2013.1.LFG.Familia_03
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MATERIAL DE APOIO
DIREITO CIVIL
DIREITO DE FAMLIA
2013.1
Apostila 03 Prof. Pablo Stolze Gagliano
AVISO
Amigos do corao,
Embora na atual grade do Intensivo 1, os temas a serem tratados, atinentes ao Direito de Familia, sejam
apenas casamento e unio estvel, mantivemos em nossas apostilas, de presente para vocs, a
abordagem de diversos outros assuntos, que devero ser analisados em outras grades do Curso,
especialmente no Intensivo 2.
Bom estudo!
O amigo,
Pablo.
1. Comentrios ao art. 1647, CC
O art, 1647 do Cdigo Civil merece referncia especial:
Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cnjuges pode, sem autorizao do
outro, exceto no regime da separao absoluta: (grifos nossos)
I - alienar ou gravar de nus real os bens imveis;
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II - pleitear, como autor ou ru, acerca desses bens ou direitos;
III - prestar fiana ou aval; (inovao legal)
IV - fazer doao, no sendo remuneratria, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura
meao.
Pargrafo nico. So vlidas as doaes nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem
economia separada.
Note-se que, mesmo casados no regime de participao final nos aquestos, a anuncia do outro
cnjuge faz-se necessria (ressalvado, claro, suprimento judicial ou se os cnjuges houverem
dispensado a necessidade de outorga, no pacto antenupcial art. 1.656, CC).
Em nosso sentir, separao absoluta deve ser entendido como separao convencional, ou seja,
escolhida no pacto antenupcial (nesse sentido, NELSON NERY JR. e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY,
Novo Cdigo Civil e Legislao Extravagante Anotados, SP, RT, 2002).
Isso porque, na obrigatria, mais razovel exigir-se a outorga, considerando-se a necessidade de
se beneficiar ou proteger o outro cnjuge, por conta da aplicao da S. 377, STF, estudada na
apostila anterior.
Nesse sentido, recente acrdo do STJ:
RECURSO ESPECIAL - AO ANULATRIA DE AVAL - OUTORGA CONJUGAL PARA CNJUGES
CASADOS SOB O REGIME DA SEPARAO OBRIGATRIA DE BENS - NECESSIDADE - RECURSO
PROVIDO.
1. necessria a vnia conjugal para a prestao de aval por pessoa casada sob o regime da
separao obrigatria de bens, luz do artigo 1647, III, do Cdigo Civil.
2. A exigncia de outorga uxria ou marital para os negcios jurdicos de (presumidamente) maior
expresso econmica previstos no artigo 1647 do Cdigo Civil (como a prestao de aval ou a
alienao de imveis) decorre da necessidade de garantir a ambos os cnjuges meio de controle da
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gesto patrimonial, tendo em vista que, em eventual dissoluo do vnculo matrimonial, os
consortes tero interesse na partilha dos bens adquiridos onerosamente na constncia do
casamento.
3. Nas hipteses de casamento sob o regime da separao legal, os consortes, por fora da Smula
n. 377/STF, possuem o interesse pelos bens adquiridos onerosamente ao longo do casamento, razo
por que de rigor garantir-lhes o mecanismo de controle de outorga uxria/marital para os
negcios jurdicos previstos no artigo 1647 da lei civil.
4. Recurso especial provido.
(REsp 1163074/PB, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe
04/02/2010)
Todavia, a indeterminao do termo absoluta poderia dar margem a mais de um entendimento,
em doutrina.
Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cnjuges
a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossvel conced-la.
Art. 1.649. A falta de autorizao, no suprida pelo juiz, quando necessria (art. 1.647), tornar
anulvel o ato praticado, podendo o outro cnjuge pleitear-lhe a anulao, at dois anos depois de
terminada a sociedade conjugal.
Pargrafo nico. A aprovao torna vlido o ato, desde que feita por instrumento pblico, ou
particular, autenticado.
