2017 cenário 45 anos - fenacor.org.br · Walter Sperandio estava lá, no dia 24 de ... Quem não...

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do incêndio no edifício Andraus 45 anos O sinistro que aconteceu em São Paulo demonstra o amadurecimento do setor ao longo de quatro décadas, a função do corretor de seguros no gerenciamento de riscos e o importante papel social do seguro em situações de calamidade Por Elaine Lisbôa Considerado palco do primeiro grande incêndio em prédios elevados do Brasil, o edifício Andraus impul- sionou o governo e o mercado de seguros a repensar o formato de prevenção de acidentes e segurança patri- monial. Em 2017, 45 anos após o sinistro, são visíveis as transformações de ordem legal, de gerenciamento de riscos e de técnicas das corporações de bombeiros, que minimizam as perdas e os traumas de uma sociedade marcada pelas calamidades. Walter Sperandio estava lá, no dia 24 de fevereiro de 1972, trabalhando como escriturário no antigo Grupo Segurador Novo Mundo. Sua função era preencher as relações de segurados na máquina de datilografar e veri- ficar os valores dos prêmios. Quando o prédio começou a pegar fogo, ele se lembra da falta de informação para lidar com um incêndio. "Naquela época, não existiam essas placas sinalizando para não entrar em elevador em caso de incêndio. Por intuição, mobilizei o pessoal da empresa a subir pela escada, mas muitas pessoas morreram dentro dele", recorda. O prédio, segundo ele descreve, tremia por inteiro e as escadas estavam lotadas de pessoas. As que conseguiram subir ao topo do prédio, onde ficava um heliponto de- sativado, fecharam a porta de acesso. "Ficamos travados no 17º andar por várias horas. Quando desci as escadas para ver se tinha outra opção de saída, os bombeiros estavam colocando uma escada no 14º andar para tirar as pessoas do prédio. Voltei para avisar meus colegas e depois descemos. Era quase 19h quando cheguei à rua e fui socorrido por uma ambulância", descreve. Do Grupo Segurador Novo Mundo, uma pessoa faleceu: o Chiquinho, que servia o café. "Fiquei cerca de três semanas sentindo cheiro de fio queimado, andando com colírio para diminuir a vermelhidão dos olhos. Várias vezes me peguei questionando se realmente estava vivo ou se era a minha alma que andava. Pensava: será que morri? Quem não passou por isso não consegue entender o que é estar em um prédio queimando. Até cenário 14 JCS AGOSTO 2017

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do incêndio no edifício Andraus45 anos

O sinistro que aconteceu em São Paulo demonstra o amadurecimento do setor ao longo de quatro décadas, a função do corretor de seguros no gerenciamento

de riscos e o importante papel social do seguro em situações de calamidade

Por Elaine LisbôaConsiderado palco do primeiro grande incêndio em

prédios elevados do Brasil, o edifício Andraus impul-sionou o governo e o mercado de seguros a repensar o formato de prevenção de acidentes e segurança patri-monial. Em 2017, 45 anos após o sinistro, são visíveis as transformações de ordem legal, de gerenciamento de riscos e de técnicas das corporações de bombeiros, que minimizam as perdas e os traumas de uma sociedade marcada pelas calamidades.

Walter Sperandio estava lá, no dia 24 de fevereiro de 1972, trabalhando como escriturário no antigo Grupo Segurador Novo Mundo. Sua função era preencher as

relações de segurados na máquina de datilografar e veri-ficar os valores dos prêmios. Quando o prédio começou a pegar fogo, ele se lembra da falta de informação para lidar com um incêndio. "Naquela época, não existiam essas placas sinalizando para não entrar em elevador em caso de incêndio. Por intuição, mobilizei o pessoal da empresa a subir pela escada, mas muitas pessoas morreram dentro dele", recorda.

O prédio, segundo ele descreve, tremia por inteiro e as escadas estavam lotadas de pessoas. As que conseguiram subir ao topo do prédio, onde ficava um heliponto de-sativado, fecharam a porta de acesso. "Ficamos travados no 17º andar por várias horas. Quando desci as escadas

para ver se tinha outra opção de saída, os bombeiros estavam colocando uma escada no 14º andar para tirar as pessoas do prédio. Voltei para avisar meus colegas e depois descemos. Era quase 19h quando cheguei à rua e fui socorrido por uma ambulância", descreve.

