilização de autores de renome que participavam do debate sobre a educação, seja pelo exercício da comparação, por meio do qual Estevão operou uma aproximação/dis-tanciamento entre Minas Gerais e os estados visitados. Ganhou também a forma de um projeto de reforma para as escolas mineiras.

o livro publicado por Estevão de oliveira, com 184 páginas, foi organizado em quatro partes. como podemos ver no quadro a seguir, na primeira, uma longa introdução de quase oitenta páginas, ele procurou estabelecer os elementos cardeais de sua visão de educação e de escola, sendo esta a única parte que está dividida em títulos e capítulos. os títulos tratam, respectivamente, da educação física, intelectual e moral, e os seus diversos capítulos tratam de assuntos específicos a respeito de cada uma dessas dimensões da formação. Aqui, como em várias partes do livro, a influência de Spencer não era apenas vocabular ou retórica, mas, sobretudo, na organização do conjunto da argumentação.

As demais partes tratam, especificamente, do relatório da visita às escolas paulistanas, às escolas fluminenses e, ao final, de estabelecer os aspectos que deveriam nortear a reforma que Estevão de oliveira esperava que fosse levada a cabo em Minas Gerais.

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A Reforma de ensino público primário e Normal em Minas Gerais – Relatório apresentado ao sr. dr. secretário do interior do Estado de

Minas Gerais, em 3 de agosto de 1902.Reforma do Ensino Público – introdução ao Relatório apresentado ao sr. dr. secretário do interior de Minas Gerais, pelo comissionado Estevão de oliveira

03

título i 06capítulo i Higiene escolar – educação física 06capítulo ii Mobiliário escolar 18capítulo ii Prédios escolares – sua cubagem; iluminação 27título ii 42capítulo i Educação intelectual – particularidades 42capítulo ii Primeira aprendizagem; lições de coisas 49

capítulo iii Leitura e escrita. Métodos – palavração, silábico, síntese, análise 54

capítulo iV Ensino da língua materna 69título iii Educação moral 77capítulo Único Breves considerações 77

o Ensino no Estado de são Paulo 81Grupos escolares 117

Ensino no Estado do Rio 141Grupos escolares 154

o Ensino primário e Normal em Minas – seu característico – Pontos capitais da reforma 163

Ao longo do texto, tendo em vista a intenção de que o relatório cumprisse o duplo papel de justificar e fundamentar a reforma preten-dida, Estevão de oliveira, operou continuamente com a comparação, seja entre as experiências paulistanas e fluminenses, seja entre as duas, ou cada uma delas, e a mineira, seja, mais raramente, entre Minas ou o Brasil e o restante do mundo. o lugar comum de todo o relato e de toda a argumentação era que Minas Gerais se encontrava flagrantemente atrasada em relação aos estados visitados.

Assim, o esforço de Estevão de oliveira voltava-se, continuamente, para estabelecer, por meio da comparação, uma classificação dos três estados dentro do Brasil e, ainda que raramente, do Brasil dentro do mundo. A respeito desse último aspecto, na ausência de dados colhidos in loco nos diversos países citados, o inspetor utilizava-se de ampla li-teratura estrangeira para fundamentar suas posições, e, no que se refere

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aos dados, recorreu continuamente ao parecer do “dr. Rui Barbosa”, de longe a obra mais citada no livro.

Na classificação, explicitamente produzida pelo inspetor mineiro, podemos observar uma gradação que ia de são Paulo, o superior, até Minas Gerais, o inferior, passando pelo termo intermédio que era o Rio de Janeiro. de outro modo, podemos perceber também uma gradação que ia dos grupos escolares, o superior, para as escolas isoladas/singulares, o inferior, passando pelo termo intermédio que eram as escolas reunidas.

Em seu relatório a respeito das escolas paulistanas, Estevão de oliveira debitava à Reforma caetano de campos o “progresso do ensino naquele estado”, quer do ponto de vista administrativo, organi-zacional ou pedagógico. Ainda segundo ele, o eixo da reforma paulista eram as escolas modelo e os grupos escolares (oliveira, 1902, p. 87). Assumidamente entusiasta e defensor da superioridade das escolas paulistanas, o inspetor mineiro não deixava, entretanto, de apontar aspectos que mereceriam reparo, seja no que se refere à legislação, seja no que se refere às próprias experiências das escolas. Por isso, criticava o fato de o jardim de infância, a escola modelo, a escola com-plementar e a escola normal secundária não estarem subordinadas à superintendência da inspeção geral de ensino (idem, p. 129), chamava a atenção, citando relatórios de inspetoria, que algumas escolas paulis-tanas ainda funcionavam em verdadeiros pardieiros (idem, p. 63), ou, ainda, criticava a ação de uma professora “dessemelhante em tudo a quanto observamos nas excelentes escolas coletivas e na [isolada] do seu colega...” (idem, p. 135).

do mesmo modo, percebe que:

Apesar de enormes dispêndios efetuados com a sua instrução primária; de se disseminarem pelo interior os grupos escolares...; da boa remuneração oferecida aos professores...; [da] proveitosa emulação da classe professoral...; o Estado de s. Paulo não conseguiu ainda generalizar os efeitos da reforma, iniciada com tão grande êxito em 1892 [idem, p. 126].

No caso do Rio de Janeiro, o inspetor mineiro não se cansava de cha-mar a atenção para as enormes dificuldades financeiras pelas quais pas-

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sava o estado naquele momento, o que justificaria, em parte, a acanhada “evolução” pedagógica e escolar fluminense. Apesar de inúmeras críticas, conforme veremos, o inspetor não deixaria de sublinhar a excelência da formação dos professores normalistas daquele estado, imputada, em parte, à longa tradição de suas escolas normais, notadamente a de Niterói. Ao introduzir seu relatório sobre as escolas fluminenses, ele dizia:

incomparavelmente superior à organização do ensino elementar de Minas, nos seus diferentes graus e sob diversos aspectos, dista ainda o ensino pri mário fluminense do que se entende, na atualidade, por uma verdadeira orientação pedagógica; e é, sem dúvida alguma, grandemente inferior ao de são Paulo. deste conceito resulta que ao Estado de Minas só pode caber lastimável in-ferioridade em matéria de instrução rudimentar, quando mesmo comparada à contextura do seu ensino oficial com a de outra circunscrição federativa ainda atrasada [idem, p. 141]

No que se refere ao espaço físico, Estevão de oliveira defendia os grupos escolares de forma entusiasmada, entendendo que estes permiti-riam o estabelecimento de uma escola higiênica e organizada, segundo os preceitos modernos, além de facilitar a uniformidade do ensino e o controle e a emulação dos professores.

Essa belíssima instituição, a que o Estado de são Paulo deve hoje o pro-gresso e o brilho de seu ensino primário, é atualmente o instituto coletivo de instrução elementar, e não uma reunião de escolas isoladas, sob a direção de um dos seus respectivos professores. [...]

O grupo escolar de hoje, sob o influxo de uma nova compreensão pe dagógico-administrativa, não é mais a reunião de escolas, mas uma es-cola co letiva que tende a generalizar-se, extinguindo por toda a parte os institutos sin gulares, aos quais se não adapta plenamente a integralização do ensino moderno. Assim o fim do grupo escolar é substituir os institutos isolados pelos coletivos [...] [idem, p. 117].

Uma de suas principais preocupações dizia respeito às “casas para a escola”. Ainda na primeira parte, ao discorrer mais genericamente

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sobre os aspectos fundamentais da educação moderna, ele afirmava que era preciso que se estabelecesse “o princípio de que ao Estado, e não ao professor, incumbe o provimento de casas escolares” (idem, p. 28). Mais uma vez, recorrendo às experiências fluminense e paulista, Estevão balizava sua proposição:

desde a regulamentação de 1876, ficou firmado, na antiga Província do Rio de Janeiro, o salutar princípio de que não é o professor que cabe prover de casa a respectiva escola. Não se verificando ainda em nosso meio, naquele tempo, as ideias já vitoriosas em outros países sobre higiene escolar e educação física dos alunos, e naturalmente impossibilitado para construir prédios adaptáveis ao ensino, o governo provincial fluminense adotou o regime permanente de alugar casas [idem, p. 28].

salientava Estevão de oliveira que, mesmo não sendo esse o modelo ideal, o fato de os contratos de aluguel das casas serem de mais longa duração fazia com que os proprietários das melhores casas acabassem interessados em arrendá-las ao Estado.

Já no caso de são Paulo, a situação mostrava-se bastante diferente. Afir mava o inspetor que “pode-se considerar resolvido satisfatoriamente este problema no adiantado e progressista estado de são Paulo”, acres-centando que:

Embora não vigore ainda na legislação o princípio de que a todas as es-colas estaduais deva o Estado facultar a respectiva casa, tanto assim que, de 109 institutos primários singulares mantidos na própria capital, apenas nove são providos de prédios estaduais, a sistematização do ensino em agrupamen-tos, nas cidades populosas, tem permitido a construção de casas adaptáveis higienicamente a este serviço. dos oito Grupos-Escolares e quatro Escolas-Modelo existentes naquela grande cidade, apenas o Grupo Escolar do sul da Sé funciona em prédio não construído especialmente para este fim. Mas a ele foi convenientemente adaptado [idem, p. 29].

Já no caso do Rio de Janeiro, a visita às escolas singulares revelou uma realidade muito diversa:

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As escolas fluminenses, em geral mobiliadas com carteiras duplas, tipo americano, sem, contudo, obedecerem estas, em regra, às condições de pro-porcionalidade à idade das crianças, funcionam em prédios mantidos pelos municípios, a cujo encargo deixou a última reforma o provimento de casas aos institutos primários estaduais. Pelo simples enunciado destas linhas se vê que tais prédios, tomados de aluguel dentre casas destinadas à moradia privada das famílias, de modo algum podem satisfazer às exigências da higiene escolar [...].

Em itaperuna visitamos duas escolas. Na do sexo feminino, dirigida por professora incompetente, eram as disciplinas elementares ministradas sem método nem sistema, mesmo dentro da órbita do mal organizado programa regulamentar, porque é regra, escreveu spencer, que de maus educadores coisa alguma se pode esperar [idem, p. 150].

outro aspecto caro a Estevão de oliveira dizia respeito à formação e ao estatuto funcional do magistério. Ele elogiava o incentivo dado aos professores pelo governo paulista, para que estes se mobilizassem pela sua própria formação e chamava a atenção para a superioridade da for-mação dos professores paulistas e fluminenses em relação aos professores mineiros, verdadeiros analfabetos, segundo ele.

Em relação ao ingresso no magistério, o inspetor mineiro manifestava-se continuamente contra a entrada por concurso, como já havia feito em matérias jornalísticas, antes da viagem. Defendia a certificação nas escolas normais como condição necessária para o ingresso na carreira, mobilizando largamente, também aqui, o recurso à comparação:

Na antiga província do Rio de Janeiro o provimento efetivo de cadeira primária, por meio de concurso, foi virtualmente eliminado da legislação escolar pelo regulamento de 1876 [...].

Hoje é ali expressa a proibição, em virtude de instituto taxativo da respectiva lei (dec. 695, de i de agosto de 1901, art. 143), que só permite o provimento efetivo por meio de diploma normal [idem, p. 46-47].

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Já a respeito da experiência paulista ele afirmava:

são Paulo não excluiu ainda de sua legislação o pernicioso princípio. A prática, porém, vai consagrando a doutrina contrária, não só porque as suas quatro escolas normais primárias provêm o Estado, anualmente, de comple-mentaristas mais bem preparados que os nossos normalistas, como também por serem difíceis os exames de concurso [idem, p. 47].

Acrescentava também o fato de as escolas e os professores da capital paulista cumprirem um papel de exemplo e de direção do trabalho peda-gógico realizado em todo o estado, favorecendo, assim, a disseminação da experiência e a seleção no próprio seio da classe do magistério.

outro grande obstáculo a ser enfrentado pelos reformadores dizia respeito à inamovibilidade dos professores efetivos. Perguntava ele: como criar escolas coletivas se os professores não podem ser removidos de suas cadeiras?

É da inamovibilidade absoluta que decorre, como em Minas, ficar o Estado de braços cruzados diante de professores relapsos no cumprimento dos seus deveres, por não lhes poder aplicar o governo a pena cominatória por remoção em casos restritos, claramente estatuídos na lei pata tais e tais faltas ou reincidências. [...]

Entre a beleza do princípio liberalíssimo da inamovibilidade do professor e o interesse supremo da coletividade social, não temos vacilações. O uti-litarismo bem entendido é a mais bem definida regra administrativa [idem, p. 118-119].

outro aspecto sobre o qual recaía o olhar de arguto observador do inspetor mineiro era a organização do programa de ensino, do curso, da sala de aula e, no interior desta, a questão metodológica. segundo ele, havia uma divergência profunda entre a organização dos institutos flu-minenses de ensino coletivo e seus congêneres paulistanos. divergência que começava pela coeducação, aparentemente proibida pelo regulamento fluminense, quando este determinava que cada grupo seria “dividido em

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duas seções, masculina e feminina”, mas que era tolerado na prática, já que os sexos eram divididos apenas no momento do recreio.

Outro grave defeito, por nós notado na organização dos grupos fluminen-ses, provém de não ser ali o ensino, apesar de dividido em série, ministrado por ano, cada um confiado ao respectivo professor, mas em cadeira. Daqui resulta que um mesmo grupo de alunos ouve diariamente a diversos mestres, e deste modo se quebra a uniformidade das séries [idem, p. 154].

Passava, em seguida, a relatar a experiência paulista, que tinha o curso dividido em cinco anos, com cada ano “confiado a um só professor”, o que resultava numa ordem metódica e sistemática. segundo ele, essa prática permitia “a uniformidade e unidade de processos pedagógicos, sem quebra de encadeamento, que é o elo necessário às respectivas sé-ries, e sem prejuízo, nem do trabalho escolar, nem do descanso tão útil às crianças” (idem, p. 155).

A respeito do descanso das crianças, cumpre chamar a atenção para o fato de que, também aqui, as escolas fluminenses estavam em desacordo com os preceitos pedagógicos e em divergência com a experiência pau-listana, pois, afirmava Estevão, “como já vimos, duram as lições ¾ de hora nas escolas fluminenses. O professor A. Riant julga exagerada esta duração fora das escolas médias” (idem, p. 154). Ao contrário, as aulas nas escolas paulistas duravam o tempo ideal de vinte minutos cada!

No Rio de Janeiro, sobre o Grupo Escolar silva Jardim, de Petrópolis, o inspetor comissionado observou também

[...] uma professora atabalhoada com 70 alunas, distribuindo-lhe ensino pelo velho processo de soletração e pelo modo individual. donde se vê, que o ensino simultâneo, que deve ser a primeira consequência das escolas cole-tivas, não se constitui ainda conquista definitiva em todos os agrupamentos escolares fluminenses” [idem, p. 159].

Assim, após fazer uma entusiasmada e elogiosa descrição de uma aula de lições de coisas, que teria assistido em são Paulo, Estevão co-

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mentava que, no que se refere ao Rio de Janeiro, apesar de a organização programática não obedecer “ainda rigorosamente aos preceitos da peda-gogia experimental, pois que o ensino de coisas deve ser simultâneo com o de primeira aprendizagem de leitura e escrita [...]”, ninguém poderia contestar a superioridade do ensino fluminense sobre o mineiro:

de que serve estatuir o nosso regulamento que se ensinem coisas em nossas escolas, se não está regimentado semelhante ensino, se as escolas con-tinuam desprovidas de material didático, se o professorado, sem remuneração condigna do elevado sacerdócio, além de ignorante quase todo, permanece à testa das escolas à revelia de qualquer fiscalização? [idem, p. 53].

Ainda a esse respeito, após referir-se ao fato de a legislação paulista não prescrever o ensino de lições de coisas, afirmava que estas estão previstas no programa do curso logo no primeiro ano, como seria o ideal, e, ao final, perguntava: “Que resulta daí num e noutro Estado?” (idem, p. 54). A resposta era simples: os alunos aprendiam mais e melhor que seus pares mineiros.

Após detalhar a forma pela qual o programa paulista determinava o ensino do sistema métrico, Estevão afirmava:

E por esta exposição se vê que, logo no primeiro ano de sua aprendizagem, adquirem as crianças noções de coisas úteis, e até de sistema métrico, assunto de que nenhuma notícia têm os meninos que frequentam nossas escolas pri-márias, quando já papagueando mecanicamente páginas e páginas de Hilário Ribeiro, Felisberto de carvalho, ou Félix Ferreira, isto é, o livro de martírio para a inteligência infantil [idem, p. 90].

Também em relação às lições de coisas, Estevão percebia notáveis diferenças entre os três estados. No Rio, ele afirmava que esse aspecto era “mais instrutivo que educativo” e mais teórico que prático, o que não o impedia de sentenciar que:

se, estudado à luz da pedagogia prática, e comparado como que s. Paulo já realizou, é ainda atrasado o ensino primário fluminense, ou, mais propriamen-

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te, é indeciso nas suas linhas gerais, por lhe faltar sistematização pedagógica: comparado com o nosso, que é rotineiro, que é desprovido de método e de sistema, que está confiado, em suma, a centenas de professores analfabetos, tanto no domínio da aptidão pedagógica, como no das letras, representa, contudo, grande soma de progresso [idem, p. 149-150].

Para Estevão de oliveira, um dos grandes resultados da organização da escola nos institutos coletivos, tanto para os professores quanto para os alunos, era o resultado moral. E, este, atravessava a escola de ponta a ponta e podia ser plenamente observado na disciplina dos alunos. Não por acaso, entre os vários aspectos elogiados nas escolas paulistas, estava a “rigorosa disciplina”. Aqui, Estevão chamava a atenção para o caráter ativo da disciplina, ou seja, não se tratava de um comportamento passivo de “institutos fradescos”, dos alunos diante do professor. Pelo contrário, o que dizia encontrar era a ativa mobilização da energia das crianças pelo professor. “Por isso, dizia ele, em um agrupamento escolar em que estavam mais de 300 crianças e ambos os sexos, de 7 a 13 anos, ninguém diria estarem 20” (idem, p. 122).

Para ele, a disciplina estava relacionada tanto à competência do professorado paulista, quanto ao funcionamento regular do ensino, com a divisão do ensino por série, já que nessa organização cada professor tinha de saber ensinar o conjunto das matérias de cada série. Por isso,

Entre o sistema de disciplina moral dos grupos escolares paulistanos e o de estabelecimentos congêneres fluminenses há notável diferença, com ex-traordinário saldo em favor daqueles. A mesma diferença se nota quanto aos processos práticos de ensino. Em são Paulo o modo de ensino simultâneo (nem aí se admite outro ensino, senão o coletivo) adapta-se, com justeza matemá-tica, às regras teóricas da metodologia; ao passo que no Grupo Escolar silva Jardim, de Petrópolis, vimos uma pobre professora, desprovida inteiramente de orientação pedagógica, esbaforindo-se, sem utilidade, no 1º. Ano, com um número excedente de 70 alunos, em exercícios de antiquada soletração de modo individual. Demais, nos grupos fluminenses há professores de matéria; nos de são Paulo, de série. E é profunda a diferença [idem, p. 126].

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Por tudo que dissemos até aqui, não é de se estranhar que na última parte da obra, em que o inspetor pretendia sintetizar os “pontos capitais da reforma” – que deveria incidir sobre a formação de professores, a adoção dos institutos coletivos de educação e da inspeção técnica-profissional do ensino –, Estevão de oliveira retomasse, logo no terceiro parágrafo, a tópica da comparação, trazendo agora, não apenas as experiências paulista e fluminense, mas também a paraense, para demonstrar o atraso mineiro e, com isso, a urgente necessidade de mudanças.

Enquanto o Estado de são Paulo, obtida a sua autonomia política, atin-ge a resultados maravilhosos e consegue, pela ordem concatenada de suas reformas, estupendo e admirável progresso em matéria de ensino público; enquanto o longínquo Pará evolui rapidamente, após haver tomado por modelo o progressista Estado do sul, e vai derramando pelos municípios do interior inúmeros grupos escolares; enquanto o próprio estado fluminense, apesar de subjugado por uma verdadeira penúria financeira, luta com heroísmo inaudito por manter os seus institutos de ensino coletivo; nós mineiros continuamos em nosso tardo caminhar, com muitas escolas, é certo, porém sem ensino primário e normal, e até quase sem professorado [idem, p. 163].

Considerações finais

A viagem empreendida pelo inspetor Estevão de oliveira permitiu-lhe colocar diferentes realidades em contato. Mas, ao comparar, de que falava, afinal, Estevão de Oliveira? De Minas Gerais ou de São Paulo e Rio de Janeiro? “do próprio ou do outro?” (Hartog, 1999, p. 268). tra-çando paralelos, Estevão construiu uma narrativa que dava visibilidade à organização das escolas dos estados visitados, ele traduziu e contou um outro – as escolas paulistas e fluminenses. Para isso, descreveu o que viu e ouviu, comparando com o nós – as escolas mineiras –, produzindo uma alteridade. colocando em relação dois termos, assinalando e mensurando diferenças, a comparação funcionou em seu relato como explicação do

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atraso da instrução pública mineira e como classificação: classificando o outro, classificava também o nós. Nesse exercício comparativo, Estevão buscou “cercar o nós” e circunscrever um lugar: a escola, seus profis-sionais e o processo de organização do campo educacional na sociedade mineira no início do século XX.

De forma mais objetiva, Estevão buscou fundamentar e justificar a necessidade de uma reforma para o ensino primário e normal em Minas Gerais. Seu plano de reforma, traçado a partir das observações da viagem que realizou para o Rio de Janeiro e para são Paulo e de sua experiência pretérita no campo educacional – o visto e o já sabido –, foi largamente comentado na imprensa mineira, tendo sido transcrito no jornal Minas Gerais, antes mesmo de ser publicado na forma de livro, em 1902 (Re-latório da secretaria do interior, 1903, p. 92). Além disso, e apesar das controvérsias6, tornou-se a base da proposta de reforma do ensino discuti-da no governo de Francisco salles, em 1903, e da reforma implementada por João Pinheiro, em 1906, na qual a instituição dos grupos foi adotada como a forma escolar no estado de Minas Gerais7.

Apesar do explícito comprometimento do texto com a reforma edu-cacional no estado, que, afinal, ocorreu em Minas no ano de 1906 e teve nas proposições de Estevão uma de suas bases fundamentais, o seu livro ultrapassa essa contingência e permite-nos perceber o quanto o olhar de viajante do inspetor conseguiu flagrar as especificidades das reformas em ato. ou seja, por um lado, por meio do exercício comparativo, ele conseguiu mostrar explícitas diferenças na regulamentação e organização da educação escolar nos três estados. Por outro, nos permitiu perceber, sob a aparente uniformidade discursiva dos enunciados teóricos e/ou políticos dos sujeitos envolvidos com a educação naquele momento, fragmentos das práticas daqueles que colocavam a reforma em ação, sobretudo os diretores e professores.

6. A comissão encarregada, pela secretária do interior de Minas Gerais, de analisar o relatório de Estevão de oliveira, apresentou algumas ressalvas em relação ao tra-tamento que ele deu à questão do estado da instrução em território mineiro (minas Gerais, Belo Horizonte, 11 a 19 jul. 1903).

7. sobre essa questão ver: Gonçalves, 2006, p. 54-59 e Faria Filho, 2000.

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Endereço para correspondência:carla simone chamon

Av. Amazonas, 5253, Nova suíçaBelo Horizonte-MG

cEP 30421-169E-mail: [email protected]

Luciano Mendes de Faria FilhoRua Francisco Proença, 195/20

Belo Horizonte-MG cEP 31255-800

E-mail: [email protected]

Recebido em: 13 ago. 2008Aprovado em: 10 jul. 2009

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Ana chrystina Venancio MiGNot

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Viajar para legitimar:

Armanda Álvaro Alberto na Comissão de Intercâmbio Brasil-Uruguai (1931)

Ana chrystina Venancio Mignot*

Resumo:Nomeada por Belisario Penna – que ocupava interinamente a pasta do Ministério da Educação e saúde – Armanda Álvaro Alberto integrou, em outubro de 1931, a comissão de intercâmbio Intelectual Brasil-Uruguai. Se a análise das motivações de sua indicação para integrar a referida comissão permite compreender o contexto político da viagem, a antiga relação de amizade com o ministro interino, bem como o seu processo de legitimação no debate educacional; o exame de sua conferência no Museu Pedagógico de Montevidéu e do seu relatório apresentado, em seu retorno, na sede da Associação Brasileira de Educação, propicia capturar sua visão das reformas educacionais que se desenvolviam em terras brasileiras desde a década anterior e sua particular admiração por determinadas experiências educativas desenvolvidas no país vizinho. A correspondência mantida com educadores uruguaios permite concluir que, como tantos educadores, ela lançou mão de sua viagem para legitimar tanto a sua experiência pedagógica como as iniciativas educacionais visitadas de inspiração escolanovista e legitimar-se, ainda mais, no debate educacional. Palavras-chave:viagem; reformas educativas; Escola Nova.

* Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade do Estado do Rio de Janeiro. doutora em ciências humanas – educação. Pesquisadora do cNPq. cientista do Nosso Estado (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e Procientista (Uerj/Faperj).

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Viajar para legitimar

44 Revista Brasileira de História da Educação, n° 22, p. 43-64, jan./abr. 2010

To travel to legitimize:

Armanda Álvaro Alberto in the Commission of Brazil-Uruguay Interchange (1931)

Ana chrystina Venancio Mignot

Abstract:Nominated for Belisario Penna – that temporarily occupied the folder of the Ministry of the Education and Health – Armanda Álvaro Alberto integrated, in october of 1931, the commission of intellectual interchange Brazil-uruguay. if the analysis of the motivations of her indication to integrate the cited commission allows to understand the context politician of the trip, the old relation of friendship with the temporary minister, as well as her process of legitimation in the educational debate, the examination of her conference in the Pedagogical Museum of Montevidéu and her presented report, in her return, the headquarters of the Brazilian Association of Education propitiates to capture her vision of the educational reforms that if developed in Brazilian lands since the previous decade and its particular admiration for determined developed educative experiences in the neighboring country. the correspondence kept with uruguayan educators allows to conclude that, as many educators, she launched hand of her trip to legitimize her pedagogical experience in such a way as the educational initiatives visited of escolanovists inspiration and to legitimize herself, still more, in the educational debate.

Keywords: educative trip; reforms; New School.

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– Minha viagem ao Uruguai […] tem por finalidade principal o estudo da organização que este país tem dado ao ensino primário.

Minha bagagem está repleta de cartas. são os professores de minha pátria que pedem a seus colegas uruguaios um intercâmbio mais estreito de ideias e de propósitos, que lhes enviem seus livros e seus trabalhos de menor sig-nificação, que tenham vindo à luz pública em distintas revistas culturais; são as crianças das escolas públicas e privadas do Brasil que se dirigem a seus camaradas uruguaios com palavras de amor, plenas de pureza...

Antes de partir para vossa terra, passei todas as horas de um dia na Escola uruguay, do Rio de Janeiro. E ali, entre aquela inquieta colmeia infantil, eu tinha a sensação de encontrar-me em vosso país. Primeiro foi um hino, o que cantaram as crianças brasileiras, como se fossem estudantes uruguaios, que me fez pensar dessa maneira. Logo a poesia e a entoação de canções com-pletamente vossas, inspiradas sob o céu de vossa nação.

Essas crianças me fizeram mensageira de seus pensamentos, especialmente de um que se aninha no mais fundo de seus espíritos.

Querem conhecer o uruguai, conviver algumas horas com seus irmãos, as crianças uruguaias, responsáveis como elas pelo porvir da grandeza da América.

Essas crianças me pediram que distribua pelas escolas deste solo riopla-tense, trabalhos executados por eles sob o teto da Escola uruguay.

Também me confiaram cartas e trabalhos de outros alunos de centros de educação primária públicos e privados e ainda mesmo de crianças brasileiras que, inteiradas de minha viagem, me escreveram fazendo-me mensageira de seu incomensurável carinho ao uruguai.

Trago também milhares de fotografias, de cartões postais e paisagens brasileiras, para depositar nas mãos de estudantes de vossa nação.

contribuiremos assim para o triunfo de uma grande obra de aproximação das crianças destes dois povos irmãos.

A ação de defesa da solidariedade continental deve começar na escola. E deve realizar-se por meio de um estreito intercâmbio, já que nada pode negar a verdade da afirmativa de que só se ama o que se conhece.

sinto-me orgulhosa de participar desta embaixada. A mulher deve ser em todo lugar e momento, um elemento de luta em defesa de altos ideais de amor.

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creio interpretar, nesse sentido, um mandato da mulher brasileira.Queremos que todos os povos da América se amem.E no que diz relações com o Uruguai, aspiramos que as férreas pontes

que nos unem no material, sejam o símbolo da nossa vinculação moral e intelectual [Álvaro Alberto, 1931a].

com essa declaração à imprensa uruguaia, assinalando a importância da escola primária na construção da solidariedade entre os povos das nações sul-americanas, Armanda Álvaro Alberto desembarcou do “Cap Arcona”, em Montevidéu, em 30 de outubro de 1931. integrava a Em-baixada de intercâmbio intelectual, nomeada por Belisario Penna – que ocupava interinamente a pasta do Ministério da Educação e saúde – em cumprimento do decreto presidencial que regulamentava a execução do convênio assinado entre os dois países, com a finalidade de promover, anualmente, “o intercâmbio de professores e alunos ou qualquer outro ato de aproximação espiritual entre estes dois países”1.

Desde o final do século XIX, a arquitetura escolar, os livros, os ca-dernos, os métodos, os objetos didáticos, não escaparam do olhar atento de educadores brasileiros que cruzaram mares, para observar, comparar, buscar e propor inovações2. Reconhecidos como especialistas pelos governos que os nomeavam para observar sistemas educacionais, suas viagens os legitimavam ainda mais no debate educacional.

Até então, visando integrar-se ao movimento de renovação educacio-nal, que inspirava educadores de diferentes países, a Associação Brasileira de Educação (ABE), desde sua fundação, estimulava o intercâmbio com educadores estrangeiros. Para tanto, promoveu várias conferências: Juan Mackay, da universidade de Lima e secretário da Associação cristã de Moços na América do sul, em 1926; Alfredo Ferrera, da universidade de La Plata, em 1927; John swiggett, da World Federation of Educations Associations, que pretendia discutir a constituição de uma federação das

1. decreto assinado por Getúlio Vargas, A. de Mello e Franco e Francisco campos, em 16 de junho de 1931.

2. A respeito de viagens de educadores, consultar Mignot e Gondra (2007).

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associações de educação da América e a organização anual de uma sema-na da educação, em 1928; Nieto caballero, diretor do Ginásio Nacional de Bogotá, em 1929 (Venâncio Filho, 1931) , e Edouard claparède, do institu-to Jean Jacques Rousseau, em 1931, que divulgou as suas revolucionárias teorias de uma escola sob medida. Essas atividades davam visibilidade e legitimidade às propostas de políticas educacionais e de reformas do ensino que vinham sendo formuladas no interior da entidade.

Contando com financiamento oriundo de recursos provenientes de uma soma equivalente à parte de uma dívida do governo uruguaio com o governo brasileiro para a construção da ponte internacional do Jaguarão, depositada em um banco, e cujos juros serviriam para subsi-diar as despesas das comissões, a missão era constituída por Armanda Álvaro Alberto, membro do conselho diretor da Associação Brasileira de Educação (ABE), Mello Leitão, professor do Museu Nacional e da Escola Normal, Ernani Lopez, professor universitário e presidente da Liga de Higiene Mental, Renato Pacheco, presidente da confederação Brasileira de desporto, Rosalina coelho Lisboa Miller, escritora e poeti-sa, e Humberto de campos, presidente da Academia Brasileira de Letras, e tinha sob sua responsabilidade proferir palestras no país visitado e, ao final, apresentar um relatório sobre as atividades realizadas, no âmbito de suas especialidades: ensino primário, ensino secundário, ensino superior, educação física, vida associativa e jornalismo.

A comissão foi nomeada em um momento de críticas aos equívocos políticos do governo revolucionário, à ausência de um projeto educacional e ao ministro. Pelas páginas do Diário de Notícias, cecília Meireles3, defensora incansável de Fernando de Azevedo como o mais preparado de todos os intelectuais para assumir o ministério recentemente criado, manifestava-se, em uma de suas crônicas, contrariamente à moção da ABE pela efetivação de Belisario Penna no cargo, sob a alegação de que ele seria “capaz de organizar a grande conferência de educação que se está preparando para dezembro”. A seu ver, cabia à ABE sugerir a divisão da

3. A respeito da atividade jornalística de cecília Meireles como editora da Página de Educação do Diário de Notícias, consultar Mignot (2001).

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pasta em Educação e saúde, que eram “duas especialidades claramente definidas, embora com pontos em contato que todos os problemas de um país mantêm, naturalmente com a educação”. o conceituado médico deveria ocupar o Ministério da saúde Pública. desautorizava, assim, a entidade, que desde 1924 promovia a grande causa da educação nacional, a interferir na indicação:

A Associação Brasileira de Educação não pode pretender ser representante da mais numerosa e significativa classe do magistério, que é, sem dúvida nenhuma, a dos professores primários. É até muito divulgado que, nessa associação, o magistério primário sempre foi considerado de secundária importância, enquanto as questões universitárias se afetava dar uma atenção, cujos efeitos reais desconhecemos. [...].

A moção da ABE não tem, na verdade, grande importância. É uma candidatura lançada por alguns nomes. Como há várias associações de pro-fessores, aqui mesmo no distrito Federal, seria interessante, até, que todas fizessem o mesmo. Assim, o chefe do governo receberia moções análogas da Liga de Professores, da Associação de Professores Primários, da Federação Nacional das Sociedades de Educação, da Associação de Ensino Profissional etc. Poderia receber, também, a moção dos estudantes que, salvo o perigo de serem manobrados por terceiros, seria a mais interessante, a mais oportuna e valiosa de todas [...].

Porque, além de tudo, a Associação Brasileira de Educação – e isso é o que é grave – compromete grandemente o seu nome, uma vez que o candidato a Ministro não é senão o próprio presidente dessa associação... surpresa de amigos, provavelmente... Mas essas são terríveis, em questões de tamanha responsabilidade técnica, e é impossível que o dr. Belisario Penna veja sem constrangimento a delicada situação que surge para o seu nome, tão louvado unanimemente, na pasta de sua competência [Meireles, 1931a].

Apesar da importância da missão de intercâmbio intelectual, a im-prensa carioca, desde o início de outubro, dava mais destaque à nomea-ção de Anísio teixeira para a diretoria da instrução Pública do distrito

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Federal que às atividades ministeriais (Meireles, 1931b)4 e à missão oficial que instaurava o intercâmbio entre o Brasil e o Uruguai.

os laços que uniam Armanda Álvaro Alberto ao ministro interino da pasta da educação vinham de longa data. desde o início de sua experiência pedagógica inovadora, à frente da Escola Regional de Meriti, na Baixada Fluminense, em continuidade a uma escola ao ar livre para os filhos de pescadores de Angra dos Reis, ela contou com a sua colaboração e com a de Francisco Venâncio Filho, Edgar süssekind de Mendonça, carlos delgado de carvalho e Heitor Lyra, o primeiro presidente da ABE.

Em diferentes ocasiões, Belisario Penna esteve presente em ativida-des do círculo de Mães, criado por Armanda, em sua escola de duque de caxias. o título de uma de suas conferências, “Higiene e educação popular”, quando parabenizou esta iniciativa privada, num país cujos governos tratavam com descaso a educação do povo, indica que tinham mais do que laços de afeto, afinidades de ideias. A escola, sob a égide de preceitos higienistas, poderia servir de antídoto à pauperização da infân-cia, subvertendo as condições de vida da população, como postulavam os médicos, professores e profissionais de classe média, em diversas regiões do mundo (Terrón Bañuelos, 2000):

Várias tentativas honestas têm sido feitas no sentido de dar organização eficiente aos serviços fundamentais do ensino e da higiene, com a escolha de homens competentes, e inacessíveis à perniciosa influência da politicalha. tais tentativas, entretanto, têm duração efêmera e, embora excelentes os

4. Para ela, a presença do educador baiano significava um alento, uma possibilidade de que a obra de Fernando de Azevedo tivesse prosseguimento: “o dr. Pedro Ernesto acaba de nomear para diretor Geral de instrução o dr. Anísio teixeira. Nessa pequena informação reside um mundo de coisas. importantíssimas. E não se sabe na verdade, a quem felicitar: se ao interventor, que de maneira tão feliz inaugura seu governo; se ao dr. Anísio teixeira, que recebe um cargo a que pode dar com a máxima eficiência todo o brilho de sua atividade e da sua inteligência; se ao dr. Fernando de Azevedo, que, com essa escolha vê assegurada a obra que iniciou no distrito Federal – e à qual todos os criadores, não podem, de certo, ser indiferentes – ou se ao povo, afinal, que, desta vez, pode esperar um interesse valioso pela questão educacional, de que tão diretamente depende o seu destino”.

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resultados da experiência, a politicalha que é a grande calamidade do Brasil, incomparavelmente mais nefasta do que as doenças e os vícios, que flagelam o país, desperta do cochilo e intervém desabridamente, deturpando e destruindo quanto de eficiente havia sido feito.

É que doenças, vícios e ignorância são maravilhosos adubos desta cala-midade, que só medra e viceja nos meios incultos e degradados.

É muito da indústria que a politicalha, não só não combate, como esti-mula e auxilia o jogo, o alcoolismo e as endemias; que entretém a carestia da vida; que, finalmente, alimenta a ignorância, o mais valioso esteio desses flagelos.

Não lhe convém, absolutamente, o levantamento da energia física e do nível intelectual e moral do rebanho, que seria a cessação do seu pernicioso domínio. só assim, o rebanho se conserva passivamente obediente e escra-vizável. [...]

o único recurso para os que ainda amam esta terra é abstraírem-se dessa entidade a que o hábito dá o nome de governo, e agir fora de sua maléfica influência. É o que, felizmente está acontecendo, razão porque dizemos que não há mal que não traga algum bem.

A dolorosa convicção de que não se deve esperar do governo realizações honestas, práticas e eficazes para a solução dos vitais problemas da instru-ção e da educação moral e higiênica do povo está despertando a iniciativa particular que, inteiramente fora do oficialismo, desenvolve um trabalho digno do estímulo e do auxílio de todos aqueles que desejam sinceramente concorrer para o progresso do Brasil e para arrancá-lo da pestilência em que se debate [Penna, 1968].

Em 1927, ele apresentara a tese de Armanda Álvaro Alberto, intitulada Tentativa de escola moderna, na i conferência Nacional de Educação, realizada em curitiba, o que permitiu dar visibilidade nacional a uma experiência que, no interior da ABE, se desejava transformar em modelo para o projeto de educação popular do país, na medida em que a escola partilhava dos princípios da escola ativa, partindo do interesse da criança, respeitando os diferentes ritmos de aprendizagem, estimulando o contato com a natureza e defendendo a integração da escola com a comunidade.

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Poucos dias depois da conferência de Armanda Álvaro Alberto, na sede da ABE, na qual relatou as suas conclusões sobre a missão oficial ao país vizinho, Belisario Penna renunciaria ao cargo, atitude saudada na Página de Educação, como o gesto mais feliz de sua interinidade:

A atitude de dr. Belisario Penna, deixando o Ministério da Educação, que há tanto tempo vinha dirigindo interinamente, é uma prova de sensatez que não pode ficar sem registro. [...]

Foi mais uma experiência que se fez na procura do ministro que preci-samos. [...]

Há que se escolher um educador. Não seria a vez do dr. Fernando de Azevedo, diretamente ligado à educação brasileira, isento de compromissos políticos, e sem necessidade de transformar o cargo em utilidade imediata, por não ser nenhum “sem emprego” da República antiga, entusiasta de última hora pelos ideais revolucionários? [Meireles, 1931c].

A viagem de Armanda ao uruguai não era a primeira que fazia ao exterior.

Ainda criança, morou na Europa, quando o seu pai estudava na Bélgica e na França. tendo vivido, desde a infância, em meio a um ambiente cultural em que predominavam discussões políticas e preocupa-ções científicas, Armanda só passou a frequentar uma escola quando tinha 14 anos, participando de um curso sobre literatura inglesa, mi-nistrado no colégio Jacobina, escola na qual iniciaria suas atividades no magistério, pouco tempo depois.

Outra viagem duradoura e significativa em sua vida ocorrera também por injunções familiares. Passou uma temporada, em 1919, em Angra dos Reis, acompanhando o irmão Álvaro Alberto Mota e silva – que servia na Marinha Brasileira (Garcia, 2000, p. 10-11)5–, quando ela fundou

5. O autor lembrou que “a relação com a irmã, aliás, sempre foi boa, apesar de opiniões políticas divergentes”. Álvaro Alberto era “anticomunista”. A rupturita despertou o interesse da Marinha, que também desenvolveu estudos sobre a super-rupturita que teria utilização para fins militares.

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uma escola ao ar livre para os filhos de pescadores, uma experiência que serviria de inspiração para a Escola Proletária de Merity, posteriormente Escola Regional de Merity. dois anos depois, mais uma vez, por causa dele – que fundara na Baixada Fluminense, a Rupturita –, Armanda se viu instigada a construir uma escola na cidade, a escola que a consagrou nos meios educacionais, voltada para atender as crianças das camadas sociais mais desprotegidas. Álvaro Alberto, por meio da fábrica de explo-sivos – cuja produção “não ultrapassava uma tonelada/mês; a fabricação, feita manualmente por não mais que uma dúzia de operários, abastecia um mercado formado pelas pequenas pedreiras e pelas poucas minas de carvão” –, custeou parte do empreendimento (idem, p. 11)6, mantido pela Fundação Álvaro Alberto, uma homenagem ao pai deles. Em 1928, a mantenedora da Escola Regional de Meriti contava com “220 sócios, concorrendo cada um, mensalmente, com uma importância módica que perfaz, atualmente, 1:200$000”. também contribuíam, espontaneamente, “casas comerciais, em gêneros, calçados, fazendas, utensílios etc. os sócios da Fundação são contribuintes, benfeitores, beneméritos, forne-cedores etc.” (Gasparini, 1968).