Art. 1.650. A decretao de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento, ou
sem suprimento do juiz, s poder ser demandada pelo cnjuge a quem cabia conced-la, ou por
seus herdeiros.
Em concluso, vale transcrever a S. 332 do STJ, referente fiana prestada pelo cnjuge:
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A fiana prestada sem autorizao de um dos cnjuges implica a ineficcia total da garantia.
(CORTE ESPECIAL, julgado em 05.03.2008, DJ 13.03.2008 p. 1)
2. Unio Homoafetiva1
Correntes existentes no Brasil:
a) trata-se de entidade familiar O art. 226 da CF uma norma geral de incluso, no
sendo admissvel excluir-se uma relao estvel calcada na afetividade (PAULO LOBO). Deve-
se reconhecer direitos de famlia (alimentos) e sucessrios (herana)2;
b) trata-se de mera sociedade de fato, regida pela Direito Obrigacional (S. 380, STF).
Os ministros do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em 2011, reconhecerem a unio
homoafetiva como forma de famlia:
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgarem a Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconheceram a unio estvel para casais do mesmo sexo. As aes foram ajuizadas na Corte, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da Repblica e pelo governador do Rio de Janeiro, Srgio Cabral.
O julgamento comeou na tarde de ontem (4), quando o relator das aes, ministro Ayres Britto, votou no sentido de dar interpretao conforme a Constituio Federal para excluir qualquer significado do
1 Ver DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famlias. Porto Alegre: 2005, Livraria do
Advogado, pgs. 191 e ss. IMPORTANTE: O tema unio homoafetiva visto em outra grade do Curso. 2 O prprio TSE consagrou entendimento avanado: Registro de candidato. Candidatura ao
cargo de prefeito. Relao estvel homossexual com a prefeita reeleita do municpio.
Inelegibilidade. (CF 14 7). Os sujeitos de uma relao estvel homossexual,
semelhana do que ocorre com os de relao estvel, de concubinato e de casamento,
submetem-se regra de inelegibilidade prevista no art. 14, 7, da Constituio Federal.
Recurso a que se d provimento. (TSE Resp Eleitoral 24564 Viseu/PA Rel. Min. Gilmar Mendes j. 01/10/2004).
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artigo 1.723 do Cdigo Civil que impea o reconhecimento da unio entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
O ministro Ayres Britto argumentou que o artigo 3, inciso IV, da CF veda qualquer discriminao em virtude de sexo, raa, cor e que, nesse sentido, ningum pode ser diminudo ou discriminado em funo de sua preferncia sexual. O sexo das pessoas, salvo disposio contrria, no se presta para desigualao jurdica, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciao da unio estvel homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do artigo 3 da CF.
Os ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurlio, Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como as ministras Crmen Lcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, acompanharam o entendimento do ministro Ayres Britto, pela procedncia das aes e com efeito vinculante, no sentido de dar interpretao conforme a Constituio Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Cdigo Civil que impea o reconhecimento da unio entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Na sesso de quarta-feira, antes do relator, falaram os autores das duas aes o procurador-geral da Repblica e o governador do Estado do Rio de Janeiro, por meio de seu representante , o advogado-geral da Unio e advogados de diversas entidades, admitidas como amici curiae (amigos da Corte).
Aes
A ADI 4277 foi protocolada na Corte inicialmente como ADPF 178. A ao buscou a declarao de reconhecimento da unio entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pediu, tambm, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas unies estveis fossem estendidos aos companheiros nas unies entre pessoas do mesmo sexo.
J na Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o governo do Estado do Rio de Janeiro (RJ) alegou que o no reconhecimento da unio homoafetiva contraria preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princpio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituio Federal. Com esse argumento, pediu que o STF aplicasse o regime jurdico das unies estveis, previsto no artigo 1.723 do Cdigo Civil, s unies homoafetivas de funcionrios pblicos civis do Rio de Janeiro.
