2014 09-11 - o menino com guelras

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O Menino Com Guelras Era uma vez um menino chamado Bernardo que tinha 8 anos. Ele era magro e baixo, o que era normal na sua idade, era moreno, tinha olhos verdes e cabelo castanho-escuro. Bernardo vivia numa pequena aldeia de pescadores perto da praia, onde o clima era por norma muito quente e ventoso. Morava com a sua mãe, Jacinta, e com o seu pai, Euclides. Bernardo parecia ser um rapaz normal, no entanto escondia em si algumas características fora do vulgar que, estranhamente, ele próprio desconhecia ter. Na sua escola, ele era visto por todos os colegas, professores e até pais de colegas como “o rapaz solitário”. Era normalmente observado a brincar com coisas que aos seus colegas passavam despercebidas, tais como folhas de árvores, pedras, pequenos insectos e até as suas próprias mãos. Algumas das observações mais estranhas eram feitas quando Bernardo era apanhado a falar sozinho. No caso dos professores, o que os deixava mais desconfortáveis eram as perguntas complexas de mais para a sua idade, como por exemplo: Como as moscas se seguram no teto sem cair, Por que é que a terra é redonda, Por que é que as pessoas do hemisfério sul não caem. Todos os seus colegas o excluíam das suas brincadeiras e conversas, pelo facto de ficarem perplexos com alguns temas abordados por ele. Acabava, assim, por brincar sempre sozinho. Certo dia, Bernardo conseguiu convencer a sua mãe a deixá-lo ir à pesca com o seu pai. Esta deixou-o, dizendo que apenas poderiam ir com a rede mais pequena, demorando menos tempo e afastando-se, assim, pouco da praia, pois iriam no barco de pesca artesanal do seu progenitor. Bernardo vestiu o colete salva- vidas do pai, pois não houvera tempo para lhe comprar um, pegou na sua cana e colocou o chapéu na cabeça. Finalmente, estava pronto e contente para o seu primeiro dia de pesca. E lá partiram eles para aquela grande aventura. Tinham acabado de lançar a rede, quando de repente o céu límpido e azul, as nuvens brancas e suaves como algodão doce e o sol brilhante desapareceram. Tudo mudou como por magia: o céu azul virou negro, as nuvens brancas passaram a cinzentas, cheias de raios e gotas de água e o sol deixou de existir. O barco oscilava de um lado para o outro, tornando impossível que Bernardo e o seu pai ficassem estáveis e seguros, enquanto parecia que o barco lhes escapava dos pés. Assim, o que começou por ser um belíssimo passeio no mar tornou-se num pesadelo: as ondas gigantes a cada cinco minutos passaram rapidamente a uma sucessão interminável. Estas ondas cada vez os afastavam mais e mais da costa, chegando a um certo ponto que nem a terra conseguiam ver. Era horrível aquela sensação de nada conseguirem fazer para regressar. De repente uma onda que devia ter o tamanho de um arranha-céus, ao rebentar, acabou por despedaçar todo o barco de Euclides, não restando nem um pedaço de madeira.

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O Menino Com Guelras

Era uma vez um menino chamado Bernardo que tinha 8 anos. Ele era magro e baixo, o que era

normal na sua idade, era moreno, tinha olhos verdes e cabelo castanho-escuro. Bernardo vivia numa

pequena aldeia de pescadores perto da praia, onde o clima era por norma muito quente e ventoso. Morava

com a sua mãe, Jacinta, e com o seu pai, Euclides.

Bernardo parecia ser um rapaz normal, no entanto escondia em si algumas características fora do vulgar

que, estranhamente, ele próprio desconhecia ter. Na sua escola, ele era visto por todos os colegas,

professores e até pais de colegas como “o rapaz solitário”. Era normalmente observado a brincar com coisas

que aos seus colegas passavam despercebidas, tais como folhas de árvores, pedras, pequenos insectos e

até as suas próprias mãos. Algumas das observações mais estranhas eram feitas quando Bernardo era

apanhado a falar sozinho. No caso dos professores, o que os deixava mais desconfortáveis eram as

perguntas complexas de mais para a sua idade, como por exemplo: Como as moscas se seguram no teto

sem cair, Por que é que a terra é redonda, Por que é que as pessoas do hemisfério sul não caem. Todos os

seus colegas o excluíam das suas brincadeiras e conversas, pelo facto de ficarem perplexos com alguns

temas abordados por ele. Acabava, assim, por brincar sempre sozinho.