Armanda realizou ainda algumas viagens pelo país para participar de eventos educacionais com Edgar süssekind de Mendonça, com quem se casou, em 1928, e dividiu algumas experiências profissionais, partilhando ideais educacionais e políticos, ao longo da vida em comum. defenderam uma escola de qualidade, a coeducação, a integração da escola com a família e a comunidade, e manifestaram-se contra o ensino religioso nas escolas, sempre se posicionando publicamente em favor da liberdade, da justiça social e da democracia7.

A indicação de Armanda Álvaro Alberto para integrar a Embaixada de intercâmbio intelectual não deve ter surpreendido os educadores.

6. “É bem verdade que não havia, então, praticamente mineração no país, exceto esse pouco de carvão no sul e um pouco de ferro em Minas; também não havia construção de estradas, nada que demandasse grande consumo de explosivos. [...] o sucesso do empreendimento foi, entretanto, enorme” (idem, p. 11).

7. Outros dados biográficos da educadora foram examinados em outros estudos de minha autoria, dentre os quais: Mignot (2002).

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tinha credibilidade. Participara, em 1924, como sócia-fundadora da criação da ABE, entidade que pretendia ser uma obra cívica capaz de congregar a sociedade em torno da causa educacional, e na qual atuava de modo significativo.

Em sintonia com a orientação geral da entidade, presidiu, a partir de 1925, a seção de cooperação da Família, que reunia mulheres que exerciam o ofício de ensinar na rede particular e pública, protestantes e católicas, militantes de associações femininas e feministas: Laura e isabel Jacobina Lacombe, Ana Amélia Queiroz carneiro de Mendonça, corina Barreiros, Miss Eva Hyde, Miss King, entre outras.

Enquanto o conselho diretor da entidade debatia seus estatu tos, de-finia princípios, elegia prioridades, na Seção de Cooperação da Família foram estabelecidos os pontos programáticos, delineando as ideias que contribuiriam para chamar a atenção para a causa educacional. Para tanto, as integrantes dessa seção valeram-se de várias estratégias para aproximarem-se das ideias educacionais estrangeiras: livros, jornais, revistas, prospectos, em que se destacavam as publicações que vinham da Parents Teacher Association, dos Estados unidos, e da Ligue pour l’Education Familiale, da Bélgica, além de correspondências com professores. Em nome dos direitos das crianças, ampliaram a questão educacional para além da escola, formulando propostas para as famílias e a cidade e buscando moldar o futuro do país (carvalho, 1998).

Anos depois, Armanda escreveria que participara ali de “peripécias acontecidas no correr dos trabalhos a que se entregaram [...] ora agindo junto aos exibidores ou importadores de filmes, ora na polícia, davam bem uma ‘fita’ quase sensacional”. A repercussão das atividades tinham sido maiores do que o esperado: “dias depois da inauguração de nossa na seção de cooperação da Família, surgiu o primeiro círculo de pais e professores das escolas municipais, fundado por carneiro Leão, tendo o dr. Lyra comparecido à solenidade”8.

8. Ver “Era uma vez” de autoria de Armanda Álvaro Alberto, publicado originalmente em jornal. Arquivo Pessoal de Armanda Álvaro Alberto (Álvaro Alberto, Armanda. “Era uma vez...”. in: Moraes, dalva Lazaroni. Esboço Histórico-Geográfico do Município de Duque de Caxias. Duque de Caxias. Asgráfica, 1978).

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Aos poucos, tornou-se interlocutora privilegiada no âmbito da pró-pria entidade, ao interferir nas discussões acerca dos destinos da infância brasileira. As proposições a respeito do que, como, onde e por que ler tiveram, como alvo, os intermediários das leituras – os pais, os professores e os bibliotecários; e os agentes do mercado editorial: autores, editores, tradutores, ilustradores; e, o poder público9.

No interior da seção de cooperação da Família, Armanda Álvaro Alberto liderou a discussão, implantação e divulgação dos círculos de Pais e Professores, campanhas contra o sensacionalismo da imprensa, a censura aos filmes e a promoção de conferências, inquéritos, produção de listas de livros e exposições. Essas estratégias propiciaram a produção e circulação de uma série de recomendações e prescrições sobre a leitura infantil. As práticas levadas a efeito inscreviam-se na finalidade maior da entidade de promover a difusão e aperfeiçoamento da educação, for-jando modelos de conduta e padrões para os costumes numa perspectiva moralizadora (carvalho, 1998).

durante o período de permanência da comissão de intercâmbio, em Montevidéu, intelectuais, autoridades políticas, corpo diplomático e professores prestigiaram os visitantes, comparecendo às solenidades rea-lizadas na universidade, em escolas e na embaixada brasileira. os jornais uruguaios noticiaram a presença da missão em várias matérias publicadas no Imparcial, El Dia e El Ideal, destacando o início da permuta entre os dois países, a grande acolhida à delegação, a intensa programação e as inovações educacionais expostas nas conferências.

tendo o “riquíssimo e suntuoso” Museu Pedagógico – com “cole-ções interessantíssimas de quase todos os países sul-americanos, menos do Brasil” (Álvaro Alberto, 1931c) – como palco de sua conferência, Armanda Álvaro Alberto discorreu sobre as reformas educacionais bra-sileiras, inspiradas no ideário pedagógico europeu e norte-americano, levadas a efeito desde a década anterior, no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e são Paulo, lideradas por renomados educadores.

9. Ver atas, matérias de jornais da referida seção e textos escritos por Armanda Álvaro Alberto sobre o tema.

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Fernando de Azevedo, na capital da República, de 1927 a 1930, idealizara um plano de mudanças no ensino primário e profissional, urbano e rural, cuja importância pode ser vista em conferências, jornais e discussões em entidades docentes. A reforma iniciada por Francisco campos, também em 1927, teve como ponto de partida um congresso de instrução, com o qual se desejou conhecer as opiniões e sugestões do magistério mi-neiro. A Escola de Aperfeiçoamento constituiu-se no ponto alto: “está destinada a elevar o nível de cultura profissional dos professores atuais e futuros. [...] A orientação desta Escola mereceu os aplausos efusivos de claparède, que esteve nela”. o trabalho de carneiro Leão tem sido “um trabalho de quem conhece, como filho, as necessidades de sua terra”. A reforma pernambucana levava em conta “as condições peculiares do nordeste brasileiro – de rudeza da zona semideserta, de pobreza, de largas distâncias, de desinteresse dos poderes locais pela educação”. Na reforma paulista, por sua vez, destacou o esforço de Lourenço Filho – “um edu-cador completo” – que promovia há um ano uma reforma que “embora não fosse ideal, estava de acordo com as possibilidades do momento e suscetível de desenvolvimento” (idem) e na qual a ideia de autonomia didática se colocava pela primeira vez. concluía:

Apesar da falta de estímulo, os reformadores de meu país se entendem perfeita e harmoniosamente entre eles: existe uma grande troca, um admirá-vel intercâmbio de ideias, de propósitos, de iniciativas, de estudos. E assim, que todo o movimento tem características comuns de higiene e desporto, em todas as suas manifestações, para salvaguardar a saúde da criança e revigo-rar seu corpo cuidando do homem de amanhã e da raça de sempre; o ensino sobre base científica e a expansão cada dia mais marcada de novos sistemas pedagógicos [idem].

A conferência mereceu comentários elogiosos da imprensa, que assinalou o seu “espírito franco e aberto a todas as correntes intelectuais e sociológicas” (Álvaro Alberto, 1931d), além da clareza, objetividade e concisão:

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Não houve declamação nem falsa retórica na exposição, que levasse a conceber paisagens tropicais inchadas de patriotismo: antes foi uma referência sóbria, com a realidade de um espírito estatístico, esta conferência magnífica por isso mesmo, pela desusada honestidade que a inspirou. o dado preciso e concreto atravessou os períodos do trabalho, e quando o dado faltou à autora, confessou sem rodeios, sem deixar lugar a dúvidas e suprimindo toda sugestão que pudesse dar lugar a suposições aventuradas [Álvaro Alberto, 1931c].

Conhecer o ensino primário uruguaio significou, para Armanda, observar o ambiente físico, o atendimento à demanda escolar, as bi-bliotecas, os recursos financeiros aplicados na educação, a formação de professores, a política salarial e os usos dos aparelhamentos modernos. Em sua conferência na sede da ABE, na qual relatou suas impressões de viagem, ressaltou que o rádio tinha programação musical dedicada às crianças e que eles estavam por toda a parte, pois “as casas vendedoras destes aparelhos são obrigadas a fazer um desconto de 50% a favor das escolas”. A biblioteca infantil contava com seis mil volumes, com um movimento mensal de quatro mil empréstimos, e, aos domingos, os cinemas ofereciam programação exclusivamente dedicada às crianças. Não escapou do olhar atento da integrante da comissão de censura Cinematográfica, instituída pela ABE que, no país vizinho, os filmes eram igualmente objeto de fiscalização e censura.

As escolas primárias despertaram um “verdadeiro deslumbramento, tal o grau de avanço que a hodierna pedagogia ali atingiu”, pois

Além do governo dotar todos os estabelecimentos de material necessário e auxiliar grandemente os alunos pobres, dando-lhes roupa e calçados, há uma instituição denominada “comissão Pró-Fomento da Educação”, que se encarrega de prover os estabelecimentos de tudo quanto precisam, além de distribuir “copo de leite”, por todos os alunos, facilitando-lhes funções cinematográficas, excursões, festas etc. [...]

o curso de professores é de 6 anos, quando adquirem direitos à nomeação efetiva, mas para a de sub-inspetor e inspetor é exigido concurso.

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o corpo docente pleiteia presentemente aumento de vencimentos e é composto de verdadeiros sacerdotes do ensino. o governo envia anualmente quatro professores à América do Norte e aos Estados unidos. [...]

A benemerência do governo uruguaio é tamanha, a prol da expansão da expansão do ensino, que dotou o Paraguai com uma escola completa, para servir de paradigma.

outro aspecto curioso e louvável da ação governamental é o convite às crianças do interior para excursões à Montevidéu, ficando hospedadas por conta do governo numa das escolas ao ar livre.

o mesmo ocorre com os professores do interior, que continuamente são chamados à capital, para poder acompanhar com eficiência todo o progresso pedagógico [Álvaro Alberto, 1931e]10.

A nova orientação pedagógica expressava-se em escolas instaladas “de acordo com todo o rigor ditado pela evolução pedagógica: as crian-ças e os professores usam aventais, o que dá um aspecto de animação no trabalho”. As salas de aulas, alegres e coloridas, estavam “decoradas e ornamentadas pelos desenhos, modelagens e produções artísticas das crianças”. As mais interessantes escolas, a seu ver, eram as experimentais e as que funcionavam ao ar livre, uma das quais, marítima, que atendia às “crianças débeis”, numa referência a um modelo de escola que surgiu em um contexto higiênico-sanitário como forma de cuidar da saúde e da educação das crianças enfermas pertencentes às camadas populares (idem).

o destaque dado, no relato de Armanda Álvaro Alberto, às escolas ao ar livre possibilita perceber que, entre os modelos pedagógicos em circulação – que inspiraram o seu ensaio de escola ativa para os filhos de pescadores, em Angra dos Reis, e a experiência de educação popular, na Escola Regional de Meriti –, este tinha sido apropriado em outros países, para além da Alemanha, da inglaterra, dos Estados unidos, da

10. cf. conferência de Armanda Álvaro Alberto na sede da Associação Brasileira de Educação, na qual relatou as suas observações do ensino primário durante sua viagem.

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itália, da Espanha e da França, como importante estratégia capaz de suprir a ausência de recursos financeiros para a construção de edifícios escolares, como alternativa ao ensino livresco e centrado no professor e como uma particular integração entre postulados higienistas e princípios escolanovistas (Bernal Martinez, 2000)11.

As fotografias das escolas ao ar livre, trazidas da viagem para se-rem exibidas, provavelmente, em sua conferência, evidenciavam que o uruguai também estava em sintonia com os modelos pedagógicos inovadores em vigor em grande parte do “mundo civilizado”. desde 1925, observava-se uma profunda mudança em sua política educacional, quando foram aprovados planos experimentais nas escolas de Malvin, Progreso e Las Piedras, que introduziram, segundo Jorge Liberati, a experimentação pedagógica e a educação nova ou ativa, fundamentadas em dewey e em decroly:

La educación nueva, o la escuela activa, resulta no sólo de la nueva concepción de la psicología infantil sino también de una nueva concepción sociológica. Viene influyendo en la pedagogía el concepto según el cual el sujeto es tomado como miembro de la comunidad y no sólo como individuo. Empieza a estremecerse el concepto clásico de educación individualista, que simboliza el banco de escuela, fabricado según el modelo norteamericano y levemente modificado en 1887 por el Inspector Nacional Jacobo A. Varela y por eso llamado banco Varela.

Por obra de este influjo, el de la escuela activa principalmente, proveniente de fuera del país, la pedagogía ya no la escuela vive su primera renovación experimental. La vertiente vazferreiriana ejerce su influjo propio, de carácter asistemático, que imprimirá una gran pujanza en varios pedagogos de su misma generación y de la siguiente12.

11. As escolas ao ar livre apareceram, segundo o autor, nos primeiros anos do século XX, como estabelecimentos onde se consideravam ao mesmo tempo a educação e a saúde das crianças.

12. Vários sites tratam de clemente Estable, do Plano Estable e da Pedagogia causal. Ver Liberati (2008). Agradeço à pesquisadora uruguaia Virgínia Piriz a indicação dos mesmos.

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Antes de embarcar de volta ao seu país, trazendo, na bagagem, livros, revistas, álbuns, e coletâneas de músicas populares, Armanda Álvaro Alberto declarou à imprensa uruguaia que “em breve se realizaria uma Conferência Nacional de Educação, com o fim de que as novas orienta-ções pedagógicas sejam consideradas na futura Constituição do Brasil” (Álvaro Alberto, 1931b). Não poderia supor que, a partir de então, se envolveria em um grande debate político e que seria vítima de acusações de comunista, vermelha, revolucionária, a partir do acirramento do con-fronto ideológico entre católicos e signatários do Manifesto dos Pioneiros, documento escrito e divulgado a partir do evento que apenas anunciara em Montevidéu. Não poderia imaginar, também, que a correspondência que chegava do país vizinho, enviada por autoridades e pelas diretoras, professoras e alunos das escolas que conhecera durante a viagem, a encontrariam em meio às inúmeras polêmicas tanto na ABE, como na união Feminina do Brasil e na Aliança Nacional Libertadora.

Vários anos depois da visita de Armanda Álvaro Alberto ao uruguai, as missivas que lhe foram enviadas permitem entrever que o intercâmbio não se circunscrevera às atividades previstas na missão oficial da educa-dora brasileira. Eram muitos os correspondentes que escreviam cartas, cartões e bilhetes, manuscritos e datilografados, que acompanhavam fotografias e recortes de jornais sobre a repercussão de suas conferên-cias na imprensa uruguaia; agradeciam o envio de material para o Museu Pedagógico – cartões-postais, insetos, frutos e sementes, organizados pelo Museu Nacional e pelo Jardim Botânico –; comunicavam o falecimento de amigos comuns; informavam de visita à Escola Brasil; encaminhavam notícias de congressos de professores; solicitavam divulgação de eventos; justificavam a ausência de recursos financeiros que impediam um convite para retornar; presenteavam textos e livros; pediam informações sobre experiências pedagógicas13.

Afonsa Briganti, diretora da Escola n. 12 de 2o grau de Montevidéu, no período de sua permanência naquela cidade, reconhecia em Armanda

13. Ver correspondência de Armanda Álvaro Alberto em seu arquivo pessoal, sob a guarda do Proedes/uFRJ.

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Álvaro Alberto uma interlocutora capaz de entender a importância de uma prática pedagógica experimental que valorizava a atividade da criança, proposta por clemente Estable, cientista e educador uruguaio que propôs aprofundar os supercentros e centros de interesse nos diversos graus de ensino, inspirado no trabalho de decroly, em que os conteúdos eram tratados com enfoques diversos e diferentes níveis de profundidade, de acordo com a etapa de desenvolvimento da criança e de seu grau de ensino (Liberati, 2008):

Montevidéu, 28 de fevereiro de 1932senhora Armanda Álvaro Alberto

distinta senhora:Esperando até agora que o sr. Estable preparasse uma exposição de seu

plano pedagógico para remetê-lo e não lhe sendo possível por ter ido ao congresso de Biologia no chile, me decido a remeter-lhe algo do prometido. Envio também, o desenvolvimento de um dos supracentros de coordenação pedagógica do Plano Estable e alguns cadernos de deveres das crianças da classe que o aplicam [carta..., s.d.].

transcorridos mais de dez anos da viagem de Armanda Álvaro Alberto, em 1943, Afonsa Briganti voltou a lhe escrever, sem saber mesmo se aquelas folhas de papel chegariam ao destino. Assinando a carta como ex-diretora da escola, comunica que, por problemas de saú-de, fora obrigada a se aposentar, mas que continuaria lutando para que o plano pedagógico pudesse ser aplicado nas escolas. Isto se justificava porque, em 1939, as ideias do educador uruguaio haviam inspirado uma reforma educacional que ganhou seu nome, na qual procurava subverter o ensino verbalista por um ensino vivo, que levasse o método científico até a escola, permitindo à criança um contato com a observação, a ex-perimentação e com o aprender a aprender:

Montevidéu, 2 de outubro de 1943sra Armanda Álvaro Alberto

Passaram-se anos amargos que obstaculizaram o desenvolvimento do Plano de Ensino da Pedagogia causal. [...] Apesar destes obstáculos, minha

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escola continuou a aplicação do Plano Estable, porém sem desânimo de nossa parte. Felizmente, atualmente, com o atual conselho de E. P. e Normal, já bem organizado e com certo espírito democrático, começaremos, de novo, nossa campanha e propaganda do Plano Estable que é nacional e perfeitamente adaptável ao nosso meio e de acordo com a verdadeira orientação que deve tomar os problemas da educação do pós-guerra [idem].

Não é possível saber se a alusão feita aos tempos difíceis era tam-bém referência ao período que Armanda Álvaro Alberto passara na pri-são política, sob acusação de envolvimento com o Partido comunista. Mais uma vez, em 1945, Afonsa escreve para recordar o período em que se conheceram e o interesse comum que nutriam pelo ensino e as crianças e, mais uma vez, faz referências ao Plano Estable e ao Plano de Pedago gia causal, que o educador uruguaio formulara, que consistia em um método de trabalho onde os conteúdos tratados estariam de acordo com o nível de desenvolvimento do aluno e de suas relações com a na-tureza e a sociedade, de modo que se respeitasse a criança sem confiar cegamente nos talentos naturais dos professores, uma tentativa de uma ciência pedagógica que, segundo Liberati (2008), tinha a criança como centro e o sentido ético da educação como horizonte. Não conseguia disfarçar certo orgulho por ter sido uma das pioneiras na aplicação do Plano Estable, pois a escola que dirigira, juntamente com a Escola 70 e a escola Experimental de Marvin, fora uma três primeiras a experimentar o plano, como assinala Lúcia Baladan14.

Montevidéu, 2 de outubro de 1945

sra Armanda Álvaro Alberto,

dr. Emílio oribe, que atualmente é outra vez membro do nosso conselho de Educação Primária e Normal, me disse que sempre se recorda de sua pessoa, como uma das mais ilustres visitantes deste país. Recordam com igual afeto as professoras da Escola n. 12 e aqueles meninos que conheceu, naquele famoso 4º ano elementar, que foram iniciadores do Plano de Pedagogia causal.

14. Para maiores informações sobre Clemente Estable, consultar Baladán (2008).

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Em um dos ciclos de conferências que recentemente nosso comitê organizou, falaram esses meninos, hoje já homens e senhoritas e senhoras outras. daquele grupo, já três são excelentes professoras, dois estudantes de Medicina (5º ano da Faculdade) com uma atuação brilhantíssima; dois são estudantes de direito e três de Engenharia. A maioria seguiu carreira. Pode imaginar com que interesse tenho seguido a vida desses meninos que são verdadeiramente os que melhor ensaiaram o plano. três desses alunos e sua professora estiveram neste ciclo e não se esqueceram de citá-la em sua visita à nossa escola e recordam o formoso material que enviou para nosso museu escolar [carta..., s.d.].

o sonho de Armanda Álvaro Alberto, de ajudar a construir as pontes espirituais com os povos sul-americanos, foi perseguido para além da missão oficial. Ultrapassou as turbulências políticas, a prisão política e o silenciamento imposto aos intelectuais. tão sólidas como as pontes férreas que uniam os dois países, e que permitiram a viagem, foram as necessidades de conhecer, observar, comparar, propor e experimentar. O desejo de transformar a educação e as condições de vida das novas gerações encontrou eco nos educadores uruguaios. Irmanados num mesmo projeto educacional de cunho cientificista e pacifista, permitiram que a educadora brasileira lançasse mão de sua viagem para legitimar as escolas visitadas, a sua própria experiência pedagógica e legitimar-se, ainda mais, no debate e na cena educacional.

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Endereço para correspondência:Ana chrystina Venancio Mignot

universidade do Estado do Rio de JaneiroFaculdade de Educação

Rua são Francisco Xavier 524 – sala 12037 – bloco FMaracanã – Rio de Janeiro -RJ

cEP 20550-900E-mail: [email protected]

Recebido em: 13 ago. 2008Aprovado em: 10 jul. 2009

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Exemplaridade institucional e renovação pedagógica:

reflexões a partir das viagens de professoresdo Instituto de Odivelas

Joaquim Pintassilgo*

Resumo:Este artigo procura refletir sobre as viagens pedagógicas realizadas por professores duma instituição concreta, o atual instituto de odivelas (Portugal), dedicada à educação, em regime de internato, de crianças e jovens do sexo feminino filhas de militares e caracterizada pela sua exemplaridade e pelo desenvolvimento, em momentos diferenciados, de um conjunto de inovações pedagógicas. Dessas viagens resultaram relatórios, que constituem a principal fonte do presente trabalho e que permitem pensar a viagem como recurso tendo em vista a legitimação do projecto educativo do instituto.

Palavras-chave:viagem pedagógica; renovação pedagógica; educação feminina; educação doméstica; exemplaridade institucional.

* Professor da universidade de Lisboa (uL/Portugal).

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Exemplaridade institucional e renovação pedagógica

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Institucional exemplary and pedagogical renewal:

reflections from the travel of teachers of the Instituto de Odivelas [Odivelas Institute]

Joaquim Pintassilgo

Abstract:This article tries to make a reflection on the travels made by teachers of a specific institution, the current Instituto de Odivelas [odivelas institute] (Portugal), dedicated to education, on a boarding-school scheme, of children and young female children military daughters and characterized by their exemplary and by development, in different moments, of a set of pedagogical innovations. From these travels resulted reports, which are the main source of this work and allow us to think in travel as a resource for the legitimacy of the educational project of the institute.

Keywords:pedagogical travel; pedagogical renewal; female education; domestic education; institutional exemplary.

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Ao longo do século XX, em particular em alguns momentos, realizaram-se viagens pedagógicas de educadores portugueses ao estrangeiro, tendo por objetivo o conhecimento de instituições consi-deradas, de alguma maneira, exemplares e localizadas em países que passavam por ser dos mais cultos e desenvolvidos da Europa de então. Esses educadores produziram, em geral, relatórios na sequência das suas viagens, que nos permitem hoje aceder às imagens e representações que foram construindo a partir desse olhar sobre o estrangeiro e que vão do encantamento a certo distanciamento crítico, o que nos permite refletir acerca da forma pela qual os educadores portugueses se apropriaram das ideias pedagógicas em circulação internacional e as integraram nos seus projetos, tendo em vista a reforma educativa em Portugal (Fernandes, 2007; Pintassilgo, 2007a).

Vamo-nos concentrar, neste texto, nas viagens pedagógicas realiza-das por professores de uma instituição concreta que temos vindo a estudar, o atual instituto de odivelas (então instituto Feminino de Educação e trabalho), e em um período delimitado, os anos vinte, usando como fontes, entre outros documentos, três detalhados relatórios escritos por professores do instituto, que realizaram viagens pedagógicas nesse período.

1. Percurso histórico do Instituto de Odivelas

o instituto de odivelas, cuja designação original era instituto infante d. Afonso, foi inaugurado em 1900, como resultado da iniciativa de um grupo de oficiais do exército, sendo, numa primeira fase, prioritariamente destinado “à educação gratuita de órfãs” de militares (secretaria do Esta-do, 1904), público este que se alargará, posteriormente, a todas as filhas de militares. Em 1902, o instituto instala-se, após a realização de obras, no convento de odivelas (arredores de Lisboa), onde, de resto, ainda hoje se encontra. É visível, desde o início, sua finalidade de contribuir para a educação geral das alunas, para a sua formação como mulheres (mães, esposas e “donas de casa”) e, complementarmente, para a sua formação profissional em algumas áreas consideradas adequadas ao gênero femi-

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nino. o caráter prático de muitas das aprendizagens tornar-se-á uma das imagens de marca do instituto.

A implantação da República trouxe ao instituto um conjunto im-portante de transformações, tendo inaugurado uma das suas fases mais criativas e bem-sucedidas. Ainda no ano de 1910, é-lhe atribuída a curiosa designação de instituto da torre e Espada, logo substituída, em agosto de 1911, pela designação, bem mais expressiva, de instituto Feminino de Educação e trabalho (Anuário..., s.d., p. 133). os documentos regula-mentares publicados entre 1911 e 1930, este já durante a ditadura militar, e que têm grandes linhas de continuidade entre si, reforçam a dimensão profissional dos cursos, sem porem em causa o espírito inicial. O Instituto passa a ser definido como “um estabelecimento destinado a educar e preparar para a vida prática indivíduos do sexo feminino” (secretaria da Guerra, 1915, p. 5). Procura-se, ainda, atualizar as concepções relativas à educação da mulher e introduzir um conjunto de inovações pedagógi-cas derivadas da influência da chamada Educação Nova. Para além do ensino primário e do curso geral dos liceus, vão funcionar, com algumas flutuações ao longo desse período, entre outros, cursos de empregadas de escritório e do comércio, de correios e telégrafos, de auxiliares de química, de artes e ofícios (em várias áreas) e de preceptoras.

Em 1919 tomou posse como diretor do instituto o então coronel Frederico Ferreira de simas (1872-1945), já anteriormente ligado à instituição, figura de relevo do campo pedagógico português de então, antigo diretor da Escola Normal Feminina de Lisboa (1909-1910), por duas vezes ministro da instrução Pública, membro ativo da sociedade de Estudos Pedagógicos, entre outras funções (Nóvoa, 2003; Vilela, 1998). Ferreira de simas manter-se-á à frente da instituição até 1941 (ou seja, 22 anos) e marcará decisivamente pelo seu estilo de liderança, pelas concepções relativas à educação feminina e pelo projeto de concretização de uma pedagogia experimental toda a sua vida e organização.

Ferreira de simas conseguiu, na difícil transição da República para o Estado Novo, adaptar-se ao novo contexto, preservando a coerência do projeto e mantendo a sua vitalidade e caráter inovador. só em 1941 o regime salazarista decide dar por finda a etapa “republicana” do Instituto,

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demitindo o diretor e aproveitando para proceder a uma reorganização geral – começando pela mudança do nome para instituto de odivelas –, que o equipara ao liceu nacional e à escola industrial e comercial e lhe retira a vocação profissionalizante. A sua identidade decorrente do fato de ser um estabelecimento de educação feminina foi preservada, ainda que numa perspectiva mais conservadora e católica. Não obstante esse fato, mantiveram-se algumas das práticas inovadoras associadas à fase anterior, tendo-se acrescentado outras (Leitão, 1980; saraiva, 1978; silva & Leitão, 1990; Vilela, 1998).

2. A exemplaridade do Instituto de Odivelas no contexto da Educação Nova portuguesa

Nas primeiras décadas do século XX, encontramos referencia-das, na imprensa de educação e ensino, várias instituições escolares consideradas modelares, designadamente no que se refere à concre ti-zação de práticas pedagógicas inovadoras. o realce dado à sua exem-plaridade tinha em vista, seguramente, a difusão de uma espécie de “boa nova” no seio do campo pedagógico. Pondo de parte a Escola Oficina N. 1 de Lisboa, quase sempre apresentada como um caso à par te no panorama educacional de então, encontramos entre as mais emblemáticas das referidas instituições o Instituto de Odivelas. Nos balanços que Álvaro Viana de Lemos faz, na transição dos anos de 1920 para os de 1930, do movimento renovador português, em al-guns casos para apresentação em congressos internacionais ligados à Educação Nova, o instituto surge entre os exemplos apontados de es colas que se aproximam, de alguma maneira, do paradigma de Escola Nova (Lemos, 1930).

Muitos outros exemplos poderiam ser retirados da imprensa peda-gógica para justificar a ideia de que ao longo da sua existência, e desig-nadamente na sua fase de instituto Feminino de Educação e trabalho, o instituto de odivelas surgiu como escola “exemplar”. Para além da eventual justiça da adjetivação, esses discursos não deixam de ser ex-

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pressão de uma estratégia do campo pedagógico renovador para procurar fazer inflectir o nosso rumo educativo por meio da apresentação de bons exemplos, de escolas modelares, cujo caráter paradigmático deveria ser seguido por todas as outras.

Na verdade, o projeto pedagógico do instituto possuía muitos ele-mentos que comprovam a sua modernidade pedagógica, dentre os quais podemos destacar os seguintes: a opção pelo internato, tendo em vista a criação de um ambiente que fosse plenamente educativo e moralizador; o desenvolvimento de um projeto de formação integral, no âmbito do qual eram valorizados os trabalhos manuais, a educação física, a educação estética e a educação moral, neste caso com recurso ao self-government; o contato frequente com a natureza, por meio das atividades desenvol-vidas na horta do Instituto, de excursões e de estadias de verão na praia; a ausência de castigos corporais; a realização de “testes mentais”, para conhecimento e encaminhamento da população escolar; o controle médi-co da saúde e da alimentação das alunas. No que diz respeito à educação da mulher, embora as atividades ligadas à economia doméstica sejam uma presença constante, a formação profissional assume igualmente relevância, em ambos os casos, por via de atividades muito marcadas pelas perspectivas da “escola ativa” (Pintassilgo, 2007b).

3. As viagens pedagógicas realizadas no âmbito do Instituto de Odivelas

A primeira viagem pedagógica foi realizada no ano inaugural do instituto (1900), na sequência de uma decisão do conselho Gerente, regis-trada na sua ata n. 14 de 24 de junho, que estipulou “que a Regente [Maria do Carmo Magalhães] fosse, durante o período de férias, a Paris a fim de estudar a organização e funcionamento dos grandes estabelecimentos de educação de meninas” (citada em silva & Leitão, 1990, p. 43).

Nos anos de 1920, já sobre a direção de Ferreira de simas, quatro professores do Instituto realizaram visitas idênticas a instituições na Alemanha, na Bélgica, na suíça, na Holanda e na dinamarca. É sobre

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três dos relatórios, que foi possível encontrar, relativos a estas viagens que incidirá o principal da nossa análise subsequente.

Em 1930, assistimos ao procedimento inverso, quando o educador Adolphe Ferrière, um dos porta-vozes do movimento internacional da Educação Nova, visitou Portugal. No âmbito da preparação da visita, que viria a ocorrer, em condições complexas, em novembro desse ano, Adolfo Lima, em carta a Álvaro Viana de Lemos, inclui o instituto na restrita lista de instituições que estariam em condições de ser visitadas por esse dirigente do movimento renovador (Nóvoa, 1995). A visita acabou mesmo por acontecer, como podemos comprovar, mais tarde, a partir de um discurso de Ferreira de simas:

A imprensa portuguesa muitas vezes se refere com elogio ao instituto e temos com orgulho, num importante jornal inglês, um longo artigo sobre a nossa escola, escrito pela secretária geral da Associação das Professoras das escolas ménagères inglesas, que nos visitou, bem como o pedagogo suíço Mr. Ferrière que, após a sua visita, nos dirigiu uma elogiosa carta e presenteou as alunas com trabalhos seus [Anuário..., p. 136].

Nessa mesma década de 1930, a professora de economia doméstica, Guilhermina trindade, visitou escolas ménagères em Berlim e Zurique. segundo documentos compulsados por silva e Leitão (1990), “nada viu, ali, que fosse melhor do que o praticado no instituto de odivelas”. Em Zurique terá assistido “a uma aula prática de puericultura. o banho era dado a bonecos de celuloide, enquanto que, aqui no instituto, desde 1911, as alunas prodigalizavam seus cuidados e carinhos a crianças” (p. 66).

Nos anos de 1950, a diretora e várias professoras do instituto deslocaram-se a sèvres, tendo frequentado um estágio no centro in-ternacional de Estudos Pedagógicos (ciep). Posteriormente, a diretora dessa instituição – M.me Hatinguais – visita Portugal, tendo proferido várias conferências. Estes são alguns dos principais exemplos de viagens pedagógicas realizadas por educadores ligados à instituição.

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4. A missão de estudo de Alberto David Branquinho à Alemanha (maio – junho de 1922)

As viagens pedagógicas realizadas nos anos de 1920 decorrem, como os próprios relatórios fazem notar, do estipulado no regulamento do então instituto Feminino de Educação e trabalho, o que podemos ilustrar por meio do exemplo dos artigos do regulamento de 1921 (mantidos nas revisões subsequentes) que se lhe referem:

Art. 50. É concedido anualmente a um professor efetivo escolhido pelo conselho escolar um subsídio de 600$, especialmente destinado a viagem de estudo aos países de mais elevada cultura intelectual como meio de aperfei-çoamento dos métodos de ensino das disciplinas do seu grupo.

Art. 51. Além do subsídio a que se refere o artigo anterior, o conselho Escolar poderá ainda subsidiar um ou mais professores para missões de estudo no país, com o fim de completar e desenvolver o ensino das matérias dos diferentes cursos professados no instituto [Regulamento..., 1921, p. 73-74].

o tenente-coronel Alberto david Branquinho, inspetor de instrução do Instituto, realizou a primeira das missões dessa fase, na sequência da aprovação da mesma em sede de conselho Escolar. o país escolhido foi a Alemanha. o objetivo era o de visitar “escolas de educação feminina” de modo que se colhesse ensinamentos que se traduzissem no “aperfei-çoamento da obra que o nosso instituto vem efetivando” (instituto..., s.d., p. 1). o percurso incluiu cidades como Berlim, colónia e Frankfurt, aproveitando Alberto Branquinho para visitar também “escolas doutra natureza” (idem, p. 5). A que “mais funda impressão” lhe causou, “pelo seu significado moral e educativo”, foram os chamados Kinderhorts, que ele apresenta da seguinte forma:

Para evitar que, terminados os trabalhos diários nas escolas oficiais, as crianças sejam lançadas para a rua, onde muitas se perverteriam, e no intuito ainda de lhes incutir hábitos de trabalho e de limpeza individual, os alemães

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criaram os kinderhorts ou refúgios de crianças, cuja administração pertence às municipalidades.

Estas instituições, de tão largo alcance social, estão espalhadas por toda a Alemanha [idem, p. 7].

o relator realça o fato de aí ser dada uma refeição às crianças e, também, o de o banho ser obrigatório e chama a atenção para “a influên-cia que poderia ter no nosso meio social o estabelecimento em Portugal de organismos similares” (idem, p. 8). Por isso, expressa, no final do seu relatório, “o voto de que ou o Estado ou a ação particular criem em breve em Portugal” essa “esplêndida instituição, de larguíssimo alcance social” (idem, p. 38). Essa escolha remete-nos à importância assumida pelas dimensões social e moral nos projetos de educação da mulher, desenvolvidos nas primeiras décadas do século XX. A “rua” surge como lugar de perdição. A regeneração social, que essas instituições possibilitariam, passaria pela interiorização de “hábitos de trabalho e de limpeza individual”. São óbvias as finalidades de regulação. Pretende-se evitar que essas crianças e jovens, degenerando-se moralmente, venham a representar, no futuro, um perigo para a sociedade.

Passando para as escolas “ménagères” e de profissões femi ni -nas, Alberto Branquinho considera que elas “são numerosas em to-da a Alema nha”, sob formas diversas (Haushaltungschules, Handelsfachs chules etc.). Nelas, “o ensino é essencialmente prá tico” (idem, p. 13), como constata frequentemente o relator, manifestando a sua aprovação por essa opção. Num dos internatos visitados em Frankfurt, Branquinho diz ter assistido “a uma das classes de traba-lhos manuais, nada tendo visto de novo, a não ser o aproveitamen-to das caixas vazias de charutos para manufatura de brinque-dos” (idem, p. 14). No internato das ursulinas, situado na mesma cidade, constata que a escola possui um bom ginásio “mas não segue os métodos mo dernos”, além de que “o material escolar é muito de-ficiente” (idem, p. 16). Essas considerações remetem-nos à complexi-dade do olhar desses bolsistas sobre as instituições estrangeiras, tendo como refe rência o instituto em que são professores, questão a que voltaremos.

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A “Lette Vereins”, situada na Victoria Luize Platz de Berlim, e que passava por ser “o melhor estabelecimento berlinense de educação fe-minina” (idem, p. 4), é, segundo Branquinho, “pela diversidade dos seus cursos e pelos seus processos de ensino”, dentre as escolas visitadas, “a que mais se aproxima do nosso instituto” (idem, p. 16). A instituição é descrita de forma detalhada no relatório, ocupando essa descrição 18 das 38 páginas do documento. são elogiados muitos aspectos da sua organiza-ção pedagógica, tais como os “exercícios práticos” realizados na creche da instituição, os trabalhos de “culinária” para que são indica dos grupos de alunas, o fato de toda a roupa ser lavada pelas próprias alunas, a existência de uma “agência” para a colocação das educandas etc. curiosamente, “a aula de química aplicada é muito semelhante à do nosso instituto, mas o seu material é mais deficiente” (idem, p. 32-33). A “Lette Vereins” possui cursos na área da administração e do comércio, um curso de habilitação para assistentes de laboratório, cursos na área do “governo de casa”, de-signadamente de “economia doméstica” e de “em pregadas domésticas”, cursos profissionais, entre outras nas áreas de “modas”, “conserto de rou-pas”, “bordados”, “fotografia” e “encadernação”, cursos de “preparação de professoras” e de “educação infantil” (idem, p. 17-18).

Alberto Branquinho conclui o relatório considerando que “a corrente dominante na educação feminina [na Alemanha] é a preparação quase exclusiva da mulher para a sua formação no lar ou para o exercício da atividade comercial e industrial”, sublinhando “a organização e feição prática e utilitária dos cursos”, o que pode constituir, segundo as suas palavras, “um excelente modelo” para cursos similares do instituto, e o particular cuidado dado ao ensino do desenho, o qual “deve ter no nosso instituto um maior desenvolvimento” (idem, p. 37-38).

5. A missão de estudo de José Augusto de Melo Vieira à Bélgica (abril – maio de 1923)

o major José Augusto de Melo Vieira, também professor no instituto Feminino de Educação e trabalho, realizou, um ano após, a segunda das

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visitas dessa fase, tendo, dessa vez, a Bélgica como destino. o relator justifica a escolha, afirmando “que nesse país poderia colher bastantes elementos que, convenientemente aproveitados... se poderiam traduzir em úteis aproveitamentos... na obra de renovação social que o nosso instituto há muito vem procurando fazer” (Relatório..., 1923, p. 25). o objetivo era “pôr-me em contato com o ensino técnico e profissional e o ensino ménager” (idem, p. 27).

Como o próprio afirma, levou de Portugal “uma carta de apresenta-ção” escrita pelo “sr. dr. Faria de Vasconcelos” e dirigida ao “sr. diretor das Escolas de Bruxelas, o professor dr. Victor devogel” (idem, p. 26), que contribuiu sobremaneira para o sucesso da missão. Esse fato põe em destaque as redes de solidariedade existentes entre os educadores ligados ao movimento internacional de renovação pedagógica, de que Faria de Vasconcelos surgia como figura de relevo. Recordemos, além disso, a sua estadia de vários anos na Bélgica, onde havia fundado a Escola de Bierges-les-Wavre, encerrada com o início da Grande Guerra, uma das que, na avaliação de Adolphe Ferrière, mais se aproximava do paradigma da Escola Nova (Vasconcelos, 1915).

Embora, da mesma maneira que seu antecessor, mais preocupado com as instituições de educação feminina, Melo Vieira dirigiu também a sua atenção para outro tipo de estabelecimentos de ensino. As escolas in fantis são bastante elogiadas e vistas como resultado da concretização das “ideias novas sobre educação”. o mobiliário é considerado apropria do à “estatura” e “à necessidade de movimento das crianças”, para além de “facilitar a aplicação dos métodos ativos empregados nos jardins de infância”. Por influência da “psicologia experimental”, a criança é olhada “como um ser em formação, com personalidade própria e nunca um homem em miniatura”. As salas são “amplas, cheias de luz” e “cuidada e carinho-samente ornamentadas”. o “serviço médico” vigia atentamente a saúde das crianças. As atividades ao ar livre, nos jardins dos estabelecimentos, como cavar e regar, são numerosas (Relatório..., 1923, p. 44-47).

