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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DEBORAH REGINA LEAL NEVES A persistência do passado: patrimônio e memoriais da ditadura em São Paulo e Buenos Aires Versão Corrigida São Paulo 2014

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Dissertação de Mestrado

Transcript of 2014_DeborahReginaLealNeves_VCorr

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    DEBORAH REGINA LEAL NEVES

    A persistncia do passado: patrimnio e memoriais da ditadura em So

    Paulo e Buenos Aires

    Verso Corrigida

    So Paulo

    2014

  • Nome: NEVES, Deborah Regina Leal

    Ttulo: A persistncia do passado: patrimnio e memoriais da ditadura em So Paulo e

    Buenos Aires

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria Social do

    Departamento de Histria da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, para a obteno do

    ttulo de Mestre em Histria.

    Aprovada em:

    Banca Examinadora:

    Prof Dra. Maria Helena Rolim Capelato

    Universidade de So Paulo

    Prof. Dra. Silvana Barbosa Rubino

    Universidade Estadual de Campinas

    Prof. Dr. Mrio Augusto Medeiros da Silva

    Universidade Estadual de Campinas

  • Agradecimentos

    Este trabalho fruto da discusso, colaborao e divergncia de vrias pessoas,

    especialmente porque vivi uma dificuldade adicional, que trabalhar em perodo integral e

    conciliar a pesquisa acadmica, o que pressupe uma dedicao quase exclusiva. Embora

    tenha dividido meu tempo, no o fiz com perda de qualidade, nem na vida funcional nem na

    vida acadmica. Mas certamente no obtive sucesso sem o apoio de pessoas parceiras e

    companheiras, que facilitaram trilhar esse caminho. Nenhum trabalho acadmico feito

    isoladamente, razo pela qual creio ser importante nomear algumas das pessoas que

    contriburam para que essa pesquisa se tornasse possvel.

    Agradeo a

    Prof. Dra. Maria Helena Rolim Capelato, professora desde a graduao e que

    provocou, indiretamente, o desejo desta pesquisa quando me orientou na disciplina

    Introduo Pesquisa em Histria I no ano de 2008. Maria Helena aceitou a orientao

    deste trabalho mesmo com todas as dificuldades metodolgicas que ele apresentou desde o

    incio, e muito contribuiu com seu suporte acadmico-intelectual;

    Prof. Dr. Mrio Augusto Medeiros da Silva (UNICAMP), mais que um membro da

    banca de qualificao e de defesa, tornou-se um co-orientador informal que discutiu,

    provocou reflexes e sugeriu modificaes e acrscimos em artigos e neste trabalho. Alm

    deste papel fundamental, um grande amigo e pesquisador competente, srio e dedicado,

    prova do flego dos jovens pesquisadores;

    Prof. Silvana Barbosa Rubino (UNICAMP), por ter inspirado minha atuao no

    patrimnio ainda em 2008, quando participei de um curso ministrado no Centro Universitrio

    Maria Antnia. Cinco anos depois, nos encontramos no Condephaat. Agradeo sua leitura

    atenta a este e a outros trabalhos. As observaes, sempre pertinentes, contriburam para que

    esse trabalho pudesse ser aprimorado;

    Prof. Dra. Ana Guglielmucci (Universidad de Buenos Aires), que muito contribuiu

    com seus trabalhos e discusses sobre o panorama argentino acerca da construo da

    memria; por seu auxlio em questes especficas e por sua generosidade em ouvir e dividir

    experincias;

    Prof. Dra. Zilda Mrcia Grcoli Iokoi (FFLCH/Diversitas-USP), grande inspirao

    desde os tempos da graduao, que alm de ministrar uma das disciplinas de ps-graduao

    que cursei ao longo da pesquisa, contribuiu com leituras crticas, motivao na reta final desta

    pesquisa. Atuou com energia e vitalidade como Professora Supervisora do estgio PAE, que

    despertou questes importantes para a formao como docente, mas ainda mais como cidad;

    Prof. Dra. Caroline Silveira Bauer (UFPEL), que alm de participar da banca de

    qualificao, contribuiu generosamente ao longo de toda a pesquisa com a indicao de

    bibliografia, notcias e projetos voltados poltica de memria. Sua vitalidade de jovem

    pesquisadora inspirou-me;

    Prof. Dr. Jos Antnio Vasconcelos, que ministrou disciplina importante e

    indispensvel a esta pesquisa e teve contribuio decisiva no recorte desta pesquisa quando

    ainda era um pr-projeto;

    Prof. Dr. Paulo Csar Garcez Marins (MP-USP), que compartilhou de seu

    conhecimento acerca das instituies e prticas do patrimnio no Brasil, em suas disciplinas

  • de graduao, ps-graduao e na atuao como membro do Condephaat. Suas provocaes

    despertaram o interesse para ir para alm do bvio na investigao cientfica;

    Prof. Dr. Francisco Alambert, que supervisionou um semestre de estgio PAE, e

    contribuiu com sua viso sobre a arte e a preservao do patrimnio como vvidas expresses

    sociais, seja como professor, seja como Conselheiro do Condephaat;

    Prof. Dra. Ana Lcia Duarte Lanna (FAU-USP), cuja atuao como Presidente do

    Condephaat, como professora e com a indicao de bibliografia, promoo de discusses e

    provocaes contribuiu para uma atualizao do debate acerca da preservao do patrimnio;

    Ivan Seixas (Condepe-SP), Maurice Politi (Ncleo Memria) e Ktia Felipini

    (Memorial da Resistncia), cuja luta pessoal se confunde com a trajetria de vida, por

    contriburem decisivamente para a construo deste e de outros trabalhos acerca de lugares de

    memria e sobre a memria da ditadura;

    Carlos Beltro (UNIRIO), Pmela Almeida (UNICAMP), Marcos Tolentino

    (UNICAMP), Juliana Carlos (Comisso de Anistia Ministrio da Justia), Luciana Messina

    (IDES), Procurador Srgio Suiama (MPF-RJ), Prof. Dra Luclia Siqueira (UNIFESP), Sabina

    Urribaren (FAU-USP), Prof. Dra Mariana Joffily (UDESC), pesquisadores e apoiadores

    generosos desta pesquisa, contribuindo com debates, bibliografia, notcias, informaes, troca

    de experincias e, acima de tudo, acreditaram e respeitaram minha pesquisa desde o comeo,

    e se dispuseram a ouvir o que tinha a dizer sem esquivarem-se de apresentar suas opinies e

    crticas;

    Tatiana Depetris que possibilitou a consulta ao Processo de converso em patrimnio

    do complexo ESMA, junto Comision Nacional de Monumentos y Museos y Lugares

    Histricos, na Argentina, alm de boas indicaes e conversas acerca dos lugares de memria

    naquele pas. Em especial tambm Ximena Duhalde, que alm de tudo, franqueou o meu

    acesso a uma visita exclusiva aos edifcios da ESMA e ao Casino de Oficiales;

    Marcelo Duhalde, diretor do Archivo Nacional de La Memoria, que possibilitou a

    visita ESMA em companhia de Nathalia Benavidez, assessora de imprensa do Archivo, que

    disps de seu tempo e conhecimento na visita ao Casino de Oficiales indispensvel para a

    realizao desta pesquisa e presenteou-me com exemplares de livros publicados pelo ANM;

    Nathalia e Daniel Matuck, Cibelle Moura, Priscila Jones, Fabio Mascherano, Cesar

    Oliveira, Mario Estrela, Fabio Gomes, Renato Libarino, Carlos Henrique de Oliveira, Tabson

    Somavilla, Juliana Samogin e Roberto Fires, amigos de longa data, que sempre acreditaram

    em mim e na minha pesquisa e percorreram comigo os mais diversos caminhos que

    permitiram que eu chegasse at aqui com a bagagem intelectual e de vida que tenho.

    Agradecimento especial ao amigo Andr Passos, que responsvel por grande parte de minha

    formao profissional e tambm intelectual. Parceiro de mestrado e entusiasta desta pesquisa,

    que sempre esteve presente.

    Equipe da Unidade de Preservao do Patrimnio Histrico UPPH, que se tornou

    minha segunda casa a partir de setembro de 2010, por me receberam to bem e

    carinhosamente; em especial Diretoria do GEI (Carlos Mouro e Ana Luiza Martins

    grande historiadora e inspirao para a atuao profissional no Condephaat) e s

    Coordenadoras Marlia Barbour e Valria Rossi, que permitiram conciliar trabalho e pesquisa;

    agradecimento especial para minha Diretora Elisabete Mitiko Watanabe, que contribuiu com

  • fontes coletadas durante sua pesquisa de graduao e que foi compreensiva com minhas

    necessidades durante os trs anos de mestrado;

    Antnio Zagato, um amigo motivado que com suas observaes sempre crticas e

    imbudas de esprito pblico, ensinou-me sobre urbanismo e compartilhou ideias e

    experincias; devo a ele tambm a ajuda com o resumo em ingls, feito em tempo recorde;

    Adda Ungaretti, amiga de trabalho e de vida, que me ensinou sobre arquitetura, ajudou

    com a leitura do texto e sugeriu melhorias nas disposies das imagens; sem ela, certamente

    meu trabalho teria sido mais rduo;

    Amanda Caporrino, amiga e resistente historiadora, que tambm contribuiu muito com

    a leitura deste texto, sugerindo acrscimos e alteraes, alm dos incentivos e crena no meu

    trabalho; obrigada pelas caronas, pelas conversas e pelo companheirismo;

    Alberto Cndido, amigo doce e carinhoso, que apoiou meu trabalho com seu olhar

    perspicaz e atento, sempre visando aprimorar as discusses e trazer tranquilidade nos

    momentos certos;

    Silvia Wolff, com esprito conciliador, ajudou a tornar o fardo mais leve, jogando luz

    nos pores;

    Ao meu marido Eduardo Avanzo, companheiro desde a adolescncia que alm de

    apoiar meu trabalho, sempre me acompanhou em palestras, seminrios, viagens e

    compreendeu minhas ausncias;

    Aos meus avs Luzia e Jurandyr Mazzali, meus segundos pais, que so parte da minha

    formao e de meu carter; aos tios Luiz Fernando e Regina, Magda e Jos Francisco, que

    desde criana acompanharam meu desenvolvimento na escola e ajudaram nas dificuldades;

    Aos meus pais, Joo e Regina Neves, que permitiram que eu estudasse livremente,

    apoiaram material e intelectualmente, corroboraram com minhas decises, vibraram com

    minhas conquistas e me ampararam nas adversidades. Sem vocs eu no teria chegado a lugar

    algum.

  • Who controls the past now, controls the future.