Do Grupo Segurador Novo Mundo, uma pessoa faleceu: o Chiquinho, que servia o café. "Fiquei cerca de três semanas sentindo cheiro de fio queimado, andando com colírio para diminuir a vermelhidão dos olhos. Várias vezes me peguei questionando se realmente estava vivo ou se era a minha alma que andava. Pensava: será que morri? Quem não passou por isso não consegue entender o que é estar em um prédio queimando. Até

cenário14 JCS AGOSTO 2017

hoje não gosto de ouvir barulho e de entrar em elevador, mas posso dizer que ali foi um recomeço pra mim. Eu já me considerava morto, mas sobrevivi", diz Walter.

Memória de São PauloO processo do Andraus foi exposto na mostra “Do

papel à era digital”, promovida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de 14 a 25 de agosto. O JCS teve acesso aos 10 volumes, repletos de depoimentos das vítimas, fotos da perícia, laudos do IML, pareceres do Minis-tério Público, reportagens dos jornais da época, entre outros arquivos.

Por ironia, o prédio comercial, com 32 andares, abrigava diversas empresas de seguros, entre elas [nomes conforme constam no processo], a Susep - Ministério Indústria e Comércio (5º andar), a Companhia Adriá-tica de Seguros (5º, 16º e 17º andar), o já mencionado Grupo Segurador Novo Mundo (8º e 6º andar), Th e Yorkshire Insurance Company Ltda (6º e 7º andar), a Companhia de Seguros Varejistas (10º andar) e Th e Tokio Marine and Fire Insurance Company Ltda (18º e 24º andar).

Ângela Margarete Caniato, coordenadora de Gestão Documental, área ligada ao órgão da Secretaria de 1ª Instância da Presidência da República, responsável pela exposição, afi rma que o incêndio do edifício An-draus gerou um processo de responsabilidade. “Além de ter a magnitude do triste acontecimento, teve um forte impacto nas construções posteriores com relação aos aspectos de segurança. O sinistro do Andraus foi próximo ao que aconteceu no edifício Joelma e ambos motivaram todas as mudanças com relação à segurança predial", explica.

Relatos do sinistroO prédio não possuía sistema de combate ao fogo,

hidrantes ou portas corta-fogo. O incêndio começou entre a primeira e a segunda sobreloja das Casas Pirani, uma grande e já extinta loja de departamentos, que ocupava o subsolo, o térreo e as sobrelojas do edifício. Como resultado, as chamas espalharam para os andares superiores e os trabalhadores se viram encurralados. A maioria conseguiu chegar ao terraço, onde havia um heliponto, raro no período e que foi essencial para a sobrevivência das pessoas. Os números ofi ciais registram 16 mortos e 336 feridos.

De acordo com o depoimento do 3º sargento da Polícia Militar, Milton Serafi m da Silva, que consta nos autos, o Corpo de Bombeiros foi enviado ao local do incêndio por volta das 16h20min e a operação de resgate se estendeu até quase 22h, com o auxílio de pilotos em helicópteros. "Fiquei no prédio, acalmando as pessoas que estavam em estado de pânico. Foram cerca de 200 pessoas em precário estado de saúde, com ferimentos generalizados, necessitando de socorros urgentes [...] Irmanados por dois grandes princípios: fraternidade humana e amor ao próximo, trabalhamos ardorosamente até o fi nal da luta pela sobrevivência de cada um", relatou Silva, em 23 de abril do mesmo ano.

Até os dias atuais, ainda há controvérsias sobre a ori-gem do incêndio. No entanto, o parecer do Ministério Público, datado de 1º de novembro de 1974, considera que "o fogo iniciou em cartazes confeccionados com material plástico por estruturas de madeiras". De acor-do com o documento, "algumas testemunhas vinham observando a colocação dos cartazes e sua manutenção, e temiam a eclosão de incêndio, manifestando seus temores à administração do prédio e seus zeladores. São, portanto, criminalmente responsáveis as pessoas que determinaram a indevida colocação dos cartazes no perigoso local e as que não providenciaram sua retirada de lá". O órgão denunciou Nilson Cazzari, Francisco Arantes e Augusto Pirani.

Pela sentença, em 5 de setembro de 1975, Arantes e Pirani foram absolvidos, enquanto que Cazzari foi con-denado a 2 anos de detenção. O réu apelou e, em março do ano seguinte, também foi absolvido da acusação.