As escolas primárias belgas são alvo de idênticos elogios. os espaços são adequados, com “ar” e “luz”, o mobiliário apropriado, nos jardins pratica-se a agricultura, a horticultura e a arboricultura e é atribuída “uma

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importância enorme ao emprego do método ativo” (idem, p. 54-56). o ambiente dessas escolas é marcado pela “alegria” e pela “beleza”. É verdadeiramente “uma escola para crianças”, mas que as prepara “para o seu destino de homens e cidadãos” (idem, p. 60). Nessa descrição estão bem presentes algumas das grandes referências da Educação Nova, que essas viagens permitem partilhar.

o “método decroly”, que parece prevalecer em ambas as institui-ções, é alvo de uma descrição detalhada, em especial no que se refere ao chamado “método dos centros de interesse ou das ideias-eixos”. o re lator dá uma particular atenção à sua concretização prática, na sequência de visitas demoradas a várias escolas, chegando à conclusão de que a or-ga nização das classes “constitui um todo”, sendo o seu funcionamento distinto do das outras escolas em áreas como a organização e decoração do espaço, o material utilizado, a responsabilização das alunas, a auto-disciplina etc. (idem, p. 63-67).

As Escolas Primárias do 4º Grau para raparigas, que o autor consi-de ra equivalentes às Escolas Primárias superiores portuguesas, são carac terizadas como instituições muito interessantes, onde prevalecem os “exercícios de redescoberta”, o recurso (não exclusivo) à “intuição” e “o prin cípio da ação” (idem, p. 78). os seus objetivos situam-se a três ní-veis: o desenvolvimento da “inteligência” da mulher e das “qualidades inerentes ao seu sexo”; a preparação da “mãe de família”, veiculando-lhe “os conhecimentos indispensáveis para o governo da sua casa e a edu-ca ção dos seus filhos; a formação, por meio da “educação técnica”, da “tra balhadora”, de modo que as mulheres possam dispor de “meios de sub sis tência”. segundo o juízo de Melo Vieira, que confessa basear-se na opinião dos seus interlocutores belgas, o projeto do 4º grau terá possibilitado a superação da antiga concepção sobre o papel da mulher, de que resultavam programas de formação estritamente utilitários, isto no contexto pós-guerra, em que a noção do que poderia constituir uma ocupação feminina se havia alargado.

uma mulher – uma mãe – necessita absolutamente de estar preparada para em sua casa – pelo menos – exercer múltiplos ofícios, variadas ocupações

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e averiguado que ela está, na vida social, tão sujeita como o homem – mais até – diz-se – às flutuações da vida, nada justifica que se não pense a sério em lhe dar todas as defesas...

“Era tempo de acabar com a acanhada educação técnica que se praticava” [idem, p. 82-83].

As afirmações anteriores são, para além da referência à situação na Bélgica, uma expressão clara do pensamento de Melo Vieira acerca da educação da mulher, na verdade coincidente com o praticado no instituto de que ele era professor.

O relator visitou, por fim, um conjunto importante de escolas do ensino técnico e profissional feminino, que considera constituir “um dos grandes meios de moralização e de progresso nacionais” (idem, p. 95). um dos aspectos que é destacado é o fato de estar subjacente a essas escolas um verdadeiro projeto de “educação intelectual”, “física” e “moral”, desenvolvendo nas alunas um “corpo são”, a “vontade”, bons “hábitos”, o “amor pelo trabalho e pela casa” e o “sentimento profundo da sua própria dignidade” (idem, p. 112). Fica claro que a educação feminina tem, a esse nível, uma finalidade de formação integral e claros propósitos de moralização, por meio da divulgação dos valores ade-quados à mulher e necessários para a preservação do equilíbrio social. A concretização desse projeto só será possível, na óptica do autor, se puder contar, para além de novos programas e métodos de ensino, com “a capacidade profissional dos mestres, a sua orientação educativa e a sua fé de apóstolos” (idem, p. 113). Em relação especificamente ao ensino “ménager”, elemento essencial do ensino técnico e profissional feminino, a avaliação é entusiástica:

diz-se, e eu creio que com fundada razão, que é a Bélgica o país onde melhor se tem desenvolvido o ensino ménager. será? Não será? ignoro-o por falta de elementos de comparação; o que, no entanto, a minha observação deu é que ele é absolutamente popular e absolutamente oficial e se dermos crédito – e nada permite que o não façamos – às informações várias recolhi-das, é, com efeito, a Bélgica o país onde devemos colher o tipo mais perfeito

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da sua organização, atingido por uma série sucessiva de etapas que vários e diferentes congressos têm consagrado [idem, p. 124].

A principal conclusão, apresentada no final do relatório, dá exa-tamente conta do balanço francamente positivo feito por Melo Vieira em relação à educação da mulher na Bélgica: “A escola belga procura preparar a mulher para desempenhar na vida a sua missão principal – a de boa esposa e boa mãe – fornecendo-lhe, ao mesmo tempo, vários meios de poder ganhar, honradamente, pelo trabalho, o seu pão e o dos seus”. se a coincidência de perspectivas acerca da educação feminina já foi notada, é importante também constatar que a viagem permitiu que se confirmasse, no espírito do professor, o caráter vanguardista do Instituto, mesmo no plano internacional, o que legitimava o seu projeto próprio: “a mais consoladora das impressões que senti ao concluí-la foi a de que o nosso instituto é qualquer coisa que pode pôr-se ao lado do que de bom encontrei no meu caminho”. Mesmo assim, deixa algumas sugestões e que vão, principalmente, no sentido de valorizar a “feição utilitária e prática” dos cursos, algo recorrentemente sublinhado nas escolas belgas. Além disso, é proposta a criação de uma “escola normal de professoras de economia doméstica”, no gênero da encontrada em Wavre-Notre-dame, e constatada a necessidade de fazer “uma propaganda ativa... sobre a obrigatoriedade do ensino de economia doméstica” (idem, p. 165).

6. A missão de estudo de J. Santos Correia à Suíça (outubro de 1925)

O tenente-coronel J. Santos Correia, professor de geografia do ins tituto Feminino de Educação e trabalho, foi outro dos viajantes pedagógicos desse período. da mesma maneira que os anteriores, apresentou um desenvolvido relatório com os resultados da sua mis-são. Ao apresentar os seus objetivos, santos correia recorre à tese da exemplaridade e do caráter pioneiro do instituto:

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Esta importante função [educar e preparar para a vida prática indivíduos do sexo feminino] e o lugar de excepcional destaque e justificado crédito de que o instituto goza entre todos os estabelecimentos do país destinados à educação feminina, impõem-lhe naturalmente o dever de acompanhar de perto a evolução dos métodos de ensino nos países mais progressivos, bem como tudo o que nestes vá sendo posto em execução a favor da educação feminina, isto é, da preparação da mulher para a vida prática. É a este elevado objetivo que visam as viagens de estudo a que se refere o art. 71. do Regulamento de 21-11-1924 [Relatório..., 1925, p. 34].

Essa justificação remete-nos para a ideia, já esboçada, de que existia claramente, à época, uma rede internacional que permitia uma fácil circu-lação de pensamentos e de práticas pedagógicas inovadoras. o instituto, e algumas das figuras a ele ligados (em particular o seu diretor, coronel Ferreira de simas) – fazia parte dessa rede e buscava a legitimação de seu projeto e de sua ação, tanto interna quanto externamente, nesse olhar para o estrangeiro que, chamando a atenção para o que de novo aí se fazia, realçava, simultaneamente, a modernidade do próprio instituto, mesmo se enquadrado nesse contexto mais geral.

uma vez que se pretendia, tendo em conta o caráter do instituto, “estudar a educação feminina”, a opção pela suíça decorria do fato de se desejar, segundo o relator, “escolher um país onde a educação feminina... se encontrasse mais desenvolvida”, tendo a suíça “numerosas escolas [que] gozam de universal reputação” (idem, ibidem). É conhecida, de resto, a atração que aquele país, então considerado o principal foco de irradiação das ideias novas em educação, exerceu sobre educadores de todo o mundo, que aí acorriam, com o propósito de visitar as suas escolas mo-delares, daí retirando ensinamentos (e entusiasmo) que lhes permitissem contribuir para a modernização pedagógica dos seus respectivos países. Nesse caso, é o próprio autor que assume ter-se “naturalmente em vista a adoção entre nós do que seja aplicável ao nosso meio e possa contribuir para o progresso das nossas instituições de ensino” (idem, p. 52).

O percurso pela França, a caminho do destino final, possibilitou a santos correia uma visita a vários estabelecimentos de ensino na cidade

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de Lyon. Em relação às escolas de educação feminina, o relato retoma um dos lugares-comuns dos discursos dos outros viajantes, expressão fiel de algo que é defendido (e, por isso, visto): o “caráter essencialmente prático” do ensino ministrado (idem, p. 43). A visita a uma Escola Ma-ternal deixou-lhe gratas recordações, justificadas pelas “salas amplas, bem iluminadas e arejadas” e pelo “mobiliário adequado” (idem, p. 44). A constante atenção dada à qualidade e adequação dos espaços visitados (edifício, mobiliário etc.) surge como consequência da importância que essa dimensão assume no pensamento pedagógico renovador, em par-ticular por via da influência higienista. O método de ensino aí adotado, tendo em vista “o desenvolvimento das diversas faculdades da criança” é assim sistematizado pelo relator:

o método de ensino, como o indica a designação das escolas [“Écoles Maternelles”], é o que consiste em imitar, o mais possível, os processos de educação de uma mãe inteligente e dedicada, método essencialmente natural, familiar, aberto a todos os progressos, suscetível de modificação e aperfeiçoamento.

serve de orientação o método de Froebel, seguindo-se algumas das su-gestões do método Montessori [idem, p. 46].

Já na Suíça, que considera uma das “mais progressivas civilizações do mundo”, Santos Correia elogia a atenção dada ao ensino profissional, à cooperação da iniciativa particular com o Estado, à liberdade de ensino, à liberdade de consciência e de crença, à harmonização do ensino com os princípios da democracia, o serviço médico das escolas, entre outros elementos (idem, p. 61-63). os espaços escolares são considerados exemplares, verdadeiros “palácios da democracia”:

Merecem referência especial os edifícios escolares da suíça. desde a escola primária até a universidade, as escolas da suíça são edifícios amplos, majesto-sos, testemunho frisante do culto que o povo suíço tem pela instrução...

satisfazendo aos requisitos exigidos pelos modernos princípios de educa-ção, observando rigorosamente os preceitos da higiene, as escolas primárias

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oferecem aos seus pequenos frequentadores as melhores condições de salu-bridade e conforto [idem, p. 66-67].

É de novo bem visível, como no exemplo francês, a importância atribuída, no contexto da nova pedagogia, à higiene (no sentido amplo) dos espaços escolares.

A visita a diversas escolas infantis permite ao autor destacar a impor-tância que aí é atribuída aos trabalhos manuais e defender o seu “grande valor educativo”, por permitirem estimular “a atividade da criança” e fazer nascer nela “o amor ao trabalho”, auxiliando “a educação da vista e da mão”. os trabalhos manuais são aí adaptados, “segundo os preceitos da pedagogia, às diferentes idades da criança” (idem, p. 83). somos aqui confrontados com outra das estratégias privilegiadas no âmbito do projeto renovador. Para além de serem uma das imagens de marca do ativismo, tão caro às chamadas Escolas Novas, é a sua dimensão educativa, ou seja, as suas implicações na formação integral das crianças que surgem enfatizadas. No que se refere aos métodos seguidos, o diagnóstico de santos correia é, como em Lyon, muito expressivo e, provavelmente, um bom retrato das opções tomadas, a esse nível, nas escolas suíças:

Em quase todas as escolas infantis da suíça é seguido o método Froebel, mais ou menos modificado, segundo os princípios expostos; nalgumas das 89 escolas infantis do cantão de tessino é adotado o método Montessori. Além destes dois métodos, merece especial referência o seguido na “École Nouvelle”, a que me referirei [idem, p. 84].

Esse texto permite-nos aquilatar da prevalência que as propostas pedagógicas do educador alemão, não obstante a sua relativa antiguidade, continuavam a manter, mesmo na suíça, ao nível da educação infantil. As propostas de Maria Montessori desempenham um papel secundário. Curiosamente, aquilo que surge identificado como Escola Nova parece ocupar um lugar relativamente marginal, ainda que o relator mostre perfeita consciência da complementaridade existente, do ponto de vista das práticas educativas, entre as várias opções. Isso é bem visível quando

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fala da instituição de referência que é a “Maison des Petits” [a “École Nouvelle” há pouco referida], destino obrigatório – verdadeiro lugar de peregrinação – dos muitos viajantes pedagógicos que acorrem a Genebra em busca de novidades pedagógicas.

A “Maison des Petits” do instituto J. J. Rousseau é uma escola infantil cujos processos educativos têm muitos pontos de semelhança com os do método Montessori... passei aproximadamente duas horas na pequena mas alegre “vila” onde está instalada a escola e aí assisti a sucessivas manifesta-ções da vida escolar dos seus pequenos alunos que em mim, como nos outros visitantes, despertaram um interesse sempre crescente...

A “Maison des Petits” constitui, assim, um interessante centro de obser-vações e experiências, dotado de riquíssimo material para esse fim criado, pelas ilustres professoras [M.elles Audemars e Lafendel]...

das escolas infantis que visitei, a “Maison des Petits” é a que me parece oferecer à criança o meio mais propício à sua educação. Exige, porém, o seu bom resultado um conjunto de circunstâncias tão diversas e difíceis de reunir, que a sua adoção se torna delicada. É esse talvez o motivo por que na quase totalidade das escolas infantis da suíça se segue o método Froebel, embora tenham sido modificados alguns dos seus processos; é também o que depreendi da opinião de alguns professores.

de uma ilustre educadora ouvi, referindo-se ao método Montessori: “considero-o vantajoso, mas para classes de poucos alunos”, a que eu acres-centarei – e quando se disponha de pessoal educador possuindo a excepcional competência que o seu ensino exige [idem, p. 91-95].

Esse conjunto articulado de citações, retiradas do relatório de Santos Correia, é particularmente interessante por duas razões. Por um lado, é reconhecida a exemplaridade, mas também o caráter laboratorial e excepcional, de uma das mais emblemáticas instituições criadas no âmbito do movimento da Educação Nova. Por outro, o texto expressa bem a forma pela qual uma corrente pedagógica se plasma na realidade escolar. Em geral, não na sua versão mais pura, mas em combinação com outras influências. Os contextos locais aproveitam as ideias e práticas em

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circulação e combinam-nas de modo que correspondam às necessidades e condições próprias. A localização das doutrinas pedagógicas tem, em permanência, a marca do hibridismo.

As visitas realizadas a escolas primárias conduzem o relator a valorizar os temas do costume, isto é, os “esplêndidos edifícios”, as “dotações completas de material de ensino”, a profusão de “quadros” ornamentando as paredes, a presença constante de uma “atmosfera de animação e interesse”, a frequente “prática de jogos e passeios”, a grande “variedade de trabalhos manuais”, o registro da “frequência, comporta-mento e aproveitamento” em “boletins semanais e cadernos escolares”, entre muitas outras coisas.

As “escolas ao ar livre” e as “colônias de férias” merecem-lhe um elogio especial, pelos “extraordinários benefícios” que trazem às crianças, representando uma “verdadeira cura de ar e sol”, ocasião de contacto com as “belezas naturais” e contexto de “solidariedade, mútuo auxílio e sociabilidade”. são referidas, em particular, atividades como a jardinagem, os passeios a pé, os trabalhos domésticos e as duchas diárias. É o naturalismo típico das novas pedagogias que aqui surge no seu máximo esplendor, contribuindo para a regeneração física e moral das novas gerações.

santos correia dedica a última parte de seu relatório aos estabele-cimentos que constituíam o principal motivo de sua missão – as escolas femininas de educação profissional e doméstica. São realçadas as ca-racterísticas habituais: o “caráter essencialmente prático a que obedece o ensino”, o fato de as alunas executarem “todos os serviços, incluindo os da mesa, jardinagem, horta etc.” (idem, p. 182), os “dormitórios, por grupos de poucas alunas, oferecendo um aspecto alegre e confortável, que dá a impressão da vida em família”. como na Bélgica, é notada a existência de uma “École Normale Ménagère” (idem, p. 182-185). o autor termina o seu texto com a seguinte conclusão geral:

concluirei este relatório registrando que do confronto constantemente por mim estabelecido entre o nosso instituto e as escolas que visitei trouxe a grata impressão de que aquele pode, sob todos os pontos de vista, ser co-

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locado a par de muitas das boas escolas do estrangeiro. oxalá ele continue a encontrar do Estado o auxílio que lhe é indispensável para prosseguir na elevada obra moral e social que, desde a sua criação, vem realizando de uma maneira sempre progressiva [idem, 191].

como já vimos em relação ao relatório de Melo Vieira, tam-bém san tos correia usa a viagem pedagógica, bem como a comparação do instituto com estabelecimentos similares de educação feminina, co mo uma estratégia de valorização da imagem da instituição, tanto in terna como externamente, ao colocar esta a par do que de melhor se faz no mundo a esse respeito. Para além de referência incontornável, no que diz respeito às novas experiências pedagógicas, a suíça surge aqui como uma espécie de espelho em que esses educadores veem refletidas (e legitimadas) as opções inovadoras tomadas no contexto da instituição de que fazem parte.

Podemos concluir este artigo sistematizando algumas das conclu-sões já parcialmente esboçadas. As viagens pedagógicas aqui analisadas tiveram como destino, à semelhança de muitas outras, países tidos como detentores da “mais elevada cultura intelectual”. A escolha da Alemanha, da Bélgica e da Suíça é, a esse propósito, significativa. Professores do instituto Feminino de Educação e trabalho, os nossos viajantes, dedica-ram uma especial atenção às instituições vocacionadas para a educação feminina, na busca de “ensinamentos” que permitam o “aperfeiçoamento” da obra renovadora em que estão implicados. como outros viajantes, Branquinho, Vieira e correia não deixam de manifestar algum deslum-bramento pela qualidade dos espaços e dos ambientes pedagógicos, pela originalidade de um ou outro dos métodos desenvolvidos ou pela pertinência moral e social de algumas novas instituições. No entanto, manifestando estar bem informados sobre as novidades pedagógicas em voga na Europa de então, a atitude desses nossos viajantes não é de mera subserviência ante as maravilhas visitadas. A avaliação é por vezes crítica, no confronto das duas realidades envolvidas. A consciência (real ou imaginária) da exemplaridade do instituto torna-os mais exigentes. As semelhanças várias vezes encontradas (procuradas, mesmo) firmam

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neles essa crença. os relatórios legitimam o caminho até aí seguido. No conjunto, são um excelente exemplo, no que se refere aos anos de 1920, da relação entre a circulação internacional do pensamento pedagógico e de suas apropriações locais.

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Endereço para correspondência:Joaquim Pintassilgo

centro de investigação em EducaçãoFaculdade de ciências da universidade de Lisboa campo Grande

Edifício c6, Piso 1Lisboa, Portugal

1749-016E-mail: [email protected]

Recebido em: 13 ago. 2008Aprovado em: 10 jul. 2009

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Olhar o outro, ver a si:

um professor primário brasileiro no “Velho Mundo” (1890-1892)

Alessandra Frota Martinez de schueler*

José Gonçalves Gondra**

Resumo:o presente trabalho analisa o relatório produzido pelo professor público primário da cidade do Rio de Janeiro, Luiz Augusto dos Reis, entre 1890 e 1892, ocasião em que visitou escolas e instituições educacionais em Portugal, Espanha, França e Bélgica. o relatório, publicado em 1892 pela imprensa Nacional, constitui uma fonte significativa para análise não apenas da história da circulação de ideias, instituições e modelos educacionais internacionais no Brasil, mas, sobretudo, das práticas de apropriação e difusão desses mesmos modelos pelos professores da cidade do Rio de Janeiro, aqui considerados como mediadores de culturas. A abordagem privilegiou o exame das representações construídas a respeito da legislação educacional, escolas e instituições visitadas, condições de trabalho docente e práticas pedagógicas observadas nas cidades portuguesas de Lisboa e Porto.

Palavras-chave:viagem pedagógica; circulação de modelos pedagógicos; história da educação.

* Professora da universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)/Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

** doutor em educação pela usP, com pós-doutorado no departamento de História da Unicamp e na divisão de História da EHEss-Paris. Professor na Uerj e pesquisador do cNPq e da Faperj.

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Olhar o outro, ver a si

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Look at the other one, see yourself:

a Brazilian primary teacher in the “Old world” (1890-1892)

Alessandra Frota Martinez de schuelerJosé Gonçalves Gondra

Abstract:this study analyses the report written by the public primary teacher of the city of Rio de Janeiro, Luiz Augusto dos Reis, between 1890 and 1892, when he visited the schools and educational institutions in Portugal, spain, France and Belgium. the report, publicized in 1892 through imprensa Nacional, constitutes a significant document to the analysis not only of the ideas circulation, institutions and international educational models in Brazil, but, also, to the study of the appropriation and diffusion of those by the teachers of the city of Rio de Janeiro, considered in this paper as culture mediators. the approach used privileged the examination of the representations built about the educational law, schools and institutions visited, teaching work conditions and pedagogical practices observed in the Portuguese cities of Lisboa and Porto.

Keywords:pedagogical journey; circulation of pedagogical models; history of education.

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A viagem pedagógica na República

comprometida com uma plataforma de modernização e atualização das estruturas do império, a jovem República dos Estados unidos do Brazil, proclamada por força do golpe militar de 15 de novembro de 1822, buscava apropriar-se de modelos europeus e norte-americanos, considerados exemplos de civilização. No afã modernizador, as elites políticas republicanas empenhavam-se em reduzir a complexidade social brasileira, procurando ajustá-la aos padrões abstratos de gestão social, hauridos de modelos estrangeiros.

A busca por novos símbolos políticos e pela invenção de novas tra-dições esteve presente também nas reformas educacionais nos primeiros anos de existência da jovem República. No âmbito das políticas educa-cionais, a ânsia em “acertar os ponteiros com o relógio global” aparecia com clareza nos primeiros textos legais, aliás, em franca continuidade com uma “cultura da reforma”, já evidente nas províncias e na corte do império, a partir da segunda metade do século XiX. Ainda em 1890, o governo provisório estabelecia os princípios gerais que informariam a reforma da instrução primária e secundária no distrito Federal (decreto..., 1891). Previa-se, por exemplo, a realização das viagens pedagógicas, ou seja, a designação de professores brasileiros, dos vários níveis e ins-tituições de ensino, para examinarem durante dois anos os progressos da instrução e aperfeiçoar as suas habilitações profissionais nos países estrangeiros, sobretudo na Europa e nos Estados unidos da América1.

A primeira comissão de professores, designada em 28 de outubro de 1890, contava com dois docentes da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, um da Escola Politécnica, um do Ginásio Nacional (designação republicana do imperial colégio de Pedro ii), um do instituto Benjamin

1. A iniciativa das viagens pedagógicas não era exatamente uma novidade imple-mentada pela República. No decorrer do século XiX, professores, diretores de estabelecimentos educacionais e inspetores de instrução pública percorreram países estrangeiros, participando inclusive como representantes do império do Brasil nas celebradas Exposições Internacionais, as vitrines do progresso e da civilização. Ver: Kuhlmann Jr. (2001) e Neves (1986).

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constant, um do Instituto Nacional de Música e, finalmente, quatro professores públicos do ensino primário da capital. dentre esses, foram nomeados os professores Luiz Augusto dos Reis, Manoel José Pereira Frazão, Amélia Fernandes da costa e Adelina doyle e silva, sendo que apenas os três primeiros seguiriam viagem para o Velho Mundo2. da viagem realizada pelos professores primários resultaram relatórios, apesar do incidente ocorrido com o corte das verbas e dos subsídios concedidos pelo governo em abril de 1891, o que ocasionou o retorno antecipado dos professores Luiz Augusto dos Reis e Amélia Fernandes da costa3.

Assim, visando proceder à continuidade das reflexões já iniciadas sobre as viagens pedagógicas realizadas por alguns desses educadores (Mignot & Gondra, 2007), o presente trabalho analisa o relatório produ-zido pelo professor público primário da cidade do Rio de Janeiro, Luiz Augusto dos Reis, entre 1890 e 1892, ocasião em que visitou escolas e instituições educacionais em Portugal, Espanha, França e Bélgica. Esse relatório, publicado em 1892 pela imprensa Nacional, constitui uma fonte significativa para análise não apenas da história da circulação de ideias, instituições e modelos educacionais internacionais no Brasil, mas, sobretudo, das práticas de difusão e apropriação desses mesmos modelos pelos professores da cidade do Rio de Janeiro, aqui considerados como mediadores de culturas.

Privilegiamos, neste momento, o exame das representações cons-truídas a respeito da ação do Estado, formas escolares e condições de trabalho docentes observadas em Portugal. o enfoque recai sobre a viagem em si, percurso realizado, acolhidas, instituições visitadas e as impressões construídas sobre a educação portuguesa. No exercício da

2. A designação da comissão de Professores estipulava a verba a ser concedida para financiar a viagem. Quanto aos professores primários designados, foi estipulado o montante de 200$000 de vencimentos mensais, acrescido de gratificação no valor de 400$000. Aviso de 28 de outubro de 1890 (Relatório..., 1982, p. 157).

3. os relatórios de viagem de Luiz Augusto dos Reis e Amélia Fernandes da costa foram publicados na Revista Pedagógica, publicação oficial do Pedagogium, cria-do pelo decreto n. 667, de 16 de agosto de 1890. Houve também publicação pela imprensa Nacional. consultar: costa (1892) e Reis (1892).

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função, o professor Reis, na “obrigação de dizer a verdade”, de modo franco e minucioso (Reis, 1892, p. 11) ajuíza o que vê, ancorado em sua experiência, nos documentos que acessa e recolhe e também nos proje-tos em que acredita. Com isso, é possível observar críticas e sugestões oferecidas pelo relator para a reforma da educação primária na jovem República brasileira, evidência das estratégias de apropriação dos mode-los pedagógicos que lhe é permitido ver/ler. Esse duplo movimento da narrativa de viagem – o de olhar o outro e o de ver a si – permite-nos per ceber os efeitos comparativos que o professor viajante produz em relação aos projetos de educação em curso e a sua própria experiência docente.

O professor viajante

A trajetória profissional de Luiz Augusto dos Reis foi semelhante ao percurso seguido por muitos de seus colegas, então professores e professoras primárias da cidade do Rio de Janeiro. No início da década de 1860, ingressou na escola pública de meninos da Glória, na qual ob-teve aprovação com distinção em exames públicos realizados no final de 1867. Na década seguinte, já tendo terminado os estudos elementares, Luiz Augusto dos Reis, alegando “pobreza dos pais e necessidade de trabalhar para garantir a subsistência”, solicitou ao governo imperial o cargo de professor adjunto das escolas públicas primárias da corte (Arquivo..., s.d.), tendo sido nomeado efetivo em 1875 para a escola da freguesia da Gávea4.

Além das atividades docentes, Luiz Augusto dos Reis ficou conheci-do pela sua produção escrita para a imprensa carioca e pela sua atuação

4. os dados de movimentação de Luiz Augusto dos Reis indicam que esse professor atuou na escola pública da Gávea nos anos de 1870, tendo sido transferido, a pe-dido, em 1880, para a freguesia de são cristóvão e, em 1886, para a freguesia de santana. conferir Borges (2008).

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Olhar o outro, ver a si

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como redator do periódico pedagógico O ensino primário5, publicado na corte entre os anos de 1884 e 1885, por meio do qual dialogava e disputava com outros grupos de professores, intelectuais e autoridades a respeito das ideias, das reformas e das condições do ensino público na cidade (Martinez, 1997). o projeto de promover a reunião de professores e organizar movimentos de defesa dos interesses da classe, constituindo a docência em categoria profissional, esteve presente não somente pela sua atuação na imprensa6, mas também nas tentativas de criar associações e sociedades profissionais, como, por exemplo, quando da sua participação como secretário e professor voluntário do curso noturno de adultos da Sociedade de Beneficência e Instrução (Estatutos..., 1888) (antigo Con-gresso Operário de Beneficência) e, ainda, na Comissão Executiva dos Professores Públicos da corte, fundada em 25 de abril de 18887.

A visibilidade adquirida pelo professor Luiz Augusto dos Reis no campo educacional e na imprensa da capital do império, provavelmente, contribuiu para a indicação de seu nome como integrante da comissão de professores primários, designada para realizar a viagem pedagógica aos países estrangeiros, já no início do governo republicano. Assim como,

5. Revista mensal consagrada aos interesses do ensino e redigida por professores primários. Rio de Janeiro; typographia de Augusto dos santos, 1884-1885.

6. Em 1890, o professor colaborou na Revista Brazil, editada por Luiz Miguel Figueiró. Escreveu, também, para a oitava conferência Pedagógica dos Professores Públicos da corte, o trabalho intitulado Influencia que é chamada a escola a exercer sobre a educação dos alumnos. –Meios ao alcance do professor para formar o caracter dos seus discípulos, publicado pela imprensa Nacional em 1886. Além disso, foi autor dos livros Compêndio de geografia (s.d.) e Gramática portuguesa (1892) para uso das escolas primárias.

7. A Comissão Permanente Executiva dos Professores Públicos Primários da Corte era formada por cinco professores públicos primários: Gustavo José Alberto, Augusto candido Xavier cony, Luiz Augusto dos Reis, José da silva santos e Felippe de Barros e Vasconcelos. Além das reivindicações por melhores salários e condições de trabalho, esse grupo de professores sugeriu ao governo, por meio de cartas, abaixo-assinados e ofícios, regras de concurso e nomeação dos professores públicos e defendeu a eleição direta, pelos membros do magistério primário, de seus representantes no conselho de instrução Publica, em substituição ao critério em vigor de nomeação pelo ministro do império. sobre o movimento associativo docente nos anos de 1870 e 1880, ver Lemos (2006)

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Alessandra Frota Martinez de scHuELER e José Gonçalves GoNdRA

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aliás, também ocorreu com seu colega de ofício e de movimento docente, Manoel José Pereira Frazão, outro professor primário viajante ao Velho Mundo, nos idos de 1891 e 1892 (schueler, 2007).

Primeiro Porto – Portugal

dezembro de 1890. o inverno rigoroso no Velho Mundo era noti-ciado, com susto, nos jornais da capital da jovem República brasileira. Após as celebrações natalinas, no dia 30, o professor Luiz Augusto dos Reis embarcou no paquete inglês Magdalena rumo à cidade de Lisboa. A decisão de começar a viagem por Portugal, segundo ele, derivava da esperança de encontrar clima mais favorável para um professor acostu-mado com as altas temperaturas dos trópicos.

Vãs esperanças. Nos primeiros dias da estadia em Lisboa, em meados de janeiro de 1891, sofreu as consequências das baixas temperaturas e das chuvas, que prejudicavam o funcionamento das repartições públicas e das escolas, pouco frequentadas, mesmo nos dias menos gélidos. Justificando essas dificuldades iniciais ao desempenho da sua comissão, Luiz Reis descreveu as atividades às quais se dedicou nos momentos em que o clima impedia os passeios pelas ruas, escolas e repartições públicas: visitava museus, bibliotecas, monumentos históricos e arquitetônicos do Velho Mundo, signos da civilização e da ilustração tão sonhadas e almejadas por aqueles que defendiam o ingresso do Brasil no concerto das nações ditas desenvolvidas. tratava de “ilustrar o espírito”, prática inerente à experiência humana das viagens e aos objetivos da excursão em busca de modelos educacionais e novidades pedagógicas em circulação nos países europeus (Reis, 1982, p. 7-8).

Encantou-se com tudo o que viu na capital da antiga metrópole. Lisboa, com sua arquitetura, bibliotecas, museus, escolas e instituições educativas, desfez, aos olhos do viajante, a impressão negativa causada pelas representações generalizadas – “suspeitas e injustas”, segundo Reis –, que os brasileiros então nutriam a respeito do estado da educação em Portugal. Para o nosso professor, a rápida passagem pelas cidades

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de Lisboa e Porto foi suficiente para causar-lhe a melhor impressão daquele país. de forma semelhante aos discursos oficiais, presentes nos relatórios e reformas legislativas que consultava para se informar sobre as instituições educacionais estrangeiras, Reis produziu uma representa-ção que ocultava as diversidades e apagava as profundas desigualdades regionais do país. o “imenso Portugal”, ainda fortemente rural e agrário, sobretudo ao Norte, reduziu-se, no seu relato de viagem, à modernidade e ao cosmopolitismo dos mais importantes centros urbanos, portuários e comerciais no século XiX.

Em Lisboa e em Porto, as escolas visitadas e o corpo docente lhe valeram a viagem e serviram como filtros, espelhos por meio dos quais olhava o outro, numa operação complexa e permanente de estranha-mento e familiaridade, na qual sobressaíam a reflexão sobre si mesmo, a comparação com a situação das escolas brasileiras e o confronto com a sua própria experiência.

Visões do Professor

a - Ações do Estado

É interessante observar a análise realizada pelo professor sobre a política educacional portuguesa, no que se refere às competências pela gestão do ensino público. segundo ele, a lei de 2 de maio de 1882, que descentra o ensino, estabeleceu a responsabilidade das municipalida-des na organização da instrução pública, primária e secundária, sob a su pervisão do Ministério da instrução Pública e das Bellas Artes e de acor do com as diretrizes gerais da legislação nacional. Para Reis, essa me dida, ainda que estivesse de acordo com os princípios democráticos, não poderia servir de exemplo à República brasileira, tendo em vista a fragilidade política e as condições econômicas e tributárias precárias das câmaras Municipais. Argumentando contra os defensores dessa ideia no Brasil, incluindo o compatriota tavares Bastos, vice-cônsul do Brasil na cidade do Porto – a quem visitou e o acompanhou na excursão pelas escolas –, Reis, afirmando representar a opinião geral dos professores

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pri mários, recusava o modelo de descentralização municipal do ensino público. A iniciativa, embora já existente no Brasil pela intervenção da câmara Municipal do Rio de Janeiro que, desde os anos de 1870, cons-truía e administrava prédios públicos para as escolas primárias, não poderia ser estendida a todo o país. Explicitando essa perspectiva, o relator dialogava com o inspetor geral de instrução Pública da capital da República do Brasil:

como sabeis, sr. inspector, a municipalidade desta capital possúe hoje algumas escolas boas, funccionando em prédios regulares e tendo um pessoal docente distinctissimo. Essa corporação docente é cercada de certas garantias. Para isso, concorrem, em 1. logar, o ser diminuto o numero de escolas que possúe, pelo que se tornam alvo de todos os desvelos municipaes, e, em 2. logar, uma certa emulação, um certo desejo louvável e patriótico de torna-los iguaes ou superiores as do governo. No dia, porém, em que todas as escolas fossem entregues na capital á municipalidade, sem que a essa entrega presi-disse uma reforma radicalíssima, e que aliás é urgentemente reclamada, nas instituições municipaes; no dia em que não houvesse confronto possível, em que desapparecesse a emulação, a municipalidade, em vez de possuir 10 ou 12 escolas boas, passaria a possuir 150 ou 200 péssimas.

Não seria, portanto, sem o meu humilde protesto que se tomaria tal de-liberação, pois nem tudo do estrangeiro se adapta ao nosso meio [Reis, 1892, p. 10].

No entanto, se havia aspectos a recusar, o modelo português ofe-recia ao Brasil várias iniciativas e exemplos de organização escolar a seguir. uma delas, extremamente elogiada pelo professor como uma característi ca comum a toda a Europa, era a existência de um órgão competente especializado para os negócios da educação – o Ministério da instrução. criado no Brasil pelo governo provisório, tendo a sua frente o glorioso pro fessor, educador e positivista, Benjamim constant Botelho de Maga lhães, o Ministério da instrução Pública, correios e telégrafos sofria a instabilidade e as vicissitudes do conturbado período da “invenção re publicana”. o regozijo de Reis pelo Ministério português, no entanto,

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duraria pouco. Poucos meses após o seu retorno ao Brasil, quando do encaminhamento de seu relatório ao prelo, recebeu um telegrama de Lisboa comunicando a extinção do Ministério da instrução Pública e das Bellas Artes, passando a instrução para a pasta dos negócios do Reino. Em nota de rodapé acrescida ao texto, ironizava a semelhança entre ex-metrópole e colônia na “cultura da reforma”: “não há país na Europa que se pareça mais com o Brasil do que Portugal. como aqui, não há nada lá que dure muito tempo” (idem, p. 99).

b - Formas Escolares

Conhecer e visitar instituições educacionais de Portugal produziu no viajante, como já salientamos, mudanças em algumas de suas expec ta tivas e pré-concepções a respeito da educação portuguesa. Pelos menos nas cidades visitadas, impressionou-lhe a organização escolar e as reformas da instrução pública realizadas nas décadas de 1870 e 1880. Em Lisboa e Porto, com o auxílio de brasileiros a serviço do consulado e as cartas de recomendação do doutor Menezes Vieira, prestigiado educador e diretor de escolas particulares na corte, Reis teve acesso às es colas públicas, incluindo as Escolas Normais, bem como pôde realizar consulta aos docu-mentos, tais como boletins8, relatórios e à legislação ofi cial. Associando, e confrontando, a investigação in loco à análise das diretrizes, regulamentos e normas do Estado, o professor realizou o seu inquérito, pre tendendo construir uma versão objetiva e verdadeira sobre tu do o que viu.

b.1- Em Lisboa

A organização das escolas em Lisboa surpreendeu o viajante. A obrigatoriedade da instrução primária para crianças entre 6 e 12 anos de

8. Consultou o boletim oficial da cidade de Lisboa referente ao ano de 1887 (idem, p. 12) e as cartas de Lei de 11 de julho de 1880 (idem, p. 20), de 2 de maio de 1882 e os regulamentos das escolas centrais, paroquiais e especiais, todos reunidos na compilação Legislação de Instrução Primária, a qual noticiou ter encaminhado cópia ao inspetor Geral da capital brasileira para destinar ao acervo do Pedagogium.

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idade, estabelecida em Portugal desde 1878, embora ainda não tivesse sido absolutamente cumprida, aparecia como sinal da centralidade con-ferida pelo Estado à educação. Para as crianças pobres e sem recursos, os regulamentos incluíam dispositivos de assistência e compensação, como a distribuição de calçados, vestuário, livros e outros meios necessários para a frequência escolar, dispositivos que também se fizeram presentes nas normas de instrução primária da corte, desde a reforma de couto Ferraz, de 17 de fevereiro de 1854.

A instrução primária portuguesa dividia-se em dois graus, o elemen-tar e o complementar, ambos contendo diferenças curriculares quanto ao sexo a que se destinavam9. os exercícios escolares duravam de quatro a seis horas, distribuídas pela manhã e tarde, exceto às crianças menores de 8 anos, que só permaneciam na escola de duas a três horas diárias. Nesse ponto, a distribuição do tempo escolar em Lisboa parecia ao viajante mais adequada que a brasileira: entre nós as crianças menores permaneciam na escola “até uma hora da tarde!”, reclamava Reis (idem, p. 15). Os regulamentos previam ainda o estabelecimento de instituições e mecanismos de difusão da instrução primária, para além das escolas regulares, como os cursos noturnos de adultos, as escolas dominicais, os cursos temporários e os cursos livres, criando ainda as Comissões Promotoras da Beneficência e Ensino, que visavam gerir a distribuição de material escolar e fomentar a iniciativa particular. o pároco da loca-

9. o ensino primário elementar para o sexo masculino compreendia: leitura, escrita, quatro operações sobre números inteiros e fracionários, elementos de gramática portuguesa, sistema métrico decimal, princípios de desenho e doutrina cristã (dispensada para os não-cristãos); para o sexo feminino, as mesmas matérias e os “trabalhos de agulha necessários às classes menos abastadas”. o ensino primário complementar para o sexo masculino incluía: leitura e recitação de prosa e verso, caligrafia e exercício de escrita, aritmética, geometria elementar e suas aplicações mais usais, gramática e exercícios de língua portuguesa, desenho linear e suas aplicações mais comuns, moral e história sagrada, noções elementares de higiene, agricultura e ginástica, canto coral, direitos e deveres do cidadão. Para o sexo feminino: compreendia as mesmas disciplinas, acrescidas de “deveres de mães de família, prendas e bordas a cores, tomar medidas, tirar moldes e fazer rendas e flo-res” e excetuando-se as noções de agricultura, ginástica, canto e direitos e deveres do cidadão. carta de Lei de 02/05/1882, p. 13-14.

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lidade integrava cada comissão. Além disso, a prestação de contas das atividades e recursos, produtos da subscrição e da doação pública, deveria ser realizada anualmente perante os poderes municipais (idem, p. 17).

Classificadas em centrais (no centro da cidade), paroquiais (nos arra-baldes) e especiais (normais e profissionais), Lisboa contava, segundo dados de 1887, com 22 escolas públicas da primeira categoria, 36 da se-gunda e cinco escolas especiais, incluindo-se nesse número duas Escolas Normais, separadas por sexo.

No regulamento das escolas portuguesas, tudo era digno de nota e de tudo Reis procurava obter cópia para enviar ao governo brasileiro: a escrituração escolar, os boletins diários, os diários de classe, o livro de visita e as práticas de registro e controle das atividades cotidianas, dos alu nos e dos professores, a partir de então centralizadas na direção e na secretaria escolar10. As atividades das escolas centrais deveriam ser relatadas, avaliadas e postas em discussão, pelo visitador, juntamente com o diretor e os professores, em conferências anuais. As possíveis sugestões de mudanças nas práticas pedagógicas, nos espaços, nos tempos es colares, ou no funcionamento geral das escolas centrais de-veriam ser en caminhados pelo visitador às câmaras Municipais, o que demonstrava o caráter inovador e experimental daquela forma moderna de escola na capital portuguesa.

No mesmo edifício da Escola central Número 5 funcionava também outra instituição educativa, que foi bastante elogiada pelo relator. A Escola

10. “os boletins diários indicam, por cada classe ou subdivisão de classe, o numero de alumnos que comporta, o numero de matriculados, a totalidade das presenças e faltas, a admissão ou sahida dos alumnos e todas as occurrencias da escola, que mereçam ser mencionadas nas respectivas ephemerides, taes como: - visitas de pes-soas revestidas de auctoridade official, ou particulares, faltas de professores etc., esse boletim é assignado por todos os professores presentes e enviado á secretaria de instrucção. Além deste obtive, e também remetti, exemplares dos seguintes mappas: - Boletim hebdomario do curso diurno; Boletim de faltas dos alumnos; nota do serviço dos monitores; Folha de despezas miúdas (mensal); mappas das requisições escolares; nota do serviço do pessoal menor; Guia de matricula, tendo appenso o attestado do regedor parochial e o attestado do facultativo em que se declara se o candidato á matricula teme moléstia contagiosa, se foi vaccinado ou teve bexigas” (Reis, 1892, p. 23).