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/geral/verImpressao.asp acessado em 22 de junho de 2011.
Por fim, lembrando MARIA BRAUNER (in Direitos Fundamentais do Direito de Famlia, coordenado
por Belmiro Welter e Rolf Madaleno, Livraria do Advogado, 2004, pgs. 267-268):
A aceitao recente da unio afetiva entre iguais no mbito do Direito de Famlia representa uma
nova face do conceito de cidadania, transpondo a barreira do interdito, buscando a afirmao da
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diferena a partir da manifestao da liberdade de expresso e do direito ao livre desenvolvimento
da personalidade.
A partir deste julgamento, e, bem assim, do REsp 1.183.378/RS, o casamento homoafetivo passou a
ser admitido.
Neste sentido, recente Resoluo do CNJ:
Resoluo n 175, de 14 de maio de 2013
Texto original
Dispe sobre a habilitao, celebrao de casamento civil, ou de converso de unio estvel em
casamento, entre pessoas de mesmo sexo.
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIA, no uso de suas atribuies
constitucionais e regimentais,
CONSIDERANDO a deciso do plenrio do Conselho Nacional de Justia, tomada no julgamento
do Ato Normativo no 0002626-65.2013.2.00.0000, na 169 Sesso Ordinria, realizada em 14
de maio de 2013;
CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acrdos prolatados em julgamento da
ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distino de tratamento
legal s unies estveis constitudas por pessoas de mesmo sexo;
CONSIDERANDO que as referidas decises foram proferidas com eficcia vinculante
administrao pblica e aos demais rgos do Poder Judicirio;
CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justia, em julgamento do RESP 1.183.378/RS,
decidiu inexistir bices legais celebrao de casamento entre pessoas de mesmo sexo;
CONSIDERANDO a competncia do Conselho Nacional de Justia, prevista no art. 103-B, da
Constituio Federal de 1988;
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RESOLVE:
Art. 1 vedada s autoridades competentes a recusa de habilitao, celebrao de
casamento civil ou de converso de unio estvel em casamento entre pessoas de
mesmo sexo.
Art. 2 A recusa prevista no artigo 1 implicar a imediata comunicao ao
respectivo juiz corregedor para as providncias cabveis.
Art. 3 Esta resoluo entra em vigor na data de sua publicao.
Ministro Joaquim Barbosa
Fonte: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-
presidencia/resolucoespresidencia/24675-resolucao-n-175-de-14-de-maio-de-2013,
acessado em 01 de julho de 2013.
3. Parentesco
Com base no pensamento de MARIA HELENA DINIZ, poderamos dizer que o parentesco a
relao vinculatria no s entre pessoas que descendem umas das outras ou de um mesmo
tronco comum, mas tambm entre o cnjuge ou companheiro e os parentes do outro e entre
adotante a adotado (Curso de Direito Civil Brasileiro Direito de Famlia, Ed. Saraiva). Na mesma
linha, poder haver parentesco nas relaes nascidas da socioafetividade no campo da filiao.
O parentesco poder ser:
a) natural ou consangneo;
b) por afinidade e
c) civil.
Em sala de aula, desenvolveremos esses conceitos.3
3 Lembramos, no entanto, que a adoo tratada em outra grade do curso, dedicada ao
estudo do Direito da Criana e do Adolescente.
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Entendemos, finalmente, ainda ser atual o entendimento do STJ que no reconhece dever de alimentar
entre parentes por afinidade:
ALIMENTOS A OBRIGAO ALIMENTAR DECORRE DA LEI, NO SE PODENDO AMPLIAR A PESSOAS POR
ELA NO CONTEMPLADOS. INEXISTE ESSE DEVER EM RELAO A NORA.
(RMS .957/BA, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 09.08.1993, DJ
23.08.1993 p. 16575)
E j que tocamos no tema parentesco por afinidade, a ser analisado em sala, veja o teor da Lei n.