As lições de segurançaEzaqueu Antônio Bueno, corretor de seguros e coor-

denador da Comissão de Riscos Patrimoniais do Sin-cor-SP, na época, era sargento do Corpo de Bombeiros em Jundiaí. Ao comentar sobre os amigos bombeiros que participaram do salvamento das vítimas, lembra-se da maneira precária com que eram tratadas as questões de segurança. "Na década de 70, não existiam políticas de gerenciamento de risco, tanto que o Andraus tinha um luminoso na Pirani totalmente fora de norma,

até o dia em que deu o curto circuito e o fogo subiu. Após o sinistro, o mercado e o governo começaram a repensar as questões de segurança e prevenção. E, dois anos depois, com o incêndio no edifício Joelma, o tema voltou a entrar em pauta, fortalecendo a inclusão de novas medidas", reforça.

Esse incêndio gerou Grupos de Trabalho (GTs) para estudos de reestruturação de segurança. Foram criados Comandos de Corpo de Bombeiros dentro das Polícias Militares e a prefeitura de São Paulo passou a atualizar seu Código de Obras, criado em 1929 e ajustado, até então, apenas em 1955. "Tudo era muito precário. Não existia qualquer proibição relacionada a fumo ou portas corta-fogo. Com esses sinistros, o Corpo de Bombeiros começou a exigir diversas coisas, como saídas de emer-gências e extintores bem localizados", comenta Bueno.

Mal começaram a acontecer as primeiras mudanças, dois anos depois, São Paulo enfrentava seu segundo grande sinistro: o incêndio no edifício Joelma e, coin-cidentemente, no mês de fevereiro. Pela semelhança dos acontecimentos e proximidade temporal, o acidente causou grande impacto, impulsionando a prática das medidas estabelecidas durante os estudos dos GTs.

Então, foram estabelecidos o Decreto Municipal nº 10.878, instituindo normas especiais para segurança dos edifícios; a Lei Nº 8266, aprovando o código das edifi cações; a NB 208 sobre saídas de emergências em edifícios altos; a NR-23, de proteção contra incêndios na relação entre empregador e empregado, entre outras.

"Calamidades acabam colaborando para a constru-ção de atos normativos, trazendo níveis sofi sticados de regras para instalações e, assim, garantindo proteção à vida e patrimônio das pessoas", pontua o executivo da International Risk Veritas Advisors & Solutions, Alfredo Chaia.

Especialista em gerenciamento de riscos, Chaia diz que o aprendizado com sinistros não é algo que acon-tece apenas no Brasil. O mundo se transforma com lições deixadas pelas tragédias. "Nos EUA, a norma de proteção e combate a incêndio foi e continua sendo atualizada com base nos grandes sinistros", exemplifi ca.

Foto tirada minutos após o início do sinistro, com os primeiros carros de bombeiros. O fogo começou em uma das lojas da Pirani e o forte vento (30 km/h) elevou as chamas a mais de 300 m de altura.

Segundo o Corpo de Bombeiros da época, contribuiu para a propagação do fogo a inexistência de divisão de alvenaria, os vãos livres, a falta de lajes inteiriças, grande quantidade de tapetes, papel, celuloide e botijões de gás.

EDIFÍCIO ANDRAUSConstrutor: Roberto Andraus

Inauguração: 1962

Localização: esquina da Av. São João com a Rua Pedro Américo

Descrição: 32 andares e 115m de altura

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Transformações do seguroA reconstrução do Andraus fi cou avaliada em Cr$ 9

milhões. Felizmente, o seguro do prédio, feito com a seguradora Yorkshire Insurance Company, tendo o IRB como ressegurador, era de CR$ 11 milhões.

Segundo reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 2 de março de 1972, no mesmo dia do incêndio o Ministro da Indústria e do Comércio, Pratini de Morais, chegou a enviar um telegrama ao presidente do IRB, José Lopes de Oliveira, solicitando que as indenizações dos segurados fossem pagas o mais rápido possível. "O seguro tem um papel social incrível de repor os prejuízos e minimizar as perdas, dando condições para recome-çar", enfatiza o corretor de seguros Ezaqueu Bueno.