    Who controls the present now controls the past.

    Who controls the present now?

    (Testify Rage Against the Machine)

    Monuments are nothing if not selective aids to memory: they

    encourage us to remember some things and to forget others. The

    process of creating monuments, especially where it is openly

    contested, (), shapes public memory and collective identity.

    (Brian Ladd, The Ghosts of Berlin: Confronting German History in

    the urban landscape. University of Chicago Press,1998, p.11)

    O exemplo padro de uma cultura de identidade, que se ancora no

    passado por meio de mitos disfarados de histria, o nacionalismo.

    As naes so entidades historicamente novas fingindo terem existido

    durante muito tempo. inevitvel que a verso nacionalista de sua

    histria consista em anacronismo, omisso, descontextualizao, e em

    casos extremos, mentiras. Em um grau menor, isso verdade para

    todas as formas de identidade, antigas ou recentes.

    (Eric Hobsbawn, Sobre Histria. So Paulo: Companhia das Letras,

    2000, p.285)

  • I

    RESUMO

    NEVES, Deborah Regina Leal. A persistncia do passado: patrimnio e memoriais da

    ditadura em So Paulo e Buenos Aires. 2014. Dissertao (Mestrado em Histria Social).

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo,

    2014.

    A prtica de preservao de bens mveis e imveis como patrimnio cultural existe,

    de maneira institucionalizada no Brasil e na Argentina desde a dcada de 1930, vinculada a

    uma ideia de nacionalidade e de nao, a partir de uma origem comum a todos.

    As dcadas de 1960 e 1970 ficaram marcadas pelos sucessivos golpes militares que

    levaram implantao de ditaduras por toda a Amrica Latina. A dcada de 1980, por outro

    lado, marcou o retorno da Democracia a muitos pases, e com isso, a reivindicao por

    distintas memrias sobre os anos de terror que foram impostos s suas sociedades.

    O presente trabalho visa analisar, em perspectiva comparada, de que forma alguns

    edifcios simblicos da ditadura civil militar de So Paulo e de Buenos Aires foram

    declarados patrimnio cultural de suas sociedades, como prtica de reparao ou de

    reconhecimento de valores subjetivos intrnsecos queles lugares. Para tanto, foram estudadas

    as atuaes do Condephaat e da Comisin para la Preservacin del Patrimonio Histrico

    Cultural (CPPHC) na preservao dos prdios da Maria Antnia e do Presdio Tiradentes, no

    Brasil e do Club Atletico e do Olimpo, na Argentina. Em anlise destacada, foram estudados

    os processos de tombamento do Antigo DOPS pelo Condephaat e da ESMA pela CNMMyLH,

    que tiveram suas reformas mais recentes examinadas em profundidade. Essa abordagem

    permitiu identificar se as reformas seguiram critrios tcnicos preconizados em Cartas

    Patrimoniais, alm de identificar como impactaram na converso desses em memoriais que

    remetem a uma memria sobre a ditadura (a memria de pessoas diretamente atingidas pela

    violncia dos rgos de represso), e, portanto, em stios de conscincia.

    Essa pesquisa aborda a questo da prtica de preservao de memrias difceis por

    parte desses rgos e identifica alguns dos conflitos sociais que permearam tais processos. O

    patrimnio, entendido como portador de valores simblicos que permeiam uma sociedade e,

    portanto, objeto de disputas, no reflexo de um consenso, e a preservao desses locais

    essencial para que o debate se mantenha na sociedade, estimulando reflexes sobre os

    sentidos do presente e as perspectivas para o futuro por meio do patrimnio cultural.

    Palavras-chave: Patrimnio; Memria; Ditadura Militar; DEOPS; ESMA

  • II

    ABSTRACT

    NEVES, Deborah Regina Leal. The persistence of the past: heritage and memorials of the

    dictatorship in Sao Paulo and Buenos Aires. 2014. Dissertation (Masters in Social History).

    Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences, University of So Paulo, So Paulo,

    2014.

    The practice of conservation of movable and immovable property as cultural heritage

    exists, as an official public policy, in Brazil and Argentina since the 1930s, associated with an

    idea of nationality and nation shared and recognized by all.

    The 1960s and 1970s were marked by successive military coups that led to the

    establishment of dictatorships throughout Latin America. The 1980s, by contrast, marked the

    return of democracy in several countries, and with it, the demand for the acknowledgement of

    memories that evoke the imposed terror for years on those societies.

    The present work aims to analyze, from a comparative perspective, how some

    symbolic buildings of the civil-military dictatorship period, situated in So Paulo and Buenos

    Aires, were declared cultural heritage in either country as a practical repair or recognition of

    those places intrinsic subjective values. For so, studies were carried on the experiences of

    Condephaat and Comisin para la Preservacin del Patrimnio Histrico Cultural (CPPHC)

    on the preservation of the Maria Antonia and the Presidio Tiradentes buildings in Brazil, and

    the Club Atletico and the Club Olimpo in Argentina, respectively. Furthermore, the process of

    heritage listing of the Antigo DOPS by Condephaat and the ESMA by Comisin Nacional de

    Museos y Monumentos y Lugares Histricos (CNMMyLH) were thoroughly analyzed as well

    as their latest physical interventions. This approach led to a scrutiny whether reforms

    followed technical criteria recommended by the International Heritage Charters, and its

    impacts on the conversion to memorials that recall memories of the dictatorship (those of the

    people directly affected by the violence of enforcement agencies), and therefore into sites of

    consciousness.

    This research addresses the difficult practice of preserving memories by those

    institutions and identifies some of the conflicts in these processes. The cultural heritage,

    having symbolic values that permeate a society, which therefore turns it into object of

    disputes, is not the reflection of a consensus. The preservation of these sites is essential to

    maintain the debate in society, stimulating considerations on the meanings of the present and

    prospects for the future through cultural heritage.

    Key words: Heritage; Memory; Military Dictatorship; DEOPS; ESMA

  • III

    Resmen

    NEVES, Deborah Regina Leal. La persistencia del pasado: el patrimonio y los

    monumentos de la dictadura en Sao Paulo y Buenos Aires. 2014. Tesis (Maestra en

    Historia Social). Facultad de Filosofa, Letras y Ciencias Humanas de la Universidad de So

    Paulo, So Paulo, 2014.

    La prctica de la conservacin de los bienes muebles e inmuebles mientras patrimonio

    cultural, existe de una manera institucionalizada en Brasil y Argentina desde 1930, vinculados

    a una idea de la nacionalidad y de la nacin, a partir de un origen comn para todos.

    Los aos 1960 y 1970 estuvieron marcados por sucesivos golpes militares que

    llevaron a la creacin de dictaduras en toda Amrica Latina. La dcada de 1980, en cambio,

    marc el regreso de la democracia a muchos pases, y con ella, la demanda de memorias

    distintas durante los aos de terror que se impusieron en sus respectivas sociedades.

    El presente trabajo tiene como objetivo analizar, desde una perspectiva comparada,

    cmo algunos edificios simblicos de la dictadura cvico-militar ubicados en So Paulo y

    Buenos Aires fueran declarados patrimonio cultural de sus sociedades, sea como prctica de

    reparacin o de reconocimiento de los valores subjetivos intrnsecos de esos lugares. Por

    tanto, se estudiaron las actuaciones de Condephaat y de la Comisin para la Preservacin del

    Patrimonio Histrico Cultural (CPPHC) en la conservacin de los edificios de Mara Antonia

    y el Presidio Tiradentes en Brasil y del Club Atltico y del Olimpo en Argentina. En un

    anlisis destacado, se estudi el proceso de preservacin del edificio del Antigo DOPS por

    Condephaat y de la ESMA por la CNMMyLH, cuyas reformas ms recientes fueran

    examinadas en profundidad. Este enfoque nos ha permitido identificar si las reformas siguen

    criterios tcnicos recomendados en las Cartas Patrimoniales, e identificar cmo stos

    afectaron a la conversin de estos en monumentos que recuerdan la memoria de la dictadura

    (la memoria de las personas directamente afectadas por la violencia de los rganos de

    represin), y por lo tanto, en sitios de conciencia.

    Esta investigacin aborda la prctica de preservar memorias difciles por parte de estos

    rganos y identifica algunos de los conflictos sociales que impregna estos procesos. El

    patrimonio cultural, entendido como portador de valores simblicos que impregnan a la

    sociedad y, por tanto, objeto de controversias, no es reflejo de un consenso, y la preservacin

    de estos sitios es esencial para mantener el debate en la sociedad, estimulando la reflexin

    sobre los significados del tiempo presente y las perspectivas para el futuro a travs del

    patrimonio cultural.

    Palabras clave: patrimonio; memoria; Dictadura Militar; DEOPS; ESMA

  • IV

    Sumrio

    Introduo .............................................................................................................................................. 1

    Capitulo I Brasil e Argentina: aproximaes na histria poltica ............................................... 12

    1. Antecedentes histricos de Brasil e Argentina .............................................................................. 12

    1.1 Contexto Brasileiro ..................................................................................................................... 13

    1.2 Contexto argentino ...................................................................................................................... 14

    2. Histria das Instituies .............................................................................................................. 19

    2.1 Escuela de Mecnica de la Armada ...................................................................................... 19

    2.2 Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social de So Paulo DEOPS SP ............... 25

    3. As ocupaes histricas dos edifcios ......................................................................................... 32

    3.1 ESMA e Casino de Oficiales .............................................................................................. 33

    3.2 Antigo DOPS ................................................................................................................................ 46

    4. Consideraes sobre os edifcios ................................................................................................ 56

    Captulo II Passado e presente na preservao do patrimnio .................................................... 58

    1. O patrimnio e a evoluo do conceito ............................................................................................. 58

    2. A atuao dos rgos de preservao: perspectiva comparada ......................................................... 62

    2.1 Condephaat ...................................................................................................................................... 67

    2.1.1 Atuao estadual face atuao federal: um esclarecimento necessrio .................................. 68

    2.2 A preservao de lugares controversos: o incio da atuao dos rgos de preservao ................ 69

    2.2.1 Implicaes da preservao .......................................................................................................... 84

    Captulo III. Antigo DOPS e ESMA: transformao em patrimnio ............................................. 91

    1 Processo 20151/11976 Tombamento do Antigo DOPS ........................................................ 94

    1.1 Dcada de 1970 ...................................................................................................................... 94

    1.2 Dcada de 1980 ...................................................................................................................... 98

    1.3 Dcada de 1990 .................................................................................................................... 103

    2. Expediente 7506/2005 Declrase ESMA Monumento Nacional ........................................... 107

    2.1 Antecedentes abertura do estudo ....................................................................................... 107