Certo dia, Bernardo conseguiu convencer a sua mãe a deixá-lo ir à pesca com o seu pai. Esta deixou-o,

dizendo que apenas poderiam ir com a rede mais pequena, demorando menos tempo e afastando-se, assim,

pouco da praia, pois iriam no barco de pesca artesanal do seu progenitor. Bernardo vestiu o colete salva-

vidas do pai, pois não houvera tempo para lhe comprar um, pegou na sua cana e colocou o chapéu na

cabeça. Finalmente, estava pronto e contente para o seu primeiro dia de pesca. E lá partiram eles para

aquela grande aventura.

Tinham acabado de lançar a rede, quando de repente o céu límpido e azul, as nuvens brancas e suaves

como algodão doce e o sol brilhante desapareceram.

Tudo mudou como por magia: o céu azul virou negro, as nuvens brancas passaram a cinzentas, cheias

de raios e gotas de água e o sol deixou de existir. O barco oscilava de um lado para o outro, tornando

impossível que Bernardo e o seu pai ficassem estáveis e seguros, enquanto parecia que o barco lhes

escapava dos pés. Assim, o que começou por ser um belíssimo passeio no mar tornou-se num pesadelo: as

ondas gigantes a cada cinco minutos passaram rapidamente a uma sucessão interminável. Estas ondas cada

vez os afastavam mais e mais da costa, chegando a um certo ponto que nem a terra conseguiam ver. Era

horrível aquela sensação de nada conseguirem fazer para regressar. De repente uma onda que devia ter o

tamanho de um arranha-céus, ao rebentar, acabou por despedaçar todo o barco de Euclides, não restando

nem um pedaço de madeira.

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Euclides e Bernardo caíram borda fora, o pequeno desapareceu por entre todas aquelas ondas, o pai

conseguiu salvar-se e nadar até à costa. A primeira reacção de Euclides foi correr para junto de Jacinta e

contar-lhe o que tinha acontecido, muito desgostoso e de alma vazia, como era de esperar, pois tinha

acabado de perder o seu único filho. Porém, no fundo, havia dentro de si uma réstia de esperança já que vira

no meio da onda fatal o colete que estava no corpo de Bernardo e naquela hora rezara para que ele o tivesse

agarrado.

Após muito chorarem, desesperados, decidiram ligar para o 112 a pedir ajuda. Era notável a angústia de

Jacinta, todo o seu corpo tremia e a sua voz parecia estar a encobrir-se. Euclides não parava de incutir toda a

culpa nele próprio e a mãe do pequeno não ajudava, dizendo que o tinha avisado que Bernardo era

demasiado pequeno para ir para o mar, mesmo com a supervisão de seu pai. Depois de muitas lágrimas,

soluços e gritos, a polícia marítima chegou, perguntaram nome, idade e pediram uma fotografia do rapaz,

para serem capazes de o identificar, caso fosse necessário.

Buscas atrás de buscas, polícias, bombeiros e até a proteção civil… Passaram-se dias e noites sem

haver notícias dele, a angústia dos pais começava a misturar-se com o cansaço. Mesmo sem gostarem do

pequeno e alguns sem o conhecerem, todos naquela aldeia de pescadores se uniram naquela causa e

ninguém descansava enquanto não houvesse um sinal dele. Nesta altura os pais saberiam que a maior

probabilidade era Bernardo estar já sem vida, no entanto queriam notícias dele, morto ou vivo, queriam saber

o que tinha acontecido.

Contra todas as expectativas, cinco dias depois e quase já extinta a esperança, eis que ao fundo da

praia vem dar à costa, com um ar exausto, o franzino rapaz.

O burburinho é grande junto à água! Jacinta e Euclides viam as pessoas a correrem radiantes na sua

direção. Todos queriam dar a boa nova, gritavam todos ao mesmo tempo, dizendo que era milagre e que

afinal o pequeno Bernardo estaria vivo. Os pais dele arregalavam os olhos fatigados de longos dias sem

dormir, sem querer acreditar que o que viam era efectivamente realidade e que não se tratava de um sonho.