O próprio mercado de seguros passou por uma onda de ajustes em seu formato de comercialização da pro-teção contra incêndio. De 1964 até 1975, o seguro era contratado com as coberturas básicas de incêndio, queda de raio e explosão, podendo incluir coberturas adicionais. Em 1975, ou seja, três anos após o incêndio no Andraus e apenas um ano após a calamidade do edifício Joelma, o IRB aprimorou essa carteira pela de riscos diversos.

"Ao construir as condições desse seguro, o IRB teve o cuidado de atender, na cobertura básica, o estabele-cido pelo Código Civil, art. 1.346, que até hoje torna obrigatória a contratação do seguro de toda a edifi ca-ção, não somente em decorrência de incêndio, mas de todas as situações que possam causar destruição total ou parcial, elencando todas as probabilidades dentro do conceito legal", explica o gerente técnico do Sincor-SP, Alexandre Del Fiori.

Por volta do ano 2000, foi criado o seguro multir-risco condomínio, que passou a ser o mais empregado pelas seguradoras, fazendo com que o seguro de riscos diversos fosse utilizado apenas como referência. "Tanto o seguro de incêndio quanto o de riscos diversos, na prática, funcionavam como um multirrisco. As co-berturas adicionais consideravam, por exemplo, perda de aluguel, equipamentos e rateio parcial. Por isso, foi natural para o mercado passar a aderir à nova carteira", completa Fiori.

O importante papel do corretorBueno diz que, quando deixou o Corpo de Bombeiros

para atuar no mercado de seguros, observou diversos erros nas apólices. Então, passou a contribuir na contratação dos produtos, sinalizando sempre para que seus clientes adotassem políticas de segurança. "O corretor de seguros que atua em riscos patrimoniais tem a obrigação de orientar o cliente nos itens de gerenciamento de riscos. A Comissão de Riscos Patrimoniais do Sincor-SP criou uma planilha [disponível, em breve, no portal da entidade] que, se bem

preenchida, facilita o dia a dia dos profi ssionais ao lembrar dos principais itens de observação e segurança para orien-tação do segurado”, indica.

Ele diz que vistoria pessoalmente os imóveis dos seus clientes, verifi cando extintores e sinalizando mudanças na estrutura. "Atualmente, os gestores dos imóveis em São Paulo são muito preocupados com questões de segurança e sempre fazem prevenções, até porque todo prédio é obrigado a ter o AVCB – Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros para funcionar e as seguradoras exigem esse documento em dia para aceitar o risco. É fundamental que sejam obedecidas as normas atuais e que o corretor oriente adequadamente. Possuir brigada de incêndio, extintores bem localizados, rotas de fuga são situações básicas e fundamentais de prevenção", defende.

Chaia completa que o corretor também deve dominar a metodologia de análise dos riscos e, junto ao cliente, defi nir os pontos críticos e as possíveis soluções para essas ameaças. "O primeiro passo da análise é a identifi cação dos riscos. Diante deles, o cliente deve optar em aceitá-los, permanecendo com eles, gerenciá-los, diminuindo a probabilidade de acontecer o sinistro, ou eliminá-lo. O corretor participa desse processo de escolha, mas a decisão é sempre do segurado", conclui.

Um pequeno heliponto que fi cava em cima do prédio - o primeiro desse tipo instalado

em São Paulo - tornou possível o resgate de centenas de

pessoas por helicópteros, mas em situações bem

adversas para os pilotos: antenas de televisões invisíveis

com a fumaça, temperatura elevada para decolagem,

superaquecendo as turbinas, perda de potência do motor,

entre outros fatores.

A reconstrução do prédio fi cou avaliada em Cr$ 9 milhões, ou seja, mais de R$ 30 milhões. Segundo divulgações da época, felizmente o seguro do prédio, da seguradora Yorkshire Insurance Company, tinha cobertura de Cr$ 11 milhões.

Fonte: A segurança contra incêndio no Brasil - Projeto Editora, 2008

cenário

LIÇÃO DO ANDRAUSPrincipais conclusões dos estudos contra incêndios, iniciados após o sinistro

Necessidade de se garantir a segurança contra incêndio nas edifi cações urbanas;

Premência de uma legislação adequada;

Provisão de engenharia e arquitetura de melhor desempenho no planejar e implementar;

Educação preventiva;

Regulamentação securitária que incentive a proteção contra incêndio;

Exigência da Susep que obrigue a contratação de engenheiros de segurança.

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