    2.1.1 Dcada de 1990 .................................................................................................................... 109

    2.1.2 Dcada de 2000 .................................................................................................................... 114

    3. Consideraes sobre os processos administrativos Condephaat e CNMMyLH ....................... 118

    Captulo IV - O tempo e os lugares: pretrito, presente, futuro ................................................... 122

    1. Intervenes fsicas nos edifcios .............................................................................................. 124

    1.1 Antigo DOPS ....................................................................................................................... 126

    1.2 Casino de Oficiales .............................................................................................................. 147

    1.3 Alteraes fsicas nos edifcios da represso: uma comparao .......................................... 164

    2. A implantao de instituies memoriais ........................................................................................ 166

    2.1 Memorial da Resistncia ............................................................................................................... 166

    2.2 Um museu no Casino de Oficiales? .............................................................................................. 189

    2.3 A importncia do lugar e do memorial no lugar .................................................................... 199

    3. Breve reflexo sobre a preservao de lugares de memria no Mercosul ...................................... 204

    Concluso ........................................................................................................................................... 206

    Anexo I Carta de Jos Saia Neto ................................................................................................... 244

    Anexo II Ata 1158 da Reunio Condephaat de 06.07.1999 ........................................................ 248

    Anexo III Sntese de Deciso do Condephaat Reunio de 06.07.1999 .................................... 254

    Anexo IV Resoluo SC-28 de 08.07.1999 .................................................................................... 255

  • 1

    Introduo

    Os temas memria e patrimnio cultural ganharam importncia significativa com

    o advento da Segunda Guerra Mundial, embora as discusses tenham se iniciado ao final do

    sculo XVIII no caso do patrimnio, e nas primeiras dcadas do sculo XX no caso da

    memria social1. O evento traumtico, especialmente para as sociedades europias, elevou

    ambos os temas a questo de interesse internacional, inclusive, criando a necessidade de

    preservao seja da memria, seja do patrimnio, ou de ambos em um mesmo suporte.

    Este trabalho aborda a atuao de rgos de preservao do patrimnio em So Paulo

    e em Buenos Aires, que decidiram, em algum momento, preservar locais que remetem

    memria das ditaduras civil-militares que acometeram Brasil e Argentina entre as dcadas de

    1960 e 1980. Ademais, ser tambm discutido como alguns desses locais foram utilizados

    para a instalao de instituies memoriais e quais as dificuldades e discusses que

    permearam suas constituies.

    Analisar essas escolhas, seja sob a perspectiva da memria, seja do patrimnio ou

    ainda sob os dois aspectos conjugados, nos auxilia a compreender os projetos de democracia

    ps-ditadura, a reconstruo da confiana do pblico no Estado e tambm a compreender

    problemas inerentes ao passado que ainda persistem no presente.

    O recorte histrico utilizado compreende a segunda metade da dcada de 1970 e se

    estende at o tempo contemporneo, perodo em que, alm das aberturas democrticas em

    ambos os pases, desenvolveram-se as discusses acerca de como promover a transio de

    regimes ditatoriais para regimes democrticos e como administrar esse legado do passado que

    ainda se faz presente.

    A dcada de 1980 quando as democracias voltaram a ser construdas no Brasil e na

    Argentina foi marcante para a histria no s da Amrica do Sul, mas do mundo.

    Hobsbawm acredita que no h como duvidar seriamente de que em fins da dcada de 1980

    e incio da dcada de 1990 uma era se encerrou e outra nova comeou.2 Para ele, esse fim de

    sculo foi uma era de decomposio e incertezas, o que gerou certa melancolia e desencanto.

    No foi diferente com os pases que aqui se analisou. Seus prottipos de democracia sofreram

    1 As discusses sobre patrimnio iniciaram-se por volta de 1792, na Frana, por conta da destruio de bens

    imveis associados ao Antigo Regime durante a Revoluo Francesa. J as discusses sobre memria enquanto

    fenmeno social coletivo na dcada de 1920, com Maurice Halbwachs. 2 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve sculo XX 1914-1991; traduo Marcos Santarrita. So

    Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.15

  • 2

    duros golpes ainda em seu princpio: no Brasil, a transio de governo entre o ltimo ditador e

    o primeiro presidente civil ficou mercada pela no aprovao da Emenda Dante em 1983, com

    a morte de Tancredo Neves em 1984, o impeachment do primeiro presidente eleito por

    sufrgio universal ps-ditadura em 1991 e a persistncia e um Estado burocrtico construdo

    na ditadura. A Argentina, teve seu primeiro lampejo de esperana com a eleio de Raul

    Alfonsn, que ainda que considerada uma vitria no restabelecimento de instituies

    republicanas e do Estado de Direito, gerou certa frustrao com criao das Leyes de

    Olvido, que limitou as punies aplicadas aos militares por crimes cometidos durante a

    ditadura. A seguir, Carlos Mnem, presidente eleito em 1989, decidiu anular tais punies

    incluindo o perdo a Jorge Rafael Videla e sua gesto no conseguiu solucionar a grave

    crise econmica que perdurou durante a ditadura e ainda tem resqucios at dos dias atuais.

    Esses fatores certamente contriburam para que a transio viesse seguida da incerteza de dias

    mais prsperos, criando a desconfiana de que trata Hobsbawn.

    Nesse sentido, o patrimnio e os museus podem servir para justificar a atuao poltica

    dos Estados ou mesmo para tentar comungar um passado comum sociedade. Tentativas de

    criao de marcos objetivando reconciliar a sociedade foram realizadas por Carlos Menem,

    quando props, em 1998, a demolio do complexo ESMA para a criao de um parque e um

    monumento smbolo da unio nacional; no mesmo caminho, o Governo do Estado de So

    Paulo, na figura do Governador Geraldo Alckmin e do Secretrio de Cultura Marcos

    Mendona, props, em 2002, a implantao do Museu do Imaginrio do Povo Brasileiro no

    edifcio que abrigou, por 44 anos, o DEOPS paulista, visando a coleta, difuso, preservao

    e estmulo produo das artes e da cultura popular brasileira.3 Ser analisado neste trabalho

    como essas propostas foram formuladas e como foram abandonadas, e em decorrncia como

    foram instalados os memoriais que ocupam os dois edifcios, com propostas diferentes.

    Quando esta pesquisa foi iniciada, em 2010, analisar historicamente os memoriais e

    sua face patrimonializada era incomum. Houve dificuldade em encontrar bibliografia

    brasileira a respeito e em contrapartida a abundncia do tema da memria da ditadura na

    Argentina, despertou o interesse em compreender por que e como cada sociedade lida de

    maneiras to distintas com o passado difcil.

    Em um de seus trabalhos, Seligmann-Silva afirmou que possivelmente uma das razes

    dessa dificuldade ou mesmo negligncia era que enquanto no Brasil conta-se,

    oficialmente, um nmero de 600 mortos ou desaparecidos polticos durante o perodo da

    3 SO PAULO. Governo do Estado. Decreto n. 46.507, de 21 de janeiro de 2002.

  • 3

    ditadura militar, na Argentina esse nmero ultrapassa os 30.0004. O argumento insuficiente

    para explicar sociedades to complexas e distintas entre si, ainda que tenha consistncia do

    ponto de vista da presso social uma vez que o nmero de atingidos diretamente pela

    represso maior, a mobilizao popular exerce maior poder de coero contra o Estado no

    sentido de reparar seus erros. A contabilidade de mortos certamente incapaz de demonstrar

    os prejuzos sociais causados o Brasil por 21 anos de ditadura, refletidos em problemas atuais

    como a persistncia da corrupo, a impunidade, o abuso de autoridade, relaes de

    clientelismo, desigualdade social aprofundada, privilgios a classes j privilegiadas. Toma-se

    emprestada a reflexo de Adorno sobre os efeitos do nazismo para discutir a questo dos

    nmeros:

    Milhes de pessoas inocentes e s o fato de citar nmeros j humanamente indigno, quanto mais discutir quantidades foram assassinadas de uma maneira planejada. Isto no pode ser minimizado por

    nenhuma pessoa viva como sendo um fenmeno superficial, como sendo

    uma aberrao no curso da histria, que no importa, em face da tendncia

    dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente

    crescente. O simples fato de ter ocorrido j constitui, por si s, expresso de

    uma tendncia social imperativa.5

    Assim, a despeito do nmero de vtimas fatais, o trabalho foi desenvolvido em um

    perodo em que houve emergncia do tema da memria da ditadura no Cone Sul. Entre 2010

    e 2014, houve, no Brasil, a discusso acerca da reviso de lei de Anistia, processos movidos

    por familiares de mortos pelo regime, aes do Ministrio Pblico Federal pedindo a

    culpabilizao de militares sequestro continuado de pessoas e recentemente, o tombamento

    dos prdios que sediaram o DOI-CODI em So Paulo, entre outros fatos importantes. Na

    Argentina, novos juzos foram realizados, levando priso figuras como Jorge Videla, a

    recuperao da identidade de alguns filhos subtrados de pais presos durante a ditadura, a

    identificao de vrios lugares de deteno e tortura e a converso em espaos de memria.