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Maria Pia, mantida pela câmara Municipal, era uma das chamadas esco-las especiais, destinada à instrução elementar e à formação profissional de meninas para serem “instruídas e boas donas de casa” (idem, p. 74). A formação profissional era realizada por meio da oferta de habilitação especial para o exercício de ofícios urbanos e comerciais, como os de caixeiras, modistas, guarda-livros, além de professoras particulares. As meninas da casa Maria Pia, segundo a Lei orgânica de 1891, poderiam ainda prestar os exames para os Liceus, adquirindo instrução secundá-ria, chancelada pelo Estado e, com isso, a possibilidade de inserção no magistério público, sendo, nesse caso, dispensadas dos concursos. Além de professoras, as meninas poderiam obter os exames de preparatórios para seguir a profissão de telegrafistas, farmacêuticas ou mesmo pres-tar exames para a Faculdade de Medicina. dirigida por uma mulher, a professora Ludmilla Matta Porto-carreiro, a escola possuía também um diretor especial de estudos, além de dez professores ordinários (sete mulheres e três homens) e três professores especiais11.

outra escola especial visitada e elogiada pelo relator foi a Escola Primária superior Rodrigues sampaio, então dirigida pelo literato doutor Adolfo coelho. oferecia instrução primária complementar aos alunos que completaram o curso elementar e que desejavam seguir as carreiras comerciais e industriais. com duração de três anos12, a escola utilizava os métodos de ensino intuitivo, com exceção dos livros de leitura, os

11. os estudos da Escola Maria Pia abrangiam: língua e literatura portuguesas, língua francesa e inglesa, geografia e história, especialmente de Portugal, princípios de química, física, história natural, noções de higiene, elementos de moral, deveres da mulher de família na sociedade, direito usual, economia doméstica e culinária, pedagogia, contabilidade, canto, trabalhos manuais, distribuídas conforme os cur-sos em que se habilitavam (curso geral, curso para o magistério primário ou curso comercial) (idem, p. 75-76).

12. o currículo da escola incluía: língua e literatura portuguesas, língua francesa e in-glesa, geografia e história, elementos de história natural, física, química e fisiologia aplicadas à indústria e à higiene, matemáticas elementares aplicadas à indústria e à contabilidade comercial, desenho, caligrafia, tecnologia, trabalhos e carpintaria e torno para obras de madeira, trabalhos de forja, de bancada e torno mecânico para obras de ferro, modelação de gesso e barro, ginástica e exercícios militares (idem, p. 83).

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livros escolares em uso eram “meros guias” para o ensino (p. 81). Ha-via oficinas de trabalhos manuais. Ao lado da escola, no prédio anexo, funcionava o Museu Pedagógico de Lisboa, ainda muito pequeno e acanhado, segundo o visitante.

digna de nota foi a Escola infantil Froebel, dirigida por dona carlota sophia de Brito Freire e situada em um dos mais belos Jardins de Lisboa, o Jardim da Estrella. Nessa escola, frequentavam crian ças de 3 a 7 anos, de ambos os sexos. Na ocasião da visita, ha via 139 meninos e 79 me-ninas matriculadas. Além da diretora, o jar dim de crianças contava com quatro professoras (sendo uma substituta), um professor de canto coral e quatro jardineiras, como eram então chamadas as auxiliares ou ajudantes das professoras. Havia ainda senhoras responsáveis pela vigilância e um servente. contando quatro salas de aula, a escola também possuía um enorme salão, em que as crianças se exercitavam com exercícios de marchas e contramarchas e lanchavam, em pequenas mesas apropriadas a seu tamanho, os alimentos que traziam de casa. como depois obser-vou, também, nas escolas bel gas e francesas, todas as crianças usavam um avental. As atividades pedagógicas, os materiais e objetos de ensino (bancos do sis tema Froebel, mesas e cadeiras baixas), as aulas de pouca duração (para não fatigar as crianças) e os exercícios de canto, música, as mar chas e contramarchas pasmaram nosso viajante: “o espetáculo era encantador!” (idem, p. 88).

se as Escolas centrais, a Escola Maria Pia e a Escola infantil Froebel causaram impacto positivo no professor Luiz Augusto dos Reis, nem todas as escolas lisboetas apresentavam tantas modernidades e avanços, aos seus olhos. As chamadas Escolas Paroquiais assemelhavam-se mais às escolas brasileiras, segundo ele “colocadas em casas sem as condi-ções necessárias, anti-higiênicas, alugadas por preços exorbitantes”, nas quais se aglomeravam numerosas crianças para aprender um sem número de disciplinas, regidas apenas por um professor e um ou dois adjuntos, quando existiam! (idem, p. 79). As casas domésticas e os seus mestres, forma disseminada nos processos de escolarização no Brasil e em Portugal, ao longo do século XiX, lembravam ao viajante que nem tudo era moderno na capital portuguesa. A escola paroquial era uma típica “escola de arrabalde”, em edifício “acanhadíssimo”, contando 96

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meninos. No mesmo prédio, por outra entrada, funcionava a escola de meninas. os professores, curiosos a respeito da realidade brasileira, con-versaram e receberam o professor Reis, sem deixar de fazer críticas à falta de espaço e às condições materiais em que exerciam o ofício. O modelo das Escolas centrais, que progressivamente adquiriam estatuto de “escolas de verdade” (Vidal, 2005), apareciam, nas representações dos professores, como signos da qualidade da escola e da modernidade pedagógica.

A Escola Modelo Mista, uma modalidade de Escola central em cons-trução na Avenida da Liberdade, também foi destacada como exemplo dos defeitos que acometiam a instrução em Portugal. iniciada a construção do edifício em maio de 1882, as obras, porém, estavam paradas por falta de verbas – uma outra semelhança com as “piores desgraças” que ocorriam no Brasil, segundo o professor13.

b.2 - No Porto

A curta estadia no Porto não lhe impediu de registrar métodos e livros escolares mais utilizados, programas e regulamentos escolares da cidade14. Administradas pela municipalidade, o professor notou a existência de 24 escolas elementares (12 de cada sexo), duas escolas complementares (uma para cada sexo) e uma Escola Normal masculina, além de instituições educativas mantidas pela iniciativa particular.

13. Em Lisboa, Reis visitou instituições científicas e culturais, com destaque para a Academia Real de Ciências de Lisboa e a Sociedade de Geografia, da qual se tornou sócio. Assistiu também a conferências pedagógicas proferidas pelo ilustre Adolfo coelho, na Associação dos Professores de Lisboa, na qual foi nomeado para repre-sentar, na qualidade de sócio-correspondente, a associação na República Federativa do Brasil, constituindo uma rede de comunicação e de trocas sobre os interesses docentes nos dois países. seguiu, então, para o Porto, para continuar sua missão.

14. O programa das escolas oficiais do Porto dividia-se em: 1ª classe (língua materna, escrita, caligrafia, aritmética); 2ª classe (língua materna, gramática, aritmética, escrita, caligrafia, ortografia, desenho linear); 3ª classe: língua materna, gramática, ortografia, caligrafia e ortografia, lições educativas do ensino intuitivo, aritmética, sistema mé-trico, desenho linear; 4ª classe (língua materna, gramática, aritmética, história pátria, geografia, história, corografia, moral, ginástica, trabalhos de agulha e doutrina cristã) (Reis, 1892, p. 113).

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chamaram-lhe a atenção normas sobre o conselho Escolar e a cria-ção do cargo de visitador das escolas do município, espécie de inspetor, estabelecido pelo regulamento de 27 de outubro de 1887. trata-se de função gratificada, a ser exercida por um professor primário que tivesse se distinguido.

A Officina de São José, uma escola de artes e ofícios para “crianças pobres e abandonadas”, fundada pelo padre sebastião Leite de Vascon-cellos em 18 de abril de 1880 e mantida pela iniciativa particular de doa-dores e beneméritos, mereceu destaque no relatório de Reis15. os alunos, além da instrução elementar, aprendiam uma arte ou ofício profissional, tais como sapateiro, marceneiro, alfaiate e encadernador. organizada na forma de internato, com possibilidade de abrigar alunos externos em separado, a escola deveria atender, prioritariamente, “crianças expostas, as que não tinham família e proteção, e quando houvesse lugar, os filhos de pessoas miseráveis”, atendendo-se preferencialmente os menores “pervertidos” e “totalmente abandonados”. A entrada dos alunos deveria ser feita entre 12 e 17 anos de idade, e a saída, em regra, nunca antes dos 21, ressalvadas as prescrições legais (como a emancipação) ou a dispensa da instituição por incorrigibilidade. Ao tomar conhecimento da iniciativa e dos resultados obtidos pela instituição, o relator não deixou de salientar a necessidade dessa forma de intervenção educativa em seu próprio país: “oxalá sejam eles criados para livrar as ruas de tantos infelizes que, recebendo por toda a parte as lições do vício, se preparam para povoar as nossas cadeias” (Reis, 1892, p. 119).

Aqui cabe sublinhar o silenciamento produzido pelo professor, na medida em que a comparação estabelecida assinala uma suposta ausên-cia desse tipo de estabelecimento no Brasil e, sobretudo, na capital do império, cidade em que residia e trabalhava. Ao lado de iniciativas de caráter filantrópico, o próprio Estado compareceu na organização dessa forma escolar, com empreendimentos vinculados a pelo menos dois ministérios: o dos Negócios do império e o da Guerra16.

15. Reis também se referiu ao Asylo de Vilar, na cidade do Porto, outra instituição filantrópica.

16. A respeito de iniciativas asilares no Brasil, cf. Rizzini (2004), souza (2008), cunha (2006), Freitas (2002, 1997), dentre outros.

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Na cidade do Porto, as escolas pareciam muito familiares ao profes-sor Luiz Augusto dos Reis. Funcionando em espaços diversos e inapro-priados (a sacristia da igreja, como a Escola Marquês de Pombal, mantida por uma associação particular), lembravam-lhe um “pardieiro”. sem uniformidade de métodos, embora fossem proibidos castigos corporais mais rigorosos, as palmatoadas eram permitidas, desde que aplicadas com moderação. Em uma escola paroquial, causou-lhe impressão ver a férula sobre a mesa do mestre, que, ao ser questionado sobre o fato, alegou a necessidade do uso em face dos meninos mal educados e turbulentos. Para o nosso viajante, o professor da Escola Paroquial santo ildefonso parecia-lhe áspero, não acostumado ainda à “temperança entre a brandura e a severidade, base primordial e única da autoridade do mestre” (idem, p. 123). do mesmo modo, a Escola Municipal de cedofeita, fundada em 1885, apesar do grande número de alunos e alunas, não possuía espaço e estrutura adequada para o funcionamento. Nas escolas do Porto, o professor foi acompanhado de seu compatriota, então vice-cônsul em Portugal, o republicano Aureliano tavares Bastos.

c - Trabalho Docente

As condições materiais do trabalho docente, tanto em relação aos salários, às condições de vida, à estrutura física e espacial das escolas quanto em relação à formação, aos recursos e aos métodos pedagógicos disponíveis, foram aspectos destacados na construção da narrativa do viajante. Nesse ponto, tanto na capital, como no Porto, Reis observou a dedicação e a “máxima competência e inteligência do professorado”, proporcionais às lutas e às dificuldades encontradas para o exercício da profissão (idem, p. 9). segundo ele, a baixa remuneração dos professores públicos do ensino primário impunha-lhes a necessidade de lecionar par-ticularmente, sobretudo aos filhos das classes média e alta das cidades, que não costumavam mandar suas crianças às escolas oficiais. Embora as condições de trabalho docente tivessem apresentado melhora nas duas últimas décadas – fato que lhe foi informado pelos próprios professores –, em razão das reformas legislativas e do incremento dos investimentos das

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municipalidades, o relator denunciava os prejuízos que a dupla jornada e as lições particulares causavam à atuação do magistério nas escolas públicas. Na opinião de Reis, esse constituía um dos maiores defeitos da organização escolar portuguesa.

A realização de viagens de estudo na Europa pelos professores primários e secundários portugueses, com licença remunerada e algumas vezes com bolsas e subsídios concedidos pelo governo, aparecia como uma grande vantagem do professorado de Lisboa e Porto ante os colegas brasileiros. segundo ele, o que seria uma exceção no Brasil, o incentivo do Estado à formação permanente do professor em exercício, por meio da experiência das viagens de estudo, era comum entre os portugueses. dentre aqueles professores e professoras que conheceu na sua estadia, muitos tiveram a oportunidade de percorrer a Espanha, a França, a Bélgica, a itália, a suíça e a suécia, o que era facilitado pelo moderno sistema de transportes ferroviários, que encurtava ainda mais as distâncias espaciais e temporais entre Portugal e os “centros ilustrados” (idem, p. 11). Quanto a esse ponto, Luiz Augusto dos Reis tinha consciência de que a experiência da viagem em missão de estudo oficial, financiada pelos cofres públicos, ainda mais ao exterior, era um privilégio vivenciado por poucos professores primários.

No entanto, um dos pontos mais ressaltados por Reis foi o estatuto e as condições do trabalho docente, aspecto presente em todo o relatório. Neste, a operação de comparação, a estratégia de olhar o outro, observá-lo, descrevê-lo, como uma forma de ver a si, de espelhar e confrontar a própria experiência (estranhamento/familiaridade), aparecia com clareza. segundo ele, os professores das escolas centrais diferiam bastante dos mestres-escolas de outrora: dividiam-se em duas categorias, ordinários e auxiliares ou especiais. os professores ordinários tinham a seu cargo as matérias de ensino literário e científico. Os auxiliares ou especiais lecionavam saberes especializados, como ginástica, exercícios militares, canto coral, desenho, caligrafia e trabalhos manuais. Entre os professores ordinários, incluía-se o diretor ou regente da escola. A hierarquia entre os saberes escolares, as funções e as posições de poder na forma escolar moderna eram demarcadas nas normas regimentais:

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cada um dos professores das escolas centraes é o único responsável pela disciplina, boa ordem e educação moral e intellectual dos alumnos dentro da sua respectiva aula. os professores não podem patentear as aulas e outras dependências da escola, sem auctorisação previa do respectivo regente a quaesquer pessoas extranhas ao serviço escolar.

os professores devem pelo seu comportamento exemplar, pela doçura do trato ou pela severidade serena e paternal, preparar a formação futura de um bom caracter moral nos seus alumnos, creando-lhes o respeito pela auctoridade do mestre, os amor da escola, da ordem e do trabalho [idem, p. 26].

Práticas ditas modernas (tais como, o ensino seriado, os novos sa-beres, os museus pedagógicos, os laboratórios, as excursões e passeios) conviviam e negociavam, porém, com a tradição. Nas escolas centrais, os castigos corporais, se eram condenáveis, eram permitidos nos casos indispensáveis e se aplicados unicamente pelos próprios professores, tendo em vista a prevenção de prejuízos à índole e à posição social de cada criança. o tratamento dispensado pelos professores às crianças deveria seguir o princípio da igualdade entre elas, sem prejuízo do exer-cício da autoridade e do respeito às normas e à hierarquia. cumprir a hierarquia e efetivar a concretização das normas eram também deveres dos professores: seu trabalho docente, as atividades cotidianas de ensino, o registro de cada aluno de suas classes, deveriam ser documentados, passando por escrituração minuciosa, que era entregue à avaliação do diretor e arquivado nas escolas (idem, ibidem).

O diretor escolar, figura particular nessa nova forma de organiza-ção escolar, centralizava a administração do ensino, mantendo sob a sua autoridade e gestão os professores, alunos e demais funcionários da instituição. Representava e respondia, ainda, pela escola, perante as autoridades, a comunidade e as famílias. A experiência prévia como professor e regente de classe era uma exigência a ser cumprida, sempre que possível, para que o indivíduo alçasse essa função, indicando o des-dobramento e a ampliação dos sentidos do trabalho docente, que poderia incluir então a gestão de não mais apenas uma classe ou casa de escola, mas de todo grupo escolar.

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Professores e diretores das escolas centrais eram também responsá-veis pela fiscalização da higiene, do asseio, da limpeza do vestuário e das condições de apresentação do corpo e da aparência das crianças, o que eram considerados nos regulamentos como indicativos de “boa educa-ção”. Programas curriculares, livros escolares e métodos de ensino foram minuciosamente relatados por Luiz Augusto dos Reis (p. 29-69).

Para exercer bem os seus afazeres, uma vez mais, modernidade e tradição se interpenetram: os regulamentos das escolas centrais previam a moradia do diretor e de sua família nas escolas centrais (idem, p. 27). casa de escola/casa de família, professor/diretor/pai, permaneciam como representações e signos idealizados no projeto de escola seriada moderna, apesar das significativas transformações nos espaços, nos tempos, nas práticas pedagógicas e nos sujeitos educativos (Faria Filho, 2003a). A família escolar, mais extensa, formava-se pelo conjunto de professores ordinários e especiais, funcionários e alunos, submetidos à autoridade do diretor, todos eles responsáveis pelo cumprimento das regras estabeleci-das pela lei para o funcionamento da maquinaria escolar. Nessa máquina, as posições eram previamente delineadas: professores ordinários e o diretor compunham o conselho Escolar, com direito a voto deliberativo, permitida, quando necessário, a participação dos professores auxiliares, apenas com direito a voto consultivo, exceto no caso de premiação e recompensa aos seus próprios alunos (Reis, 1892, p. 28).

d - Formação de Professores

As escolas normais de Lisboa ocupam um pequeno espaço no re-lato, chamando atenção para existência de duas: uma masculina e outra feminina. também sublinha a existência de Liceus de Ensino superior, igualmente separados por sexo.

A Escola Normal do Porto mereceu um espaço mais generoso na nar rativa. A do sexo masculino fora instalada num vasto e elegante pa-lacete. Reis viu naquela escola tudo o que “vai de ordem, de asseio, de um verdadeiro luxo” (idem, p. 125). A arquitetura e a planta foram muito elogiadas, sobretudo, porque contaram com a participação dos professo-

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res, que desenharam as salas de aula, os gabinetes, opinando sobre o “risco do edifício”. Segundo ele, a “engenharia oficial pedantesca” não havia por ali feito exigências, julgando-se em tudo “sabida e competente” e “en chendo a cidade de aleijões arquitetônicos” – referindo-se, uma vez mais, aos palácios escolares construídos na capital do Brasil, entre os anos de 1870 e 1880. Para construção da Escola Normal Masculina do Porto, os saberes e os especialistas de cada campo, pedagogia e engenharia, andaram de mãos dadas:

o visitante não sabe o que mais admirar, se as salas limpas e arejadas com mobílias novas e modernas, de accordo com as ultimas exigências peda-gógicas, se os gabinetes de physica, chimica e historia natural, se o pateo de gymnastica com bons apparelhos, se a escola annexa habilmente dirigida por uma jovem professora intelligente e competentíssima, se os jardins com suas estufas, nas quaes encontram-se plantas até de nosso paiz, se o jardim botânico, a bibliotheca, a sala dos exames, a sala da secretaria, a sala da directoria, a magnífica sala de recepção, a sala dos professores do estabelecimento, a bella e luxuosa sala ornamentada com muito gosto e destinada as solemnidades, a bella escadaria que conduz ao pavimento superior, as latrinas, os mictorios, as toilettes, a sala de entrada bem mobiliada etc. etc. [idem, p. 126].

os exercícios práticos dos alunos-mestres da escola normal eram realizados na Escola Anexa, incluindo prática de ensino, aplicação de exames e escrituração escolar. os alunos-mestres tomavam para si a responsabilidade pelas classes e pelo andamento da escola anexa, sob a supervisão do professor regente, ficando as atividades práticas e as notas de desempenho obtidas no estágio registradas em livro especial, separadas por aluno17.

17. o professor da escola anexa deveria registrar no livro especial, no nome de cada aluno-mestre, a indicação do dia, hora e atividade, registrando os erros e os pro-gressos, notadamente no que se refere às questões pedagógicas. O livro deveria ser apresentado ao Conselho da Escola Normal pelo Diretor da Escola Anexa, ao fim de cada mês (Reis, p. 128).

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Para o viajante, esses procedimentos pareceram úteis para a Escola Normal da capital federal.

A Escola Anexa, criada pela lei de 2 de maio de 1878, era então dirigida pelo professor João clemente carvalho saavedra, que visitara juntamente com sua esposa, carlota de carvalho saavedra, vários países europeus, como a Espanha, a França e a suíça, viagens das quais deixaram memórias escritas (Pintassilgo, 2007). A sua escola era um verdadeiro laboratório para os alunos-mestres, posto que ali se exercitavam na arte de ensinar e conviviam com os recursos e métodos de ensino considera-dos inovadores: a caixa econômica escolar, a biblioteca, os gabinetes de física, química, as técnicas de escrituração escolar (diários, boletins), o ensino seriado, a divisão das classes de idade, os passeios e as excursões escolares, que já se realizavam por toda a Europa, segundo Reis.

Considerações finais

Para concluir sua narrativa sobre Portugal, o viajante reiterou a necessidade de rever-se os preconceitos e as representações dominantes no Brasil sobre a educação portuguesa:

Portugal, se não occupa o primeiro logar em questões de ensino primário, se o ensino popular não disse ainda nelle a ultima palavra, se elle ainda está longe de hombrear nesse assumpto com paizes adiantadíssimos como a Bélgica e a suissa, por exemplo, não é também o paiz atrasadíssimo que em geral se jul ga e não occupa mesmo os últimos logares. Pelos documentos officiaes se vê, é verdade, que não está longe o tempo do seu atrazo; que em epochas não muito remotas, que instrucção popular não era nesse paiz uma cousa seria; mas por esses mesmos documentos se vê que elle deu um verdadeiro salto e que quem for estudal-o com animo desprevenido se convencerá do que affirmo, sem receio de contestação digna [Reis, p. 132].

os quatro pontos aqui destacados não recobrem o relato da viagem e estadia do professor brasileiro no velho mundo. sequer dão conta de

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seu empreendimento nas terras portuguesas. Provavelmente viu mais do que escreveu. E nós recortamos ainda mais seu relato, iluminando o sujeito, a viagem e suas impressões acerca da ação do Estado, heteroge-neidade das formas escolares, trabalho e formação docente. No entanto, a narrativa também lança luz sobre os problemas da obrigatoriedade, tempo escolar, gênero, ensino noturno, liberdade de ensino, recruta-mento docente, livros, orçamento, museus escolares, prêmios, saberes e programas de en sino, materiais e métodos, por exemplo. Nesses outros pontos, a que fizemos bre ves referências, a narrativa do professor da corte mantém o movimento de estranhamento e familiaridade, base para ordenar a descrição do que pôde ver nos diferentes países e projetar uma nova ordem escolar para sua terra natal.

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Endereço para correspondência:Alessandra Frota Martinez de schueler

universidade Federal Fluminense, departamento de Fundamentos Pedagógicos/Faculdade de Educação

Rua Visconde do Rio Branco, 882, Campus do Gragoatá, Bloco d, sala 446

Gragoatá – Niterói-RJ cEP 24210-350

E-mail: [email protected]

José Gonçalves GondraRua olegário Mariano, 276 tijuca – Rio de Janeiro-RJ

cEP 20510-210 E-mail: [email protected]

Recebido em: 13 ago. 2008Aprovado em: 10 jul. 2009

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claude cARPENtiER

Manuais e programas escolares franceses de história e de geografia:

identidades, globalização e construção europeia (1995-2002)

claude carpentier*tradução: dislane Zerbinatti Moraes**

Resumo:Este artigo analisa as influências do duplo processo de globa-li zação e da construção da identidade europeia nos programas oficiais e nos conteúdos de ensino apresentados nos manuais de his tória e geografia do ciclo terminal do ensino secundário na França entre 1995 e 2002. os aspectos destrutivos e ameaçadores da globalização são regularmente percebidos e descritos nas obras escolares como um risco de perda de identidade, advinda da uni-formização cultural e alienação social. os manuais destacam ain da o efeito diferenciador, que, ao mesmo tempo, provoca o cres cimento das desigualdades e estimula as resistências identi-tá rias.Quanto à possibilidade de construção de uma identidade europeia, acima das diversidades culturais locais e regionais, no conjunto, os manuais e programas são portadores das mesmas mensagens que assinalam o caráter voluntarioso e político dessas iniciativas. o europeísmo da Europa permanece problemático e a referência à identidade europeia, definida através de uma cultura comum, está praticamente ausente dos manuais, sendo mencionada como uma espécie de perspectiva humanista, em espaços específicos, à margem dos textos principais que desenvolvem os conteúdos.

Palavras-chave: história das disciplinas escolares; manuais escolares de história e geografia; globalização; identidade europeia; sistema de ensino francês.

* doutor na área de ciências da educação. Professor emérito da universidade de Picardie Jules Verne, França.

** Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação na Faculdade de Educação da universidade de são Paulo (usP). doutora em letras, literatura brasileira, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da USP.

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Manuais e programas escolares franceses de história e de geografia

French textbooks and scholar programs of history and geography:

identities, globalization and European construction (1995-2002)

claude carpentiertranslated by dislane Zerbinatti Moraes

Abstract: This paper analyses influences about the double process of globalization and construction of European identity at scholar official programs and at teaching contents showed in textbooks of history and geography at secondary terminal cycle in France between 1995 and 2002. the destructive and threatening aspects of globalization are regularly perceived and described at scholar works as a risk of lost of identity, came from cultural uniformity and social alienation. the manual highlights yet the differentiating effect that, at the same time, cause growth of inequalities and stimulates the resistance identity. About the possibility of constructing an European identity, above local and regional level of cultural diversity, as a whole, the manual and programs are carrying the same message which signs the self-will and political character of these initiatives. the Europeanism of Europe remains problematic and the reference to European identity, which is defined through a common culture, is practically absent of manuals and the European identity is mentioned as a kind of humanistic perspective, at specific spaces, out of principal texts that developing the contents.

Keywords: history of school subjects; textbooks of history and geography; globalization; European identity; education system.

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claude cARPENtiER

No duplo contexto da construção europeia1 e da globalização2, inquietações manifestam-se em relação ao perigo que esses fenômenos representam para a sobrevivência das identidades, tanto pessoais como coletivas e notadamente culturais3, que estariam ameaçadas pela unifor-mização. À diversidade e atemporalidade das identidades, concebidas a partir da imagem das mônadas leibnizianas, isoladas e sem história, opor-se-ia uma nova matriz identitária única e despersonalizada.

Essa representação, justificada ou não, repousa sobre o modelo de uma identidade substancializada e sem história submetida a assaltos de um processo contrário, inscrito por temporalidades e mudanças, em que as diversas modalidades não são, na maior parte das vezes, nem verdadeiramente controladas nem desejadas e cujos efeitos, a longo pra-zo, são desconhecidos ou problemáticos. Portanto, uma dupla ameaça parece pesar sobre as representações identitárias nacionais, étnicas e cul turais: a do risco de mutação por meio da emergência de um tipo ideal europeu de contornos imprecisos e de uma perda, uma dissolução, provocada pelo processo de globalização, o qual parece nos tornar im-po tentes, a menos que se desenvolvam resistências e recomposições identitárias para enfrentar ao perigo.

o fenômeno conhecido pelo nome de mundialização/globalização representa o último avatar histórico do desenvolvimento do capitalismo,

1. No original “construction européenne”, frase que identifica o projeto de uma Europa econômica e politicamente unificada (Le Petit Larousse, 1995) (N.t.).

2. Embora não sendo sinônimos, os termos mundialização e globalização são utilizados aqui indiferentemente. como recorda um dos manuais utilizados, a mundialização designa o fato de numerosos fenômenos (econômicos, culturais, sociais) tocarem o planeta inteiro enquanto a globalização evoca a aplicação de estratégias econômicas em escala mundial.

3. os conceitos de natureza e de identidade, frequentemente associados, não se con-fundem; no entanto, como de fato observa denys cuche: “Hoje, as grandes inter-rogações sobre a identidade retornam frequentemente à pergunta da cultura […] Contudo, se as noções de cultura e de identidade cultural têm em grande parte um destino ligado, elas não podem ser confundidas mera e simplesmente […] A cultura depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de pertença, necessariamente consciente, porque fundada sobre oposições simbólicas” (cuche, 1996, p. 83).

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aberto com a ruptura sociopolítica brutal ocorrida na Europa central e Oriental no fim dos anos de 1980. Este processo de globalização vem per-turbar de maneira radical outro processo nascido do desastre da segunda Guerra Mundial: o da construção de uma ideia de Europa unificada, por alargamentos sucessivos da comunidade dos Estados-nação localizados no continente europeu, primeiro a oeste sob o comunismo, em seguida na escala de todo o espaço geográfico, após o desmoronamento deste último. A identidade de cada um desses Estados – forjada por uma história frequentemente conflituosa (o que levaria alguns a falar de guerras civis europeias) – define o campo das prerrogativas e da soberania política. A perspectiva da construção europeia, em contrapartida, encerra o problema da sua identidade, pura virtualidade e objeto de controvérsias obstinadas, no centro das quais se encontram as dimensões cultural e religiosa ocu-pando um lugar decisivo de escolhas, como atesta-o a querela ao redor da adesão da turquia. Assim, com a emergência da mundialização, a questão da identidade europeia desloca-se: trata-se menos de definir “o europeísmo”4 da Europa de um ponto de vista cultural em sentido amplo que de observar nela um dos polos econômicos concorrentes do neolibe-ralismo no contexto da globalização. isto é, com a globalização, a questão da identidade europeia muda de configuração.

Propomo-nos a estudar aqui as influências do impacto desse duplo movimento da história nos programas oficiais e nos conteúdos de ensino apresentados nos manuais de história e geografia do ciclo terminal do ensino secundário na França entre 1995 e 20025. Após destacar o enraiza-

4. No original “européanité”. Na tradução, adotamos a palavra “europeísmo” com o significado de busca, dentro da linha antropológica do culturalismo, de traços co-muns distintivos do que é europeu, nos aspectos da cultura, história e memória (Boudon & Bourricaud, 1993). Ainda, conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o europeísmo diz respeito à “característica ou qualidade de europeu” (2001, p. 1276) (N.t.).

5. corresponde no sistema de ensino brasileiro ao 2º. e 3º. anos do ensino médio e no sistema francês às classes “première” e “terminale” do 2º. ciclo do Liceu, o qual se divide em três modalidades de aprofundamento: Es (estudos econômicos e sociais); L (estudos literários) e S (científicos). Tomamos por base o quadro comparativo dos sistemas de ensino Brasil/França em anexo ao livro organizado por Maria Alice Nogueira e Afrânio catani, Pierre Bourdieu. Escritos de Educação (1998, p. 249) e o site www.education.gouv.fr (N.t.).

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mento das identidades nacionais, deteremo-nos a analisar a dupla ameaça evocada acima: do risco de perda ou de mutação identitária ligadas à globalização ou à construção europeia.

1- A objetivação das identidades: a recusa da história

É comum distinguir as concepções objetivistas e subjetivistas da identidade cultural. No primeiro caso, a identidade aparece como um dado que escapa à história, uma essência atemporal, na qual o indivíduo extrai as suas raízes. denys cuche resume assim a situação do ponto de vista do paradigma objetivista: “a identidade repousa, por conseguinte, sobre um sentimento de pertencimento em certa medida inato. A identidade é pensada como uma condição imanente do indivíduo, definindo-o de maneira estável e definitiva” (Cuche, 1996, p. 85).

do ponto de vista subjetivista, cujo mais eminente representante é Max Weber, uma etnia, uma cultura, uma identidade (cultural ou não) existe apenas na crença na existência dessa etnia:

[...] chamaremos de grupos “étnicos” aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças da colonização e migração, nutrem uma crença subje-tiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma comunidade de sangue efetiva. A “comunhão étnica” distingue-se da “comuni-dade de clã” pelo fato de aquela ser apenas produto de um “sentimento de co-munidade” e não uma “comunidade” verdadeira, como o clã, a cuja essência pertence uma efetiva ação comunitária. A comunidade étnica (no sentido que damos) não constitui, em si mesma, uma comunidade mas apenas um elemento que facilita relações comunitárias. Fomenta relações comunitárias de natureza mais diversa, mas sobretudo, conforme ensina a experiência, as po líticas. Por outro lado, é a comunidade política que costuma despertar, em primeiro lugar, por toda a parte, mesmo quando apresenta estruturas muito artificiais, a crença

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na comunhão étnica, sobrevivendo esta geralmente à de cadência daquela, a não ser que diferenças drásticas de costumes e de habitus ou, particularmente, de idioma o impeçam [Weber, 1991, p. 270].

o sentimento de pertencimento a uma vida comum étnica contribui, entre os membros que compartilham esta ilusão objetivamente, para a substancialização desta e subtração da mudança. Portanto toda dinâmica histórica é percebida como uma ameaça que compromete a estabilidade deste sentimento de pertença comunitário. Embora sejam o fruto da his tória, os Estados-nação desenvolveram um sentimento de unidade nacional forjado pelo distanciamento do outro. como sublinha Barth, a identidade étnica é construída em oposição à de outros grupos étnicos, pois colocam em cena sinais e símbolos que permitem traçar as frontei-ras entre os membros do grupo e os outros. Uma das ilustrações que apreendem melhor desta abordagem teórica é constituída pelo fato de o en sino da história ter geralmente por base a crença à vida comum étnica dos cidadãos ou dos membros de comunidades singulares. convém, por conseguinte, medir em que as transformações essenciais recentes do mun do contemporâneo afetam as identidades constituídas. o impacto destas transformações reveste-se de dois aspectos principais: a dissolu-ção da identidade representada (identidade para si) e da perda, no que diz respeito à mundialização, de uma mutação identitária em relação à construção europeia.

2- Identidades perdidas, alienação e resistências num mundo globalizado

2-1 A emergência do conceito de mundialização nos programas de 1995 e 2002

De 1995 a 2002, o programa de geografia da classe terminale sofre menos uma ruptura que uma inflexão que convém sublinhar. Além de uma semelhança formal manifestada pelo título geral “o espaço mun-dial”, diferenças merecem exame. Assim, o programa de 1995 abarca

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“a organização geográfica do mundo”, estuda três potências econômicas mundiais e inclina-se sobre “alguns problemas geográficos mundiais em escala continental”, mas não menciona o termo mundialização, ao contrá rio do programa de 2002 que o evoca explicitamente através da noção de “espaço mundializado” que faz o seu aparecimento e designa assim um processo em vez de descrever a simples espacialidade. A expressão “espaço mundializado” substitui “a organização geográfica do mundo” e vê-se atribuir um volume de dez horas de ensino sobre um total anual de cinquenta, ou seja, 20% do conjunto. o programa de 2002 insere explicitamente em perspectiva a “Mundialização e interde-pendências” por um lado, e “outras lógicas de organização do espaço mundial”, por outro lado. Esta evolução entre 1995 e 2000 testemunha uma conceptualização muito mais nítida do fenômeno de mundialização, o qual, ao mesmo tempo, se difunde largamente na linguagem dos meios de comunicação social.

A aplicação do programa opera-se por meio dos manuais. Eles dis-põem apenas de uma estreita margem de liberdade que não é, contu do, inexistente. É assim que alguns, inspirados no programa de 1995, an te-cipam mais que outros a noção de mundialização, ausente como tal no de 2002.

Quanto aos programas de história, poucos são levados, tanto em 1995 como em 2002, a pronunciar-se sobre a “mundialização”, sendo que uma parte importante do programa refere-se ao mundo de 1945 aos nossos dias.

Em 1995, essa questão é abordada em dois capítulos:

1 - as transformações econômicas e sociais do mundo a partir de 1945: capítulo em que será traçado o quadro econômico e social da segunda

metade do século XX, evocando sucessivamente o crescimento e a crise e insistindo nas mutações sociais, a evolução da sociedade material e os modos de vida. Mostrar-se-á como, desde 1945, evoluem as desigualdades entre as diferentes regiões do mundo.

2 - os grandes modelos ideológicos do mundo [programa de história, classe terminale, 1995].

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Como para a geografia, os manuais inspirados nesses programas dispõem de certa liberdade. É assim que o manual da coleção Nathan utiliza várias vezes a noção de mundialização:

Para muitos, com efeito, a mundialização da economia, ou seja, o desen-volvimento massivo das trocas entre as diferentes partes do planeta, torna cada vez mais ilusória a luta efetuada por cada Estado no âmbito nacional…

Esta mundialização exigiria a uniformização das legislações econômicas e sociais [coleção Nathan, história, classe terminale, programa de 1995, p. 245].

Em 2002, os programas de história são menos explícitos sobre o assunto; o termo mundialização figura aí, contudo, uma vez, mas só uma vez, para designar o seu impacto na cultura: “Este tema convida a uma apresentação sintética das grandes transformações da segunda metade do século XX […] Ele inclui o funcionamento do mercado mundial dos bens culturais e a questão da mundialização da cultura” (programa de história, classe terminale, 2002).

Globalmente, parece, por conseguinte, que entre 1995 e 2002, os programas apresentam, em função da conceptualização levada a efeito, uma evolução que acompanha a emergência da consciência coletiva de um novo espaço, o da mundialização, do qual convém determinar o impacto no curso do mundo.

2-2 A mundialização e os seus efeitos sociais nos manuais: um fluxo cego gerador de desigualdade e de alienação

Um fluxo cego

os manuais inspirados no programa de 2002 fazem com que o pro-cesso de mundialização apareça como uma força em movimento, irre-sistível e passível de escapar a qualquer controle por parte dos atores po líticos:

No âmbito da mundialização, fluxos sempre mais numerosos circulam sobre o planeta. Estes fluxos podem ser materiais (matérias-primas energéticas

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ou minerais, produtos industriais ou agrícolas), imateriais (serviços, capitais, informação) ou humanos (migrações). Tornam o mundo interdependente: a eco nomia de cada país é cada vez mais dependente de a dos seus parceiros. o crescimento econômico e também as crises podem então difundir-se rapidamente [coleção Hachette, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 80].

uma análise que não teria negado Marx, que escreveu no Manifes-to “o mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação, de todos os meios de comunicação. Esse desenvolvimento incidiu por sua vez na expansão da indústria” (Marx & Engels, 1998, p. 52-53).

O caráter incontrolável do movimento é traduzido pela ideia de flu-xos: “A explosão dos fluxos mundiais” (Coleção Magnard, geografia, clas se terminale, programa de 2002, p.24). os títulos de certos parágrafos são evocativos:

As trocas continuam a sua expansão rápida. O desenvolvimento das trocas internacionais é contínuo… Estes fluxos

crescentes repousam sobre a eficiência de potentes redes logísticas multi-modais…

Hoje os fluxos de capitais irrigam todo o planeta.O mercado financeiro tornou-se realmente planetário graças à criação de um

sistema de comunicação que liga os centros financeiros 24 horas por dia. A lógica financeira e especulativa domina a mundialização [coleção

Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 24].

Os manuais identificam, contudo, os atores da mundialização: os Estados-nação cuja capacidade de ação continua a ser, no entanto, limi-tada porque deve fazer face à potência das multinacionais:

As firmas transnacionais ao assalto do mundo: as 63.000 firmas transna-cionais são os principais agentes da mundialização… o seu poder repousa sobre a capacidade de dominar e gerir o espaço mundial em função de seu lucro [Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 26].

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As organizações internacionais a serviço da mundialização. O FMI e o Banco Mundial favorecem a mundialização condicionando as suas inter-venções financeiras à aplicação políticas liberais… A OMC trabalha para a liberalização das trocas graças a um arsenal de regras vinculativas e de sanções [Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 25].

Ainda que a mundialização apareça como cega e incontrolável ou como impulsionada por atores inacessíveis, os quais acabam por ser questionados, ela gera a angústia no leitor impotente e suscita a con-testação:

A mundialização contestada – uma mundialização sem piloto? As agências mundiais da oNu trabalham para a liberalização das trocas

sem ter uma visão mundial global. o comércio internacional continua a ser enviesado pelas barreiras tarifárias e não tarifárias elaboradas pelos países do Norte em vários setores [...] O FMI não domina o conjunto dos fluxos finan-ceiros; a sua intervenção nos países que conhecem graves crises financeiras agrava frequentemente o desemprego e a pobreza das populações.

A regulação da mundialização é portanto insuficiente e incerta [...]A maior parte dos Estados sofre a mundialização […]. com efeito, são

os Estados unidos que dominam o processo praticando um unilateralismo permanente que suscita numerosas oposições [Coleção Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 25].

Crescimento das desigualdades, efeito perverso?

Do ponto de vista ideológico, a mundialização é justificada pelos seus partidários como um fator de progresso:

A mundialização fez desaparecer os velhos modelos ideológicos e abalou as estruturas estatais tradicionais. com o desenvolvimento da interdepen-dência planetária e o papel crescente das organizações internacionais, a

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comunidade internacional pôde crer que poderia influir eficazmente sobre os homens e os Estados para instaurar um mundo mais democrático e mais pacífico [Coleção Hachette, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 80].

[...] o crescimento dos fluxos mundiais de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas resulta de uma vontade de liberalizar estas trocas, com o objetivo de paz e de prosperidade, mas também de lucros mais elevados [coleção Bréal, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 44].

Pode-se falar de efeito perverso quando se constata que os ob-servados são contrários aos objetivos declarados pelos ideólogos da mundialização? Por exemplo: “A mundialização é acompanhada de um crescimento das desigualdades entre os países mais ricos e os países mais pobres” (coleção Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 26).