11.924 de 2009:
LEI N 11.924, DE 17 DE ABRIL DE 2009.
Altera o art. 57 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, para autorizar o enteado ou a enteada a adotar o nome da famlia do padrasto ou da madrasta.
O PRESIDENTE DA REPBLICA Fao saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o Esta Lei modifica a Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973 Lei de Registros Pblicos, para autorizar o enteado ou a enteada a adotar o nome de famlia do padrasto ou da madrasta, em todo o territrio nacional.
Art. 2o O art 57 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar acrescido do seguinte 8o:
Art. 57. ..................................................................................................................................................................
8o O enteado ou a enteada, havendo motivo pondervel e na forma dos 2o e 7o deste artigo, poder requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de famlia de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordncia destes, sem prejuzo de seus apelidos de famlia. (NR)
Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicao.
Braslia, 17 de abril de 2009; 188o da Independncia e 121o da Repblica.
LUIZ INCIO LULA DA SILVA Tarso Genro
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4. Poder Familiar
Trata-se de um verdadeiro munus, consistente em um conjunto de poderes (direitos e deveres),
exercitveis em prol do interesse existencial dos filhos.
Este poder familiar no se mantm em face de filhos maiores e capazes.
A esse respeito, leia-se interessante julgado do STJ:
Habeas Corpus. Internao involuntria em clnica psiquitrica. Ato de particular. Ausncia de
provas e/ ou indcios de perturbao mental. Constrangimento ilegal delineado. Binmio poder-
dever familiar. Dever de cuidado e proteo. Limites. Extino do poder familiar. Filha maior e
civilmente capaz. Direitos de personalidade afetados.
- incabvel a internao forada de pessoa maior e capaz sem que haja justificativa proporcional
e razovel para a constrio da paciente.
- Ainda que se reconhea o legtimo dever de cuidado e proteo dos pais em relao aos filhos,
a internao compulsria de filha maior e capaz, em clnica para tratamento psiquitrico, sem
que haja efetivamente diagnstico nesse sentido, configura constrangimento ilegal.
Ordem concedida.
(HC 35.301/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03.08.2004, DJ
13.09.2004 p. 231)
Veja, no tpico Textos Complementares, excelente artigo do professor PAULO LBO a respeito
do Poder Familiar.
a nossa recomendao no seu estudo para concurso.
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5. Responsabilidade Civil nas Relaes Afetivas
Trata-se de tema bastante polmico, e que ganhou flego com a disciplina dos direitos da
personalidade, inaugurada pelo CC de 2002.
Sem pretender esgotar o raio da abrangncia da matria, poderamos centrar o nosso esforo
analtico na:
a) resp. civil no casamento e na unio estvel;
b) resp. civil por abandono afetivo na filiao.
Sobre a primeira situao, o STJ j se pronunciou a respeito:
Separao judicial. Proteo da pessoa dos filhos (guarda e interesse). Danos morais (reparao).
Cabimento.
1. O cnjuge responsvel pela separao pode ficar com a guarda do filho menor, em se tratando de
soluo que melhor atenda ao interesse da criana. H permisso legal para que se regule por maneira
diferente a situao do menor com os pais. Em casos tais, justifica-se e se recomenda que prevalea o
interesse do menor.
2. O sistema jurdico brasileiro admite, na separao e no divrcio, a indenizao por dano moral.
Juridicamente, portanto, tal pedido possvel: responde pela indenizao o cnjuge responsvel
exclusivo pela separao.
3. Caso em que, diante do comportamento injurioso do cnjuge varo, a Turma conheceu do especial e
deu provimento ao recurso, por ofensa ao art. 159 do Cd. Civil, para admitir a obrigao de se
ressarcirem danos morais.
(RESP 37.051/SP, Rel. Ministro NAVES, TERCEIRA TURMA, julgado em 17.04.2001, DJ 25.06.2001 p. 167)
J o abandono afetivo na filiao, poder, em nosso sentir, autorizar a aplicao dos princpios da
responsabilidade civil, sem que isso signifique a monetarizao da relao de afeto.