    So elementos que apontam para a permanncia do passado no presente, um passado

    que no foi completamente deixado em seu lugar porque ainda eclipsado. Trata-se, portanto,

    de temas contemporneos e ainda correntes, de modo que a Histria do Tempo Presente

    4 Em uma resenha do Livro Memria em Construccin, organizado por Marcelo Brodsky, o professor Mrcio

    Seligmann-Silva apresenta o seguinte argumento: A diferena que a ditadura na Argentina fraturou muito mais profundamente aquela sociedade. O debate aqui em torno da memria da ditadura no pode ser comparado

    ao que aconteceu no nosso pas vizinho. A discusso em torno da Esma (sic) reflete a dimenso da violncia que

    foi exercida ento pelos militares. Calcula-se que cerca de 30.000 pessoas desapareceram nas mos do Estado

    durante a ditadura naquele pas. Cerca de 300.000 tiveram que se exilar. SELIGMANN-SILVA, Mrcio. A construo da memria do terror na Argentina. Revista USP, So Paulo, n.70, p.176-179, jun./ago. 2006. 5 ADORNO, Theodor. Educao aps Auschwitz, in: Educao e emancipao. Traduo de Wolfgang Leo

    Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995

  • 4

    encontrou novos fenmenos sociais (...) extremamente importantes, sendo que o principal foi

    a questo da memria6. A Histria do Tempo Presente, corrente historiogrfica surgida na

    Frana objetiva

    (...) trabalhar sobre o passado prximo e sobre a Histria Contempornea no

    sentido etimolgico do termo, ou seja, uma Histria (...) na qual o historiador

    investiga um tempo que o seu prprio tempo com testemunhas vivas e com

    uma memria que pode ser a sua. A partir de uma compreenso sobre uma

    poca que no simplesmente a compreenso de um passado distante, mas

    uma compreenso que vem de uma experincia da qual ele participa como

    todos os outros indivduos.7

    Tradicionalmente, por estar a raiz da metodologia da pesquisa histrica moderna no

    sculo XIX, acredita-se que a Histria, um processo de longa durao, exige que o historiador

    enquanto investigador cientfico mantenha uma relao distanciada com o objeto, com vistas

    a possibilitar uma anlise imparcial o quanto possvel; sob essa perspectiva, no possvel

    investigar um processo que ainda inacabado. Por outro lado, possvel fazer a histria do

    inacabado, sob o alerta de que as anlises realizadas nestas condies podem ser superadas

    por acontecimentos posteriores, e ao longo desta pesquisa, mudanas polticas ocorreram sem,

    contudo, prejudicar a anlise proposta.

    bastante comum vermos historiadores escrevendo artigos em revistas ou

    comentando em telejornais acontecimentos imediatos, como os ataques de 11 de setembro de

    2001 ou os levantes nos pases rabes contra governos autoritrios a Histria, como

    cincia, saber, respondendo a uma demanda social. Todavia, essas anlises no escapam ilesas

    crtica de presentismo (onde a nica forma de compreenso do passado a partir do

    presente), ou que o objeto de investigao prximo e polmico; para minimizar a crtica,

    deve-se ento compreender que o grande desafio do historiador ser capaz de produzir a

    Histria do nosso prprio tempo, tentando obter uma reflexo que permita um recuo relativo8

    mantendo-se distncia face ao prprio presente. A distncia, neste caso, evitar a

    instrumentalizao da Histria nos debates histricos do tempo presente.

    Hobsbawm afirma que possvel observar o Breve Sculo XX dentro de certa

    perspectiva histrica, ainda que sem o conhecimento da totalidade da historiografia disponvel

    e de fontes em quantidade suficientes, sendo necessrio, para isso, ter conscincia das

    6 AREND, Silvia Maria Fvero e MACEDO, Fbio. Sobre a Histria do Tempo Presente: Entrevista com o

    historiador Henry Rousseau. Revista Tempo e Argumento. Florianpolis: UDESC, v. 1, n. 1, jan./jun. 2009,

    p.207 7 AREND, Silvia Maria Fvero e MACEDO, Fbio. Sobre a Histria do Tempo Presente: Entrevista com o

    historiador Henry Rousseau. Revista Tempo e Argumento. Florianpolis: UDESC, v. 1, n. 1, jan./jun. 2009, p.

    201-202. 8 Idem, p.209

  • 5

    limitaes que essa ausncia impe pesquisa9. A principal tarefa do historiador no julgar,

    mas compreender, sendo capaz de abstrair a experincia histrica que formou as suas

    convices apaixonadas. Uma advertncia feita pelo mestre: a quem viveu a experincia

    fcil julgar10

    e, portanto,

    difcil compreender. Ademais, mais importante que lembrar

    entender, ainda que para entender seja necessrio lembrar11

    , tambm nos adverte Beatriz

    Sarlo. Assim ser realizada esta pesquisa, com a cautela de saber que ao longo das

    investigaes novos acontecimentos podem e vo surgir por isso a importncia da imprensa

    como uma das fontes , e que o tema suscita mais memria que histria para aqueles

    envolvidos com os locais analisados.

    Para isso, foram privilegiadas fontes institucionais que apresentem dados sobre a

    converso do Edifcio do Antigo DOPS e da ESMA em patrimnio cultural de suas

    respectivas sociedades e das legislaes que advieram destas converses, determinando o uso

    e a destinao de cada um dos edifcios. Testemunhos e relatos orais no foram as fontes

    principais porque a inteno compreender a lgica de atuao das instituies, mas foram

    importantes para compreender contextos e preencher lacunas deixadas pelos documentos

    oficias. Tambm nesse sentido utilizamos a imprensa escrita como fonte, j que esta,

    interessada em questes culturais e relacionadas s memrias da ditadura, abordaram

    principalmente os processos de constituio dos memoriais, de maneira nem sempre objetiva.

    Ou seja, privilegiou-se a imagem pblica construda acerca das instituies e de suas aes de

    preservao. Entende-se, assim, que outras pesquisas podem se apoiar em relatos pessoais

    para responder a questionamentos que no sero resolvidos neste trabalho, porque o objetivo

    principal era compreender como aconteceu a construo pblica de uma memria acerca do

    Antigo DOPS e da ESMA, a partir dos tombamentos e da utilizao como instituio

    memorial e cultural.

    As fontes relativas ao Antigo DOPS so oriundas do CONDEPHAAT Conselho de

    Defesa do Patrimnio Histrico, Artstico, Arqueolgico e Turstico do Estado de So Paulo

    rgo responsvel pela declarao e reconhecimento de bens materiais e imateriais como

    patrimnio cultural. Fontes indispensveis para a compreenso do processo que levou

    deciso do tombamento, alm de ser possvel identificar as polticas direcionadas ao edifcio;

    tambm ser possvel compreender como as obras e reformas efetuadas no edifcio

    9 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve sculo XX 1914-1991; traduo Marcos Santarrita. So

    Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.7 10

    Idem, p.15 11

    SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memria e guinada subjetiva. Traduo Rosa Freire dAguiar.

    So Paulo: Companhia das Letras, Belo Horizonte: UFMG, 2007, p.22.

  • 6

    determinaram seu uso, o objetivo do uso do instrumento de tombamento, bem como as

    polmicas envolvidas.

    Foram tambm consultadas fontes primrias no Arquivo Pblico do Estado de So

    Paulo, a partir de trs fundos principais: Relatrios anuais da Estrada de Ferro Sorocabana,

    Pronturios do fundo DEOPS e Acervo Iconogrfico do Arquivo do Estado de So Paulo. Os

    trs fundos foram indispensveis para preencher lacunas deixadas pela bibliografia em relao

    s datas e circunstncias de construo do prdio do Largo General Osrio, sua ocupao e

    por fim, e mais importante, s reformas empreendidas no final da dcada de 1990. Com

    exceo do fundo DEOPS, os demais fundos no esto organizados, o que dificultou a

    pesquisa.

    J as fontes que tratam da ESMA so compostas pelo processo administrativo que

    originou a declarao de Monumento Nacional ao complexo feita pela Comisin Nacional de

    Museos y Monumentos y Lugares Histricos CNMMyLH, alm de leis e decretos que

    foram publicados sobre o assunto durante o andamento processual. Atravs do expediente

    administrativo foi possvel compreender a motivao e o trmite oficial que levou

    declaratria do Casino de Oficiales como Monumento Histrico Nacional e a ESMA como

    Lugar Histrico Nacional. As leis, decretos e as resolues so importantes para compreender

    a utilizao do espao e as polticas desenvolvidas para promover o complexo a uma

    referncia na defesa dos direitos humanos.

    Alm dos arquivos da CNMMyLH, foram consultados documentos presidenciais de

    Raul Alfonsn, e documentos do Ministerio del Interior, que indicaram caminhos para

    entender as origens da visita da Comisso Interamericana de Direitos Humanos ao pas no ano

    de 1979; esses documentos esto arquivados no Archivo Intermedio e possuem relativa

    facilidade de acesso, mas no esto catalogados. No Archivo General de la Nacin foram

    consultados arquivos fotogrficos que retratavam o cotidiano escolar da ESMA, as atividades

    da CONADEP e protestos de entidades de defesa dos Direitos Humanos. As fotografias esto

    bem organizadas por temas e o acesso, embora efetuado em horrio bastante restrito, so de

    acesso pblico.

    Tratam-se de fontes pouco exploradas exceto o Fundo DEOPS, bastante utilizado

    por pesquisadores cuja abordagem bastante peculiar no campo da Histria, afinal,

    buscaremos compreender as declaraes de patrimnio como construtores da Histria

  • 7

    Oficial12

    , indutores de memria coletiva e os memoriais como resultados de polticas voltadas

    promoo da histria e da memria das respectivas ditaduras civis-militares.

    Isso ser possvel atravs do exerccio da histria comparada, importante para

    identificar semelhanas e diferenas nos processos histricos, especialmente num contexto de

    globalizao e crescente circulao de idias entre os pases e as pessoas.13

    No caso do Brasil,

    serve inclusive para quebrar o paradigma de que este muito diferente e isolado de influncia

    dos vizinhos de lngua hispnica, e por essa razo, identificado como superior em

    comparao aos outros pases da Amrica Latina.14

    A determinao de recorte temporal e de

    tema bem delimitado e fontes de mesma natureza produzidas nos dois pases, houve tentativa

    de evitar o risco de anacronismos e generalizaes, bastante comuns em trabalhos de Histria

    comparada15

    .

    Este trabalho, analisa a prtica de preservao patrimonial e a construo de memria

    social de duas sociedades prximas no tempo e espao, que exercem influncia mtua entre si

    especialmente no que se refere mobilizao de organizaes de direitos humanos. Isso

    porque quase toda crtica inscreve-se num trabalho de comparao, j que no existe

    conhecimento verdadeiro sem uma certa escala de comparao. Sob a condio, verdade, de

    que a aproximao diga respeito a realidades ao mesmo tempo diversas e no obstante

    aparentadas.16

    Embora no princpio do sculo XX a comparao no tenha sido bem aceita por

    historiadores, s por meio deste mtodo que podemos identificar se alguma caracterstica

    ou no especfica de determinado objeto. graas comparao que conseguimos ver o que

    no est l. Em outras palavras, entender a importncia de uma ausncia especfica e o

    12

    Neste trabalho, a Histria Oficial entendida como aquela que prioriza o relato histrico como narrativa de fatos e acontecimentos, geralmente vitoriosos, das classes dominantes, de maneira positiva e enaltecedora. De

    um modo geral, o homem comum, o cotidiano no analisado ou seu papel na histria subjugado. Para um

    aprofundamento do conceito, sugere-se a leitura de BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de Histria in: BENJAMIN, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. Trad. Sergio

    Paulo Rouanet. Pref. Jeanne Marie Gagnebin. 7 Ed. Obras Escolhidas, v.1. So Paulo: Brasiliense, 1994, p.222-

    234. 13

    Uma abordagem interessante sobre a histrica comparada feita pela Professora Maria Lgia Coelho Prado, no

    artigo Repensando a histria comparada da Amrica Latina. In: Revista de Histria, n.153, 2 sem.2005. So

    Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2005, p.11-33. 14

    Ver PRADO, Maria Lgia Coelho. O Brasil e a distante Amrica do Sul. In; Revista de Histria, n.145, 2

    sem.2001. So Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2005, p.127-149. 15

    Sobre os desafios e qualidades do mtodo comparado ver: CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Hector

    Prez. O mtodo comparativo na Histria. In: Os mtodos da Histria. Traduo Joo Maia. 6 edio. Rio de

    Janeiro: Edies Graal, 2002. p.409-419. 16

    BLOCH, Marc. Apologia da Histria, ou o ofcio de historiador. Traduo Andr Telles. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar Editora, 2001, p.109 e 65.