Esse crescimento das desigualdades, dos processos de diferencia-ção, acompanha paradoxalmente a homogeneização, que por sua vez é apresentada como a característica principal da mundialização:

Nunca os fluxos de homens, de bens, de serviços e de capitais foram tão intensos como atualmente. A mundialização aparece como um processo de organização das trocas e da produção que transcende as fronteiras. Paradoxal-mente, contribui ao mesmo tempo para a homogeneização e a diferenciação das diversas partes do espaço mundial. Apoia-se sobre alguns grandes centros de impulso da economia mundial, sem impedir a dominação de uma só super-potência nem a organização dos indivíduos, das redes ou os Estados a outras escalas, para além dos seus próprios territórios [coleção Bréal, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 44, grifos nossos].

Assim, os manuais sublinham o duplo caráter homogeneizador/diferenciador (centro/periferia, cidade/campo) da mundialização libe-ral, expressão não controlada da potência do capitalismo mundial, que contribui para criar as condições da sua própria contestação.

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As resistências

Portanto, não é de surpreender ver a resistência organizar-se:

um vasto movimento social de mundialismo alternativo desenvolveu-se em reação às consequências da mundialização liberal. Presente desde 1999, quando grandes sumidades internacionais organizam fóruns sociais e propõem-se outras vias: anulação da dívida dos países mais pobres, reformas agrárias. composto de múltiplos grupos entre os quais numerosas oNG’s, o movimento carece, contudo, de denominadores comuns que fariam um verdadeiro movimento social planetário [coleção Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 42].

Hoje em dia, no contexto de um espaço econômico mundializado, a confrontação entre a lógica do mundialismo alternativo e a lógica neoli-beral é uma forma nova da antiga luta contra imperialismo. A descrição do processo de mundialização e os seus efeitos nos manuais escolares põem em cena com outras palavras o que as análises de Marx efetiva-mente haviam destacado: o movimento de empobrecimento relativo ou absoluto sustentado pela troca desigual entre proletários e proprietários dos meios de produção na sociedade capitalista. A análise da mais-valia e do sobretrabalho em Marx permite pensar a alienação do trabalhador e por ela, numa outra linguagem, a alteração ou a perda da sua identidade. A submissão ao capitalismo (incluindo a forma de uma empresa interna-cional), ao qual deve bem se resignar involuntariamente o trabalhador de uma parte do valor produzido pelo seu trabalho, constitui a forma da sua alienação, da perda da sua identidade. o movimento histórico pelo qual o trabalhador independente se proletariza descreve, por conseguinte, o movimento de alienação identitária designado pela sua mudança de estatuto econômico no quadro de novas relações sociais.

Nesse sentido, a emergência do mundialismo alternativo, de pro-postas para o desenvolvimento sustentável ou o comércio equitativo, estudada por vários manuais, evocam as modalidades da resistência aos prejuízos da mundialização, bem como a formas novas de protestos

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identitários por parte das populações dominadas e alienadas pelas novas formas da economia liberal capitalista. Representam ao mesmo tempo o produto dialético do processo de mundialização, ele mesmo. Podemos, por conseguinte, transpor à situação presente os propósitos de Marx: “[…] a burguesia não forjou somente as armas que lhe darão a morte: criou também os homens que manejarão essas armas, os operários modernos, os proletários” (Marx & Engels, 1998, p. 58)6.

2-3 Os espaços identitários nos manuais e programas de 2002 e a relação com a mundialização

2-3-1 Outras lógicas de objetivação da cultura e diversidade cultural

Propondo em certa medida contrapesos às análises relativas à mun-dialização uniformizada (mundialização e interdependências), o segundo ponto do programa de geografia da classe terminale de 2002 é intitulado “outras lógicas de organização do espaço mundial”. Fala-se principal-mente das áreas culturais que aparecem como espécies de invariantes ou como se construídas sobre “o tempo longo”, “identidades para outrem” e “para si”, polos de resistência, pela sua diversidade à mundialização.

6. Embora elas não se reportem de modo algum de maneira explícita, certas páginas de manuais não podem deixar de evocar no leitor a famosa análise desenvolvida por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista. A burguesia, jamais identificada como tal nos manuais, “só pode existir sob a condição de revolucionar constantemen-te os instrumentos de trabalho, o que quer dizer o modo e as relações de produção, ou seja, em última análise, o conjunto das relações sociais [...]. Tudo o que era tido como sólido e estável se desmancha no ar, tudo quanto era sagrado é profanado [...]. Pela exploração do mercado mundial, a burguesia dá um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais estão destruí-das ou a ponto de o serem. [...] Em lugar do antigo isolamento das nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um tráfico universal, uma interdependência das nações. O mesmo acontece com a produção intelectual. A produção intelectual de uma nação torna-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada dia mais impossíveis, e das numerosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura universal” (Marx & Engels, 1998, p. 54-55).

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diversidade e estabilidade no tempo, exceto no manual Magnard em que aparece a ideia de “uma civilização [que] é o produto de uma história” (geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 46), são as duas prin-cipais características da identidade das áreas culturais e contrastam com a uniformidade e a turbulência que abarcam a mundialização:

A diversidade das áreas de civilização

A palavra civilização […] designa hoje um conjunto de sociedades que apresentam certo número de traços comuns: valores, práticas, crenças, repre-sentações do mundo […]. Estas áreas de civilização constituem conjuntos de extensão desigual e descontínua. É difícil fixar precisamente seus limites, e, muitas vezes, as áreas não acompanham os recortes dos Estados [coleção Bréal, classe terminale, programa de 2002, p. 44 ].

No conjunto, é o ponto de vista objetivista evocado acima que preva-lece nos manuais na medida em que as culturas aparecem como entidades expostas às agressões do processo mundialização. O que os dispõe em uma posição de resistência real ou potencial. Quando há resistência, trata-se de uma autêntica vontade de preservar a identidade cultural ou de lutar contra a dominação econômica e social?

2-3-2 Para uma cultura universal? O perigo de uniformização

o perigo mais frequentemente evocado pelos manuais a propósito do desenvolvimento da mundialização é o da uniformização cultural em detrimento da diversidade expressa através das áreas culturais. Esta uniformização reveste-se de duas formas igualmente presentes nos ma-nuais escolares7: quer por uma espécie de média universal expressa na

7. como na análise de Marx, marcada pela mesma ambivalência. Por um lado, a cul-tura universal pode aparecer quer como uma espécie de média (cf. nota 6: “das nu merosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura universal”), quer como a expressão de um modelo dominante destruidor da alteridade: “a burguesia arrasta na corrente da civilização todas as nações, até as mais bárbaras [...] Sob a ameaça de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produ ção. Numa palavra, modela o mundo à sua imagem” (Marx & Engels, 1998, p. 55-56).

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mestiçagem, quer, e esta evocação é frequente, pela hegemonia de um modelo cultural identificado às vezes como ocidental, às vezes como americano:

A convergência dos modos de consumo, os empregos do tempo e mesmo as especificidades biográficas mais fundamentais desenham os contornos de uma vasta classe média que, de tóquio a Buenos Aires, de Los Angeles à Bombay, senta-se no mesmo tipo de sofá para assistir às mesmas emissões de tV, usam sapatos de mesmas marcas para praticar os mesmos esportes [coleção Hachette, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 81].

A geografia das civilizações mostra a existência de vastas áreas culturais entre as quais aparecem ainda as antigas zonas de influência europeias. Esta geografia é hoje posta em questão: a mundialização e as migrações huma-nas traduzem-se em dois movimentos aparentemente contrários: a difusão planetária de um modelo cultural ocidental marcado pelos Estados unidos e ao mesmo tempo a afirmação da diferença, pela extensão das outras áreas culturais onde as línguas e, sobretudo, as religiões desempenham um papel identitário importante. os limites das áreas culturais apagam-se diante da interpenetração geográfica das diferentes civilizações [Coleção Hachette, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 81]

Efeitos perversos ou interação dialética, os manuais recusam a ideia de efeitos unívocos uniformizadores e afirmam a ameaça às identidades.

Resistências culturais e reivindicações identitárias Perante o temor de uma homogeneização cultural, assiste-se ao despertar

das identidades que toma às vezes a forma de uma rejeição violenta ao ocidente. A ocidentalização do mundo não é mais aparente que real?

- uma ocidentalização do mundo imperfeito. - Formas múltiplas de resistência à ocidentalização. - Conflitos e reivindicações identitárias [Coleção Bréal, geografia, classe

terminale, programa de 2002, p. 44].

Realidades e limites da cultura-mundo - os meios de comunicação e a cultura

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- as realidades da cultura-mundo - as resistências à uniformização das culturas [coleção Hachette, geogra-

fia, classe terminale, programa de 2002, p. 81].

As civilizações, um recorte do mundo ainda pertinente- Uma pluralidade de civilizações - A força das reações identitárias o fato religioso conhece fora da Europa ocidental um despertar signi-

ficativo. A aposta no avanço das identidades é uma reação aos poderosos fatores

de unificação que resultam da mundialização. - Entre a unidade e as diversidades culturais A mundialização acompanha-se de uma convergência dos modos de vida

e de valores considerados como universais. o modelo cultural americano desenvolve-se graças às empresas transnacionais […].

Mas a uniformização cultural é limitada: ela pode se referir apenas às elites dirigentes; a adesão a bens materiais pode coabitar, em inúmeros indivíduos, com a afirmação dos seus próprios valores espirituais […]. Levar em frente os particularismos, as culturas locais é um fenômeno generalizado… [coleção Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 42].

As relações sociais e econômicas de dominação que caracterizam a mundialização deslizam para uma conceptualização em termos de choque das culturas e levam a designar a mundialização cultural como ocidentalização:

[...] perceptíveis por toda a parte, as reivindicações identitárias traduzem quer um desejo de reconhecimento por parte de minorias oprimidas ou ignoradas, quer uma restituição, por motivos mais radicais, do Estado e de suas fronteiras. Na América, assim como na Austrália ou na Nova Zelândia, os povos autóctones pedem o respeito a sua cultura e o reconhecimento das espoliações sofridas no passado [Coleção Bréal, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 45].

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Para além das amplas identidades culturais, os Estados representam polos identitários fortemente ameaçados pela mundialização ou crise dos Estados-nação.

3- Construção europeia e novas formas identitárias: uma mutação incerta

se a mundialização for associada à perda dos marcadores de identi-dades, a construção europeia está associada à perspectiva de uma mutação identitária que leva-nos ao desconhecido.

Em geografia, o tema “a Europa” é abordado na classe première tanto nos programas de 1995 como nos de 2002. o tema está igualmente na classe terminale no programa de 2002, mas ausentes no de 1995.

Em história, este tema aparece no programa de 1995 da classe pre-mière (por exemplo: A Europa e o mundo entre a primeira metade do século XIX e 1939) e desaparece na classe terminale (por exemplo: Os regimes políticos na Europa ocidental). Nos programas de história mais recentes, de 2002, o lugar da Europa quase não varia, mas assume um peso significativo e específico, dado que o seu estudo ocupa dez de cada cinquenta horas, em uma parte que lhe é exclusivamente reservada.

3-1 - Emergência da questão do europeísmo

Nós comparamos as duas disciplinas, procurando perceber a evolu-ção dos manuais escolares entre os programas de 1995 e de 2002.

Disciplina de geografia

Apoiamos a nossa análise do programa de 1995 da classe première no manual da coleção Nathan. um primeiro capítulo, consagrado à Europa, permite-nos situar a França no seu contexto. tradicionalmente, desde pós-guerra, o programa comportava o encadeamento Mundo-Europa-França. A Europa aparecia aí como uma entidade constituída de Estados, sem qualquer pretensão totalizante.

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Manuais e programas escolares franceses de história e de geografia

No contexto mais recente, o programa de 1995 demarca o fim da lógica do encadeamento mais antigo, propondo o tema em uma perspec-tiva mais dinâmica, revelada pelo plano do capítulo:

- Que é a Europa? - convergências no jogo de xadrez europeu. - das Europas à Europa - A união Europeia: supermercado ou grande potência? - A união Europeia e o mundo [coleção Nathan, classe première, pro-

grama de 1995, p. 10].

A primeira questão é completada da seguinte maneira: “Definir a Europa repõe o problema da identidade europeia e os limites do seu território”. O conceito de identidade figura três vezes na página: uma vez com as expressões “uma identidade cultural em fronteiras flutuan-tes” e duas vezes como “identidade europeia” (coleção Nathan, classe première, programa de 1995, p. 10).

Os autores propõem o seguinte resumo:

A Europa define-se como um espaço de civilização, não por seus limites arbitrários, demasiado artificiais. É um pequeno continente que conta com nu-merosos Estados de criação recente e em plena recomposição atualmente.

Apesar de uma grande diversidade herdada da história, convergências aí aparecem, de ordem demográfica, econômica e de organização geográfica.

Ela é revestida por uma rede de instituições multiestatais em extensão crescente. A união Europeia é a construção mais acentuada que, após ter cons-tituído um grande mercado entre os seus Estados-Membros, tenta prosseguir a integração nos domínios monetários e políticos. Mas o seu alargamento em direção ao resto da Europa enfraquece a sua coerência inicial.

Ela constitui um polo da tríade mundial, cuja influência cultural e política é obstruída pela ausência dos instrumentos de uma grande potência coerente, que ainda não se formou [coleção Nathan, classe première, programa de 1995, p. 13].

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conforme se pode observar, o termo “identidade” não é citado; “espaço de civilização” tem lugar no texto.

No programa de 1995 da classe terminale, a Europa é radicalmente ausente.

Voltemo-nos ao momento mais recente, em direção ao programa de 2002. O programa oficial da classe première enfatiza muito mais a realidade europeia que o seu homólogo de 1995. sobre as cinquenta horas de ensino anual, exceto as 17 horas exclusivamente consagradas à França, a Europa está presente em 33 horas, assim subdivididas: o que é a Europa, a ser desenvolvida em três horas, é a questão introdu-tória que permite interrogar-se sobre “os fundamentos da identidade europeia, sobre a diversidade dos fatores de um povoamento desigual e sobre a dificuldade para fixar limites à Europa”. As outras horas estão divididas entre os seguintes temas: “A Europa dos Estados” (12 horas), “Redes e fluxos na Europa e na França” (dez horas) e “As regiões na França e na Europa” (oito horas) (programa de geografia, classe première, 2002).

Agora analisando os programas referentes à classe terminale, a Europa está ausente dos programas de 1995, e presente no programa de 2002, que é voltado inteiramente para o espaço mundial, como um dos três polos essenciais da economia mundial ao lado dos EuA e do Japão.

Examinemos de mais perto:

A união Europeia, polo superior da economia mundial - um dos polos da tríade - uma potência que repousa sobre sólidos fundamentos - Desafios a assinalar para afirmar-se plenamente

A união Europeia, um espaço multipolar - As metrópoles, coração da potência europeia - um policentrismo, sustentado sobre polos dinâmicos - Um espaço que continua a ser heterogêneo [programa de geografia,

classe terminale, 2002].

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Manuais e programas escolares franceses de história e de geografia

Conforme as orientações do programa de geografia em vigor, a Europa está inteiramente situada no ambiente da mundialização. A sua identidade encontra-se assim reduzida à sua posição econômica na tríade.

Disciplina de história

Ausente dos manuais de geografia ou reduzida à sua única dimensão econômica, a pergunta da identidade europeia ocupa algum lugar no programa e nos manuais de história?8 observa-se uma evolução entre o programa de 1995 e o de 2002. Globalmente, o tema da segunda Guerra Mundial desaparece do programa de 2002, que atribui um capítulo à parte (dez horas) à Europa, ou seja, 20% do tempo atribuído à disciplina.

Analisando a disciplina de história, segundo o programa da classe terminale de 1995, constatamos por meio dos manuais que eles abor-dam o estudo da Europa em um capítulo intitulado “o modelo liberal europeu”, no qual o conteúdo histórico funciona como um elemento de uma aproximação mais ampla aos grandes modelos ideológicos do mundo. No manual da coleção Magnard, a questão da identidade europeia não aparece. os autores analisam as etapas históricas da cons-trução da Europa (tratado de Roma, vontade de conduzir uma política econômica comum, política agrícola, industrial e monetária) como expansão progressiva.

o manual Nathan reduz a identidade europeia a uma análise dos traços comuns dos países europeus: “- primazia do Estado providência, - convergência democrática, - papel econômico do Estado” (coleção Nathan, classe terminale, história, programa de 2002, capítulo “Le modèle libéral européen”). segundo o manual, este modelo europeu entrou em crise por duas razões principais: uma expansão dificilmente controlável desde o desmoronamento do bloco socialista e a inserção

8. o conteúdo dos programas de classe première, tanto em 1995 como em 2002, não permitem levar em consideração nossa questão. A investigação incide somente sobre os programas de classe terminale.

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neoliberal da mundialização no seu processo de construção, conforme se pode ler: “a Europa é acusada de sacrificar o seu modelo social em nome dos constrangimentos da abertura e da mundialização […]” (cole-ção Nathan, classe terminale, história, programa de 2002, capítulo “Le modèle libéral européen”) .

observando agora a disciplina de história, no programa de 2002 da classe terminale, entre o mundo e a França, a Europa ocupa a parte central do programa desta série de ensino, conforme a seguinte distribuição de tempo: - o mundo de 1945 aos nossos dias (22h); - A Europa de 1945 aos nossos dias (10h); - A França de 1945 aos nossos dias (18h). três capítulos lhe são consagrados: - A Europa do oeste em construção até ao fim dos anos de 1980, - Os tempos das democracias populares 1948-1989, - Os desafios europeus desde 1989 (programa de história, classe terminale, 2002).

No conjunto, os diversos manuais são portadores das mesmas mensagens que os seus homólogos inspirados dos programas de 1995. Assinalam o caráter voluntarioso da construção europeia por parte dos pais fundadores, descrevem as diferentes etapas do encaminhamento político seguido desde o primeiro impulso apoiado sobre a preocupação expressa, após a segunda Guerra, de erradicar a guerra do continente europeu. Essa diligência voluntariosa, que não faz verdadeiramente referência à ideia de uma identidade europeia, contrasta singularmente com a proposta em epígrafe do peso das determinantes econômicas dos manuais de geografia.

Os manuais de história põem em evidência o compromisso dos atores políticos em um processo marcado pelo pragmatismo e as dificuldades de todo gênero. Não adotam a interpretação do desenrolar de um plano providencial inscrito no curso da história. o europeísmo da Europa permanece problemático e a referência à identidade europeia, definida através de uma cultura comum, permanece ausente dos manuais. Exceto, em alguns, com a rubrica de dossiê, distinta e à margem do texto da lição. o capítulo intitulado “As apostas europeias a partir de 1989” aborda a questão de forma específica em cada coleção:

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Manuais e programas escolares franceses de história e de geografia

- Que significa ser cidadão europeu? (Coleção Hachette) - o Euro, uma etapa decisiva da construção europeia (coleção Nathan)- Qual futuro para a Europa? (coleção Bordas)9.

Quanto ao manual Magnard, o dossiê intitulado “aprofundar” põe a questão:

Há uma identidade europeia?

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a construção europeia deve-se a elites políticas que prosseguiram a obra dos pais fundadores. A ideia de união Europeia repousa sobre o postulado de que um sentimento de pertença a uma comunidade existente na população europeia, além dos sentimentos nacionais. confrontada com a expansão para o Leste e múltiplas candidaturas à adesão, a União Europeia interroga-se sobre os seus limites. A definição e a tomada de consciência da identidade europeia são, por conseguinte, ainda mais necessárias [coleção Magnard, história, classe terminale, programa de 2002, p. 247].

Se esse manual põe a questão, não propõe mais que os seus homó-logos em termos de resposta. Pode-se, afinal, compreender as razões: enquanto a crença na vida comum étnica, definida por Max Weber como a dimensão subjetivista e interacionista da identidade, é o produto de uma experiência histórica e de sua objetivação, ela não corresponde a nenhuma realidade experimentada para a Europa e constitui, no máximo, uma espécie de perspectiva humanista de contornos indefinidos.

3-2 Qual identidade europeia?

o processo de construção europeia frequentemente é confundido com o da mundialização. Anterior a este último, a construção de uma ideia de Europa teve primeiro por horizonte, como os manuais se comprazem

9. contendo um texto de inès trepant. Pour une Europe citoyenne et solidaire (2002).

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em recordar, a questão da soberania dos Estados e, além deste, sua ca-pacidade de preservar as identidades nacionais e a crença à vida comum étnica. o que se convencionou chamar na França de sobera nia designa essa posição encarnada outrora por de Gaulle e hoje por Philippe de Villiers, compreendendo como perda das identidades nacionais qualquer perspectiva supranacional defendida pelos seus adversários federalistas. Esta alternativa há muito tempo alimenta o debate sobre a Europa e é objeto de um exame atento por parte dos manuais estudados.

o debate prossegue atualmente, mas encontra-se radicalmente mo-dificado pela emergência de outra problemática, a da mundialização, analisada nos capítulos sobre a Europa após 1989. Realçada de uma lógica radicalmente diferente daquela das primeiras décadas, a mun-dialização contribui para tornar mais complexa a situação. Portadora da ideia de uma internacionalização acrescida e generalizada a todos os setores da vida social e econômica, ela representa ameaça importante para a independência nacional e dá assim argumentos suplementares à concepção de soberania. A lógica do mercado mundial dá um golpe à independência política e econômica dos Estados, criando as condições da sua alienação e da sua perda de identidade. Os manuais de geografia de classe terminale assinalam o perigo:

“A mundialização é acompanhada da emergência de novos territórios que excedem o quadro dos Estados ou escapam a suas regras” ou “em um mundo cada vez mais mundializado, os Estados-nação estão em crise. Eles são realmente impotentes face à mundialização?” [coleção Bréal, geografia, classe terminale, 2002, p. 46].

“O desenvolvimento do liberalismo reduziu as intervenções dos Estados nos domínios econômicos e sociais” [coleção Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 43].

“o novo mapa do mundo se estrutura ao redor de alguns Estados fortes” [coleção Magnard, geografia, classe terminale, programa de 2002, p. 42].

os temores expressos através da menção à soberania são levados principalmente pelas forças do capitalismo nacional, posto em dificuldade

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Manuais e programas escolares franceses de história e de geografia

pelas pretensões hegemônicas do capitalismo mundial. A desconfiança expressa hoje, aqui e lá, em relação à construção europeia traduz, por conseguinte, ao mesmo tempo, o debate inicial sobre a questão da sobe-rania, mas igualmente, a reconfiguração da questão em razão da irrupção da mundialização no campo da reflexão. A confrontação entre estas duas lógicas no período recente realça campos ideológicos diferentes: naciona-lismo/federalismo de uma parte, mundialização econômica de outra parte. Exprime provavelmente, e mais profundamente, o antagonismo entre capitalismo internacional e o que subsiste do capitalismo nacional.

3-3 Uma obra atípica

terminaremos esta análise de manuais com a evocação de uma obra que se contrasta singularmente das estudadas até agora, uma espécie de antimanual, “Histoire de l’Europe” (1997), redigido por catorze histo-riadores europeus, por iniciativa de Frédéric delouche. de acordo com o seu editor, trata-se “do protótipo de um manual escolar de história da Europa” (delouche, 1997, p. 7). Espera-se pôr em evidência a ideia de uma unidade na diversidade constitutiva da identidade europeia:

Ela [a história] ajuda-nos a compreender as nossas raízes, as tensões que são engendradas e que assombram ainda certas partes da Europa, mas também tudo que há de comum entre europeus, tudo que dá um sentido à palavra Europa. Voltada para o passado, faz refletir sobre o presente e, mais ainda, sobre o futuro [idem, ibidem].

o capítulo introdutório tem por título “a identidade europeia” e destaca os seguintes temas:

1- A personalidade geográfica da Europa 2 - A diversidade linguística, fator de divisão? 3- civilização europeia? culturas europeias?”“o espírito europeu: o ideal democrático, que se sustenta sobre a convic-

ção que a felicidade coletiva nasce de uma participação ativa do cidadão na

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vida da cidade, é a herança dos Gregos antigos […]. também, a civilização europeia funda-se hoje no que se pode chamar a civilização ocidental.

o honesto homem europeu Variedade das culturas na Europa 4 - A integração do social ao econômico” [idem, p. 14].

o manual acentua o congraçamento dos povos e das ideias, fa-zendo da Europa um cadinho étnico e cultural permanente “desde a metade do século XX, os europeus tentam superar o fator de divisão que implica a diversidade linguística, mesmo se eles a percebem como uma riqueza cultural, que alguns estendem hoje às línguas regionais” (idem, ibidem).

Conclusão

A questão da identidade foi concebida inicialmente em termos for-temente distintos, conforme se tratasse da mundialização ou da Europa. os aspectos destrutivos e ameaçadores da primeira são regularmente percebidos pela opinião pública e descritos nas obras escolares como um risco de perda de identidade, advinda da uniformização cultural e aliena-ção social. os manuais destacam o impacto diferenciador da mundiali-zação, que, ao mesmo tempo, provoca o crescimento das desigualdades e estimula as resistências identitárias. Paradoxalmente, a mundialização teria, paralelamente, efeitos homogeneizadores e diferenciadores. No que diz respeito à Europa, o projeto político de cicatrizar as feridas de um passado de guerras transformou-se nos fios do tempo transcorrido. de início, na forma de contrapesos ao bloco soviético e até o desaba-mento deste, o projeto europeu abriu um debate estruturado ao redor da alternativa do federalismo e da soberania, tendo a identidade europeia de construir-se politicamente no meio dessa alternativa. o risco era então o de uma mutação identitária expressa através da perspectiva de tornar-se europeu, uma perspectiva de contornos fracos e imprecisos, revelando a falta da verdadeira crença na vida comum étnica.

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Manuais e programas escolares franceses de história e de geografia

As mudanças ocorridas ao Leste precipitam as coisas. o modelo neoliberal construído no processo de mundialização faz hoje da Europa um dos polos da tríade e contribui assim para tornar obsoleta, na sua for-mulação tradicional, a oposição entre federalismo e soberania, projetando a questão europeia nas discussões sobre a mundialização e diluindo-se nela. o que autoriza então, talvez, pensar essa oposição tradicional como a expressão ideológica do antagonismo entre capitalismo nacional enve-lhecido e novas formas do capitalismo internacional. os manuais atuais traduzem efetivamente essa ruptura transformando a identidade europeia em uma questão subsidiária. interroga-se o que faz o europeísmo da Europa voltar-se hoje para determinar o lugar deste conjunto econômico dentro da geopolítica do capitalismo neoliberal, alternativa moderna do imperialismo. Portanto, o risco de mutação identitária ligado à procura de uma nova identidade transforma-se, sob o impulso da mundialização, em risco de perda de identidade, o que nos reconduz assim à primeira situação figurada.

Fontes e documentos

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ProgrAmAs oficiais de história e geografia para as classes première e terminale. França: Ministério da Educação Nacional, 2002.

textos e programas oficiais em rede, disponível em: <www.education.gouv.fr>.

Manuais escolares utilizados para a análise de conteúdo

obras das classes première e terminale das seções L (littéraire), Es (économique et sociale) e s (scientifique) em história e geografia conforme os programas de 1995 e 2002: Editions Bertrand-Lacoste, Bréal, Bordas, Hachette, Hatier, Magnard, Nathan de 1995 e 2002 (Paris).

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Endereço para correspondência:claude carpentier

chemin du thil 80025 Amiens cedex, France E-mail: [email protected]

dislane Zerbinatti MoraesAv. da universidade, 308. Bloco A – sala 128

são Paulo-sPcEP 05508-900

E-mail: [email protected]

Recebido em: 15 jan. 2009Aprovado em: 24 set. 2009

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Antonio siMPLício NEto

Ensino de história e cultura escolar:

fontes e questões metodológicas

Antonio simplício Neto*

Resumo: O presente artigo trata de questões metodológicas e relacionadas às fontes quando da realização de pesquisas acerca da cultura escolar, mais especificamente no que se refere à disciplina escolar história. tratamos fundamentalmente de dois tipos de fonte documental: 1) Registros manuscritos internos de escolas da rede estadual de são Paulo (décadas de 1960 e 1970) e 2) Relatórios de estágio dos alunos de prática de ensino de história da FeUsp (1972-79). discutimos as práticas escolares relativas ao ensino de história durante a ditadura militar brasileira.

Palavras-chave: ensino de história; prática escolar; cultura escolar; disciplina escolar; ditadura militar.

* Graduado em história (PUC-SP), doutor em história da educação e historiografia (FeUsp). Professor Adjunto i da universidade Federal de são carlos, departamento de Metodologia de Ensino.

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Ensino de história e cultura escolar

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History teaching and school culture:

autorithy and methodological questions

Antonio simplício Neto

Abstract: the present article examines some methodological questions and the sources used when the matter is school culture research, especially about History as a school discipline. We focus on two types of documental source: 1) Written records of district schools of são Paulo (in the decades of 1960 and 1970) and 2) Apprenticeship reports of Practice of History teaching from students of FeUsp (1972-79). We also discuss the school practices related to the History teaching in the period of the Brazilian military dictatorship.

Keywords: history teaching; school practice; school culture; school subject; military dictatorship.

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1. Ao propor um exercício de análise dos afrescos pintados por Andrea Mantegna (1431-1506) no castelo dos Gonzaga, em Mântua, o historiador da arte Randolph starn discute possíveis leituras dessas obras a partir de diferentes pontos de vista e acaba por concluir que “aquilo que se vê é aquilo que se capta” (starn apud Hunt, 1992, p. 313). Essa conclusão, em nosso entendimento, pode servir como fio condutor para esse artigo, como veremos.

durante a ditadura militar, ao longo de seus sucessivos governos, o ensino de história, e não só ele, recebeu um verdadeiro golpe que limitava as possibilidades de crítica ou questionamento ao poder instituído, e em seu lugar se impôs um ensino dócil, conivente, moralizante, reprodutivo, laudatório. Para tal empresa, o regime dispôs de diversos instrumentos e mecanismos, como a legislação autoritária que estabeleceu uma série de mudanças à educação, a criação de novas disciplinas escolares que descaracterizaram e diluíram o ensino de história, a repressão direta e indireta nas escolas e professores, as perseguições políticas, a censura aos meios de comunicação e o controle dos livros didáticos por meio dos diversos órgãos governamentais.

Vista assim a questão parece bastante óbvia e simples: a escola pública era boa, o ensino de história era bom, os professores eram bons. Veio a ditadura e tudo foi destruído. outros olhares são possíveis, e é o que apresentamos neste artigo discutindo o ensino de história em sua prática em sala de aula, ensejando contribuir para a discussão acerca das fontes e encaminhamentos metodológicos, em um estudo que, apesar de se mostrar simples, não o era. o que existiu foi uma intrincada e complexa rede de acontecimentos e sujeitos, revelando uma nova perspectiva na análise do desenvolvimento dessa disciplina durante o regime militar. “Aquilo que se vê, é aquilo que se capta”.

2. dando tento ao tema, optamos por investigar1 a prática do ensino de história, discutindo a atuação de professores no cotidiano das esco-

1. Este artigo constituiu-se como um desdobramento de minha dissertação de mes-trado: O ensino de história no período militar: práticas e cultura escolar (Almeida Neto, 1996).

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las, relacionada às propostas curriculares oficiais, à burocracia escolar e produção didática nos anos de 1960 e 1970. A opção pela pesquisa sobre práticas na sala de aula decorre da concepção de que as mudan-ças ou permanências no ensino acontecem efetivamente no interior das escolas, às vezes de forma inesperada ou imperceptível às propostas oficiais. Isso não significa que não consideremos importantes os demais momentos do processo educativo para as mudanças educacionais2, mas trata-se de reconhecer que, quando a porta da sala de aula se fecha atrás do professor e alunos, o tão propalado processo de ensino-aprendizagem institucionalizado ocorre, por intermédio dos conteúdos, ideias, valores, em relações pedagógicas complexas com um dinamismo peculiar.

No entanto, entendemos que esse momento tão importante e privile-giado do processo educativo tem sido analisado de forma insuficiente, já que muitos estudos, independentemente de sua qualidade intrínseca, não levam a prática de sala de aula em questão ou minimizam sua im-portância. tal postura decorre, em parte, de se encarar a escola como in-capaz de efetuar algum tipo de produção intelectual própria, como se fosse um mero receptáculo de ideias de uma cultura que lhe é exterior. Para chervel,

A concepção da escola como puro e simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela está na origem da ideia, muito amplamente par-tilhada no mundo das ciências humanas e entre o grande público, segundo a qual ela é, por excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina [1990, p. 182].

Alguns questionamentos instigantes sobre essa posição de desconsi-deração das práticas escolares a coloca sob suspeição: como responder ao descompasso entre os programas oficiais e a realidade escolar? Por que os alunos ao saírem da escola, ao término do curso, não necessa-riamente se enquadram no que era pretendido pelos objetivos oficiais? o papel das escolas limita-se à reprodução dos conteúdos? Por que a

2. Goodson alerta para a ingenuidade da proposição de que “(...) o importante é a prática em sala de aula” (1995, p. 21).

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escola ensina determinados conteúdos? Por que esses conteúdos são eventualmente modificados? Quem determina os objetivos do ensino? como os professores tomam conhecimento desses objetivos? Nenhuma dessas variáveis da vida escolar poderá ser respondida se nos restringir-mos a estudar as medidas oficiais, como se fossem total e plenamente aplicadas nas escolas e estas fossem espelhos fiéis daquelas. Sobre esse aspecto, Forquin afirma que:

[...] existe uma diferença entre aquilo que é pretendido e aquilo que é ensi-nado realmente. Pode-se, além disso, acrescentar que aquilo que é realmente aprendido, retido e compreendido pelos alunos não corresponde tampouco àquilo que os docentes ensinam ou creem ensinar [1992, p. 32].

Não se trata de desconsiderar o chamado currículo oficial ou “cur-rículo escrito”, como se fosse obra absolutamente exterior ao ambiente escolar. Se o fizéssemos, incidiríamos no erro de conceber a escola como mera transmissora de saberes que lhe são exteriores. Goodson aponta a importância desse “currículo pré-ativo”, argumentando que ele é uma decorrência de conflitos e discussões anteriores, o ponto culminante de um processo intenso. Lança-se, dessa forma, um novo olhar sobre as chamadas propostas oficiais, apontando para a construção de sua his-toricidade, caso contrário “estaríamos aceitando como ‘tradicionais’ e ‘predeterminadas’ versões de currículo que, analisadas mais detidamente, podem considerar-se como a culminação de um conflito largo e contínuo”3 (1991, p. 13). Pensar as propostas curriculares escritas sem desprezar seu processo de construção e historicidade significa estudar os conflitos de formação em seus diferentes interesses e variáveis – professores, direção, alunos, Estado, interesses corporativos. O próprio Goodson afirma que:

[...] se os teóricos do currículo, os historiadores e os sociólogos da educação ignoram substancialmente a história e a construção social do currículo, re-sulta mais facilmente a mistificação e a reprodução da forma e conteúdo do currículo “tradicional” [idem, p. 16].

3. Tradução livre, bem como as demais citações de original em espanhol.

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Em nosso entendimento, a recuperação dessa historicidade não pode limitar-se a análise do currículo formal ou oficial, necessitando, também, da averiguação e estudo das práticas escolares, a cultura escolar, constituída, segundo Viñao Frago, por um...

[...] conjunto de teorias, ideias, princípios, normas, pautas, rituais, inércias, hábitos e práticas (formas de fazer e pensar, mentalidades e comportamen-tos) sedimentados ao longo do tempo em forma de tradições, regularidades e regras de jogo não interditas e compartilhadas por seus atores, no seio das instituições educativas [2006, p. 73].

... que, no entanto, como aponta enfaticamente o próprio autor, tem con-tado com a “[...] cegueira dos historiadores frente a realidade cotidiana das instituições docentes e práticas educativas na aula” (idem, p. 86)

criticando a postura de desconsideração destas práticas, Nóvoa, afirma que:

[...] chegou o tempo de olhar com mais atenção para a internalidade do tra-balho escolar, nomeadamente nos momentos de conflito e ruptura. O funcio-namento interno das escolas, o desenvolvimento do currículo, a construção do conhecimento escolar, a organização do quotidiano escolar, as vidas e as experiências dos alunos e professores, eis instrumentos teóricos e metodoló-gicos [mimeografado, p. 5]

A discussão das questões anteriormente assinaladas necessita, por-tanto, considerarmos a existência de uma cultura escolar, o que implica pensar a escola não como corpo passivo e vazio à espera das ações e determinações exteriores, mas como produtora de uma cultura que in-terage e conflita com as culturas externas. O próprio Nóvoa é bastante esclarecedor sobre essa perspectiva de cultura escolar:

Historicamente, a escola foi vista como um “lugar de cultura”: primeiro numa acepção idealizada de aquisição dos conhecimentos e das normas “universais”, mais tarde numa perspectiva crítica de inculcação ideológica

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e de reprodução social. Num e noutro caso ignorou-se o trabalho interno de produção de uma cultura escolar4, em relação com o conjunto das culturas em conflito numa dada sociedade, mas com especificidades próprias que não podem ser olhadas apenas pelo prisma das sobredeterminações do mundo exte-rior. [...] Esta linha de trabalho pode conduzir a uma reformulação do conceito de cultura escolar e a uma análise das questões educativas a partir não só das determinações externas, mas também das conflitualidades internas, abrindo novas vias para compreender que as intenções, as realidades e os resultados não formam um todo historicamente coerente [idem, p. 15-16].

Nessa perspectiva, procuramos aprofundar o entendimento sobre o ensino de história durante o regime militar no Brasil, a partir de uma visão que privilegiasse as práticas escolares, dirimindo visões que apre-sentam escolas indefesas ou heroicos professores reagindo bravamente às mudanças implementadas pelo Estado militarizado e avassalador da criatividade. Essas posições acabam por falsear a realidade, pois con-sideramos que, se por um lado a criatividade e a criticidade não foram aniquiladas, de outro alguns professores não só aceitaram as mudanças como foram entusiastas do regime autoritário que se instalava. Partimos, assim, do pressuposto que as análises que se limitam a problemáticas externas à sala de aula tendem a empobrecer o conhecimento histórico sobre o papel da escola desconsiderando conflitos inerentes às práticas da disciplina escolar.

3. A cultura escolar, segundo Viñao Frago, ainda aparece como uma “caixa-preta cujo conhecimento apresenta sérios problemas teóricos, metodológicos e de fontes” (2006, p. 86), embora constate aumento do número de estudos. É sobre esses dois últimos aspectos que nos detere-mos neste artigo, pois, se as possibilidades de pesquisa5 são várias, as limitações são equivalentes, dadas a pouca documentação disponível nas

4. Grifo do original.5. Entre os elementos mais visíveis da cultura escolar a serem pesquisados, aponta-

dos por Viñao Frago, estão: os atores, representações mentais, discursos, aspectos organizativos-institucionais e cultura material (2006, p. 59-60).

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instituições escolares e as dificuldades para localizá-la. Como lembra Vidal, chamando a atenção para a escassez de fontes e o descuido com a memória documental das escolas, a preservação de fontes como exer-cícios, cadernos, provas, diários e cartazes ampliaria as possibilidades de investigação (2005, p. 64).

Quando da realização de nossa pesquisa acerca do ensino de história, deparamo-nos com esse fato, pois é praxe nas escolas da rede pública e privada de ensino, salvo raras exceções, o descarte de qualquer docu-mentação considerada velha. Numa das escolas da rede estadual de são Paulo que pesquisamos, a documentação antiga é arquivada numa sala que recebe o sugestivo nome de “poço” e, segundo informações da se-cretaria dessa unidade escolar, as escolas são obrigadas a guardar apenas documentos de até cinco anos precedentes, com exceção dos referentes à vida escolar do aluno e funcional dos professores.

Apesar da precariedade dos arquivos escolares, localizamos e utilizamos, quando de nossa pesquisa, registros manuscritos internos de escolas: livro de atas de reuniões pedagógicas, livros de registros de comemorações cívicas, livro de termos de visitas (supervisão), livros de ponto, livros de ocorrências de alunos, livro de comunicados e diários de classe, documentos que forneceram importantes dados acerca da temática proposta coadunando-se a outro material que se apresentou como especialmente rico em informações e inusitado pelo seu ineditismo como fonte documental. Refiro-me aos relatórios de estágios6 dos alunos de prática de ensino de história da Faculdade de Educação da universidade de são Paulo (FeUsp) supervisionados pela professora Elza Nadai, do período de 1972, quando passou a lecionar nessa faculdade, até 1979.

4. No escopo desse artigo, consideramos importante tecer algumas considerações acerca das limitações e soluções metodológicas envolvidas na utilização das referidas fontes – registros escolares manuscritos e os

6. Para a referida pesquisa, também utilizamos relatos orais de professores de história que atuaram no período militar, livros didáticos de história e educação moral e cívica, bem como documentação legal ou oficial, que não serão discutidos no âmbito desse artigo.

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relatórios de estágio de prática de ensino de história – dado o fato de serem pouco ou nada utilizadas devido à sua escassez e por carregarem a marca do “meramente burocrático”, supostamente pouco contribuindo para ampliar o conhecimento da cultura escolar.

com relação aos registros escolares manuscritos, a maior limitação foi decorrente da, já mencionada, não preservação desses documentos ou de sua existência de forma esparsa, devido, principalmente, à in-cineração periódica de documentos, prática rotineira nas escolas. Em geral, os que são localizados estão em péssimo estado de conservação. dessa forma, trata-se de documentação não serial, apresentando-se com diversas lacunas.

Essa documentação foi pesquisada nas escolas públicas estaduais Professor João solimeo e Professor Jácomo stávale, localizadas nos bairros Brasilândia e Freguesia do Ó, respectivamente. A escola Pro-fessor João solimeo foi inaugurada há aproximadamente quarenta anos e sempre atendeu a uma população formada basicamente por filhos de trabalhadores do próprio bairro, da região periférica da cidade. A escola Professor Jácomo stávale, cinquenta anos de existência, aten-dia principalmente a uma população de classe média, média baixa, do bairro e arredores, sendo considerada durante muitos anos uma escola modelo da região, contando com boa infraestrutura, como quadras, estádio, laboratórios de física e química, sala ambiente para artes e biblioteca. Essas escolas foram selecionadas por serem referências de “boa escola” em seus respectivos bairros até os dias de hoje e por nela terem lecionado dois dos professores entrevistados, além de também serem citadas em alguns relatórios de estágio. deve ser lembrado, ainda, que nessas escolas foi franqueado, pela direção, o livre acesso a toda documentação existente, facilitando a pesquisa e, de certa forma, definindo a escolha.