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Assim pensamos desde que se entenda que a indenizao imposta ao pai ou me que abandona o seu
filho, em franco desrespeito ao dever legal de educao (que pressupe amor) consiste em uma resposta
que o novo Direito Civil d, manifestando repulsa a este tipo de comportamento, violador do princpio
constitucional da dignidade da pessoa humana.
Trata-se, em nosso sentir, de especial aplicao da teoria do desestmulo.
A funo da indenizao, pois, teria condo eminentemente pedaggico.
Abaixo, no tpico textos complementares, no deixe de ler o excelente texto da querida professora
GISELDA HIRONAKA a respeito do tema.
Em um primeiro momento, no entanto, o STJ negou a aplicao da teoria, no campo da filiao:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAO. DANOS MORAIS.
IMPOSSIBILIDADE.
1. A indenizao por dano moral pressupe a prtica de ato ilcito, no rendendo ensejo aplicabilidade
da norma do art. 159 do Cdigo Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparao pecuniria.
2. Recurso especial conhecido e provido.
(Resp 757.411/MG, Rel. Ministro FERNANDO GONALVES, QUARTA TURMA, julgado em 29.11.2005, DJ
27.03.2006 p. 299)
DIREITO CIVIL. PTRIO PODER. DESTITUIO POR ABANDONO AFETIVO.
POSSIBILIDADE. ART. 395, INCISO II, DO CDIGO CIVIL C/C ART. 22 DO ECA. INTERESSES DO MENOR.
PREVALNCIA.
- Caracterizado o abandono efetivo, cancela-se o ptrio poder dos pais biolgicos. Inteligncia do Art.
395, II do Cdigo Bevilacqua, em conjunto com o Art. 22 do Estatuto da Criana e do Adolescente.
Se a me abandonou o filho, na prpria maternidade, no mais o procurando, ela jamais exerceu o ptrio
poder.
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(Resp 275.568/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em
18.05.2004, DJ 09.08.2004 p. 267)
E, no STF, a Min. Ellen Gracie, julgando o RE 567164 (referente responsabilidade civil por abandono
afetivo), negou-lhe seguimento:
Quarta-feira, 27 de Maio de 2009
Ministra arquiva recurso sobre abandono afetivo por no existir ofensa direta Constituio
A ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal (STF), arquivou Recurso Extraordinrio (RE 567164)
em que A.B.F. pedia ressarcimento por danos morais em razo de abandono familiar. Ele alegava ofensa
aos artigos 1, 5, incisos V e X, e 229 da Constituio Federal.
O autor questionava deciso do Superior Tribunal de Justia (STJ) que ao dar provimento a um recurso
especial concluiu, com base no artigo 159 do Cdigo Civil de 1916, a inviabilidade do reconhecimento de
indenizao por danos morais decorrente de abandono afetivo.
O apelo extremo invivel, pois esta Corte fixou o entendimento segundo o qual a anlise sobre a
indenizao por danos morais limita-se ao mbito de interpretao de matria infraconstitucional,
inatacvel por recurso extraordinrio, explicou a ministra. Ela avaliou que, conforme o ato contestado, a
legislao pertinente prev punio especfica, ou seja, perda do poder familiar, nos casos de abandono
do dever de guarda e educao dos filhos.
Assim, Ellen Gracie afastou a possibilidade de analisar o pedido de reparao pecuniria por abandono
moral, pois isto demandaria a anlise dos fatos e das provas contidas nos autos, bem como da legislao
infraconstitucional que disciplina a matria (Cdigo Civil e Estatuto da Criana e do Adolescente), o que
invivel por meio de recurso extraordinrio. Para a ministra Ellen Gracie, o caso no tem lugar nesta via
recursal considerados, respectivamente, o bice da Smula 279, do STF, e a natureza reflexa ou indireta
de eventual ofensa ao texto constitucional.