  • 8

    quanto fenmenos aparentemente similares diferem entre si.17 No o objetivo comparar

    para afirmar a superioridade de um pas sobre o outro em matria de tratamento da memria

    sob os diferentes suportes propostos, mas aproximar as semelhanas e destacar as diferenas

    no processo social que levou eleio de bens como patrimnio cultural de suas sociedades e

    o uso conferido a cada um deles. para compreender como uma memria inconveniente foi

    administrada num contexto de construo de democracia ps ditaduras militares.

    A realizao desse trabalho justifica-se por tratar a histria comparada das ditaduras

    no Brasil e Argentina a partir de uma perspectiva diferenciada, ao passo que o objeto central

    so os memoriais e as polticas envolvidas na instaurao destes. O tema do patrimnio s

    vem ganhando espao na anlise de historiadores, mas notoriamente um campo de saber

    interdisciplinar. Assim, alm de bibliografia da Histria, outras disciplinas foram importantes

    na construo deste trabalho.

    A Arquitetura foi um dos campos utilizados para compreender a operao da memria

    sobre os espaos. Destaca-se a dissertao de Maria Sabina Uribarren, A atuao da

    Comisin Nacional de Museos y de Monumentos y Lugares Histricos da Argentina entre

    1938 e 1946: sua interveno no Conjunto Jesutico da Igreja da Companhia de Jesus e da

    Residncia dos Padres na cidade de Crdoba (FAU-USP), que contribuiu na construo do

    entendimento da atuao do rgo na Argentina e na compreenso dos ideais envolvidos na

    deciso de preservao, ou de tombamento como conhecida no Brasil.

    No campo da Museologia, destaca-se a dissertao de Carlos Beltro do Valle A

    patrimonializao e a musealizao de lugares de memria da ditadura de 1964 O Memorial

    da Resistncia de So Paulo, orientado pela Prof. Dr. Marlia Xavier Cury e Co-orientado

    pela Prof. Dr. Regina Abreu no Programa de Ps Graduao em Memria Social da UniRio.

    Valle analisa a trajetria do Deops e do edifcio, e confere destaque para os testemunhos de

    ex-presos na idealizao e construo do projeto do Memorial da Resistncia, alm de

    proceder anlise da atuao museolgica da instituio, buscando compreender a lgica de

    criao e permanncia do Memorial no s como museu, mas como um stio de

    conscincia.

    Este trabalho difere quanto forma, j que a anlise procura situar o memorial como

    bem patrimonial e como objeto da histria, inclusive como fonte primria, j que as

    transformaes pelas quais foi submetido o edifcio contam quais interesses estavam em pauta

    quando da deciso do tombamento e da instalao do memorial. Alm disso, aqui no so

    17

    BURKE, Peter. Histria e Teoria Social. Traduo Klauss Brandini Gerhardt e Roneide Venncio Majer. So

    Paulo: Editora UNESP, 2001, p.40-41.

  • 9

    utilizados testemunhos, relacionados com o perodo de crcere no Deops como fonte, j que

    um dos objetivos compreender o perodo ps-ditadura. As entrevistas realizadas visam

    coletar informaes acerca da trajetria da construo e concepo, alm das disputas

    ideolgicas envolvidas na instituio do Memorial da Resistncia, buscando desvelar as

    polticas (ou no) de memria concebida para o local.

    A fim de tratar de forma homognea a preservao de edifcios no Brasil e na

    Argentina ser utilizado o termo tombamento, de origem portuguesa e que significa fazer

    um registro do patrimnio de algum em livros de tombo, utilizado somente no Brasil. Na

    Argentina utiliza-se apenas preservao para indicar que o bem protegido por rgos de

    atuao patrimonial.

    Cabe tambm explicar e diferenciar a forma como trataremos o prdio que abrigou o

    Deops e a instituio propriamente dita. Ser utilizado o termo Antigo DOPS quando nos

    referirmos ao edifcio tombado, pois foi essa a denominao utilizada pelo Condephaat. Ser

    utilizada a sigla DEOPS, para tratar do rgo paulista. DOPS ser utilizado quando se tratar

    do rgo federal, cuja sede estava no Rio de Janeiro. No caso argentino, utilizaremos o termo

    ESMA quando for abordado o lugar enquanto Centro Clandestino de Deteno, e Casino de

    Oficiales em referncia ao prdio tombado.

    O trabalho se organiza em quatro captulos, da seguinte forma:

    O captulo 1 aborda os contextos histricos que levaram aos golpes de 1964 no Brasil

    e de 1976 na Argentina. Alm disso, analisa a histria da Escuela de Mecnica de la Armada

    (ESMA) e do Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social (DEOPS) de So Paulo,

    enquanto instituies de represso, bem como a histria vinculada aos edifcios que

    predominantemente ocuparam.

    No captulo 2 ser analisada outra prtica semelhante no Brasil e na Argentina: a

    preservao do patrimnio cultural a partir de meados da dcada de 1930 como poltica

    reservada ao Estado. No bojo dessa anlise mais ampla, est a investigao da preservao

    primitiva de edifcios ou locais diretamente ligados ditadura: Edifcio Maria Antnia e Arco

    do Presdio Tiradentes e Club Atltico e Olimpo, nas cidades de So Paulo e Buenos Aires,

    respectivamente. Isso porque estes locais foram os primeiros a serem tombados e merecem

    abordagem por trazerem em suas anlises a marca de determinado momento na preservao

    do patrimnio ligado memria da ditadura. A partir desta anlise, ser possvel compreender

    a atuao dos rgos na preservao dos edifcios da ESMA e do DOPS.

    Os dois ltimos captulos tratam de analisar diversas operaes realizadas sobre os

    mesmos suportes fsicos: Antigo DOPS e Casino de Oficiales. Estes locais, onde durante as

  • 10

    mais recentes Ditaduras aprisionaram, abusaram, torturaram e mataram seus opositores,

    passaram por intervenes fsicas e sociais entre o perodo de utilizao pelas foras de

    represso e as duas dcadas e meia de democracia em ambos os pases.

    No captulo 3 sero analisados os processos de declarao do Antigo DOPS e da

    ESMA como patrimnio de suas sociedades por meio das instituies oficiais de preservao

    do patrimnio cultural. Por meio da anlise dos autos administrativos constitudos por

    documentos originados nos rgos estatais, ser demonstrado que no se tratou de processos

    sociais pacficos e isentos de conflito, e refletiram as contradies que a temtica da ditadura

    ainda provoca em cada pas. Essas preservaes atuam como forma de remisso ao passado

    vivido naqueles locais e sua ressignificao social.

    J no captulo 4 sero analisadas as alteraes fsicas s quais esses locais foram

    submetidos e a converso desses locais em instituies memoriais. No contexto das

    democracias em processo de consolidao nas sociedades brasileira e argentina e em situaes

    bastante distintas, esses lugares tornaram-se lugares de memria relacionados ditadura,

    reconhecidos pela sociedade e por ato oficial de seus respectivos Estados.

    Nos captulos 3 e 4, portanto, importante compreender cada uma dessas etapas que

    no so necessariamente consecutivas como formas de agir sobre um espao simblico de

    significao social. Estes locais no so socialmente entendidos como construes edilcias

    presentes na paisagem urbana de suas cidades de forma aleatria. So antes locais referenciais

    para os habitantes, seja por sua insero geogrfica, seja pela histria a que eles remetem, e

    por isso, a compreenso das intervenes e destinaes deles explicita muito acerca da forma

    como cada sociedade lidou com sua presena no espao fsico e no imaginrio social. Ser

    feita uma anlise da preservao como patrimnio cultural dos edifcios do DEOPS e da

    ESMA.

    Embora tenha sido desafiador trabalhar e desenvolver esta pesquisa

    concomitantemente, importante destacar que as atividades desenvolvidas como tcnica na

    Unidade de Preservao do Patrimnio Histrico da Secretaria de Estado da Cultura, e

    portanto, ligada ao Condephaat, permitiu compreender a lgica de atuao dos rgos de

    patrimnio e tambm a prtica de preservao. Com as deficincias e virtudes que o rgo

    traz em sua histria, certamente trata-se de um lugar onde a pesquisa exercida com

    liberdade, excelncia e seriedade por seus tcnicos. No obstante a experincia emprica e a

    apreenso de conhecimento dos colegas, tive a oportunidade de instruir o Processo 66.578/12,

    que tratou do tombamento da sede do DOI-CODI em So Paulo. Alm do privilgio de tratar

    tema to instigante e desafiador para o campo do patrimnio, o parecer tcnico e essa

  • 11

    dissertao se beneficiaram mutuamente do conhecimento adquirido. Recentemente, em 27 de

    janeiro de 2014, o Condephaat decidiu favoravelmente pelo tombamento do local, de maneira

    unnime. Portanto, o parecer tcnico desenvolvido no mbito da UPPH, bem como esta

    pesquisa, ser objeto de anlise e crtica num futuro prximo.

    O desejo que ambos possam contribuir com a discusso sobre o patrimnio, campo

    frtil e pouco explorado pelo o Departamento de Histria da USP, alm de aportar elementos

    para discusso historiogrfica e, sobretudo, incentivar outras pesquisas que tenham como

    objeto o patrimnio cultural.

  • 12

    Capitulo I Brasil e Argentina: aproximaes na histria poltica

    1. Antecedentes histricos de Brasil e Argentina

    Brasil e Argentina so pases que dividem fronteiras e episdios histricos, guardam

    semelhanas e diferenas em suas histrias. Uma das semelhanas, que contextualiza esta

    pesquisa, pode ser observada nas ltimas quatro dcadas do sculo XX, pois tanto no Brasil

    quanto na Argentina ocorreram golpes de estado promovidos por militares que usurparam o

    Poder Executivo e controlaram o Legislativo e o Judicirio. Embora haja diferena nos atores

    sociais que impulsionaram os golpes no Brasil, a ameaa de instabilidade social e

    institucional foi apontada na figura do ento Presidente Joo Goulart; e, na Argentina, grupos

    populares, sindicatos e organizaes paramilitares configuravam esta mesma ameaa ,

    ambos os governos militares operavam dentro de uma estrutura ideolgica compartilhada, a

    Doutrina de Segurana Nacional.