Nessas escolas foram localizados e analisados os seguintes docu-mentos7:

7. os referidos documentos encontram-se arquivados nas respectivas escolas.

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EEPSG “Professor João Solimeo”a. Livro de atas de datas cívicas (1963/1964)b. Livro de termos de visitas de supervisores (1972 a 1975)c. Livros de atas de reuniões pedagógicas (1963 a 1968 e 1970 a 1973)

EEPSG “Professor Jácomo Stávale” a. Livro de atas de reunião de área (1969)b. Livro de atas de reuniões do centro cívico (1971)c. Livro de escala de hasteamento e arreamento da bandeira nacional

(1971 à 1976)d. Pasta (sem denominação específica) contendo relatórios de atuação

da direção (1970)e. Pasta de ofícios emitidos pela escola (1964 a 1975)f. Livro de ocorrências disciplinares (1972)g. Livro de atas de reuniões de professores (1958 a 1959, 1972 e 1976

a 1978)h. Livro de termos de visitas da inspetoria de Ensino (1974 à 1977)i. Livro de atas de reuniões pedagógicas (1974)j. Livro de reuniões administrativas (1979)

Além da descontinuidade da documentação, é preciso considerar que são registros de caráter burocrático, sendo assim tratados pela equi-pe escolar, dada sua função essencialmente administrativa dentro da estrutura do ensino. temos, então, que um livro de atas de uma reunião pedagógica muito raramente traz as discussões travadas entre os profes-sores e a direção, limitando-se a registrar apenas o relato final sugerindo um aparente consenso; ou ainda, um diário de classe que foi preenchido para cumprir uma formalidade, muitas vezes não corresponde ao que de fato foi trabalhado em sala de aula. devemos considerar assim que a “voz” predominante nas atas e livros de registros é a da direção do estabelecimento, e, em alguns casos devido às circunstâncias, aparece em perfeita sintonia com a hierarquia da estrutura institucional e com o poder estabelecido.

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A “voz” dos professores, na maioria das vezes, aparece como sub-missa e concordante com aquilo que a direção ordena. dessa forma, o que observamos são grandes silêncios, indeterminação dos sujeitos dos discursos ou “vozes” em aparente unanimidade, como nos exemplos: “Por sugestão de alguns professores ficou decidido...”, “Na opinião da maioria dos professores...”, “Por sugestão unânime dos presentes...”, “Foi feita menção...”. Assim, esse tipo de documentação que supostamente poderia conter informações mais precisas sobre o cotidiano das escolas, acaba por representar quase que exclusivamente os setores de maior poder na hierarquia escolar. No entanto, uma leitura mais acurada deixa entrever algumas contradições, quer em relação ao corpo docente, quer em relação à estrutura hierárquica.

No dia 6 de abril de 1964, por exemplo, no colégio Estadual de Vila Brasilândia, mais tarde EEPsG Prof. João solimeo, o diretor do esta-belecimento, à época o próprio professor solimeo, sugeriu em reunião pedagógica que se lavrasse em ata um...

[...] voto de louvor ao Exmo. senhor Governador Ademar Pereira de Barros, pela sua atuação no movimento revolucionário, que teve lugar em nossa terra... quando, graças à clarividência de autênticos brasileiros e a justa revolta do nosso ordeiro e sofrido povo, culminou com a vitória de todos aqueles que jamais querem ver varrida da nossa própria casa a “Liberdade”. Liberdade de educar, criar a própria família e pensar8, e não ter que ser transformado num simples e vil instrumento mecânico nas mãos de uns poucos manipuladores múmias humanas [Ata R.Pe9., Prof.J.solimeo, 6/4/1964].

também no colégio Estadual e Normal Escola Professor Jácomo Stávale em 1969, a diretora solicitou “[...] a obstrução de opiniões pes-soais sobre política, religião, ou raça”, alertando que “o J.s. sempre foi

8. os referidos documentos encontram-se arquivados nas respectivas escolas.9. Adotei como critério de referência aos documentos das escolas, a abreviatura: “Ata

R.Pe.” para ata de reunião pedagógica, “Ata R.Ar.” para ata de reunião de área, “Pasta Of.” para pasta de ofícios, “Livro R.Adm.” para ata de reuniões administrativas etc.

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foco de atenção da inspetoria” (Ata R.Ar., Prof.J.stávale, 12/3/1969). No mesmo colégio, em 1970, a então diretora do curso Primário Anexo, Maria Aparecida Rossi, respondendo ao comunicado 1/70 (D.O. 31/2/1970) afirmou que “[...] não existe servidores, sob a minha subordinação, que tenham sofrido suspensão dos direitos políticos ou cassação de mandato eletivo Federal, Estadual ou Municipal” (Pasta of., Prof.J.stávale, ofício 2/70 de 3/2/1970) Já em 1975, o então dire-tor desse colégio, que comparecera em reunião no 5º departamento de Ensino secundário e Normal (desn) com outros diretores e o delegado de ensino, relatou que este último determinou o cumprimento de várias normas a serem seguidas, entre elas a de...

3) dissolverem-se grupos que dentro da unidade Escolar não comunguem com as mesmas ideias; 4) A não permissão de abaixo-assinados, sejam de que espécie forem, sendo que a hierarquia deverá se rigorosamente respeitada [Ata R.Pe., Prof.J.stávale, 15/8/1975].

Ainda na escola Prof. João solimeo, em 1972, “[...] a supervisora lembra a cobrança da direção junto aos professores dos documentos: Atestado ideológico (departamento de ordem Política e social – dops), Folha de Antecedentes criminais e Folha corrida (Justiça)” (Livro T.V.Sup., Prof.J.Solimeo, 17/4/1972). Ao lado das expressões dops e Justiça, alguém, provavelmente da direção por ter acesso ao livro, grafou a lápis, como que para não se esquecer ou para se certificar dos locais onde providenciar a documentação exigida por ordem superior e lembrada pela supervisora.

o estabelecimento dessas normas e a exigência de seu cumprimen-to pelos diretores indicam como se estruturava o poder para regular os diversos procedimentos da vida escolar, particularmente no que se refere às manifestações de opinião sobre a vida política do país, com o objetivo evidente de cercear qualquer tipo de postura e possíveis ações contrárias ao regime.

Nosso trabalho consistiu em identificar os sujeitos (indivíduo ou grupo) das diversas “vozes” presentes nos documentos, suas manifes-

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tações, silêncios e, na medida do possível, em que circunstâncias foram produzidos e por que foram assim registrados. tal postura nos revelou, por exemplo, que a unanimidade era apenas aparente, sendo possível observar situações de discordância e conflito, como quando das co-memorações da Semana da Pátria de 1971, em que o então diretor do colégio Professor Jácomo stávale, professor José Mário Pires Azanha, lembrou que as festividades “[...] não poderão fugir ao esquema proposto pela legislação em vigor [...]” e que o centro cívico Escolar foi “[...] criado por uma imposição legal”. Tais colocações deixam entrever não uma vontade do diretor, mas uma certa impossibilidade de se discordar da imposição legal vigente sem, contudo, deixar subentendido que está obedecendo a uma determinação exterior à escola.

Percebemos ainda, que os silêncios nem sempre se apresentaram como fruto de uma imposição da hierarquia ou do regime ditatorial, mas como uma postura voluntária, seja por concordância com as determinações das estruturas vigentes, seja por comodismo ou aparente alienação. Tal situação é identificável, por exemplo, na irônica situação que precedeu a comemoração, em 1964, da proclamação da República no colégio Professor João solimeo. o 15 de novembro cairia num domingo, e o professor de educação artística “apoiado pelos demais colegas”, solicitou à direção que transferisse a comemoração, alegando que “[...] quanto ao patriotismo, era muito relativo, porque há muitas formas, talvez mais sinceras e eficientes, para demonstrar o verdadeiro sentimento cívico e patriótico”, com o que aquiesceu o diretor, desde que não houvesse uma obrigatoriedade legal de realização da cerimônia na data correta. Dessa forma, procuramos identificar os diversos conflitos e divergências internos às escolas, presentes nessa documentação ainda que registrados de forma furtiva, para o necessário cotejamento com as demais fontes de pesquisa.

No que se refere às questões pedagógicas, propriamente ditas, e ao ensino de história, mais especificamente, essas fontes também são bas-tante reveladoras das questões relativas à organização curricular, tendo em vista os índices de reprovação. Na escola Professor João solimeo, localizada em um bairro periférico, como já foi dito, cuja população

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era formada em sua maioria por trabalhadores, foi decidido quanto à avaliação que “[...] devido ao meio, deve-se fazer o maior possível de variáveis... não comparando com o aluno padrão”. tal medida não repre-sentaria, no entender da direção, um problema para a “[...] formação do aluno, que de acordo com o nível do bairro, não será a intelectualização, mas sim dirigida para o trabalho” (Ata R.Pe., Prof.J.solimeo, 2/3/1970). Percebe-se que o professores eram chamados a colaborar com uma po-lítica educacional que visava escolarizar os alunos trabalhadores sem, contudo, capacitá-lo para outras formas de atuação, fossem elas sociais, culturais ou políticas. Em plena consonância com o regime, o diretor dessa escola sintetizou em uma reunião pedagógica o pensamento educacional em voga no momento:

A política do governo federal é o ensino prático. dar-se-á a prática e depois a análise do resultado. transformar o Brasil em um país de técnicos [...]. como nosso bairro é essencialmente proletário devemos adotar o ensino prático [Ata R.Pe., Prof.J.solimeo, 10/8/1970].

com relação ao ensino de história, raras são as referências. Nas atas consultadas, entre 1966 e 1978, aparecem apenas três referências. Numa delas sugere-se a criação de um painel com um mapa-múndi para salientar os fatos que acontecem no mundo (Ata R.Pr., Prof.J.stávale, 20/3/1966). Noutra, o professor de história sugere que a disciplina deveria “[...] contribuir para a formação do adolescente, através de atitudes de comportamento – Ensinar a estudar – despertar gosto pelo estudo, leitura e pesquisa” (Ata R.Ar., Prof.J.stávale, 23/8/1971). Apenas em 1978, aparece alguma reflexão sobre o assunto:

[...] após troca de ideias, os professores consideraram que dificilmente se poderia desenvolver um curso razoável, a nível de conteúdo e aprendiza-gem, propondo-se como programa toda a História Geral. [...] os objetivos do curso de História não deverão ter caráter essencialmente “quantitativo”, em termos de conteúdo, procurou-se, assim, selecionar conteúdos significa-tivos que permitissem uma compreensão do “processo” histórico [Ata R.Pr., Prof.J.stávale, 23/2/1978].

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Quase um ano depois, em 1979, numa reunião da área de huma-nas10 – história, geografia, estudos sociais, EMC e OSPB – do mesmo colégio, o ensino de história aparece com maior destaque. É como se os participantes houvessem descoberto alguma importância inaudita nessa disciplina:

inicialmente os professores se colocaram quanto ao conteúdo com que trabalham e as dificuldades que encontram. Trocaram ideias sobre a natureza de suas disciplinas, ...o material utilizado, a reação dos alunos. [...] Por este caminho [a utilização de textos] mostrar à classe e tornar o assunto mais inte-ressante. [...] diante de um impasse é preciso parar e mudar. os assuntos que [dois professores] escolheram, cortou a sequência da História [a dos programas e livros didáticos], para atender ao interesse dos alunos – o que importa é que o aluno aprenda. Lembrou então que o aluno cansado, que já trabalhou o dia inteiro, não tem condições de se interessar por um assunto desligado e longe de suas percepções. [...] Sempre relacionando os assuntos com os problemas do Brasil atual. [...] o importante não é bem o conteúdo que se trabalha, mas as relações que se estabelece, a fundamentação das ideias, a troca de ideias entre os alunos. [...] É preciso não levar o assunto pronto aos alunos [Livro R.Ad., Prof.J.stávale, 18/9/1979].

chama a atenção a preocupação com a disciplina história, evi-denciando certo descontentamento com o trabalho que vinha sendo desenvolvido e ao mesmo tempo uma disposição dos professores, ou ao menos de parte deles, de implementar mudanças. Passaram a se discutir o tipo de conteúdo dado, a importância da qualidade em detrimento da quantidade, as dificuldades do processo de ensino, a preocupação com o aluno como participante desse processo, a distância entre os conteúdos e a realidade, em especial dos alunos trabalhadores, que geralmente frequentavam o período noturno e apresentavam maiores dificuldades, para as quais o professor não tinha formação específica. Propunha-se, então, um ensino voltado para esta realidade, mais próximo do aluno,

10. denominação dada pela própria escola.

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que pudesse ser mais interessante, através do qual se estabelecesse uma relação entre passado e presente.

É verdade que propostas não necessariamente significariam mu-danças efetivas na prática. Muitas propostas não foram levadas a cabo e muitas vezes ficaram no território da retórica, como verificamos no cru-zamento com outras fontes. Não era incomum criticar o ensino distante do aluno e na prática continuar trabalhando com os mesmos conteúdos e da mesma forma. outras vezes trabalhava-se com os mesmos conteúdos travestidos em técnicas e métodos inovadores. de qualquer forma, deve ser destacado o momento, final da década de 1970, em que o ensino de história passou a ser objeto de reflexão dos próprios professores, como um despertar dos professores sobre o caráter e o significado dessa dis-ciplina.

5. Junto a Faculdade de Educação da usP foram pesquisados, aproximadamente, quarenta avaliações do curso (1977) e quatrocentos relatórios de estágio (entre 1972 e 1979)11 de prática de ensino de história sob a responsabilidade da professora Elza Nadai, realizados em escolas públicas (estaduais e municipais) e particulares. desse montante foram efetivamente utilizados quarenta relatórios e dez avaliações de curso referentes a 38 escolas públicas estaduais da região metropolitana de são Paulo12, de cursos de 1º e 2º graus (atuais ensino fundamental e médio),

11. os relatórios de estágio dos alunos da profª. Elza Nadai, de 1972 até 1994 (quando veio a falecer), encontram-se no Laboratório de ciências Humanas da FeUsp, onde foram arquivados após leitura, seleção e organização realizada para minha disser-tação de mestrado.

12. Para a pesquisa foram utilizados documentos e informações constantes nos relató-rios dos estagiários sobre as seguintes escolas da grande são Paulo: cE taboão da serra, cE de Quitaúna, cE Prof. Francisco da costa Guedes, cE domingos Faustino sarmiento, cE Mlle. Perillier, cE e Normal Antonio Raposo tavares, cE José Maria Reis, cE Prof. Antônio Alves cruz, cE Prof. Gabriel ortiz, cE Pe. Manuel de Paiva, CE do Tucuruvi, Colégio Pedro II, GE Jardim Bonfiglioli, GE de Vila Marieta, GE izar Leiner, Grupo Escolar e GE dr. Edmundo de carvalho, instituto de Educação Estadual Virgília Rodrigues de c. Pinto, GEsc Quintino Bocaiúva, instituto Estadual de Educação Prof. Alberto Levy, iiE Antônio Firmino de Proença, unidade integrada de 1º Grau Alberto Kenworthy, EEPsG José oscar de Abreu sampaio, EEPsG senador Felinto Miller, EEPG Napoleão de carvalho

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séries e turnos diferentes, já que muitos alunos do curso de licenciatura faziam estágio com mais de um professor ou em diferentes séries.

Essa documentação caracteriza-se por apresentar relatórios com grande semelhança, constando dados muito parecidos tratados de manei-ra muito formal, provavelmente em decorrência de apresentarem certa padronização de registro exigida pela professora do curso. Além disso, alguns alunos acabavam fazendo registros pouco consistentes ou rigo-rosos, provavelmente pela pouca experiência de alguns, obrigatoriedade de se seguir certo padrão ou, simplesmente, falta de empenho daqueles que viam os estágios apenas como exigência burocrática do curso em vez de uma oportunidade objetiva de observação, crítica e aprendizado. tal circunstância demandou um trabalho de verdadeira garimpagem daquilo que de fato fosse relevante para a pesquisa.

devemos considerar, ainda, que, embora sejam um tanto quanto for-mais em sua apresentação e tipo de registro e até certo ponto padronizados em seu formato – o que poderia limitar a fidedignidade das observações em sala de aula –, estes relatos trazem contribuições significativas sobre a prática dos professores pelos depoimentos que eles registram sobre os vários aspectos da vida escolar: alunos, direção, livro didático, processo educativo, dinâmicas de funcionamento, rotina, procedimentos. também há depoimentos de alunos e da direção, inclusive sobre a estrutura hie-rárquica a que estavam todos submetidos na escola. Aparecem implícitas as posições do Estado, da professora de prática de ensino da FeUsp e a do próprio aluno estagiário, que variava entre uma atitude mais complacente com aquilo que observava e outra bastante crítica.

Nesses relatórios também estão presentes as observações dos di-versos grupos colhidas ao longo do estágio. Alguns dados surgem de maneira informal, como o de um bate-papo com alunos da escola onde

Freire, EEPsG Luís Elias Attiê, EEPsG Plínio Barreto, EEPG Marechal Floriano, EEPG Lasar segall, EEPG Brasílio Machado, EEPG Almirante Barroso, EEPsG Major Ercy, EEPG Erasmo Braga, EEsG Ministro costa Manso, EEPsG cel. Bonifácio de carvalho, EEPsG Maria José, EEPsG Afrânio Peixoto, EEPsG Prof. Jácomo stávale e EEPsG Prof. João solimeo.

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foi realizado o estágio, outros de maneira mais formal, através de uma entrevista com perguntas definidas, geralmente as que eram feitas com alguns diretores. Também verificamos registros que, embora relatados na primeira pessoa, apresentam o pensamento do diretor ou do professor. Às vezes as observações se misturam ou aparecem como um discurso claramente inventado, criado por aquele aluno que sequer fez estágio e, como forma de cumprir uma formalidade, redigiu uma suposta obser-vação, esvaziando-se de sentido para nossa pesquisa. No entanto, esse vazio é muitas vezes superado pela riqueza de detalhes que alguns alunos imprimem em seus relatórios, chegando a anexar modelos de avaliação e exercícios, planejamentos, entrevistas.

Os estagiários são observadores que estabelecem relações ambíguas com os professores. Há, por exemplo, mudanças nas atitudes dos profes-sores quando da presença do estagiário na classe. Entretanto o estagiário parece ter mais proximidade com os alunos, que o consideram, muitas vezes, como um cúmplice, pois sabem que ele acaba sendo um avaliador do professor. tais características imprimem aos relatórios uma qualidade especial como documento de pesquisa. diferentemente das demais fontes utilizadas, essa apresenta uma informalidade advinda de um olhar mais despretensioso do observador, contando com relativa neutralidade em relação ao objeto observado e, até mesmo, certa objetividade pelo cum-primento de uma tarefa obrigatória para o curso de licenciatura.

com relação ao momento político do país, é notória a ausência de informações. Apenas dois alunos estagiários, entre 1972 e 1979, fizeram, de forma muito velada, alguma referência. Um dos alunos afirmou que determinado professor com quem estagiou lecionava de forma ruim talvez para não arrumar complicação, por não ser “conveniente, pelo perigo” da abordagem de conceitos ou situações “comprometedoras” (Relatório P.E.H.13, 1977). Outro, que não se identificou, numa avaliação de curso em 1977 opinou:

13. Adotei como critério de referência aos relatórios de estágio, a abreviatura relatório ou avaliação “P.E.H.”, referindo-me à disciplina prática de ensino de história.

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o ensino brasileiro está imbuído de um grande autoritarismo. Autorita-rismo talvez reflexo da situação em que se vive. Sentimos este autoritarismo em todos os cantos. [...] Na maioria das vezes existe uma reprodução disto em sala de aula. Este autoritarismo paternalista retira do indivíduo a sua capacidade de ir criando a sua própria responsabilidade. [...] o meu espanto foi grande quando percebi que também aqui [FeUsp] o ranço do autoritarismo estava presente [Avaliação P.E.H., 1977].

os relatórios eram padronizados, havia uma “guia para observação” do estágio que vinha acompanhada (em 1972 e 1973) de uma entrevista a ser feita com o diretor do estabelecimento sobre a lei 5.692/71. Nas palavras de uma estagiária, o diretor da escola taboão da serra “[...] foi bastante evasivo, apontando o fato de que sua implementação não seria imediata, dadas faltas de condições materiais e humanas nas escolas, a emergência do fato e a falta de regulamentação complementar” (Rela-tório P.E.H., 1972). Já para o diretor da escola Professor Francisco da costa Guedes, com a nova LdB, “[...] a área de ciências humanas está iniciando uma pesquisa por intermédio de uma ficha socioeconômico-social, para fazer o levantamento da clientela” (Relatório P.E.H., 1972). Podemos perceber que pouco ou nada de substancial era pronunciado sobre as mudanças em curso na política e na educação.

os estagiários, no entanto, demonstrando especial sensibilidade, captavam o clima de autoritarismo existente nas escolas e internaliza-do por funcionários, particularmente os da direção. sobre a escola Pe. Manoel de Paiva foi relatado:

O ambiente é tenso, a fiscalização excessiva, os alunos tratados rispi-damente pelos funcionários, do servente à diretora. Por qualquer motivo impede-se alguém de assistir aula e até mesmo de entrar na escola. [...] Por outro lado, uma certa desorganização possibilitava atitudes isoladas como a da servente que se negava obstinadamente a abrir a sala de aula para a 8ª série [Relatório P.E.H., 1976].

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Nota ainda que este autoritarismo acabava por interferir nas ati-vidades pedagógicas, já que naquela escola “[...] não se faz debate em semicírculo e é proibido tirar as carteiras do lugar”. E mesmo numa escola definida pelo estagiário como amistosa, prestativa e disponível, como a Plínio Barreto, os funcionários “[...] mostraram-se reticentes no tocante a especificações técnicas e a detalhes sobre a obra educativa que empreendem. Parecem um tanto evasivos em exibir planos de trabalho e material escrito” (Relatório P.E.H., 1976).

No tocante ao ensino de história, propriamente dito, os relató rios tra-zem uma riqueza maior de informações, ampliando a visão sobre a cultura escolar. Em relatório de estágio feito na escola senador Felinto Müller, uma aluna estagiária observou o problema da formação do professor14 como elemento relevante, embora não determinante, para as questões das práticas de ensino. No seu entender este...

[...] particular, por si só, não seria suficiente para explicar as suas carências didáticas, a inexistência de qualquer planejamento, a indefinição quanto aos objetivos a alcançar, a não utilização de nenhum dos poucos recursos didá-ticos existentes na escola, enfim a sua completa desatualização e despreparo e, pode-se dizer, até mesmo o seu completo desconhecimento e desinteresse da área e afins [Relatório P.E.H., 1975].

também nos relatórios observam-se registros referentes às práticas docentes, conteúdos e métodos adotados. Na escola Maria José, o es-tagiário registrou: “Embora a professora faça constar ‘estudo dirigido’ em seu planejamento, ao ser inquirida sobre essa metodologia, afirmou: ‘Nem sei o que é’” (Relatório P.E.H., 1977).

os relatórios de estágio explicitam alguns momentos de crise. uma estagiária da escola Professor Jácomo stávale, em 1979, relata:

14. com a ausência de concurso público para efetivação docente durante 1971-78, a ampliação da rede fez-se utilizando docentes em situação de contratos precários, os Acts (admitido em caráter temporário). Além disso, muitos professores não possuíam habilitação específica em história.

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Em conversa com o professor (de história) pude observar toda uma desi-lusão a respeito do ensino. Leciona desde a década de 40, acredita firmemente que ser professor é virtude inata, não se aprende através de técnicas. disse-me que já utilizou vários métodos para lecionar e atualmente utiliza aquele que a classe merece, isto é, aulas expositivas, pois não têm [os alunos] nível para outra coisa [Relatório P.E.H., 1979].

A professora de história da EEPsG Major Arcy mostrava-se indig-nada em 1977, após 25 anos de magistério, quando disse para a aluna estagiária, que...

[...] tinha 6 alunos sem qualquer possibilidade de passar em história e foram por ela reprovados; foi feito, então, um conselho de classe e constatou-se que os mesmos eram bons em português e matemática e chegou-se a conclu-são que não deveriam ser reprovados por causa da matéria história. diante disso, a professora tomou a decisão de ter como princípio o seguinte: todo aluno tem conceito c como avaliação mínima, ou seja, todos os alunos no começo do ano já passaram, a não ser que ocorram exceções como um aluno que nunca assista às aulas, não faça as provas, não tenha livro, nem caderno [Relatório P.E.H., 1977].

Alguns professores de história não aceitavam a ideia de outro pro-fessor cursar três anos de faculdade e entrar na seara alheia, como era o caso dos professores de estudos sociais que podiam lecionar história e geografia após cursar licenciatura curta. A professora de história, for-mada pela Puc de campinas, da Escola Luís Elias Attiê, é um exemplo deste pensamento. segundo a estagiária da FeUsp, que frequentou suas aulas, ela estava...

[...] pondo em dúvida a finalidade do ensino de história, ou a ampliação de conhecimento da história. um dos principais motivos apresentados a esse pessimismo se coloca no nível do curso de estudos sociais e da fácil penetração destes elementos que concluíram o curso, na área de trabalho de historiador e do geógrafo. [...] A professora acredita que o professor de história será visto

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num futuro bem próximo como uma figura literária que se expressa naquilo que o mundo julga ter todo o saber e que só isto basta para que na sociedade se reconheça seu valor [Relatório P.E.H., 1975].

Essa desilusão em relação ao ensino de história acabava por atin-gir até os estagiários, como se constata em uma avaliação do curso de prática de ensino de história, em 1977, na qual uma aluna registrou que o “[...] estágio que deveria complementar a formação teórica foi drás-tico, devido à realidade existente de maneira geral nas escolas de 1º e 2º graus: péssimos professores, material didático muito pobre e outros problemas...” (Avaliação, P.E.H., 1977). o estupor aumenta diante das agudas observações feitas pelos professores. Afirma a estagiária que na escola Felinto Müller, em 1975:

O professor não me permitiu verificar o seu plano de aula, já que ele não o faz. Como me afirmou, o tempo que ele leciona, já o permite dar aulas sem nenhuma preparação, porque ele domina a matéria, ou seja, o conteúdo e as estratégias utilizadas são sempre as mesmas. E mesmo porque, o número de aulas que dá, o deixa sem condições de estudar ou fazer qualquer planeja-mento. outro problema é o nível social e intelectual [dos alunos] que é muito baixo, e que de certa forma não exige muito dele como professor [Relatório R.P.H., 1975].

Alguns estagiários procuraram registrar também as impressões dos alunos. Em 1975, uma aluna da 8ª série da escola Felinto Müller, afirmou que:

[...] o professor é muito bacana, mas nas aulas dele ninguém entende; ele corre, enrola, fala de deus, escreve na lousa; assim ele está falando de Egito, ele escreve “Egito” na lousa e começa a falar, fala de tudo sobre o Egito. A gente anota, mas na prova a gente não entende nada do que ele pergunta. [...] Ele diz que se der uma prova a gente vai colar mesmo, então já consulta direto [...] Eu não entendi nada do curso de história até agora [Relatório P.E.H., 1975].

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Na mesma escola, observa a estagiária que...

[...] falando com eles [os alunos] muitos se mostraram desinteressados pela história. só o fazem porque são obrigados. Em geral o conceito que tem de história é um amontoado de datas e nomes que em geral não lhes significa nada. Para que servem, e o que vão fazer com isso? Nada. Além do que matéria é decorativa. Preferem a matemática, por exemplo, que pelo menos desenvolve o raciocínio [Relatório P.E.H., 1975].

outra estagiária, dois anos antes, no instituto Estadual de Educação Prof. Alberto Levy, afirmou que...

[...] as problemáticas centrais da professora estariam na má utilização dos métodos didáticos, a falta de interesse maior em motivar os alunos e a não renovação constante de seus conceitos sobre o ensino de história. A indis-ciplina das classes seria um evidente sintoma de sua própria acomodação, apatia, vantagens e privilégios adquiridos pelos anos de magistério. todos esses sintomas foram captados pelos alunos, que a criticavam muito por isso [Relatório P.E.H., 1973].

Em meio a professores de história descontentes com o trabalho, tipo de ensino, condições gerais da educação escolar, os alunos percebiam ou somente sentiam a debilidade do ensino e respondiam com indisci-plina, apatia, descaso ou indiferença. Essa situação de conflito acabava por repercutir no próprio nível da aula e demais instâncias da educação, pois envolvia, além do professor e aluno, os pais, a direção, supervisão, criando de um lado uma situação propícia para críticas de convicções e crenças e, por outro, um campo fértil para mudanças e reformulação de conceitos, métodos e, evidentemente, práticas.

Alguns relatórios registraram momentos dessa busca, na execução de novas propostas, como na escola Plínio Barreto:

Segundo o professor contatado, ano após ano vem tentando modificar seu modo de aula. Já procurou, por exemplo, pedir aos alunos que apenas acom-

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panhassem as explicações, fazendo uma ou outra anotação, mas os resultados não foram satisfatórios. Em outra oportunidade, optou pela adoção do livro didático, mas pessoalmente, sentiu-se muito preso a ele e obcecado por vencer o conteúdo. [...] Atualmente, deixou em aberto o uso do livro didático. cada qual utiliza aquele que tem à mão. Elaborou esquemas para as aulas, coloca-os na lousa para que os alunos copiem e, a seguir, o professor desenvolve esses esquemas. segundo ele, os alunos têm obtido melhor aproveitamento, mas reconhece que esta, ainda, não é a fórmula ideal de ministrar uma boa aula de história [Relatório P.E.H., 1976].

diversas são as críticas, presentes nos relatórios, ao chamado ensino tradicional “adotado pela maioria dos professores”, conceituado como “mal interpretado”, “desvinculado da realidade”, “nível de almanaque” em oposição a uma, mal definida, visão “mais séria”, “nova”, “mais vol-tada para a realidade do aluno”, “crítica”, “despertadora da consciência crítica”, “dinâmica”, “interessante” e “não decorativa”.

também em relação ao material didático, particularmente o livro, observa-se a opção por formas alternativas ao tradicionalmente utiliza-do. Alguns relatórios trazem registrados os diferentes usos dos livros didáticos, tanto por professores como por alunos. Alguns utilizavam fotocópia de jornais ou revistas, reprodução de textos de outros livros e autores e até a simples troca por livros de conteúdos considerados mais críticos, como o História da riqueza do homem, Leo Huberman ou São Paulo 1975: crescimento e pobreza, editado pela ceBrap, com base em estudo realizado para a comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de são Paulo, com artigos de, entre outros, Fernando Henrique cardoso, José Álvaro Moisés, Lúcio Kowarick e Paul singer. Alguns professores utilizavam outros livros além do adotado para a classe, implicando, pelo menos, mais de uma visão sobre o conteúdo proposto, como é o caso do professor do G.E. isar Leiner (Relatório P.E.H., 1972) que, segundo a estagiária, usava livros de sérgio Buarque de Holanda, Lauro de oliveira Lima, Caio Prado Jr., coleções da editora Abril e livros de metodologia e dinâmica de grupo. Nesse caso, o aluno não utilizava livro, mas textos avulsos. Alguns professores adotavam um livro e trabalhavam outros

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conteúdos que não os do adotado, como o professor do cE domingos Faustino sarmiento (Relatório P.E.H., 1972) que usava livro de Rubens Borba Morais e durante o curso completava-o com um conteúdo bas-tante eclético, como: mitologia grega, comunicação de massas, cinema e televisão, thomas Edison e a lâmpada, eras geológicas, animismo, o arqueólogo Heinrich schlieman, imprensa.

Alguns professores sequer adotavam livros, como a professora da EEPG Lasar segall, que não o fazia no curso noturno, alegando que os alunos não teriam tempo para ler, restando-lhe a alternativa de elaborar apostila. informou a estagiária que a “[...] professora tinha o trabalho de pesquisar diversos livros sobre o assunto e inclusive me mostrou alguns, pois na opinião dela, não existem livros didáticos bons” (Rela-tório P.E.H., 1977). Porém, nem todos os professores que não adotavam livros para o aluno, elaboravam apostilas, alguns reproduziam cópias mimeografadas de textos de algum livro didático, o que também aca-bava por mudar e interferir em diversos aspectos relacionados ao uso do texto, como ilustração, cor do papel, textura da folha, o manusear, proporcionando, portanto, um entendimento qualitativamente diferente. Já alguns professores deixavam em aberto aos alunos que utilizassem o livro didático que quisessem. segundo uma estagiária, um professor da EEPsG Plínio Barreto...

[...] optou pelo uso do livro didático, mas pessoalmente, sentiu-se muito preso a ele e obcecado por vencer o conteúdo. [...] Atualmente deixou em aberto o uso do livro didático. cada qual utiliza aquele que tem à mão. Elaborou esquemas para as aulas, coloca-os na lousa para que os alunos copiem e, a seguir, o professor desenvolve esses esquemas [Relatório P.E.H., 1976].

também o uso de material alternativo ao livro didático, como gra-vador, toca-discos, jornais e revistas, ou alguma atividade extraclasse, como passeios, estudos do meio, excursões, teatro, poderia criar uma nova dinâmica em sala de aula e um novo enfoque frente aos conteúdos e ao livro didático. No colégio Pedro ii (Relatório P.E.H., 1976), os alunos foram levados para assistir a peça Morte e vida severina de João cabral

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de Melo Neto. Já a professora do GE isar Leiner, além de usar diferentes livros, também se valia de gravador e toca-discos. Essas duas posturas alternativas ao trabalho trivial da sala de aula consistiam em possibilitar um novo referencial para os alunos que poderia servir-lhes de suporte para uma perspectiva diferente para as aulas de história.

6. A questão central proposta pela discussão foi a de investigar se o que era suposto, a concepção historiográfica que deixa seus vestígios na documentação pesquisada, deitava suas raízes nas ações diárias da sala de aula. o que, neste trabalho, correspondeu a uma análise que buscou identificar a articulação entre as ações implementadas pelo Estado, através de seus vários agentes e estrutura hierárquica; projetos escritos e, eventualmente, desenvolvidos, no interior da escola e a atuação do professor nas práticas diárias em sala de aula, diante das contradições que se apresentavam, no sentido de se aproximar um pouco mais da compreensão do ensino de história no período abordado.

destacamos neste artigo alguns encaminhamentos referentes à ques-tão metodológica, tanto na apresentação de possibilidades de fontes para a pesquisa intentada como na abordagem efetuada, procurando verificar diversos e diferentes discursos e visões dos sujeitos – alunos, professo-res, direção, coordenadores, supervisores, pais, estagiários – presentes nos registros escolares manuscritos e relatórios de estágio, inquirindo o que revelam das práticas, possibilitando novos olhares, permitindo apreender novas e singulares dimensões do ensino da disciplina escolar aqui destacada.

Assim, se o ensino de história no período militar pautou-se por uma concepção conteudista, somada a uma postura moralista, patriótica e laudatória, também ensejou práticas criativas e alternativas engenhadas no cotidiano escolar, ante as demandas e insucessos, buscas e frustrações, diante das condições objetivas em que ocorria o processo educativo, como o nível sociocultural dos alunos, a formação dos professores, a ingerência política, as condições físicas das escolas, recursos didáticos, crise salarial, estrutura hierárquica, aumento do número de alunos e da carga horária, revelando – aos olhos que captam – uma maior comple-xidade na dinâmica da cultura escolar.

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Antonio siMPLício NEto

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência:Antonio simplício da Almeida NetoLargo da Matriz Velha, 43, apto 64

Freguesia do Ó – são Paulo-sPcEP 02925-060

E-mail: [email protected]

Recebido em: 10 jul. 2008 Aprovado em: 20 abr. 2009

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Mônica Yumi JiNZENJi

As escolas públicas deprimeiras letras de meninas:

das normas às práticas

Mônica Yumi Jinzenji*

Resumo:Este artigo discute a organização da instrução pública em Minas Gerais no século XiX, com atenção especial às escolas de primeiras letras voltadas para meninas. Busca analisar a relação entre as determinações normativas e as apropriações realizadas por professoras, alunas, famílias e a comunidade, o que permite analisar as práticas escolares nesse processo de estabelecimento das escolas na província. como em todo momento de mudanças, podem ser percebidas tensões; a rigidez do controle e da fiscalização que tinham como contraponto a resistência de alunas e professoras, manifestada na evasão e atribuição de fraco desempenho a causas alheias à própria vontade.

Palavras-chave: história da educação; educação feminina; escola de primeiras letras; método mútuo; apropriação.

* doutora em Educação, professora do mestrado em educação da universidade Vale do Rio Verde. Pesquisadora do GEPHE (Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação), FaE-uFMG.

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As escolas públicas de primeiras letras de meninas

The elementary publicschools for girls:

from norms to practices

Mônica Yumi Jinzenji

Abstract:this paper discusses the organization of the public instruction in Minas Gerais in the nineteenth century, with special attention to the schools of first letters – escolas de primeiras letras – that are destined to the girls. it tries to analyze the relation between the normative determinations and the appropriations realized by teachers, students, families and the community, what empower to analyze the scholar practices in this process of schools’ establishment in the province. As well as in every moment of change, it is possible to notice tensions; the rigidity of the control and of the inspection that had as opposition point the resistance of students and teachers manifested on school dropout and on the attribution of weak performance related to strange reasons than the own will.

Keywords:history of education; female education; elementary school; mutual method; appropriations.

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Em 12 de março de 1830, lia-se no periódico O mentor das brasi-leiras, uma matéria intitulada “dos primeiros fundamentos da educação moral das meninas” em que se dizia:

[...] É portanto muito necessário que desde a infância comecem as meninas a ser educadas nas escolas públicas para que melhor se possam desarraigar os erros introduzidos em seus espíritos ainda débeis; [...] convém aqui tocar levemente sobre duas objeções, que se possa fazer contra a proposição expen-dida. costuma-se dizer que as meninas sendo instruídas nas escolas públicas podem bem facilmente perder a pureza de costumes pela comunicação com suas iguais de quem se não pode assegurar sempre a boa morigeração [ile-gível]. Nas escolas se não pode adquirir maior instrução pela distração das Mestras com o grande número de discípulas; em quanto à primeira objeção, respondemos com Quintiliano, que o perigo de perder os bons costumes é igual tanto na educação doméstica como na educação das escolas públicas; que tudo depende do bom ou mau natural das meninas, e do cuidado que se toma de sua educação; que de ordinário é dos mesmos pais que vêm o mal pelo mau exemplo que dão, ou consentem que seus domésticos lhes deem; portanto [...] que o mal não se aprende nas escolas, mas é levado de fora para elas.

Enquanto a segunda objeção, nós a resolvemos com o mesmo Escritor; ele não convém em que a mocidade se atrase nas escolas por muitas razões que expõe. Mas acrescenta que ainda quando este inconveniente fosse real, era exuberantemente reparado pelas grandes vantagens que se acham na educação pública [...]. Nas escolas travam-se conhecimentos e relações que muitas vezes duram por toda a vida, e se adquire um certo senso comum que só a sociedade pode dar. A estas vantagens acresce a emulação. uma menina na escola se aproveita tanto do que se lhe diz como do que se diz às outras; ela verá todos os dias a sua mestra aprovar uma coisa, corrigir outra, repreender a preguiça desta, louvar a diligência daquela e de tudo se aproveitará; o amor da glória lhe servirá de estímulo; ela terá vergonha de ceder às suas iguais e até mesmo se há de prezar de exceder as mais adiantadas. Enfim, uma mestra que tem grande número de ouvintes anima-se mui diferentemente daquela que estando com uma única discípula, só lhe pode falar friamente e com um tom de conversação. Porém é certo que nem todos podem ter os cômodos

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precisos para que decentemente possa ser uma menina diariamente conduzi-da à escola pública, e por isso desejamos que mesmo em casa se facilite os meios da boa educação, que então é dada por uma mãe prudente e às vezes por mestres de uma boa conduta bem provada em cuja escolha deve haver o maior escrúpulo.[...]1

A defesa da escolarização das meninas nas primeiras décadas do oitocentos não era uma prerrogativa desse periódico, impresso em são João del-Rei, uma das vilas mais populosas de Minas Gerais no período2. A matéria acima ilustra o discurso constituinte do complexo cenário das primeiras décadas do Brasil pós-independência em que a emergência da escola pública de primeiras letras provocava tensões na convivência com as demais instâncias educativas de então, estando entre elas as famílias. A educação doméstica, de responsabilidade das mães e pais, criados ou tutores, não raras vezes era criticada em seus princípios, métodos e resultados, como referido na matéria citada.

Esse trecho sugere ainda que o estabelecimento dessas escolas também gerou tensões internas à própria instituição, envolvendo os sujeitos dela participantes, como professores e alunos. talvez por isso a necessidade de produzir uma visão “positiva” sobre as escolas públicas, enumerando as vantagens tanto para as professoras quanto para as alu-nas. A respeito disso, algumas questões merecem ser investigadas, além da normatização referente ao estabelecimento dessas escolas: aquelas relacionadas às práticas docentes e ao cotidiano escolar, como indicado por Julia (2001).

Para a realização desta discussão, tomamos para análise o processo de estabelecimento das escolas públicas de primeiras letras de meninas de Minas Gerais, ocorrido a partir de 1828 nas principais vilas da província. Recorrer a esse momento histórico justifica-se por se tratar de um período de suma importância para a compreensão do processo de escolarização no

1. O mentor das brasileiras, n. 15, p. 113-116, 12 mar. 1830.2. Esse periódico foi impresso semanalmente no período de 1829 a 1832; são João

del-Rei situa-se na região do campo das vertentes, a sudeste de Minas Gerais.