Ao citar parecer da Procuradoria Geral da Repblica, a ministra asseverou que conforme o Cdigo Civil e
o ECA, eventual leso Constituio Federal, se existente, ocorreria de forma reflexa e demandaria a
-
reavaliao do contexto ftico, o que, tambm, incompatvel com a via eleita. Dessa forma, a ministra
Ellen Gracie negou seguimento (arquivou) ao recurso extraordinrio.
EC/LF
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=108739 acessado em 05 de
julho de 2009
Mas, recentemente, todavia, o STJ veiculou a seguinte noticia, no sentido da aceitao da tese:
cabvel indenizao por abandono afetivo
Amar faculdade, cuidar dever! Com estas palavras da ministra Nancy Andrigui, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justia decidiu, de forma indita, que possvel exigir indenizao por dano moral por causa de abandono afetivo dos pais (...).
Confira a ntegra do noticirio no: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=448&tmp.texto=105696&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=abandono%20afetivo# (acessado em 11 de junho de 2012)
Nesse contexto, apenas sob o prisma terico, e aprofundando a pesquisa: a perda do poder familiar
imposta ao pai que ignora moral e espiritualmente a sua prole seria, para ele, uma sano ou um
favor?...
No seria o caso de o nosso Direito, no futuro, consolidar o entendimento no sentido da aplicao a
funo social da responsabilidade civil em casos como esse?
Vale a pena refletir...
E acompanhar o debate em torno do tema...
Em concluso, vale registrar que o professor GUILHERME DE OLIVEIRA, autoridade internacional em
Direito de Famlia, analisando o tema, conclui:
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Embora no haja jurisprudncia clara sobre o assunto, suponho, julgo que aceitvel defender que o
abandono afetivo quer se traduza em descumprimento dos deveres jurdicos, quer integrados no poder
parental e que provoque danos no-patrimoniais na pessoa do filho pode dar lugar obrigao de
indenizar. Como em qualquer outra ao de responsabilidade civil, preciso provar o descumprimento, a
culpa, o dano e a causalidade
(Boletim iBDFAM 4 Setembro/Outubro de 2006)
6. TEXTOS COMPLEMENTARES
6.1. DO PODER FAMILIAR
Paulo Lbo* (fonte: www.ibdfam.com.br)
1. Poder familiar ou autoridade parental? 2. Contedo bsico do poder familiar 3. Regulao do
poder familiar no novo Cdigo Civil comparada com a do Cdigo de 1916 4. A interpretao
conforme com a Constituio 5. Regras sobreviventes do Estatuto da Criana e do Adolescente
sobre ptrio poder 6. Titulares do poder familiar 7. Exerccio do poder familiar 8. Suspenso
do poder familiar 9. Extino do poder familiar 10. O castigo moderado dos filhos.
1. PODER FAMILIAR OU AUTORIDADE PARENTAL?
O poder familiar a denominao que adotou o novo Cdigo para o ptrio poder, tratado no Cdigo
de 1916. Ao longo do sculo XX, mudou substancialmente o instituto, acompanhando a evoluo
das relaes familiares, distanciando-se de sua funo originria voltada ao exerccio de poder dos
pais sobre os filhos para constituir um mnus, em que ressaltam os deveres.
A denominao ainda no a mais adequada, porque mantm a nfase no poder. Todavia, melhor
que a resistente expresso ptrio poder, mantida pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei
n. 8.069/90), somente derrogada com o novo Cdigo Civil. Com a imploso, social e jurdica, da
famlia patriarcal, cujos ltimos estertores deram-se antes do advento da Constituio de 1988, no
faz sentido que seja reconstrudo o instituto apenas deslocando o poder do pai (ptrio) para o poder
compartilhado dos pais (familiar), pois a mudana foi muito mais intensa, na medida em que o
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interesse dos pais est condicionado ao interesse do filho, ou melhor, no interesse de sua realizao
como pessoa em formao.