    O perodo da Guerra Fria gerou movimentos contrrios adeso dos pases latino-

    americanos ao bloco capitalista, cujo auge foi materializado com a Revoluo Cubana, em

    1959. Surgia uma nova figura de ameaa aos interesses dos pases pertencentes ao bloco

    capitalista: agora, as foras de segurana no deveriam preocupar-se apenas com as possveis

    investidas de pases estrangeiros soberania de seus Estados, mas tambm com o inimigo

    interno, que poderia desestabilizar a ordem democrtica ocidental. Isso porque durante a

    Guerra Fria, os pases latino-americanos deveriam lutar contra o comunismo dentro de suas

    fronteiras, enquanto os Estados Unidos defenderiam o hemisfrio ocidental contra possveis

    agresses externas do bloco sovitico.18

    Em decorrncia da necessidade de eliminar o inimigo interno, os Estados que aderiram

    Doutrina de Segurana Nacional se utilizaram de expedientes que eliminavam o Estado de

    Direito com a decretao de Estado de Stio. A partir de ento, houve a minimizao de

    direitos individuais, a suspenso de direitos polticos, a possibilidade de priso para

    averiguao sem a necessidade de expedio de mandados e a submisso de subversivos

    civis Justia Militar19

    , configurando aquilo que ficou conhecido como Terrorismo de

    Estado.20

    18

    CASTRO, Maria Helena de Santos. A nova misso das foras armadas latino-americanas no mundo ps-

    Guerra Fria: o caso do Brasil. Revista Brasileira de Cincias Sociais, v.19, n.54, fev.2004, p.115. 19

    Para uma discusso sobre os impactos da Doutrina de Segurana Nacional nos pases latino-americanos ver:

    PADRS, Enrique Serra. Represso e Violncia: segurana nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-

    americanas. In: FICO, Carlos; FERREIRA, Marieta de Moraes; ARAUJO, Maria Paula; QUADRAT, Samantha

  • 13

    So estas caractersticas comuns no s ao Brasil e Argentina, mas tambm a outros

    pases da Amrica Latina, que permearam o ambiente entre as dcadas de 1960 e 1970. Um

    curto espao de 12 anos separa o golpe militar brasileiro daquele mais recente e atroz

    argentino que viveu uma sucesso de golpes nas dcadas anteriores.

    1.1 Contexto Brasileiro

    No caso do Brasil, desde o suicdio de Getlio Vargas, em agosto de 1954, as foras

    conservadoras passaram a atuar de maneira ostensiva em oposio ao avano dos movimentos

    sociais. Juscelino Kubitschek, eleito em 1955 pelo voto direto, deparou-se com a resistncia

    de seus opositores, que queriam impedir sua posse por ele no ter obtido a maioria de votos

    no pleito21

    . S pode assumir o poder com uma interveno militar, e mesmo assim continuou

    a enfrentar a oposio de Jnio Quadros, candidato derrotado, que representava parte dos

    anseios da sociedade.

    Nas eleies de 1960, Jnio Quadros conseguiu expressiva votao e foi eleito

    Presidente com o apoio de setores conservadores da classe mdia, latifundirios, industriais e

    de oficiais militares. Seu breve governo ficou caracterizado pelo foco no pagamento da dvida

    externa e no controle da inflao um discurso que, embora necessrio naquele momento22,

    era bastante consoante com aquele desejado pelos EUA, que visava limitar o impacto da

    Revoluo Cubana, de 1959. Em agosto de 1961, apenas oito meses aps sua posse, Jnio

    Quadros renunciou ao mandato. Com sua renncia, assumiu o vice-Presidente, Joo Goulart,

    de perfil bastante distinto de Quadros.

    Havia um descontentamento, desde 1946, de grupos polticos conservadores e de parte

    das Foras Armadas que, derrotados em pleitos eleitorais, passaram a desqualificar a

    Viz (orgs.). Ditadura e Democracia na Amrica Latina. Balano histrico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora

    FGV, 2008, PP.143-178 20

    Alejandra Leonor Pascual, em seu estudo, afirma: O jurista romeno Eugene Aroneau define como terrorismo de Estado o exerccio do poder supremo do Estado, sem estar sujeito a nenhum tipo de controle, por meio de um sistema organizado e incentivado desde suas estruturas para a consecuo dos seus objetivos (Aroneau, apud Fontalini, 1984, p.83). De modo semelhante, Mignone (1991, p.54) considera que o Estado se transforma em

    terrorista quando, de forma clandestina e por deciso poltica, usa os meios de que dispe para ameaar,

    seqestrar, torturar, colocar bombas, realizar estragos, incndios, entre outros, com a cumplicidade de todos os

    rgos oficiais e colocando os habitantes em uma situao absoluta de falta de defesa.. PASCUAL, Alejandra Leonor. Terrorismo de Estado: a Argentina de 1976 a 1983. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 2004,

    p.133. 21

    Kubistchek foi eleito com 36% dos votos vlidos por uma coligao do PSD com o PTB, que elegeu Joo

    Goulart, do PTB, como seu vice-presidente. Esse baixo percentual gerou questionamento da legitimidade do

    presidente. 22

    Isso porque, no primeiro ano de governo de Quadros, o pas estava com um montante de dvidas vencidas,

    contratadas durante o governo de Kubistchek, alm da inflao crescente em decorrncia da grande emisso de

    moeda; ambos os cenrios foram conseqncia, entre outras coisas, da construo de Braslia

  • 14

    democracia, classificando o regime como demagogo, que facilitava a manipulao do povo

    ingnuo e a corrupo generalizada que, segundo esse discurso, contaminou desde partidos

    at sindicatos. Esse clima de suspeio sobre a democracia somado ao avano das foras

    conservadoras nos campos poltico e econmico e com reverberao nos veculos de imprensa

    foi determinante para a criao de um clima de instabilidade social, que levou ao Golpe de

    01/04/1964.23

    O poder foi tomado pelos militares com uma promessa de retorno normalidade

    democrtica nas eleies para Presidente no ano de 1965. Com a aprovao do Congresso

    para a extenso do governo de Castello Branco para at 15 de maro de 1967, e a edio do

    Ato Institucional n2, de outubro de 1965, que determinou que as eleies para Presidente,

    marcadas para novembro de 1966, teriam carter indireto, a promessa no foi cumprida pelos

    militares. Frustravam-se, assim, as expectativas de retorno democracia. Desse momento em

    diante, ocorreu o aprofundamento das restries liberdade individual, dos direitos polticos e

    a ampliao da atuao dos aparelhos de represso, especialmente a partir de dezembro de

    1968, com a edio do Ato Institucional n 5.

    1.2 Contexto argentino

    Antes do Golpe de 1976, o processo poltico na Argentina j vinha sofrendo

    sistemticos golpes militares desde 1955, quando Juan Domingos Pern foi destitudo do

    cargo e substitudo pelo General Eduardo Lonardi (este tambm deposto pelo General Pedro

    Aramburu). Um novo golpe em 1962 destituiu o General Arturo Frondizi, eleito indiretamente

    em 1959, acusado de se aproximar em demasia do Peronismo; essa acusao teve base na

    permisso dada por Frondizi para a volta do Partido Justicialista legalidade, j que este fora

    cassado pelo golpe de 1955.

    De volta legalidade, o Partido Justicialista venceu as eleies de maro de 1962 em

    10 das 14 provncias argentinas, causando a revolta de militares contrrios ao Peronismo. A

    destituio de Frondizi, forada pela presso dos militares, permitiu que o civil Jos Maria

    Guido, ento Presidente do Senado, tomasse posse e permanecesse no cargo por alguns

    meses, suficientes para dissolver o Congresso, colocar o Partido Justicialista na ilegalidade

    23

    Um aprofundamento do perodo pode ser estudado em FERREIRA, Jorge; DELGADO, Luclia de A. Neves

    (orgs.). O tempo da experincia democrtica Coleo O Brasil Republicano, volume 4. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao Brasileira, 2003. O site www.brasilrepublicano.com.br , fruto de pesquisas financiadas pela FAPERJ

    tambm apresenta textos e outros materiais sobre o perodo.

  • 15

    novamente, anular as eleies para governador de provncia que elevaram os peronistas ao

    poder , e convocar novas eleies limitadas e controladas pelos militares.

    Nas novas eleies para Presidente, Arturo Illia venceu as eleies com pouco mais de

    25% dos votos.24

    Illia, que em 1962 foi impedido de tomar posse como Governador de

    Crdoba, permaneceu na presidncia da Argentina at 1966. Nesse ano, um novo cenrio

    poltico foi inaugurado: ao contrrio dos golpes anteriores, que tinham carter provisrio, o

    golpe promovido por Juan Carlos Ongana instaurou um governo militar permanente, que se

    manteve at as eleies de 1973, quando o candidato peronista Hctor J. Cmpora foi eleito

    Presidente.

    Com o slogan Cmpora ao governo, Pern ao poder, ficava clara a intrnseca relao

    do novo presidente eleito em maro de 1973 com a figura onipresente de Pern, que mesmo

    no exlio25

    fez a indicao para o lanamento da candidatura de Cmpora por seu partido. No

    foi coincidncia que apenas quatro meses aps as eleies, em julho de 1973, Cmpora e seu

    vice renunciaram ao cargo.

    Pern havia retornado Argentina um ms antes e encontrou uma situao bastante

    diferente de quando estava no exlio: as eleies tinham sido permitidas no governo militar do

    General Lanusse, que tambm legalizou as atividades do Partido Justicialista, o que

    possibilitou a candidatura de Pern em uma eleio livre.

    Eleito numa chapa composta por ele e sua esposa Maria Estela Martnez (conhecida

    por Isabelita), Pern tomou posse em outubro de 1973, mas morreu nove meses depois, em

    julho de 1974. Isabelita assumiu a Presidncia, mas seu governo ficou marcado por crises

    econmicas em decorrncia da alta do preo do petrleo no mercado internacional, aumento

    nas tarifas pblicas, greves, hiperinflao, racionamento de alimentos e estagnao da

    economia. O clima social era de instabilidade, retratado inclusive pela imprensa brasileira:

    Durante uma semana, os portenhos se abasteceram prevendo um golpe

    militar tido ento como praticamente inevitvel, em conseqncia do vazio

    de poder, do crescente caos poltico e social, e de uma das mais agudas

    crises econmicas da histria recente da Argentina. (...)26

    Na edio da semana seguinte, de 24 de maro de 1976, a Revista Veja trouxe nova

    matria sobre a situao na Argentina, e mais que uma mera descrio dos fatos, a publicao

    parecia cobrar uma soluo militar crise, semelhana do que a imprensa escrita havia

    24

    FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de histria comparada (1850-2002).