Era Bernardo que, depois de tanta busca, tanto sofrimento, ansiedade e desgaste emocional, estava diante

dos olhos de todas aquelas pessoas. Toda a gente se perguntava como era possível um organismo tão frágil

aguentar todo aquele tempo e surgiam mil perguntas acerca do que teria ele feito para sobreviver.

Para evitar aquela chuva de interrogações, o padre António, pároco há mais de quarenta anos e com

experiência em casos semelhantes, aconselhou Jacinta e Euclides a levarem o filho para casa, dizendo que

se encarregaria de providenciar um médico e um psicólogo também habituados a lidar com estes casos e os

levaria lá a casa, onde estava mais resguardado.

Passaram-se alguns dias, mas as pessoas não conseguiam parar de se interrogar e de imaginar o que

poderia estar por detrás de tão estranho acontecimento. Tal como eles também os pais, depois de lhe darem

algum descanso, queriam uma justificação lógica para o desfecho deste acontecimento que já ninguém

esperava que tivesse um fim tão positivo.

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Foi então que Bernardo começou a inventar uma história que pudesse ser credível o suficiente para

ninguém desconfiar do que realmente sucedera. Iniciou dizendo que tinha gritado Pai, ajuda-me, mas como o

rebentamento das ondas fazia um barulho tremendo, logo, supôs que este não tivesse ouvido. Acabou por se

agarrar com todas as suas forças, a um fragmento de madeira do lastro do barco que ficou razoavelmente

inteiro e prometeu a si mesmo não o largar até que visse terra.

Pensou várias vezes durante aquele longo período que não conseguiria cumprir tal promessa, mas foi

num desses momentos que começou a ver que nem tudo à sua volta era azul. O verde da esperança nunca

fez tanto sentido na sua pequenina cabeça como quando viu a vegetação das dunas, e foi então que verificou

que, naquele momento, estava a um pequeno passo de voltar a pisar terra.

Começara então outra etapa da sua salvação, Não vi ninguém, mas o facto de sair finalmente da água

deu-me novas forças para seguir caminho e só pensava que depois de tamanha prova de resistência que não

era em terra que iria sucumbir, Decidi sentar-me e descansar um pouco, depois levantei-me e comecei a

andar junto à água sabendo que quanto mais para cima fosse mais cansativo seria o percurso. Foi assim sem

grande história que explicou a sua heróica jornada. Os pais acreditaram, desconhecendo o que realmente se

tinha passado.

A verdade era uma história completamente diferente daquela que Bernardo tinha contado. Estava ele a

bordo quando a onda rebentou, ao cair levou com fragmentos do barco na cabeça, perdendo assim os

sentidos. Quando abriu os olhos achou que estava a sonhar, afinal conseguia respirar debaixo da água e

estava rodeado de golfinhos, cavalos-marinhos, peixes-balão, peixes-palhaço e outros de derivadas espécies.

Ao início era tudo um pouco estranho, mas pouco tempo depois de se ter familiarizado com estas espécies

descobriu que afinal ainda tinha outro dom, o dom de falar com os animais: estes compreendiam o que ele

dizia e respondiam. Percebeu finalmente o porquê do seu fascínio por coisas que para os outros eram

insignificantes, mas para ele eram como se fossem o ar que ele respirava, precioso. A partir daí achou que

deveria usufruir destas suas capacidades, pois, perante tudo o que se estava a passar, os pais nunca mais o

deixariam ir ao mar, muito menos se ele lhes dissesse que era para falar com os seus novos amigos, Estarás

maluco. Não pensou nos pais ou no que eles pudessem estar a passar, decidiu ficar a nadar e a brincar com

os seus novos amigos, a conhecer o fundo do mar, a conhecer as coisas boas e más que o mar lhe podia

oferecer. Ao fim de cinco dias, achou necessário voltar para junto da sua família, Como volto para casa. Para

conseguir inventar uma história sobre o seu desaparecimento, pediu para o levarem a um ponto à sua

escolha, longe do sítio onde os seus pais pudessem estar. E assim fizeram.

Bernardo cresceu com aqueles dons, aprendeu a viver com eles e a controlá-los. Alguns anos mais

tarde, contou toda a verdade aos seus pais, com a condição de que aquele segredo ficasse apenas entre

eles. Estes nem queriam acreditar que aquilo era tudo verdade, mas depois perceberam como ele se

aguentara tanto tempo debaixo de água durante o naufrágio e o seu interesse por coisas insignificantes.

Mariana Paranhos, 9º Ano