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Brasil. É nas primeiras décadas dos oitocentos que os pri meiros aparatos legais começavam a ser produzidos, havendo também investimentos financeiros e mobilizações de dirigentes provinciais e imperiais visando a organização da instrução pública no Brasil (Faria Filho, 2000).

A produção de leis para o ordenamento dessa nova instituição seria uma das principais características da primeira metade do século XiX e este estudo pretende analisar essa produção normatizadora em diálogo com as práticas dela resultantes, através de documentos relacionados às câmaras Municipais, às atividades escolares, como livros de matrícula de alunas e professoras, mapas de frequência de alunas, e os discursos em circulação nos periódicos desse período.

O estabelecimento de escolas públicas de primeiras letras para meninas em Minas Gerais

A constituição Política do império determinava a gratuidade do en-sino primário a todos os cidadãos livres e a lei de 15 de outubro de 1827 é o marco fundador da escola pública no período imperial brasileiro. Esta lei estabelece diretrizes gerais para a organização da instrução pública, com a criação de escolas de primeiras letras, a definição dos conteúdos a serem ensinados, o ordenado e condições para o exercício do magistério e a adoção do método de ensino mútuo3.

Na província de Minas Gerais, o encaminhamento para a criação das novas escolas levaria cerca de cinco meses após a lei de 1827, intervalo em que o governo imperial solicitava o levantamento do estado da instru-ção nas províncias. deixado a cargo de Bernardo Pereira de Vasconcelos,

3. Método que previa o ensino a centenas de alunos divididos em grupos por níveis de conhecimento; um professor orientaria os monitores – alunos mais adiantados de cada nível –, e estes orientariam seus colegas. Ver livro organizado por Maria Helena Camara Bastos e Luciano Mendes Faria Filho (1999); as dissertações de mestrado de Walquíria Miranda Rosa (2001), Marcilaine soares inácio (2003); revista Pae-dagogica Historica, v. 41, n. 6, dec. 2005, especial sobre método mútuo.

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membro do conselho Geral da Província que havia sido designado para promover a educação da mocidade mineira, a instrução em Minas Gerais foi avaliada como bastante insatisfatória, tanto na quantidade de escolas como no aproveitamento daqueles que as frequentavam.

Em ata de reunião do conselho de 27 de março de 1828, constam as propostas resultantes das discussões referentes à promoção da instrução pública na província. Além da extinção de algumas escolas de latim, que passariam a ensinar gramática brasileira, definiu-se pela manutenção das 33 escolas de primeiras letras já existentes, e a criação de outras 54 para ambos os sexos, totalizando 87; escolas privativas para meninas seriam criadas nas cidades de ouro Preto e Mariana, e nas vilas de são João del-Rei, Barbacena, tamanduá, Baependy, campanha, sabará, Pitangui e Vila do Príncipe (inácio, 2003, p. 40-41), as cidades e vilas de maior desenvolvimento e concentração populacional do período.

A decisão sobre a quantidade e a localização das novas escolas teria ti do a participação das câmaras Municipais (sales, 2005, p. 85-86), que foram solicitadas a enviar à Presidência da Província, um documento constando o número e o tipo de escolas existentes e o estado das mesmas, além do levantamento das necessidades percebidas. de acordo com o ofício enviado pela câmara de são João del-Rei, em fevereiro de 1828, havia na vila uma escola pública de primeiras letras e uma de gramática latina e era solicitada a criação de mais cinco escolas de primeiras letras, sendo uma delas destinada às meninas. segundo esse ofício, a educa-ção da “bela parte da sociedade” não poderia continuar a ser inteiramente desprezada, e “desde já aponta como mui digna para tal emprego, uma respeitável matrona, que aqui há, e que possui além da estima geral e das virtudes sociais e domésticas, o perfeito conhecimento da língua francesa, da música e da dança”4.

4. Arquivo Público Mineiro, iP 1/33 cx 270, 1824-1831, pacotilha 32, 6 fev. 1828, assinam Aureliano de souza oliveira coutinho, Baptista caetano de Almeira, Francisco Antonio da cunha Magalhães, Jozé coelho Mendes. A Presidência da Província teria solicitado às câmaras um parecer que incluía também uma proposta dos ordenados e gratificações a serem pagos aos mestres e às mestras, ao que a correspondência encaminha detalhadamente.

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A referida matrona era Policena tertuliana de oliveira, distinta se-nhora que contava 26 anos5 quando se candidatou à cadeira de primeiras letras de são João del-Rei, sendo publicamente examinada na presença do conselho do Governo, em 26 de janeiro de 1829. segundo consta em Ata do conselho, “muito se distinguiu pelo seu desembaraço, presença de espírito e acerto com que respondeu às perguntas que se lhe fizeram”6, sobressaindo-se em relação à outra candidata, Jacinta carlota de oliveira Meirelles, que, na mesma data, se candidatou e foi aprovada à cadeira de Baependy. As candidatas teriam demonstrado domínio nos conteúdos a serem ensinados, definidos pela lei de 1827, que estão circunscritos em três dimensões: a instrução religiosa, os saberes fundamentais e as aprendizagens práticas7. No primeiro, estavam incluídos os princípios da moral cristã e doutrina da religião católica e apostólica romana; no segundo, a leitura e a escrita da gramática da língua nacional e as quatro operações da aritmética e, no terceiro, “prendas que servem à economia doméstica”8. Entretanto, o desconhecimento em relação ao método mútuo fez com que se constasse em ata, que “as mestras tenham obrigação de instruir-se no ensino mútuo onde o conselho resolver, criando-se cadeira deste ensino no lugar para que forem providas”9.

A banca examinadora deste, que aparentemente foi o primeiro con-curso público para provimento de cadeiras de primeiras letras para me-ninas na província, foi composta por membros do conselho do Governo e por Beatriz Francisca de Assis Brandão que, sendo convidada, aceitou com “boa vontade e patriotismo”10.

5. Policena teria nascido em 1803 e casou-se em 1837 com o alferes português Antônio José de souza Machado, segundo Morais (2006, p. 632-641).

6. O Universal, ouro Preto, n. 242, p. 3-4, 28 jan. 1829. Ata do conselho do Governo.

7. tal como descrito para a realidade francesa por Martine sonnet (1987, p. 233). A educação moral, ponto central de tal educação, não pode ser entendida como uma disciplina escolar; a educação moral concretiza-se a cada instante na própria ação pedagógica e não caracteriza um ensino específico.

8. Lei de 15 de outubro de 1827, art. 6 e 12.9. O Universal, n. 244, p. 2, 2 fev. 1829.10. O Universal, n. 244, idem.

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d. Beatriz, que se tornaria conhecida como escritora e poetisa a partir da segunda metade do século XiX, nasceu em Vila Rica em 29 de julho de 1779, sendo filha do sargento-mor Francisco Sanches Brandão e Isabel Feliciana Narcisa de seixas. teria incorporado à educação doméstica que recebeu lições de francês e italiano e a respectiva literatura dessas línguas, a partir do contato com um amigo da família (Vasconcellos, 2000, p. 82).

d. Beatriz contava quase 50 anos de idade quando foi convidada para compor a banca examinadora no concurso público acima referido. Ao se considerar seus escritos poéticos e demais contribuições em diversos jornais do período, temos que se tratava de uma pessoa já publicamente conhecida e reconhecida como capaz de julgar as futuras professoras públicas de meninas, função que ela mesma exerceria um ano depois.

Quando da abertura das escolas públicas, os jornais anunciavam para o público, e temos notícia de que pouco mais de dois meses após ser aprovada no concurso, Policena tertuliana de oliveira abria a escola de primeiras letras para meninas em são João del-Rei, em abril de 1829: “José Alcibíades carneiro Professor público de Gramática Latina e d. Policena tertuliana de oliveira, mestra pública de meninas, fazem saber ao público que se acham com suas aulas abertas na Rua direita n. 392, prontos a receberem com agrado os alunos e alunas que comparecerem”11. A escola pública para meninas de ouro Preto seria aberta no ano seguinte, sendo também anunciada pela imprensa: “A 4 de maio [1830] abriu-se nesta cidade a escola pública de meninas, que está confiada à direção da Professora d. Beatriz Francisca de Assis Brandão, cuja capacidade e distinto merecimento fazem esperar que o belo sexo aproveitará sobre-maneira as suas lições e doutrina. Ela conta já 14 alunas...”12.

Até o ano de 1830, a província de Minas Gerais contava, então, com 2 escolas públicas de primeiras letras privativas de meninas: a de são João del-Rei e a de ouro Preto. o provimento e abertura das oito restantes, criadas pelo conselho do governo em 1828, foram ocorrendo ainda na década de 1830, conforme quadro a seguir.

11. Astro de Minas, n. 217, p. 4, 7 abr. 1829.12. O Universal, n. 463, p. 3, 7 jul. 1830.

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Quadro 1: Escolas de meninas da Província de Minas Geraiscriadas pelo conselho do Governo em 28 de Março de 1828 e

data do seu provimentoFreguesia do ouro Preto Beatriz Francisca de Assis Brandão (19/04/1830)

cidade de Mariana Francisca de Paula Higina de sa (1832)

cidade de sabará Maria Anna da Assumpção (16/09/1836)

Villa de tamanduá Ma. carlota de s. Miguel (31/01/1834)

cidade do serro Eufrásia Joaquina de Figueiredo (1837)

cidade de Barbacena Anna Joaquina de oliva. Mafra (13/03/1834)

cidade de s. João d’El Rey Policena tertuliana de oliveira (06/02/1829)

Villa de Baependy Jacinta carlota de oliveira Meirelles (06/02/1829)

cidade da campanha Maria Ricardina de oliv.a (15/03/1832)

Villa de Pitangui Maria Fulgencia de oliveira (07/09/1839)

Fonte: Arquivo Público Mineiro, PP 3/1 cx 13 1832-1849.

Rotinas escolares sob os olhares da população

No processo de institucionalização da escola pública elementar, a imprensa fez circular, além das determinações legais que visavam re-gulamentar as práticas escolares, notícias sobre algumas das atividades constituintes da rotina dessas instituições. Enfatizaremos aqui os exames públicos das escolas de primeiras letras que, nas páginas do periódico O mentor das brasileiras, ganhavam destaque.

A exigência para a realização dos exames públicos foi definida em resolução do conselho Geral da Província em 14 de abril de 1828, que trazia definições sobre a atividade docente nas escolas públicas. Esse documento teria sido enviado pelo Presidente da Província às câmaras Municipais, que, por sua vez, foram encarregadas de torná-la pública. o jornal Astro de Minas, o único em circulação em são João del-Rei no período, tratou de publicar a resolução, que segue na íntegra:

o Exm. conselho do Governo querendo providenciar sobre o exame que hão de fazer os professores das escolas publicas, sobre o método com que

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hão de ser fiscalizados, a forma com que hão de cobrar os ordenados, e outras providencias inerentes ao melhor andamento, e conveniências das mesmas, tem resolvido o seguinte.

1. Que ninguém pode exercer o magistério público, sem que em exame público mostre a necessária idoneidade para o desempenho de tão importantes funções. Que os exames anteriores à lei de 15 de outubro de 1827 não escusam novos exames. Que esta regra não compreende os mestres particulares, que são pagos pelos que os encarregam da instrução primária, os quais podem continuar a ensinar na forma, que lhe permite a lei.

2. Que para ser admitido à oposição, e examinado, deve o pretendente mostrar 1, que é cidadão brasileiro, 2. que está no gozo dos seus direitos civis, e políticos, e 3. que é de conduta regular.

3. Que aos exames precederão sempre editais, que os anunciem pelo menos trinta dias antes do dia em que se devem celebrar.

4. Que os examinadores darão o seu voto por escrito sobre os opositores que forem examinados, depois do que o Exm. sr. presidente em conselho nomeará o que julgar mais hábil.

5. Que os professores, e professoras serão obrigados a ter livros de matrícula, nos quais metodicamente assentarão o dia, mês e ano, em que os meninos, ou meninas principiaram a frequentar as aulas, os seus nomes, na-turalidades, domicílio, os dos pais, ou pessoas que os educam, e as faltas que tiverem. Estes livros devem ser feitos em estado de poderem ser apresentados ao Exm. sr. presidente cada vez que o queira examinar.

6. Que os professores e professoras são obrigados a matricular e ensinar a todas as pessoas de ambos os sexos, que se quiserem instruir, sejam pobres, ou ricos, descalços, ou calçados. Nos lugares aonde houver escolas de meninas, não se admitem os dois sexos unidos.

7. Que os castigos permitidos nas escolas em geral são os praticados no método de Lencaster.

8. Que os mestres e mestras são obrigados a participar as faltas dos discípulos aos seus pais, ou educadores.

9. Que os professores e professoras tirarão uma cópia fiel dos livros de matrícula, no qual se compreenderá somente os discípulos que frequentaram as aulas no trimestre, de que hão de requerer o pagamento ao Exm. sr. pre-sidente da província.

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10. Que para ter lugar o pagamento do ordenado, e vencimento em pro-porção dos discípulos, a referida cópia do livro da matrícula virá acompanhada de uma atestação da câmara do distrito, que a declare verdadeira.

11. Que as Câmaras devem antepor as providências necessárias, a fim de virem no conhecimento dos alunos, que frequentam cada uma das aulas.

12. Que quando o sr. presidente em conselho mandar proceder contra algum mestre, serão remetidas para as Justiças as sobreditas cópias, extraídas dos livros das matrículas, para serem inquiridas testemunhas à vista delas.

13. Que estas cópias, guardadas no Arquivo da secretaria, servirão no futuro de prova do número dos discípulos, e seu aproveitamento, para ter lugar a gratificação prometida aos professores no art. 10 da lei de 15 de outubro de 1827.

14. Que os meninos e meninas farão nas aulas, pelo Natal e Espírito santo, exames públicos, a que assistirá o juiz de paz do respectivo distrito, e enquanto estes não entram em exercício, assistirão, nas capitais os capitães mores, e nos outros lugares os comandantes das ordenanças, que tiverem patente, ou um oficial dos mais vizinhos na falta destes. Nestes atos lerão os mestres os livros de matrícula, e as faltas que tiverem tido os discípulos, a fim de que se possa avaliar o seu adiantamento.

15. Que os professores ou professoras serão obrigados a apresentar ao Exm. sr. presidente o resultado destes exames com atestação do juiz de paz, ou daquele que o substituir, especificando os meninos examinados, suas matrículas e tempo de frequência nas aulas.

16. Que tanto a cópia extraída dos livros da matrícula, como o resultado dos exames se farão públicos pelo modo possível, a fim de melhor se poder conhecer sua veracidade, ou falsidade.

17. Que quando houver motivo de suspeita contra as sobreditas cópias da matrícula, se mandará proceder às averiguações necessárias, e, reconhe-cida a falsidade, será o mestre ou mestra repreendido, e impresso o ofício de repreen são; além da reposição da parte do ordenado, que tiver de mais percebido em virtude da falsidade.

18. Que tendo-se recomendado às câmaras desta província, que vigiem na conduta dos professores públicos que existirem nos seos respectivos termos, de maneira que a mocidade colha o proveito desejado na frequên-

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cia das escolas públicas, se lhes recomende mais, que quando derem sobre este objeto as informações, ou partes, que entenderem convenientes ao em público, as especifiquem de forma, que sendo caso de proceder-se na forma do art. 14 da já citada lei, possam os juízes inquirir testemunhas, ou procurar outras provas, em que se assente com justiça a sentença de conservação, ou demissão do professor, contra quem se proceder.

19. Que finalmente o Exm. Sr. presidente faça imprimir esta resolução, enviando hum exemplar, ou mais por ordem sua a cada uma das câmaras das províncias; e às mais autoridades a quem julgar necessário o cumprimento e execução da mesma. imperial cidade do ouro Preto em 14 de abril de 1828. – o secretario do Governo, Luiz Maria da silva Pinto.

E para que chegue a notícia de todos, mandamos passar o presente edi-tal que indo por nós assinado, e selado depois de registrado será publicado nos lugares mais públicos desta vila e termo, e afixado na do estilo. Dado e passado nesta vila de s. João d’El-Rei em câmara de 30 de abril de 1828. E eu Antonio da costa Braga Escrivão da câmara, que o subscrevi. Antonio Felisberto da costa = Francisco de Paula de Almeida Magalhães = Antonio José Pacheco = José teixeira coelho13.

Essa resolução buscava não só ordenar as atividades dos mestres e mestras como também manter a vigilância em torno de suas práticas. Uma das principais preocupações parecia ser a veracidade em relação à quantidade de alunos, visto que o Conselho do governo definiu, no mesmo ano, que o salário dos mestres e mestras poderia variar de acordo com a quantidade de alunos para a qual lecionassem. o piso mínimo para os que tinham até 50 alunos era de 200$000; de 51 a 100 alunos, essa quantia era acrescida de $500 por cada aluno a mais. o valor aumentava proporcionalmente até que se atingisse o piso máximo possível, que seria de 500$000 (silva, 2004)14. Para auxiliar os membros da câmara nessa fiscalização, o “tornar público” era um mecanismo que fazia da

13. Astro de Minas, n. 77, p. 3, 15 maio 1828.14. segundo silva, os salários aumentavam na seguinte proporção: de 101 a 150 alunos =

piso + $600 por aluno; de 151 a 200 alunos = piso + $700 por aluno; de 210 a 250 = piso + $800 por aluno; a partir de 300 alunos = piso + $1.000 por aluno.

13. 14. 15.

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população, corresponsável por verificar e atestar as afirmações dos(as) mestres(as), sendo a imprensa, um dos mecanismos utilizados para essa estratégia de fiscalização.

Em cumprimento ao artigo 14 dessa resolução, mestres e mestras de primeiras letras realizavam os exames públicos semestrais, numa das salas da câmara Municipal das respectivas vilas e cidades, e a imprensa noticiava, tanto anunciando os exames como o resultado deles. segundo os jornais, a população comparecia com entusiasmo a esses exames, o que não era compartilhado pelas alunas, conforme anúncio de exame em que

d. Policena tertuliana d’oliveira, professora de meninas desta vila faz sa-ber ao respeitável público, que no dia 2 do próximo mês de fevereiro pretende fazer nas casas da câmara desta vila os exames de suas alunas, e espera que estas concorram no maior número possível, para o que roga encarecidamente a seus pais, que tenham a bondade de as fazer aparecer a este ato, a fim de que o público possa ajuizar os progressos que as mesmas têm tido15.

Certamente, o significado da frequência a esses exames não era o mesmo para as professoras, pais, alunas, e o público expectador. segundo O mentor das brasileiras, que publicava os resultados dos exames públicos das escolas de meninas, a quantidade de alunas que compareciam a esses exames era significativamente inferior ao número de alunas matriculadas. infelizmente, nem sempre esses dados numé-ricos eram apresentados, mas, no caso dos exames realizados em são João del-Rei, é possível acompanhar o aumento do número de alunas matriculadas ao longo dos semestres e, no entanto, a quase inalteração e até a diminuição do número de alunas que compareciam aos exames. Era comum a alegação, tanto em são João del-Rei como em ouro Preto, de que o excesso das chuvas era uma das causas da ausência das alunas no ato do exame.

15. Astro de Minas, n. 393, p. 4, 27 maio 1830.

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Quadro 2: Relação das alunas matriculadas nas escolas públicas desão João del-Rei, ouro Preto e Baependy e alunas presentes nos

exames públicosLocalidade/data do exame N. alunas matriculadas N. alunas presentes no

examesão João del-Rei19/12/1829 43 3417/06/1830 69 4413/12/1830 70 4029/06/1831 76 3602/02/1832 71 30ouro Preto14/06/1831 27 1928/01/1832 * 23Baependy27/12/1828 * 17

Fonte: O mentor das brasileiras, números 4, 30, 55, 64, 81, 113, 116.*dados desconhecidos, uma vez que não constam nas fontes originais.

Em Baependy, de cuja escola são fornecidos poucos dados, a pro-fessora Jacinta Carlota de Oliveira Meirelles afirma em seu discurso que “algumas [alunas] não quiseram comparecer àquele ato”. E, em certo exame, a professora tenta se justificar pelo reduzido número de alunas que compareciam ao exame, indicando que se tratava de uma situação que fugia ao seu controle. É possível, ainda, perceber seu constrangimento por estar sendo colocada à prova: “Eu lastimo, senhores, que algumas de minhas discípulas tenham se retirado de minha aula prontas, sem a pública aprovação, e que outras tenham demorado este ato, por causa de imensas falhas (como tendes de observar no livro de matrícula)”16. Em são João del-Rei, no exame realizado em 1832, em que menos da metade das 71 alunas matriculadas compareceram, a explicação encon-trada para o baixo quorum foi o excesso de chuvas, ou o “demasiado capricho com que as mesmas costumam adornar-se, o que nem sempre está ao alcance de todos, a quem a falta de possibilidades parece causar qualquer vexame”17.

16. O mentor das brasileiras, n. 116, p. 915, 24 fev. 1832.17. O mentor das brasileiras, n. 113, p. 897, 10 fev. 1832.

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A esse conjunto de explicações dadas ao baixo comparecimento aos exames – as condições climáticas desfavoráveis, a carência de vestimen-tas consideradas apropriadas para um evento socialmente valorizado – poderíamos acrescentar o constrangimento de serem examinadas em público, ou o não querer tornar público um fraco aproveitamento. de qualquer forma, podemos perceber uma lacuna entre as determinações legais e as práticas resultantes, sugerindo que as normas não se impunham silenciosamente; não eram incorporadas com tanta facilidade e geravam resistências e tensões.

A publicação dos resultados dos exames em jornais era feita geral-mente alguns dias após ocorrido o ato, e não apresenta muitas variações entre cada um deles, trazendo sempre a mesma ideia de que um cidadão presenciou o exame e em seguida relatava o ocorrido. discorre sobre a quantidade de alunas presentes, os conteúdos examinados, o desem-penho das alunas, dando destaque àquelas plenamente aprovadas ou adiantadas e, ao final, seguia o discurso feito pela professora na abertura do ato do exame. Essa regularidade confere um ar de que a imprensa cumpria com seu papel nesse processo, tornando pública essa etapa da rotina escolar.

Neste dia teve lugar o exame público das meninas que frequentam a aula de primeiras letras desta vila na conformidade da resolução do Exm. conselho do governo de 14 de abril de 1828. Às 3 horas da tarde concorreram elas em n. de 44, acompanhadas pela professora, e, ao entrarem na casa da câmara, foram recebidas pelo juiz de paz, fiscal e por um numeroso concurso de cida-dãos conspícuos que pareciam tomar não pequeno interesse no progresso das nossas jovens. Antes de principiar os exames, recitou a professora o discurso que adiante transcrevemos, que foi escutado com grande atenção por todo o auditório, e as alunas ricamente vestidas apresentavam a cena a mais brilhante e arrebatadora. Lendo-se o livro de matrícula, acharam-se matriculadas 69. Principiou-se o exame pela monitora geral e seguiram as mais por seu turno, sendo aprovadas nas doutrinas marcadas nos artigos 6 e 12 da lei de 15 de outubro de 1827 as senhoras d. Francisca isabel de Noronha, de idade de 14

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anos, D. Luisa Carlota Bernardina de Noronha de idade de 13 anos, filhas do Sr. João Bernardes; D. Anna Isabel Belarmina de Jesus de idade de 14 anos, filha do sr. Manoel Pereira Lopes; d. Maria Ricardina Novaes campos de idade de 14 anos, filha do Sr. Lucianno Antonio Novaes Campos; D. Anna Candida de Jesus Alves S. Thiago de idade de 13 anos, filha do Sr. Cap. Francisco José Alves de S. Thiago, as quais todas satisfizeram com admirável prontidão e desembaraço as perguntas que lhes fez a professora, assim como todas as outras, proporcionalmente ao tempo de seus estudos, deram decisivas provas de sua aplicação, lendo com bastante desembaraço a constituição do império, respondendo a muitas perguntas sobre a gramática brasileiras, tabuada, dou-trina cristã, e fazendo várias espécies de contas e quase todas apresentaram suas escritas com um bom caráter de letra. Findo este ato pelas 6 horas da tarde entre o aplauso geral das pessoas, subiram ao ar os fogos de artifício, enquanto os pais de famílias ali mesmo se congratulavam pelo adiantamento de suas filhas; e alguns até pareciam invejar a sorte destes18.

Se considerarmos a fidedignidade dessa descrição, o exame pú-blico representava um verdadeiro acontecimento na rotina das vilas e cidades, contando com um público não menos solene que as principais autoridades políticas; não eram raras as referências ao luxo e elegância das vestimentas das alunas que, nessa ocasião, estariam vivenciado uma das primeiras aparições públicas em que eram o centro das atenções, numa atividade social e moralmente aceita. Em uma matéria, o reda-tor de O mentor das brasileiras critica o luxo excessivo das alunas ao comparecerem aos exames, mas afirma se sentir impotente para mudar tal fato, pois, “dizem alguns pais que fazem gosto que suas filhas com-pareçam mui bem adornadas; são prestígios que não se desarraigam tão facilmente...”19. ter a cada semestre cinco meninas concluintes nos estudos elementares era motivo de orgulho para a vila, que celebrava com fogos de artifício e congratulações aos familiares; estes viviam momentos de prestígio, indicando a apropriação (de certeau, 1994)

18. O mentor das brasileiras, n. 30, p. 233-234, 23 jun. 1830.19. O mentor das brasileiras, n. 81, p. 642, 1 jul. 1831.

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realizada por esse segmento da sociedade, que transforma um elemento da rotina escolar em espetáculo.

A descrição dos exames também ratifica a preocupação em se apresentar em conformidade com as determinações legais; as constantes referências aos artigos das leis e resoluções indicam a necessidade de se mostrar conhecedor e fiel, obediente ao que está sendo prescrito. Essa preocupação no cumprimento às regras e na prestação de contas à socie-dade e às autoridades “vigilantes” é explicitado nas falas das professoras e demais discursos:

d. Policena tertuliana de oliveira, professora pública de meninas desta vila faz saber ao respeitável público, que no dia 17 do corrente [junho] há de proceder a exame público de suas alunas na casa da câmara pelas 3 horas da tarde, não o tendo feito a mais tempo (como já anunciou no Astro) por se achar doente o juiz de paz, que deverá presidir a tais exames20.

Nesse sentido, será possível considerar que aquilo que a lei prescre-via coincidia com aquilo que realmente aconteceu? se considerarmos os resultados do exame publicados nos jornais, as alunas plenamente aprovadas dominavam, no ato do exame, todos os conteúdos previstos para seu nível de ensino, levando a pensar que tais conteúdos foram desenvolvidos nas aulas, na conformidade da lei. Há exames em que se afirma que as alunas recitavam de cor alguns artigos da constituição ou respondiam perguntas sobre a mesma; há também, em outros, o exame das prendas domésticas, como costura e bordado. Pouco se pode afirmar sobre as práticas efetivamente realizadas nas escolas, mas as matérias publicadas, quase idênticas entre si, ilustram a imagem que se queria transmitir para um público mais amplo, de progresso da escolarização das meninas, a dedicação das professoras e o entusiasmo da população diante da instrução feminina.

Na abertura dos exames, as professoras proferiam um discurso, às vezes voltado para as alunas, às vezes para o público, que era publicado

20. O mentor das brasileiras, n. 29, p. 232, 16 jun. 1830.

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em O mentor das brasileiras e outros periódicos. Embora a fidedignidade desses discursos seja discutível, é neles que se pode perceber de forma mais marcante o desconforto, tanto das professoras quanto das alunas, diante da situação de exame público e da sua inevitabilidade, visto que é imposto pela lei, um poder impessoal e incontornável. Na fala da pro-fessora Beatriz Brandão, de ouro Preto,

ilustre e benigno auditório. tendo a honra de apresentar-vos hoje o resul-tado dos meus trabalhos; pode ser que ele vos pareça limitado em consequên-cia das esperanças que havíeis concebido, mas posso assegurar que tenho empregado todo o desvelo em aproveitar as felizes disposições das minhas caras alunas para satisfazer a lei e a pública expectação. [...] o seu amor à Pátria e às sagradas instituições se manifestam nos seus pueris entretimentos [sic].[...] devo também lembrar-vos que algumas destas meninas entraram a pouco tempo e por isso não vos admire que apresentem pouco adiantamento; a diferença que vai de talento a talento faz também que umas muito mais novas que outras tenham subido à classe superior. Supostas todas estas razões só me resta pedir-vos a indulgência que merecem umas crianças que vão pela primeira vez falar em público21 [grifos meus].

Além disso, a professora atribui aos diferentes talentos e disposi-ções, os diferentes adiantamentos, o que contribuiria para diluir a res-ponsabilidade no desempenho das alunas. A professora Jacinta carlota de oliveira Meirelles, de Baependy, também deixava transparecer a insegurança causada pela situação de exame, atribuindo o seu embaraço a uma educação inadequada que recebera.

caras alunas, é o dia de hoje o destinado para, na presença do juiz de paz desta paróquia e cidadãos assistentes, apresentares o fruto das lições que de mim tendes recebido. Respeitáveis srs., a educação que tive, consequência infalível do despotismo com que fui amamentada, tornando-me pouco apta para o magistério que [ilegível] o natural acanhamento, fruto de um princípio

21. O mentor das brasileiras, n. 81, p. 644, 1 jul. 1830.

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tal e nenhum costume de aparecer em público, talvez tenham de motivar indul-gência em vossos ânimos disfarçando os inevitáveis erros que passo a cometer na perturbação em que me vejo; mas certificai-vos que a minha assiduidade no desempenho das obrigações que contraí, tomando sobre meus débeis ombros um peso desproporcionado às minhas forças, supre de alguma sorte a falta de talentos apropriados, como bem conheceis e eu o confesso [...]22.

Nesse conjunto de falas atribuídas às professoras, é possível perce-ber os impactos da imposição normativa sobre os sujeitos envolvidos. o descompasso indesejável entre os tempos de aprendizagem esperados e a aprendizagem efetiva, indisfarçável perante o julgamento público, fazia com que as professoras recorressem a argumentos tais como “dife-rentes talentos”, ou mesmo ao despotismo do qual foram vítimas. Aliás, atribuir ao antigo regime o atraso em que se encontrava a educação do público feminino constitui a maior parte dos discursos das professoras, pelo desdobramento útil desse argumento, de que é graças ao sistema constitucional e à política liberal que o atraso na instrução dos povos e das mulheres vem sendo superado. com isso, tem-se a forte impres-são de serem as professoras adeptas aos ideais liberais e defensoras da monarquia constitucional. se não se trata de uma imagem idealizada e construída pelo discurso da imprensa, acreditamos que afirmar afinidade com o pensamento liberal seria, na situação em que estas professoras se encontravam, um posicionamento bastante útil ou talvez até neces-sário23. segue um discurso atribuído à professora de são João del-Rei, sutilmente ambíguo quanto à sua opinião em relação aos deveres legais, mas fiel ao vocabulário político em circulação no período, enaltecendo a constituição e a pátria.

o dever que nos impõe a lei, minhas queridas alunas, de vir duas vezes no ano a este lugar dar contas ao respeitável público de nossos trabalhos parece sem dúvida ter servido de um grande estímulo para procurarmos

22. O mentor das brasileiras, n. 30, p. 237, 23 jun. 1830.23. importante é considerar que os periódicos utilizados para a realização desta pesquisa se

posicionam como liberais moderados e, portanto, críticos à monarquia absolutista.

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desempenhar com mais assiduidade nossas obrigações. Feliz portanto um tal preceito, quando dele se tira tão belos resultados de nosso aproveitamento! As vantagens que temos obtido destas nossas periódicas reuniões, são bem patentes e não necessitam de mais provas; [...] e suposto que por esta vez eu não possa apresentar muitas de vós com o adiantamento que porventura apresentei nos exames passados, contudo espero que não sereis reputadas por omissas, atendendo o tempo e o atraso, em que vos acháveis, quando principiastes receber minhas lições; talvez que pelos futuros exames eu possa apresentar algumas de vós completamente aprovadas; entretanto nós faremos criadoras da indulgência do respeitável público, se fizermos aparecer os nossos trabalhos, livres do temor, que quando se apodera do nosso espírito, costuma tolher o desenvolvimento de nossas ideias. Vós sabeis (e o mesmo público é testemunha) que eu vos tenho educado não só pelos preceitos adotados nas mais escolas mas também segundo o espírito do nosso século pelo sistema constitucional, de que vos tenho dado profícuas lições no nosso sagrado có-digo, o que talvez para o futuro servirá de grande utilidade à pátria, porque muito convém que as doutrinas liberais se propaguem por todas as classes indistintamente e ainda direi que com preferência no nosso sexo, visto que os homens recebem dele a sua primeira educação, e com o leite podem beber boas ou más doutrinas à proporção do estado de civilização ou embrutecimento em que se achar o sexo feminino; porém, graças sejam dadas ao atual sistema, porque ora nos governamos por ele é que temos entrado na partilha de uma mais nobre civilização, de que estávamos privados. Não será pois alheio de nosso dever se dermos mostras de gratidão, exclamando com vivo entusiasmo, Viva a nossa santa religião = Viva a constituição = Viva ss. MM. ii. = Viva a Assembleia Geral Legislativa = e Viva o povo brasileiro24.

A professora Beatriz Brandão, de ouro Preto, contribuía com tex tos de sua autoria em vários jornais, como O mentor das brasileiras e O farol paulistano; em O universal, protagonizou um tenso debate em que se pode perceber que ela não se intimidava com as críticas veiculadas pela imprensa em relação à sua prática docente, utilizando o espaço do jornal, do qual já estava habituada, para contra-argumentar com o próprio redator:

24. O mentor das brasileiras, n. 55, p. 434-435, 17 dez. 1830.

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Respondendo à justa acusação feita ao meu procedimento em conduzir para uma casa particular a aula de meninas, só posso dizer que razões domés-ticas e indignas de patentear-se, me obrigaram a não poder continuar o ensino em minha própria casa, aonde não podia conseguir sossego, liberdade e nem decência, e os motivos disto têm sido mais públicos do que era necessário para minha desculpa. o motivo de não ter mudado de casa é o não ter achado alguma que seja ao alcance das duas freguesias pois, por estar ao lado de Antonio dias, poucas meninas do outro bairro vêm à escola. tenho tentado muitas casas e não acho alguma em circunstâncias de poder colocar nela a minha aula, pois todas estão fora do alcance. se for coadjuvada na diligência somente de descobrir-se uma casa, a alugarei prontamente e passarei para ela a aula. Quanto à maneira por que ensino, pretendo fazer ver no próximo exame a minha diligência e cuidado. No entanto, sou grata à modesta advertência do sr. redator, de quem sou veneradora e obrigada.

A professora pública desta I.C25.

dessa forma, percebemos como a imprensa foi convocada e assumiu, não sem provocar tensões, o exercício de poder e controle no processo de implementação das escolas de primeiras letras. Além disso, ao am-pliar o “raio de ação” dos “espetáculos” em que os exames públicos se tornaram, contribuiu para a produção e difusão da escolarização como meio para a consolidação do Estado e do progresso, ao mesmo tempo em que as elites políticas liberais fortaleciam seus argumentos em que se afirmavam legítimos defensores da instrução feminina.

O mérito e a hierarquia nos fundamentos das práticas escolares

o modelo escolar de socialização atua, já no início da instituição da escola pública no período imperial brasileiro, de acordo com mecanismos de classificação, ordenamento e hierarquização, produzindo a desigual-

25. O Universal, n. 762, p. 4, 15 jun. 1832.

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dade entre um mesmo grupo escolarizado (Gouvêa, 2004, p. 202). Esse processo pode ser percebido, inicialmente, nos procedimentos exigidos aos professores e professoras para controle do público frequentador das escolas, quando no artigo 5º da resolução do conselho do Governo, determina-se que se produza um livro de matrícula em que se conste os dados de identificação dos alunos, tais como idade, filiação, data de início às aulas e número de faltas. No artigo 9º do mesmo documento, solicita-se que uma cópia fiel do livro de matrícula seja enviada trimes-tralmente para a Presidência da província, constando os(as) alunos(as) frequentadores das aulas no trimestre, para requerimento do pagamento proporcional ao número de alunos.

Nos livros de matrícula produzidos pelas professoras de ouro Preto e São João del-Rei, é possível verificar, no campo “observações”, o registro de comentários referentes ao nível de adiantamento de cada aluna. tais registros incluem desde a descrição do estado em que se encontravam na aprendizagem dos conteúdos, como “lê soletrando e cose liso”, “soletra nomes”, “tem pouco progresso em tudo”, até julgamentos da capacida-de das alunas, como “lê quase corretamente, pouco escreve, tem muito talento”, “lê soletrando, forma algumas letras e tem pouca percepção”, “faz toda a costura; não tem compreensão para estudos”, “aprende pouco; é quase demente”26. Esse instrumento, “livro de matrícula”, concebido inicialmente para controle quantitativo, no interior de um processo de normatização das práticas escolares, acaba sendo utilizado como um me-canismo de classificação e hierarquização dos educandos, caracterizando a gênese da individualização do aluno (Gouvêa, 2003, p. 216, 218). A necessidade de classificar as diferenças individuais leva à produção de um vocabulário baseado no ideal meritocrático, no qual o “talento” e o esforço pessoal são as justificativas para as diferenças nos desempenhos do público em escolarização. Presente na tradição pedagógica moderna, no século XiX, a meritocracia ocupa lugar especial no método mútuo, que pressupunha a hierarquização e o ordenamento de um grande número de alunos e utilizava alguns recursos, como a recompensa e o castigo, além

26. Arquivo Público Mineiro, sP iP 3/2 cx 01, pacotilhas 6, 8, 17, 25, 34.

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de promover a emulação. Essa distinção, que era evidenciada num âmbito mais restrito nos livros de matrícula para fiscalização da Presidência da província, tornava-se (mais) difundida com os exames públicos. É nesses exames também que podemos ver alguns procedimentos relativos ao método mútuo, como a professora de Baependy que, em certa ocasião, conferiu prêmios, preparados às suas custas, para serem entregues às quatro alunas que mais se distinguiram no exame27.

Na escola de são João del-Rei, a professora também utilizava al-guns elementos do método mútuo, o que se deduz a partir da presença de várias monitoras no ato do exame de 13 de dezembro de 1830, além da monitora geral. As monitoras distinguiam-se por serem examinadas no início e também por utilizarem adereços sobre as roupas: “traziam uma fita verde passada ao ombro, em que se lia em letras de ouro os seus empregos, com enumeração das classes que regiam na aula”28. A monitora geral da professora Beatriz Brandão, Antônia Eulália da Rocha Brandão, na abertura do primeiro exame público da escola, teve a oportunidade de fazer um discurso às colegas, logo após o discurso da mestra, e contava com 10 anos de idade29. No próximo exame, realizado em janeiro de 1832, por incômodos de saúde da professora, a então mo-nitora geral Mathilde Brasileira, também aos 10 anos, realizou o exame sob supervisão da d. Beatriz30.

As monitoras, segundo os princípios do método mútuo, eram esco-lhidas entre as alunas mais adiantadas e, recebendo as orientações das mestras, coordenavam as atividades de uma classe, constituída por um grupo de estudantes em um determinado nível de adiantamento. seus nomes comumente eram publicados em destaque em O mentor das bra-sileiras, por serem as alunas com nível de conhecimento mais elevado

27. O mentor das brasileiras, n. 64, p. 508, 25 fev. 1831. trata-se de uma prática relacionada ao método mútuo.

28. O mentor das brasileiras, n. 55, p. 433, 17 dez. 1830.29. O mentor das brasileiras, n. 81, p. 644-645, 1 jul. 1831; APM, sP iP 3/2 caixa 01,

pacotilha 8.30. O mentor das brasileiras, n. 116, p. 915, 24 fev. 1832; APM, sP iP 3/2 caixa 01,

pacotilha 17.

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e por terem bom desempenho nos exames; eram também, muitas vezes, “aprovadas em todas as doutrinas”, significando que concluíram sua educação elementar e foram atestadas publicamente nos exames. Nes-ses casos, o ato do exame era também o momento da despedida entre discípulas e mestras, em que se presenciavam “sentimentos de ternura” e “lágrimas que reciprocamente derramavam, testemunha [do] amor que entre elas havia”31.

o destaque recebido pelas monitoras no ato do exame e publicado no jornal coincide com as observações registradas nas cópias dos livros de matrícula feitos pelas professoras. Essas alunas são sempre avaliadas com bom rendimento, “aproveitadas em todas as doutrinas, e habilidosas”. A trajetória escolar das demais alunas, que tinham “pouco progresso”, não pôde ser acompanhada; a evasão, o pouco investimento ou uma apren-dizagem mais demorada que a esperada, provavelmente fizeram parte de suas histórias. Já as expectativas em relação às alunas que recebiam distinção eram as maiores. A instrução elementar serviria de base para uma maior instrução e, “continuando a cultivar o seu espírito com a mes-ma aplicação, podem chegar até o ponto de prestarem ainda relevantes serviços à pátria, ilustrando toda a mais mocidade”32. A docência era, portanto, uma possível carreira para essas meninas que, em torno dos 12, 14 anos, concluíam os estudos das primeiras letras.