    So Paulo: Editora 34, 2004, p.374. 25

    Desde 1955, Juan Pern estava exilado. Idem, p.336-7. 26

    Frmula pronta? Revista Veja, 17 maro de 1976. Editora Abril, p.42

  • 16

    feito 12 anos antes no Brasil, conclamando os militares a tomar o poder para conter a

    desordem social:

    Mais uma vez na semana passada, no havia ocorrido na Argentina o golpe

    de Estado que h quase um ano vem sendo repetidamente anunciado como

    inevitvel. (...) A semana til, iniciada as 7h45 de segunda-feira com a

    exploso de duas bombas no edifcio do Comando Geral do Exrcito, em

    Buenos Aires, havia se encerrado na noite de sexta-feira com novos recordes

    de violncia 22 mortos, o que eleva a 134 o total de assassnios polticos

    em 1976. E continuou a correr, caudaloso como sempre, o rio de greves,

    locautes, sequestros, atentados, falta de gneros essenciais e especulaes

    sem fim. 27

    Em 24 de maro de 1976 veio o Golpe, auto-intitulado Processo de Reorganizao

    Nacional, institudo com vistas a cessar o cenrio de violncia permitido por Isabelita Pern.

    Iniciou-se ali o perodo mais sombrio e nefasto da histria contempornea argentina, no qual

    foi criado um sofisticado sistema de perseguio aos opositores das polticas do governo

    ditatorial, que contou com mais de 500 centros clandestinos de deteno, e que gerou um

    nmero oficial de 14.000 desaparecidos embora organismos de direitos humanos acreditem

    ser 30.000 , em sua maioria, trabalhadores.28

    A seqncia de golpes e as suas conexes com a Ditadura instaurada a partir de 1976

    na Argentina, foi retratada pelo artista Daniel Santoro, na obra Recuerdo de Plaza de Mayo,

    1955, em que aponta nomes de pessoas responsveis pelo bombardeio29 da Plaza de Mayo

    no ano de 1955 e suas participaes na ditadura a partir de 1976. A obra demonstra como os

    militares que ascenderam ao poder em 1976 j estava inseridos no cenrio poltico argentino

    como personagens ativos, e como ao longo dos anos construram uma imagem de prestgio

    que os legitimou a dar o Golpe. A frase El mismo vuelo la misma muerte expressa a

    continuidade dos mesmos atores em cenrios similares.

    27

    Cinco Minutos. Revista Veja, 24 de maro de 1976, p. 39. 28

    SEOANE, Maria. El golpe del 76. In: Memoria en construccin: el debate sobre La ESMA. Buenos Aires: La

    Marca Editora, 2005, p.67. 29

    Em 16 de junho de 1955, oficiais e suboficiais da Marinha e da Aeronutica, com o intuito de matar a Juan

    Pern na Casa Rosada, bombardearam a Plaza de Mayo, matando em torno de 300 civis, que com outros,

    reuniam-se para prestar apoio ao presidente. Um relato minucioso deste episdio trgico da histria recente

    argentina pode ser lido em PORTUGHEIS, Elsa (coord.). Bombardeo del 16 de junio de 1955. Buenos Aires:

    Archivo Nacional de La Memoria/ Secretaria de Derechos Humanos, 2010. A publicao est disponvel

    tambm em formato pdf, gratuito, no site http://www.derhuman.jus.gov.ar/anm/PDF/30-Bombardeo.pdf,

    acessado em 23 jul. 2013.

  • 17

    Tanto na Argentina como no Brasil, o que podemos apreender que o poder militar se

    institucionalizou como poder poltico ao longo dos anos, legitimado pelas classes civis

    polticas, que mantiveram comportamento permissivo com relao s intervenes militares

    na poltica. Os golpes se organizaram atravs de uma Junta de Comandantes formada pelos

    chefes das trs foras militares de seus pases. Na Argentina, a junta formada pelo General

    Jorge Rafael Videla, o Almirante Emlio Massera e o Brigadeiro-General Orlando Ramn

    Agosti durou apenas cinco dias e criou os instrumentos legais do chamado Processo de

    Reorganizao Nacional que possibilitou a indicao de Jorge Rafael Videla Presidncia;

    Videla, ento Comandante do Exrcito, acumulou os cargos de Presidente e de Comandante

    do Exrcito at 1978.

    No Brasil, embora o presidente da Cmara dos Deputados tenha assumido a

    Presidncia da Repblica aps o golpe, sabido que esta foi uma manobra dos militares para

    conferir um ar de legalidade situao30. Organizados no Comando Supremo da Revoluo

    estavam o Brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, o vice-Almirante Augusto

    Rademaker e o General Artur da Costa e Silva. Em 11 de abril de 1964, dez dias aps o golpe,

    o Congresso elegeu Humberto Castello Branco tambm General do Exrcito como

    Presidente da Repblica.

    30

    MARTINS FILHO. Joo Roberto. O 1 de Abril. Revista de Histria da Biblioteca Nacional, Rio de

    Janeiro, ano 7, n.83, p.18-20, ago.2012.

    Figura 1 - SANTORO, Daniel. Recuerdo de Plaza de Mayo 1955. (2005) leo sobre tela. Extrado de

    BRODSKY, Marcelo. Memoria en construccin: el debate sobre La ESMA. Buenos Aires: La Marca

    Editora, 2005, p.163.

  • 18

    Assim, ambos os pases conviveram com um Poder Executivo centralizador e que

    concentrou o poder do Estado nas mos das Foras Armadas, resultando em governos que

    para disciplinar a la sociedad ejerciendo la violencia y el arbtrio, desconcentraba

    internamente el poder de decidir y ejecutar polticas pblicas, difuminando las jerarquias del

    propio aparato estatal.31

    Figura 2 - Da esq. para a dir.: Almirante Emilio

    Massera, General Jorge Videla e Brigadeiro

    Orlando Agost. Foto: Autoria no identificada,

    extrada de

    http://www.arecosemanal.com.ar/noticias/80073/19

    75-24-de-marzo-2011

    Figura 3 Da esq. para a dir.: General Artur da

    Costa e Silva, vice-Almirante Augusto Rademaker e

    Brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo.

    Foto: Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 10 abr.

    1964. (agradeo a lvaro Nunes Larangeira pelo

    envio da referncia)

    No sero abordados nesse trabalho os desdobramentos de cada uma das ditaduras e

    de suas conexes, uma vez que no se trata do objetivo central da pesquisa. Entretanto,

    importante tratar de duas instituies que serviram represso do Estado contra os seus

    insurgentes e que, durante o perodo de restabelecimento da democracia, viraram objeto de

    disputa social e de transformao em lugares de memria: o DEOPS Departamento

    Estadual de Ordem Poltica e Social de So Paulo, e o edifcio Casino de Oficiales, nas

    dependncias da Escuela de Mecnica de la Armada ESMA, de Buenos Aires, Argentina.

    A seguir, sero apresentadas as histrias destas instituies e dos edifcios que

    ocuparam ao longo da Histria.

    31

    (...) para disciplinar a sociedade faziam o uso da violncia e discrio, desconcentrava internamente o poder de decidir e implementar polticas pblicas, excluindo as hierarquias do prprio aparelho do Estado. Traduo da autora a partir de NOVARO, Marcos. Historia de la Argentina Contempornea: de Pern a Kirchner.Buenos

    Aires: Edhasa, 2006, p.69

  • 19

    2. Histria das Instituies

    2.1 Escuela de Mecnica de la Armada

    De acordo com a publicao comemorativa do cinqentenrio de fundao da

    ESMA32

    , de 1947, a escola nasceu da necessidade de formar cidados argentinos com

    conhecimentos em manuteno de embarcaes da Marinha. Os cursos foram iniciados ainda

    em 1883 em Tigre, cidade vizinha ao norte da capital Buenos Aires, onde precariamente

    foram formadas as primeiras turmas de mecnicos que trabalharam nas Oficinas e Bases da

    Marinha.

    Um decreto do Ministro da Marinha, datado de 29 de outubro de 1897, criou

    formalmente a Escuela de Aprendices Mecnicos de la Armada, (que visava responder

    militar y tcnicamente a los fines para que ha sido creada33) e que deu incio s grandes

    reformas empreendidas pelo Presidente General Julio Roca, com o intuito de melhorar a

    segurana externa do pas em relao a seus vizinhos.

    No ano de 1900, a Escuela mudou de Tigre para Drsena Norte, na cidade de Buenos

    Aires (Puerto Madero) onde j existiam Oficinas da Marinha; foi nesse perodo que ela se

    estruturou organizacionalmente, adotando regulamentos internos que estabeleceram critrios e

    periodicidade para a admisso de alunos alm da elaborao da proposta pedaggica

    direcionada para a formao tcnica e militar dos mecnicos da Marinha.34

    Em 1902, o nome

    foi mudado para Escuela de Aprendices Mecnicos y Foguistas. Em 1904, a formao de

    bombeiros (foguistas) foi extinta e o nome foi alterado novamente para Escuela de

    Mecnicos de la Armada. Entre os anos de 1911 e 1928, a nomenclatura adotada foi Escuela

    de Mecnica de la Armada.

    Ao longo das duas primeiras dcadas do sculo XX, a frota de navios cresceu e a

    necessidade de aumentar ainda mais os quadros de alunos fez com que a Marinha se

    preocupasse em ampliar a Escuela, uma vez que as instalaes em galpes metlicos em

    Drsena Norte se mostravam insuficientes para a expanso pretendida. Em 1924, o municpio

    de Buenos Aires assinou um acordo que cedeu marinha o terreno onde foi construda a

    ESMA, que ali permaneceu at o ano de 2004.

    32

    Escuela de Mecnica de La Armada. Cincuentenrio 1897-1947. Buenos Aires: Ministerio de Marina/ Estado

    Mayor General/Seccin de Publicidad, 1947. Disponvel em http://www.exalumnosceaema.com/17-historia-de-

    la-escuela-de-mecanica-de-la-armada/, acessado em 24 jul. 2013 33

    Idem, Seo Creacin de la Escuela 34 Idem, Seo En Drsena Norte

  • 20

    Ao longo dos anos, os Suboficiais da Marinha Argentina buscaram capacitao tcnica

    em outros pases trabalhando em estaleiros e fbricas de artigos navais, a fim de aperfeioar o

    conhecimento na construo e tripulao de navios. A ESMA se tornava referncia em

    treinamento de pessoal para a Marinha; seu objetivo principal era formar personal subalterno

    graduado, apto militar y tecnicamente para tripular los buques de La Flota atravs de vrios

    cursos35

    , entre eles:

    Capacitao Tcnica Elementar para Marinheiros curso voltado a quem j

    havia servido ao menos um ano na Marinha e desejava progredir na carreira

    militar a Cabo, nas especialidades de artilharia, eletricista, maquinista,

    radiotelegrafista, torpedistas, sinalizadores.

    Alta Capacitao Tcnica de Aprendizes Navais realizado em 5 anos para

    jovens entre 14 e 18 anos que j ingressavam como Cabo e poderiam chegar a

    Subtenente, especializados em artilharia, armas submarinas, mquinas,

    eletricidade, radiotelegrafia e aeronutica.

    Elementar para Marinheiros Aprendizes voltado para quem j estava na

    Marinha, e desejava especializao em radiotelegrafia, sinalizador, cozinheiro,

    furriel (posto militar entre Cabo e Sargento), e torrero (aquele que cuida dos

    faris navais).

    Tratava-se da formao de praas para a Marinha, mas tambm capacitava jovens que

    no seguiam a carreira militar; a Escuela oferecia, alm do ensino das tarefas especficas,

    aulas de moral, tica, higiene naval, as como historia y tradicin naval (...)sesiones

    semanales de natacin y gimnasia, e inclusive de otras actividades desportivas, com el

    propsito de formar hombres sanos y entusiastas.36. Esses jovens, com formao

    profissional, passaram a substituir os veteranos voluntrios que formaram as primeiras

    foras de defesa argentina e que no possuam qualquer capacitao.

    Com as reformas nas carreiras das Foras Armadas, critrios de promoo passaram a

    ser adotados e esses jovens puderam ascender profissionalmente, a ponto de j na dcada de

    1920, boa parte do corpo de militares ter estudado nas escolas das Foras Armadas. As

    35

    As informaes sobre os cursos foram extradas de Escuela de Mecnica de La Armada. Cincuentenrio 1897-

    1947. Buenos Aires: Ministerio de Marina/ Estado Mayor General/Seccin de Publicidad, 1947, Seo Sus Actividades. Disponvel em http://www.exalumnosceaema.com/17-historia-de-la-escuela-de-mecanica-de-la-armada/, acessado em 24 jul. 2013. 36

    Escuela de Mecnica de La Armada. Cincuentenrio 1897-1947. Buenos Aires: Ministerio de Marina/ Estado

    Mayor General/Seccin de Publicidad, 1947, Seo Adecuada Educacin Militar. Disponvel em http://www.exalumnosceaema.com/17-historia-de-la-escuela-de-mecanica-de-la-armada/, acessado em 24 jul.

    2013

  • 21

    escolas profissionalizantes, no obstante, ainda consolidaram-se como um instrumento de

    favorecimento da integrao nacional e incluso de filhos de imigrantes, especialmente pela

    possibilidade real de seguir uma carreira militar aps a prestao de servio obrigatrio (por

    um ano no Exrcito ou dois anos na Marinha) e, portanto, de ascenso classe mdia

    tradicional.37

    Figura 4 - Alunos da ESMA em aula de eltrica. Foto: Archivo General de la Nacin, Dpto. Doc.

    Fotogrficos. Argentina, s/d.

    Por dcadas a ESMA foi utilizada apenas como instituio de ensino e preparao de

    jovens para a carreira militar e profissional uma das escolas profissionalizantes mais

    importantes das Foras Armadas, tendo em vista que a Marinha teve seu poder bastante

    incrementado ao longo dos anos justamente pelo conflito iminente entre Argentina e Chile na

    regio da Patagnia. Mas, a partir de 1976, aquele local se transformou no mais terrvel centro

    de deteno clandestino da Argentina, ainda que tenha mantido as aulas regularmente, em

    prdios distintos, como veremos adiante.

    2.1.2 De Escola a Centro Clandestino de Deteno

    Como aquela que era uma Escola voltada ao ensino profissionalizante de jovens

    argentinos se transformou em Ese Infierno38? Tratou-se de um processo, e no de uma

    determinao repentina. O golpe j estava sendo gestado pela direo das trs Armas pelo

    37

    As informaes constantes neste pargrafo bem como uma anlise sobre a formao das Foras Armadas no

    Brasil e na Argentina e as escolas profissionalizantes podem ser vistas em Instituies: As Foras Armadas e a garantia da ordem no Captulo 2 da obra FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de histria comparada (1850-2002). So Paulo: Editora 34, 2004, pp. 203-214. 38

    O adjetivo conferido no livro Ese infierno: conversaciones de cinco mujeres sobrevivientes de la ESMA, publicado na Argentina em 2001 e escrito por Nilda Actis Goretta, Cristina Ins Aldini, Liliana Gardella, Len

    Rozitchner e Man Actis, todas sobreviventes da ESMA que decidiram relatar suas experincias dentro do

    centro de deteno.

  • 22

    menos desde 1975, quando o Exrcito interviu politicamente em Tucumn. Chamada de

    Operativo Independencia, a operao militar comandada pelo Exrcito com o apoio de

    foras policiais locais tinha o objetivo de erradicar a ao do Ejrcito Revolucionrio del

    Pueblo (ERP), uma guerrilha de esquerda que contava com 120 membros. A decretao do

    Estado de Stio na provncia possibilitou a interveno militar com o deslocamento de mais de

    cinco mil homens do Exrcito e a aniquilao do movimento. Alm disso, as Foras Armadas

    saram fortalecidas do episdio, uma vez que a ento Presidenta Isabel Pern, por meio de

    Decretos, conferiu s Foras o poder de luta contra a subverso em todo o pas.39

    Como um prenncio do golpe que estava por vir, os militares passaram a seqestrar e

    matar em locais secretos40

    no somente guerrilheiros, mas qualquer um que se declarasse

    simpatizante da esquerda. O Operativo Independencia, portanto, representou uma ruptura na

    relao da poltica repressiva, adotando no somente as tticas empreendidas pela Triple A41

    e

    outras organizaes paramilitares, mas com uma metodologia baseada em la prctica de

    secuestro y desaparicin forzada cuyo dispositivo fundamental es el campo de

    concentracin.42

    Avec le coup d'tat de 1976, ces mthodes furent gnralises tout le pays.

    Militants de gauche, catchistes, gurilleros, syndicalistes, intellectuels,

    tudiants et leurs proches furent tous considrs comme des subversifs.

    Enleves dans la rue, leur domicile ou leur travail, les victimes furent

    conduites dans des centres clandestins de dtention o la torture tait

    39

    BAUER, Caroline Silveira. Aproximaes entre o combate Guerrilha do Araguaia e o Operativo

    Independencia na Argentina: preceitos da Guerre Rvolutionnaire no Cone Sul. In: Escritas, v. 3, p. 84-102,

    2011. 40

    O Operativo Independencia utilizou a Escuela Famaill como Centro Clandestino de Deteno, bem como

    outros trs locais: Conventillos de La Fronterita, Comisara de Famaill e Escuela Lavalle. Desde junho de

    2013, a Escuela Famaill foi transformada em Espao para a Memria. Informao constante de La escuela de Famaill ser inaugurada como un espacio de memria. Disponvel em http://www.prensa.tucuman.gov.ar/index.php/todas-las-noticias/1161-la-escuela-de-famailla-sera-inaugurada-

    como-un-espacio-de-memoria 41

    A Triple A (Alianza Anticomunista Argentina) era uma organizao paramilitar formada em 1973 pelo

    Ministro de Bem Estar Social de Pern, Jos Lpez Rega e outros grupos de inspirao fascista, que reunia

    oficiais e militares da ativa e/ou reformados especialmente do Exrcito , capangas de sindicatos e da extrema direita peronista e nacionalista. Contavam com apoio financeiro e logstico de agncias estatais e com a

    conivncia da Polcia Federal e de autoridades militares. Entre 1973 e 1975, com o argumento da caada subverso, materializada especialmente na figura dos Montoneros, a Triple A promoveu mais de 900 assassinatos e contribuiu para o clima de insegurana e instabilidade na sociedade argentina, que levaram ao

    golpe em 1976. NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A ditadura militar argentina 1976-1983: do Golpe de

    Estado Restaurao Democrtica. Traduo Alexandra de Mello e Silva. So Paulo: Editora da Universidade

    de So Paulo, 2007, p.104-107. 42

    CRUZ, Margarita, et al. Las prcticas sociales genocidas en el Operativo Independencia en Famaill,

    Tucumn. Febrero de 1975 Marzo de 1976. Grupo de Investigacin sobre Genocdio en Tucumn (GIGET). Primeras Jornadas de Historia Reciente del NOA Memoria, Fuentes Orales y Ciencias Sociales, Facultad de Filosofa y Letras, Universidad Nacional de Tucumn, julio de 2010. Disponvel em

    http://www.historiaoralargentina.org/attachments/article/1erasjhrnoa/5.2.CRUZ-JEMIO-MONTEROS-

    PISANI.pdf, acessado em 19 ago. 2013.

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    systmatique et o elles connurent, pour la plupart, les derniers jours de

    leur vie.43

    De acordo com Claudio Martyniuk, a partir da publicao do Decreto 2772, datado de

    06/10/1975 que conferiu amplos poderes de perseguio a subversivos, como

    demonstrado no caso de Tucumn , Emlio Massera, chefe da Marinha, comeou a

    acondicionar el edificio del Casino de Oficiales de Esma para su novo destino44. No h

    consenso sobre a exatido da data em que a ESMA passou a funcionar como Centro

    Clandestino de Deteno (CCD). Embora haja a indicao de que este e outros quatro centros

    iniciaram suas atividades clandestinas antes do golpe45

    , em fins de 1975, h uma tendncia em

    indicar o ms de maro de 1976 como o comeo do uso do local como CCD, sob o comando

    de Massera e os auspcios do Diretor da Escola Ruben Jacinto Chamorro.

    A prtica de criao de Centros Clandestinos de Deteno foi comum na Argentina

    como um todo atualmente, calcula-se que existiram cerca de 500 centros deste tipo46.

    Segundo o informe Nunca Ms,

    Las caractersticas edilicias de estos centros, la vida cotidiana en su interior,

    revelan que fueron concebidos antes que para la lisa y llana supresin fsica

    de las vctimas para someterlas a un minucioso y planificado despojo de los

    atributos propios de cualquier ser humano.

    Porque ingresar a ellos signific en todos los casos DEJAR DE SER, para lo

    cual se intent desestructurar la identidad de los cautivos, se alteraros sus

    referentes tempoespaciales, y se atormentaron sus cuerpos y espiritus ms

    all de lo imaginado.47

    43