Em uma correspondência ao redator de O mentor, uma senhora que assina Huma Campanhense fazia um apelo para que o jornal solicitasse uma professora para prover a escola pública de meninas de sua vila.

sim, é ao Mentor que compete fazer ciente por sua estimável folha a qualquer senhora, que esteja em circunstâncias de tomar sobre si este ônus, devendo para esse fim demonstrar o quanto isto é honroso; certificar ser o caráter das meninas da campanha brando, afável e sujeito e dos pais e mães, em geral, obsequioso, oficioso e agradecido; o ar salubre, e finalmente expor quanto há de bom para animar a quem venha quanto antes polir os grandes

31. O mentor das brasileiras, n. 30, p. 234, 23 jun. 1830.32. O mentor das brasileiras, n. 30, p. 234, 23 jun. 1830.

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talentos da juventude de minha pátria. [...] Exultarei quando ela preencha os fins a que me dedico e que em breve eu veja realizados os desejos que nutro, de ver aperfeiçoada a educação moral no belo sexo desta Vila33.

o redator comenta a correspondência, dizendo ser incompreensível que numa das maiores vilas da província e que nas passadas eleições deu tantas provas de adesão ao sistema constitucional, ainda não houvesse uma professora para a instrução das jovens. E

se em nossas forças estivesse o fazer com que alguma senhora instruída tomasse sobre si o peso da educação das campanhenses, nós de muito bom grado nos prestaríamos a essa empresa; porém seremos incansáveis ao me-nos em mostrar às nossas patrícias o vantajoso prêmio que terão se todas se empenharem na propagação das luzes pelo sexo encantador, que algum dia deve tomar a alta posição para que o criou a natureza34.

Em 3 de maio de 1832, dois anos após essas notícias, era inaugurada a escola pública de meninas de campanha, provida por Maria Ricardina de oliveira Novaes35, uma das alunas de são João del-Rei que se distinguiu no primeiro exame, com a professora Policena, e foi aprovada em todos os conteúdos, no segundo exame, concluindo a instrução elementar no exame de 23 de junho de 1830. Quando da abertura de sua aula, teria 16 anos36. Registros esparsos indicam que teria lecionado em campanha até o ano de 183737 e, em seguida, ocupou uma cadeira na Vila de são José, que foi extinta, sendo então, removida para a da vila de Formiga em 1848; em 1853, entrou em licença38. uma discípula da professora

33. O mentor das brasileiras, n. 30, p. 240, 23 jun. 1830.34. O mentor das brasileiras, n. 30, p. 240, 23 jun. 1830.35. O mentor das brasileiras, n. 128, p. 1012, 3 maio 1832.36. Ao que tudo indica, a primeira regulamentação sobre a idade mínima para o exercício

do magistério é um decreto imperial de 7 de agosto de 1832, que define a idade de 21 anos.

37. APM iP 3/2 caixa 01, pacotilha 49.38. APM iP 05: Livro de matrícula dos professores de instrução intermediária e primária,

1818-1855.

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Beatriz também teria seguido a carreira docente, sua primeira monitora geral, Antônia Eulália da Rocha Brandão, que entrou em exercício da cadeira de instrução primária feminina da vila do Mar d’Espanha em 20 de junho de 185439.

trata-se de dois casos exemplares de apreensão e adaptação às normas, aos tempos e aos modos de socialização escolar que envolveu, ao longo da trajetória escolar, a compreensão de suas regras e o domínio de sua linguagem, sugerindo a relação entre esse processo, a distinção produzida a partir dos dispositivos que buscavam organizar a instrução pública, e o ingresso na carreira docente pelas ex-alunas.

Considerações finais

Ao investigar o processo de implementação das escolas públicas de primeiras letras de meninas em Minas Gerais, optamos por centralizar o foco de nossa atenção em uma pequena parcela desse processo que se desenvolveria a passos largos a partir da segunda metade do século XiX. tal investigação pode ser representativa do que ocorreu também em outras localidades, outras províncias, entendendo que o estabelecimento de normas, leis e diretrizes para o ensino e a atividade docente não se deu sem resistências e dificuldades.

o uso de fontes de diversas naturezas permitiu aproximar das prá-ticas escolares e, se por um lado auxiliam na compreensão da dinâmica entre as normas e as práticas, geram outras questões, como: se o uso dos livros de matrícula – um instrumento inicialmente criado para controle quantitativo de frequência –, como forma de qualificar o potencial das alunas teria sido uma tática, tal como discutido por de certeau (1994, p. 46), para atribuir o fraco rendimento nas aulas às próprias alunas. teria sido essa uma saída vista pelas professoras para que o cumprimento às leis não prejudicasse suas próprias atividades ou sua continuidade na

39. APM iP 05: Livro de matrícula dos professores de instrução intermediária e primária, 1818-1855.

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carreira docente? Por parte das alunas, é possível pensar numa relação entre a adaptação e/ou afinidade em relação às normas e a opção pelo ingresso na carreira docente?

Pudemos perceber também que não só as tensões marcaram o in-terstício entre as normas e as ações dos sujeitos. A espetacularização de uma atividade rotineira, como os exames públicos, que eram acompa-nhados de fogos de artifício, luxo nas roupas e assistidos por autoridades indica a apropriação dessa atividade não só por parte de professoras e alunas mas também pelo público e pelas autoridades, que transformam um ritual escolar em um evento solene – ou pelo menos assim fazem transparecer os jornais.

Fontes manuscritas

Arquivo Público Mineiro, iP 1/33 cx 270, 1824-1831, pacotilha 32, 6 fev. 1828.

Arquivo Público Mineiro, iP 3/2 cx 01, pacotilhas 6, 8, 17, 25, 34.

Arquivo Público Mineiro, iP 3/2 caixa 01, pacotilha 49.

Arquivo Público Mineiro, iP 05: Livro de matrícula dos professores de instrução intermediária e primária, 1818-1855.

Fontes impressas

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Mentor das brasileiras (O). são João del-Rei, tipographia do Astro, 1829-1832.

Universal, (O). Ouro Preto, Oficina Patricia de Barboza e Ca, 1825-1842.

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Endereço para correspondência:Mônica Yumi Jinzenji

Rua dos Aeroviários, 420 – LiberdadecEP 31270-330

E-mail: [email protected]

Recebido em: 29 ago. 2008Aprovado em: 14 jan. 2009

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Marcus tABoRdA

Entrevista

Siete preguntas a Antonio Viñao Frago*

Por Marcus taborda**

Antonio Viñao Frago é, sem dúvida, um dos mais renomados histo-riadores contemporâneos da educação. sua larga experiência no âmbito de diferentes órgãos do Estado espanhol desde a década de 1960 permitiu que este intelectual com formação em direito, investisse no passado para compreender algumas das dimensões e dos problemas da escolarização de massas. seus estudos, alguns com grande circulação e impacto no Brasil, têm ajudado os historiadores da educação em todo o mundo a refinar seu olhar sobre aspectos tais como os espaços e os tempos escolares, as práticas de letramento, a cultura material escolar, os livros didáticos, a profissão docente, entre outros. Professor catedrático de história da edu-cação do departamento de teoria e Historia de la Educación, da Facultad de Educación, da universidad de Murcia, Espanha, ele gentilmente se dispôs a responder ao professor Marcus Aurelio taborda de oliveira, da Universidade Federal do Paraná, um conjunto de questões sobre a escola e o seu papel, ontem e hoje.

* Antonio Viñao Frago é professor da universidade de Murcia, em Murcia, Espanha.

** Marcus taborda é professor da universidade Federal do Paraná, Brasil.

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Entrevista

1. ¿Qué aspectos de su trayectoria han permitido el desarrollo de sus estudios sobre la historia de la escuela1?

En los orígenes y en el desarrollo de mis estudios sobre la historia de la escuela (dando a este término el significado de institución o esta-blecimiento de educación formal) confluyen dos vías: una teóri ca y otra práctica. Esta última tiene su origen en mi experiencia como adminis-trador de la educación en los servicios provinciales del Ministerio de Educación en Murcia desde 1969 a 1982. Entre otras tareas (profesorado, becas, comedores y transporte escolar, planificación de necesidades de escolarización etc.), me correspondía la de gestionar, junto con los ser-vicios de arquitectura, todas las cuestiones relativas a la construcción de edificios escolares. Mi tarea como administrador de la educación me puso en contacto con directores de centros docentes, inspectores, profesores, asociaciones de padres, sindicatos etc. Es decir, me proporcionó una vi-sión, desde dentro, de la política educativa y de la aplicación real de las reformas y contrarreformas educativas, entre ellas de las que se llevaron a cabo en España en los años 70 del pasado siglo. Además, durante unos cinco años, trabajé en una empresa privada de trabajos urbanísticos, junto con arquitectos, economistas y sociologos, en la que, entre otras tareas, era el responsable de todo lo relacionado con los espacios comunitarios, los escolares entre ellos.

La vertiente teórico-reflexiva se fue desarrollando conforme me adentraba en los problemas y cuestiones prácticas. En 1979 comencé a trabajar, como profesor, en la por entonces sección de Pedagogía de la Facultad de Filosofía, Psicología y ciencias de la Educación (antes de dicha fecha fui profesor auxiliar durante cinco años en el departamento de derecho Político donde, a lo largo de la década de los 70, hice mi tesis doctoral sobre la política educativa en el nivel secundario de enseñanza en la España del siglo XiX). Pero con anterioridad a 1979 ya había publi-cado algún trabajo sobre, por ejemplo, las relaciones entre urbanismo y educación, la crisis de la educación secundaria tradicional o la evolución

1. Esta entrevista foi concedida a Marcus taborda, por e-mail, no mês de abril de 2009.

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de la formación profesional y había colaborado en el diseño del plan de ordenación urbana del nuevo campus universitario de Murcia.

una de las materias que impartí cuando comencé a dar clases en Pedagogía fue la de organización y dirección de centros docentes (por aquel entonces se me valoraba mas como administrador y gestor de la educación que como historiador de la misma). de un modo u otro, mi conocimiento de la realidad educativa, la enseñanza de esta disciplina y mi formación e intereses histórico-educativos me hicieron advertir que el cambio organizativo más importante que habia experimentado la escuela primaria en la España del siglo XX había sido el paso desde la escuela-aula de un solo maestro, y alumnos de todas las edades esco-larizables, a la escuela-colegio o graduada. Advertí también que dicho cambio (producido a lo largo de dicho siglo) había afectado no sólo a la organización escolar sino también al currículum y modos de enseñan-za y a lo que hoy llamamos la cultura escolar, tanto en sus aspectos mentales, y en las prácticas o modos de hacer, como en los materiales. durante algunos años centré mis investigaciones y clases en los cursos de doctorado sobre este cambio y, de un modo más específico, sobre la génesis y difusión en España de la escuela graduada. El resultado final sería un libro, publicado en 1990, con el título de Innovación pedagógica y racionalidad científica. La escuela graduada pública en España (1898-1936) cuyas ideas básicas he sintetizado, ampliado y puesto al día en “La renovación de la organización escolar: la escuela graduada”, un capítulo del libro colectivo titulado Psicología y pedagogía en la primera mitad del siglo XX, coordinado por Gabriela ossenbach y editado en 2003 por la universidad Nacional de Educación a distancia.

dicho libro me hizo tomar conciencia de la importancia que el espacio y el tiempo tenían, y tienen, en la organización y cultura esco-lares. Así que, cuando comencé a impartir la asignatura de Historia de la Educación, a mediados de la década de los 80, dediqué dos de las tres partes del programa (la tercera parte se refería a la evolución de las tec-nologías de la palabra desde la aparición de la escritura hasta el presente) al análisis de la evolución del espacio y el tiempo escolares. Producto del interés por estos dos temas serían diversos artículos, la coordinación del

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número 12-13 de 1993-94 de la revista Historia de la Educación sobre el espacio escolar en su perspectiva histórica (dos de cuyos trabajos, el de Agustín Escolano y el mío, aparecieron en Curriculo, espaço e sub-jetividade. A arquitectura como programa, editado en Brasil en 1998), y el libro titulado Tiempos escolares, tiempos sociales. La distribución del tiempo y del trabajo en la enseñanza primaria en España (1898-1936), publicado asimismo en 1998.

En síntesis, podría decirse que mis estudios sobre la historia de la es cuela son el resultado de la confluencia en el tiempo de experiencias prácticas, lecturas, reflexiones e investigaciones concretas sobre, en principio, la organización escolar (en especial sobre el espacio y el tiem-po escolares y las relaciones entre quienes forman parte de ella) y, pos-teriormente, sobre la cultura escolar y los procesos de escolarización y profesionalización docente.

2. La utopía de una escuela para todos todavía no ha sido realizada. El modelo escolar que ha prevalecido en el mundo tiene los rasgos europeos. ¿Ello puede ayudar a explicar por qué tanta gente (diferentes etnias, religiones etc.) está todavía aislada del proceso de escolarización?

La utopía de una escuela para todos parte, por lo general, de un supuesto que refuerza su mismo carácter utópico: el de que ha de ser la misma escuela para todos. Es decir, que la escolarización ha de llevarse a cabo siguiendo un único modelo o modo. Ello no es ni histórica ni so-cialmente cierto. Pueden, desde luego, señalarse todos los isomorfismos que se quieran entre las diferentes instituciones escolares que en el mundo han existido y existen. Al fin y al cabo se trata de lugares en los que, en determinados momentos de unos días y meses asimismo determinados, unas personas enseñan algo, lo que sea, y otras aprenden algo, lo que sea, que guarda alguna relación con lo enseñado. Pero con estos isomorfismos (formas, rasgos o aspectos semejantes) sucede lo mismo que con los iso-morfismos químicos. Si en el mundo de la química (del que las ciencias sociales han tomado dicho concepto) el término isomorfismo se utiliza para referirse a la propiedad de algunas substancias que, poseyendo una

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constitución química diferente, tienen la misma forma cristalina, en el mundo escolar, cuando se habla de isomorfismos, se olvida u oculta, en ocasiones, que lo que sucede en el interior del mismo, su substancia, puede ser radicalmente diferente e incluso irrepetible como fenómeno social. Pero eso sólo puede ser desvelado penetrando en el interior de las formas similares, aparentes o externas, en que cristaliza dicho mundo.

Por de pronto, el modo escolar de enseñanza y aprendizaje es un producto del medio urbano que primero se traslada, con su misma estruc-tura y objetivos, al medio rural y, con posterioridad, sin modificaciones sustanciales, a países o áreas en las que, asimismo, las concepciones del espacio, del tiempo y de los modos de conversación y comunicación son diferentes o radicalmente opuestas a las que habitualmente predo-minan en el ámbito de la institución escolar. Ello explica, en parte, las resistencias a la escolarización que se aprecian desde el comienzo de su extensión a grupos sociales diferentes de aquellos a los que en principio la escuela se dirigía.

Por otra parte, la imposición (pues de una imposición se trata) de un determinado modelo escolar a grupos sociales que ya poseen (o están en vías de poseer) otros medios y modos de enseñanza y aprendizaje, tiene su propia lógica. una lógica que deriva no sólo de la diferente capacidad de imposición y resistencia entre los diferentes grupos sociales, sino también de la misma fuerza de un modelo ligado, en el imaginario social, a la idea de progreso y, desde un punto de vista material, a la difusión de la cultura escrita y de los modos escritos de acreditación del conocimiento, saberes, destrezas, habilidades o, como se dice ahora, competencias.

3. Ivan Illich planteó la idea de la “desescolarización” de la sociedad. La cultura global, las redes, el acceso virtual al conocimiento y el mismo rechazo de la escuela por algunos parecen apuntar en esa dirección. ¿Usted cree que la escuela aún tiene sentido en nuestro mundo o se ha convertido en una institución anacrónica?

uno puede ver la botella medio vacía o medio llena. Es cierto, por un lado, que el acceso electrónico-digital al conocimiento (o al descono-

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cimiento, la banalidad y la vaciedad, como también sucede en el mundo de la letra impresa) puede hacernos pensar que la institución escolar se ha convertido en algo anacrónico. Pero esto ha sido históricamente lo usual. siempre ha sido mayor la información y el conocimiento que ha circulado y se ha transmitido fuera de la institución escolar (ya sea por vía oral, más o menos formalizada, o en el mundo familiar o laboral) que dentro de ella. Lo único que cambia, de una época o sociedad a otra, es el soporte por el que la información y el conocimiento han circulado y se han transmitido. En cuanto al rechazo a la forma escolar de transmisión de determinados conocimientos, también pueden hallarse ejemplos del mismo en otras épocas.

No creo que pueda tildarse de anacrónica (es decir, que no cumple función social alguna y que, por tanto, puede ser suprimida sin más) una institución en la que, en los países que se consideran más avanzados, todos los niños, adolescentes y jóvenes permanecen durante varias horas al día desde los 3 a los 18 años, siendo además éste el ideal o meta a alcanzar que se plantea en el resto de los países. otra cuestión es cuáles sean, o puedan ser, esas funciones sociales y cómo se adaptará al mundo de la cultura electrónica una institución conformada desde el Renacimiento hasta hoy por la cultura tipográfica. Es decir, cómo la institución escolar se modificará asimilando la existencia de nuevos soportes del saber que, como todas las tecnologías de la palabra, abren unas posibilidades y rele-gan o desvalorizan otras, además de afectar a funciones cognitivas tales como la memoria o la capacidad de establecer relaciones o asociaciones entre las cosas. Aun a riesgo de equivocarme, pienso que en este punto los cambios que se produzcan en el futuro en las tecnologías de la conver-sación y de la comunicación en el ámbito escolar y académico dependen más de la rentabilidad o posibles beneficios económico-empresariales de los mismos (como, por ejemplo, está sucediendo con la sustitución de las pizarras tradicionales por las digitales) que de consideraciones relativas a las consecuencias cognitivas que supone el uso de una u otra tecnología o soporte.

Por otro lado, frente al rechazo o supuesto anacronismo de la ins-titución escolar se halla un fenómeno contrapuesto: el de la progresiva

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“escolarización” de los procesos de transmisión y acreditación del saber que son propios del mundo académico. un fenómeno apreciable en la extensión del formalismo escolar (disposición de las aulas, modos de transmisión, títulos acreditativos, etc.) a espacios sociales de enseñanza y aprendizaje no escolares, en la “escolarización” material (utilización de los espacios escolares fuera de las horas lectivas) de actividades ex-traescolares, o en el énfasis puesto en la concepción formativa del medio urbano (las ciudades educativas).

4. La escuela no es exactamente una necesidad para toda la población de España, sobre todo para la población inmigrante. En Brasil ocurre lo mismo, pero con extensas parcelas de la población de los mismos brasileños. Como ha dejado de ser una senda para la progresión social, la escuela ha perdido parte de su atracción. ¿Cómo es posible sostener una institución que parece no tener sentido para todos, sobre todo para los más pobres?

La escuela ya no es el medio de progresión social que podía ser, para una minoría, en los años 50, 60 o 70 del pasado siglo, pero lo sigue siendo todavía en el imaginario social, de un modo especial para los inmigrantes (al menos en España). Existen, en efecto, otras vías más rápidas y efectivas (legales o no) para alcanzar fama y dinero (que es lo que muchos entienden por progresar socialmente) y los ejemplos pueden verse a diario en los medios de comunicación, en especial en la televisión. sin embargo, una gran mayoría de profesores de enseñanza primaria y secundaria (repito, al menos en España) coinciden en afirmar que, por lo general, los hijos de familias inmigrantes suelen ser mejores escolares que los procedentes de familias españolas desde el punto de vista de la atención en clase y del esfuerzo que muestran o llevan a cabo como alumnos, y que los mayores problemas de disciplina proceden de estos últimos y no de los inmigrantes. Las explicaciones de este hecho pueden ser varias. una de ellas, no la única, es que la escuela es uno de los escasos espacios sociales e institucionales en los que pueden ha-

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cerse valer legalmente aquellos que no tienen nada y que, por no tener, no tienen vínculos o redes sociales en los que apoyarse para progresar. otra explicación, desde luego, es la de que sus estructuras familiares favorecen las actitudes disciplinadas ante la autoridad del profesor o la organización escolar.

Por supuesto, el hecho de que la escuela pueda constituir un medio de promoción social es una percepción subjetiva de la población inmi-grante y, como tal percepción subjetiva, puede carecer de bases reales. Podemos estar también ante una estratagema o engaño que se mantiene por las clases hegemónicas – y por las clases medias y medias-bajas que buscan diferenciarse de los inmigrantes – por la simple razón de que sirve para interiorizar y legitimar las diferencias de capital cultural convirtiéndolas en diferencias genéticas, naturales y acordes con la organización y el orden social existente. todo ello ha de ser visto en el contexto, más amplio, de una sociedad que ha logrado hacer realidad el modelo de la democracia clásica ateniense: una democracia restringida a los ciudadanos de la que se excluía a los extranjeros y a los esclavos – dos categorías en ocasiones coincidentes. En efecto, los inmigrantes carecen del derecho al voto. son ciudadanos a medias. Y, desde el punto de vista escolar, se concentran en los centros docentes de titularidad pública.

Por otra parte, y en relación con las clases medias-bajas y bajas, las familias españolas se muestran en general, en todas las encuestas, mo-deradamente satisfechas con el sistema escolar y con la educación que reciben sus hijos. No hay que olvidar que España ha pasado en treinta años de ser un país de emigrantes a ser otro, bien diferente, de inmigran-tes. Ello explica en parte que los padres se hallen satisfechos, en general, con la educación de sus hijos: al menos desde un punto de vista material dicha educación es mejor que la que ellos o sus padres recibieron. La demanda social de educación se reduce, en muchos casos, al acceso a un puesto escolar en condiciones materiales dignas, no a los aspectos rela-tivos a la calidad de la enseñanza recibida. de un modo u otro, todas las encuestas indican que la educación no es considerada por los españoles un tema prioritario o preocupante a diferencia de, por ejemplo, el paro, el terrorismo, la delincuencia, la drogadicción, la vivienda o incluso la justicia. Paradójicamente, ello coincide en el tiempo con la creciente

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difusión de libros y artículos de la prensa diaria o de revistas en los que, basándose en su experiencia personal y en una interpretación catastrofista de los informes pisa2, profesores (en especial de las enseñanzas media y universitaria y del campo de las humanidades), escritores, políticos y periodistas de diverso signo mantienen la existencia de un descenso del nivel educativo de las nuevas generaciones en relación con las anteriores. un tipo de literatura, de índole apocalíptica, que en diversas ocasiones he calificado de “literatura del desastre” por utilizar la expresión acuña-da por los historiadores para referirse a la multitud de libros y artículos escritos para indagar las causas de la derrota española frente a Estados unidos en 1898 y la pérdida de los últimos restos del imperio colonial español (cuba y Filipinas).

5. Nociones como las de cultura escolar, forma escolar o gramática escolar tienen gran presencia en las investigaciones educativas, incluso en la historia de la educación más reciente. La mirada a la “caja negra” o el énfasis en el proceso de escolarización ¿no puede alejar al investigador de los problemas más amplios de la sociedad? ¿No se corre el riesgo de convertirse en un especialista de la escuela que no es capaz de hacer la crítica de la sociedad y de la cultura?

En efecto, este es un peligro que se corre. Pero es sólo un peligro, no una necesidad. No tiene por qué ser necesariamente así. En este tema sucede lo mismo que sucede con la microhistoria: tanto se analiza un árbol determinado que no vemos el bosque. o viceversa: tanto nos dedi-camos, en los macro-enfoques, a describir los contornos del bosque y su estructura interna que tendemos a creer que todos los árboles son iguales o que, en todo caso, las diferencias entre ellos no son relevantes.

2. sigla en inglês del Programme for international student Assessment (Programa internacional para la Evaluación de Estudiantes), de la ocdE – organización para la cooperación y el desarrollo Econômico (N. do E.).

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La historia material, o no, de la escuela puede acabar en pura erudi-ción, enumeración o yuxtaposición de datos e información irrelevante y descontextualizada. Pero esto puede suceder también en cualquier otro tipo de relato histórico. creo recordar que era Barthes quien decía que una de las características de los relatos históricos era que no necesitaban justificar la presencia de toda la información incluida en los mismos: que la referencia a un personaje, dato o acontecimiento pasado se justificaba por el simple hecho de tratarse de una información que ya era historia. Ese es el peligro de la erudición sin sentido: llenar páginas y páginas, sea relevante o no lo que se escribe. Todo se reduce, en definitiva, a saber cuándo una información o dato es relevante, o no, en función del tema tratado, de los destinatarios del texto y de los propósitos con los que se escribe. como en una ocasión dejó claro Foucault, es preciso también atender a detalles o cuestiones en apariencia poco relevantes, incluso minucias, que acumuladas nos dan la clave para entender fenómenos más amplios y prolongados en el tiempo. Ahí reside la habilidad del historiador: en la capacidad para establecer relaciones entre aspectos aparentemente inconexos, para descubrir el mundo en un grano de arena, o para mostrar el mundo en su globalidad, o aspectos generales del mismo, sin perder de vista los detalles significativos que lo componen.

6. En una conferencia reciente usted afirmó que las reformas educativas se suceden para no cambiar nada de hecho. Este parece ser un problema común a distintos países, incluidos España y Brasil. ¿Qué pueden hacer los investigadores y la universidad frente a los burócratas y los políticos que siempre intentan plantear la falsa idea que sus acciones son novedosas?

Las reformas “desde arriba”, llevadas a cabo por gobiernos cen-trales, regionales o municipales con el apoyo de “expertos” en temas educativos, sólo rozan superficialmente, formalmente, lo que sucede en las instituciones educativas y en las aulas. En especial cuando se trata de reformas curriculares que afectan a qué se enseña, cómo se enseña, cómo

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se aprende y cómo se evalúa lo que se enseña o aprende. Lo habitual es que den lugar a fenómenos de hibridación, burocratización, adaptación formal a lo exigido y resistencia pasiva o activa. Para quien, como es mi caso, ha vivido a lo largo de su carrera profesional – como funcionario del Ministerio de Educación o como profesor en el ámbito de la ciencia de la educación – once reformas educativas con rango de ley y otras tantas reformas parciales, abortadas o en proyecto, el análisis del lanzamiento, aprobación y aplicación de las reformas educativas en general, y de todas ellas en particular, ha constituido un auténtico instrumento de supervi-vencia. sinceramente, soy bastante escéptico en este tema. Al igual que, desde el punto de vista político, temo a los salvapatrias, en el mundo de la educación temo a quienes, con altas dosis de presentismo, adanismo – o evismo, si de una ministra se trata – mesianismo y ausencia de memoria histórica, se presentan ante la opinión pública como los reformadores de una educación en crisis cuyo remedio sólo ellos conocen.

sabemos hoy tanto sobre el triple carácter utópico, retórico y práctico de las reformas educativas, sobre las múltiples causas que explican su relativo fracaso (no financiación suficiente, vaivenes políticos, diagnósti-cos erróneos, imprevisiones, efectos no queridos, objetivos y calendarios irreales, resistencias gremiales, ausencia de una visión global del sistema educativo, predominio del formalismo burocrático y de la visión a corto plazo, falta de apoyos sociales, incapacidad de los gobiernos nacionales para llevar a cabo auténticas reformas, etc.) que lo asombroso es que todavía alguien se ilusione cuando el político de turno lanza una reforma más sobre el mundo de la enseñanza. Eso sólo confirma que la credulidad, derivada de la necesidad de creer en lo que no existe, sigue siendo una de las características del ser humano.

Frente a esta realidad ¿qué se puede hacer desde el ámbito de la investigación y de la universidad? como mínimo dos cosas. Primero, desmitificar, desmontar, los discursos reformistas mostrando su inefica-cia, sus incoherencias y sus puntos débiles, en general y en cada caso particular. Es decir, difundir los argumentos (ya expuestos por un buen número de analistas de las reformas educativas como sarason, cuban o Popkewitz, entre otros) que socavan la creencia en las virtudes tauma-

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túrgicas de las mismas. Al mismo tiempo – no nos podemos quedar en la simple demolición – habría que emprender tres tareas.

Una de ellas es mantener que lo único que justifica la existencia de ministerios de educación u otros organismos similares a nivel central o regional – y el salario de quienes los ocupan – es que su labor o acti-vidad se dirija a garantizar el derecho a una educación de calidad para todos en condiciones igualitarias, a llevar a cabo políticas igualitarias y de cohesión social – es decir, no segregadoras ni partidistas en favor de una u otra confesión religiosa o ideología –, y a crear las condiciones y el marco legal, financiero, material y formativo más apropiado para fa-vorecer la innovación y la mejora mediante el apoyo a las redes y grupos de profesores de educación ideológicamente pública.

La segunda tarea es la de convencer a los profesores, individualmente considerados, de que dejen de ver de forma aislada sus problemas y de que entren en contacto con otros profesores de diferentes edades, de su misma disciplina y de otras, de su nivel educativo y de otros, para, de un modo estable y organizado, conocer cómo han resuelto ellos sus proble-mas y reflexionar conjuntamente sobre su tarea, sobre las características y el funcionamiento del sistema educativo en el que trabajan, y sobre ese mundo, el de la educación, al que se han dedicado profesionalmente.

La tercera tarea, por último, nos concierne a los profesores univer-sitarios de un modo particular. se trata de hacer frente a los problemas que plantea el creciente divorcio entre la investigación universitaria en el campo de la educación y el mundo de la práctica educativa. un divorcio, cuyos inicios se hallan en la configuración de la pedagogía como ciencia en el siglo XiX, y que ha llevado a la escisión total entre dicha actividad científica y la tarea docente del profesorado en sus diferentes niveles, entre lo que lo se ha dado en llamar la “alta” y la “baja” pedagogía. Mientras unos investigan sobre el cambio y la innovación en educación, otros han de vérselas con la dura realidad diaria de las aulas. Mientras unos se constituyen en expertos, otros se las arreglan como pueden para sobrevivir a las sucesivas reformas. Por ello abogo, frente a las tendencias dominantes, por la configuración de equipos de investigación en los que, con tareas relacionadas y situadas en un mismo nivel de importancia,

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trabajen conjuntamente profesores de diferentes niveles educativos en proyectos de investigación llevados a cabo en el ámbito universitario o en otros ámbitos; es decir, por el reconocimiento a todos los efectos de la tarea o función reflexivo-investigadora del profesorado de todos los niveles educativos.

7. ¿Cuál es el futuro de los estudios históricos sobre la escuela? ¿Qué sentido tienen en un mundo de ritmos acelerados y cambios violentos?

desde un punto de vista pragmático, realista, pienso que buena parte de la investigación histórico-educativa sobre la escuela como institución va a estar relacionada, en los próximos años, con el museísmo pedagógico o, desde una perspectiva más amplia, con la protección, conservación y estudio de la memoria y el patrimonio histórico-educativo. Entre otras razones – nostálgicas, fetichistas – porque va a haber fondos públicos y privados para este fin, y porque se trata de investigaciones que pueden contar con un amplio apoyo y resonancia en la opinión pública y en los medios de comunicación. Al fin y al cabo vivimos, cada vez más, en so-ciedades en las que la experiencia del paso por instituciones educativas se ha convertido en un rasgo biográfico común a todos, o a casi todos los que viven en ellas, durante su infancia, adolescencia y juventud. dicha experiencia ha pasado a formar parte de la memoria compartida, insti-tucional, social y colectiva de la mayoría de la población adulta. Nada tiene por ello de extraño que este tipo de estudios – en especial si son de índole conmemorativa – goce en el futuro de una amplia audiencia pública.

otra cosa es la historia socio-crítica de la institución escolar, no nece-sariamente contrapuesta a la anterior. su futuro creo que seguirá estando restringido a un reducido número de especialistas en el tema. Aun así, aun siendo una tarea minoritaria, la considero necesaria y conveniente. Frente a la doble tendencia de los seres humanos a dulcificar y adornar el pasado, a acomodarlo a nuestros intereses y modos de ver el mundo, a hacerlo en suma soportable y utilizable, y a construir mitos a partir del

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mismo, el historiador tiene una doble y relacionada función incómoda. Por un lado, la de ser el psicoanalista – siempre y cuando no renuncie a psicoanalizarse a sí mismo y al contexto en el que vive y trabaja – de la memoria individual, institucional y colectiva; el que tiene el deber de recordar no sólo que eso que llamamos el pasado es una construcción social e individual, sino también lo que casi nadie o sólo unos pocos quieren recordar: el pasado de los vencidos, el de los perdedores. Por otro, la de convertirse – dura, ingrata e inexorable tarea – en el desmi-tificador constante y tenaz de cuantos mitos – tradiciones y pasados inventados – han construido, y están continuamente construyendo, los seres humanos.

Endereço para correspondência:

Antonio Viñao Fragodepartamento de teoria e Historia de la Educación

Facultad de Educación universidad de Murcia

Apartado 4.021 – Murcia/España30080

E-mail: [email protected]

Marcus tabordadepartamento de teoria e Prática de Ensino

universidade Federal do Paraná Rua General carneiro, 460, 5 andar

centro, curitiba-PR cEP 80060-150

E-mail: [email protected]

Recebido em: 14 jul. 2009Aprovado em: 20 jul. 2009

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A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos, dossiês, traduções, resenhas e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionados à história e historiografia da educação, de autores brasileiros ou estrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o direito de encomendar trabalhos e compor dossiês.

os artigos devem ser inéditos e apresentar resultados originais de trabalhos de investigação e/ou de reflexão teórico-metodológica.

As traduções devem versar sobre temáticas significativas para o campo da história e historiografia da educação.

As resenhas devem efetuar um estudo crítico de textos recentemente publicados ou de obras consideradas clássicas na área. devem constar, obrigatoriamente, a referência bibliográfica completa da obra, a descrição sumária de sua estrutura, a indicação de seu conteúdo geral e tópicos fundamentais, dados biobibliográficos do(s) autor(es), não sendo aconselhável a utilização de título, epígrafe ou figuras. Espera-se que contenha comentários e julgamentos sobre as idéias contidas na obra, os termos e metodologia empregados, a relevância do tema e da abordagem para a área e a posição do(s) autor(es) no debate acadêmico.

As notas de leitura são apontamentos sucintos a respeito de obras recentemente publicadas, prestando-se, fundamentalmente, a destacar sua pertinência e interesse para a área e a especialidade desta publicação. Seleção dos trabalhos

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área da história da educação. os dossiês serão analisados na íntegra, e pode ocorrer que nem todos os textos que os compõem sejam aprovados. Em caso de aprovação de um ou dois textos, estes poderão ser publicados isoladamente. só serão publicados como dossiês um conjunto mínimo de três artigos aprovados pelos pareceristas.

As resenhas, notas de leitura e traduções são avaliadas pela Comissão Editorial.

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Revista Brasileira de História da Educaçãosetembro/dezembro 2009 n. 21

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Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná: 1912-1922Névio de Campos

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)Dorval do Nascimento

A política educacional catarinense no projeto desenvolvimen-tista modernizador da década de 1960Letícia Carneiro Aguiar

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do sul (1940-1960)Claudemir de Quadros

Resenha

Adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcas-mo pedagógicoJeová Santana

Relação Dos Pareceristas Ad Hoc (2009)

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Revista Brasileira de História da Educaçãomaio/agosto 2009 n. 20

Artigos

Ação privada e poder público na luta pela instrução: Portugal na segunda metade do século XiXWenceslau Gonçalves Neto e Justino Magalhães

A “vulgata histórica” ou o que todo “indivíduo de certa cultura” deveria conhecer sobre o mundo no início do século XXItamar Freitas

Políticas de ações negativas e aspirações de famílias negras pelo acesso à escolarização na província do Maranhão no século XiXMariléia dos Santos Cruz

colônia orfanológica isabel: uma escola para negros, índios e brancos (Pernambuco 1874-1889)Adlene Silva Arantes

Livros para a escola primária carioca no século XiX: produção, circulação e adoção de textos escolares de professoresGiselle Baptista Teixeira e Alessandra Frota de Schueler

o ensino da leitura e escrita segundo Antônio d’Ávila: Práticas escolares (1940)Thabatha Aline Trevisan

A revista Educação Physica (1932-1945): fórmula editorial, prescrições educacionais, produtos e publicidadeOmar Schneider e Maria Rita de Almeida Toledo

Nota de leitura

Rui Barbosa: Pensamento e ação – uma análise do projeto modernizador para a sociedade brasileira com base na questão educacionalSérgio Paulo Aurnheimer Filho

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Revista Brasileira de História da Educaçãojaneiro/abril 2009 n. 19

Artigos

organismos estatales de selección y control de manuales escolaresMaría López García

A educação na itália fascista (1922-1945)José Silvério Baia Horta

A contribuição de Aléxis de tocqueville por meio da obra A democracia na América para a elaboração das argumentações de tavares Bastos sobre a organização escolar e político-institucional no BrasilJosefa Eliana Souza

A Reforma Antônio Carneiro Leão no final dos anos de 1920Cristina Araújo

dos “discursos fundadores” à criação de uma “memória coletiva”: formas de como se escrever a(s) história(s) da universidade de são PauloDiogo da Silva Roiz

os primórdios da universidade de são PauloMacioniro Celeste Filho

Nem “programa de índio”, nem “presente de grego”: uma crítica a concepções teórico-metodológicas em pesquisas sobre educação escolar indígena, em Mato Grosso e Mato Grosso do sul (1995-2001)Léia Teixeira Lacerda Maciel e Giovani José da Silva

Resenha

Educação, história e cultura no Brasil colôniaCézar de Alencar Arnaut de Toledo e Marcos Ayres Barboza

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setembro/dezembro 2008 n. 18

Artigos

o ensino da escrita, da leitura, do cálculo e da doutrina religiosa nas escolas de primeiras letras da província de Goiás no século XiXSandra Elaine Aires de Abreu

Leituras de formação: raça, corpo e higiene em publicação pedagógica do início do século XXRegina Cândida Ellero Gualtieri

História da matemática e positivismo nos livros didáticos de Aarão Reis Maria Laura M. Gomes

Educação dos índios na Amazônia do século XViii: uma opção laicaMauro Cezar Coelho

das escolas mistas industriais ao grupo escolar: a educação do operário viabilizada na companhia taubaté industrial (cti) e divulgada pelo cti Jornal (1937-1941)Mauro Castilho Gonçalves

ser stella: um estudo sobre o papel da mulher e da educação feminina na Juiz de Fora do início do século XXAna Luiza de Oliveira Duarte Ferreira

Tradução

A história das disciplinas escolaresAntonio Viñaotrad. de Marina Fernandes Braga

Nota de leitura

História da educação pela imprensaCynthia Lushiuen Shieh

Relação de pareceristas ad hoc 2008

Revista Brasileira de História da Educação

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maio/agosto 2008 n. 17

Artigos

o manual didático Práticas escolares: um estudo sobre mudanças e permanências nas prescrições para a prática pedagógicaVera Valdemarin

Mapas de freqüência a escolas de primeiras letras: fontes para uma história da escolarização e do trabalho docente em são Paulo na primeira metade do século XiXDiana Gonçalves Vidal

DossiêConcepções de universidade e de educação superior no Brasil nos anos de 1920 e 1930

ApresentaçãoJosé Carlos Souza Araújo

Concepções de universidade e de educação superior no inquérito de 1926 de Fernando de AzevedoJosé Carlos Souza Araújo

carneiro Leão e a questão da educação superiorMaria Cristina Gomes Machado

o “Manifesto dos Pioneiros” de 1932 e a cultura universitária brasileira: razão e paixõesMarcus Vinicius da Cunha

A universidade brasileira na Reforma Francisco campos de 1931José Carlos Rothen

Anísio teixeira e a universidade do distrito FederalMaria de Lourdes Albuquerque Fávero

Tradução

A Escola de Psicologia de Genebra em Belo Horizonte: um estudo por meio da correspondência entre Edouard claparède e Hélène Antipoff (1915-1940)Martine Ruchattrad. de José Gonçalves Gondra e Ana Maria Magaldi

Resenha

A higienização dos costumes: educação escolar e saúde no projeto do instituto de Hygiene de são Paulo (1918-1925)Maria Aparecida Augusto Satto Vilela

Revista Brasileira de História da Educação

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janeiro/abril 2008 n. 16

Artigos

Emigrantes, escuelas y regeneración social: Los emigrantes gallegos a América y el impulso a la educación (1879 – 1936)Antón Costa Rico

Reabrindo o debate sobre Nagle, a educação e a saúde na historiografia brasileiraLuiz Antonio de Castro Santos

intelligentsia e intelectuais: sentidos, conceitos e possibilida-des para a história intelectualCarlos Eduardo Vieira

Bernardo Guimarães, pensador socialLuciano Mendes de Faria Filho

um bacharel na secretaria do interior e justiça: o intelectual Delfim Moreira e a reforma do ensino em Minas GeraisIrlen Antônio Gonçalves

o pensamento de Edward Palmer thompson como programa para a pesquisa em história da educação: culturas escolares, currículo e educação do corpoMarcus Aurélio Taborda

difusão, apropriação e produção do saber histórico: A Revista Brasileira de História da Educação (2001-2007) Ana Maria Galvão, Dislane Zerbinatti Moraes, José Gonçalves Gondra e Maurilane de Souza Biccas

Resenha

A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades Alessandra Frota Martinez de Schueler e José Cláudio Sooma Silva

A história do currículo oficial de ensino fundamental e médio no Brasil Diogo da Silva Roiz

Revista Brasileira de História da Educação

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Revista Brasileira de História da Educaçãosetembro/dezembro 2007 n. 15

DossiêHistória da Profissão Docente no Brasil e em Portugal

ApresentaçãoA história da profissão docente no Brasil e em Portugal: aproximações e distanciamentosAna Waleska Pollo Mendonça e Jorge M. Nunes Ramos do Ó

A gênese de uma profissão fragmentadaAna Waleska Pollo Mendonça e Tereza Maria Rolo Fachada Levy Cardoso

A emergência de escolas normais no Rio de Janeiro do século XiX: Escola Normal do Município da corte e Escola Normal de camposSonia de Castro Lopes e Silvia Alicia Martinez

Aspectos da imprensa periódica educacional em Lisboa e no Rio de Janeiro (1921-1963)Ana Lúcia Cunha Fernandes, Libânia Nacif Xavier e Luiz Miguel de Carvalho

Valores católicos e profissão docente: um estudo sobre representações em torno do magistério e do “ser professora” (1930-1950)Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi e Carla Villanova Neves

Artigos

o avesso das normas: indolentes, vadios, imprudentes e outros tipos escolaresAndré Paulilo

santa catarina na iV conferência Nacional de Educação: por uma Escola Nova barriga-verde Ticiane Bombassaro

Resenha

Pampedia (Educación universal)Por Gladys Mary Teive Auras

Relação de pareceristas ad hoc 2007

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