Desafortunadamente, o novo Cdigo no apreendeu a natureza transformada do instituto,
mantendo praticamente intacta a disciplina normativa do Cdigo de 1916, com adaptaes tpicas.
Ainda com relao terminologia, ressalte-se que as legislaes estrangeiras mais recentes optaram
por autoridade parental. A Frana a utilizou desde a legislao de 1970, que introduziu profundas
mudanas no Direito de Famlia1, com as alteraes substanciais promovidas pela Lei de 4 de maro
de 2002. O Direito de Famlia americano tende a preferi-lo, como anota Harry D. Krause.2 Com
efeito, parece-me que o conceito de autoridade, nas relaes privadas, traduz melhor o exerccio de
funo ou de mnus, em espao delimitado, fundado na legitimidade e no interesse do outro.3
Parental destaca melhor a relao de parentesco por excelncia que h entre pais e filhos, o grupo
familiar, de onde deve ser haurida a legitimidade que fundamenta a autoridade. O termo paternal
sofreria a mesma inadequao do termo tradicional.
A discusso terminolgica oportuna, pois expressa a mudana radical operada no instituto.4
Contudo, para que se possa avanar na exposio do contedo, valer-me-ei, doravante, dos termos
empregados pelo novo Cdigo.
2. CONTEDO BSICO DO PODER FAMILIAR
As vicissitudes por que passou a famlia, no mundo ocidental, repercutiram no contedo do poder
familiar. Quanto maiores foram a desigualdade, a hierarquizao e a supresso de direitos, entre os
membros da famlia, tanto maior foi o ptrio poder e o poder marital. medida que se deu a
emancipao da mulher casada, deixando de ser alieni juris, medida que os filhos foram
emergindo em dignidade e obtendo tratamento legal isonmico, independentemente de sua
origem, houve reduo do quantum desptico, restringindo esses poderes domsticos. No Brasil,
foram necessrios 462 anos, desde o incio da colonizao portuguesa, para a mulher casada deixar
de ser considerada relativamente incapaz (Estatuto da Mulher Casada, Lei n. 4.121, de 27 de agosto
de 1962); foram necessrios mais 26 anos para consumar a igualdade de direitos e deveres na
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famlia (Constituio de 1988), pondo fim, em definitivo, ao antigo ptrio poder e ao poder marital.
A reduo do quantum desptico do antigo ptrio poder foi uma constante, na histria do Direito. O
patria potestas dos romanos antigos era muito extenso, ao incio, pois abrangia o poder de vida ou
morte, mas gradativamente restringiu-se, como se v em antigo aforismo, enunciando que o ptrio
poder deve ser exercido com afeio e no com atrocidade.5
A evoluo gradativa deu-se no sentido da transformao de um poder sobre os outros em
autoridade natural com relao aos filhos, como pessoas dotadas de dignidade, no melhor interesse
deles e da convivncia familiar. Essa sua atual natureza.
Assim, o poder familiar, sendo menos poder e mais dever, converteu-se em mnus, concebido como
encargo legalmente atribudo a algum, em virtude de certas circunstncias, a que se no pode
fugir. O poder familiar dos pais nus que a sociedade organizada a eles atribui, em virtude da
circunstncia da parentalidade, no interesse dos filhos.6 O exerccio do mnus no livre, mas
necessrio no interesse de outrem. , como diz Pietro Perlingieri.7 um verdadeiro ofcio, uma
situao de direito-dever; como fundamento da atribuio dos poderes existe o dever de exerc-
los.
Extrai-se do artigo 227 da Constituio o conjunto mnimo de deveres cometidos famlia, a fortiori
ao poder familiar, em benefcio do filho, enquanto criana e adolescente, a saber: o direito vida,
sade, alimentao (sustento), educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao
respeito, liberdade e convivncia familiar. Evidentemente, tal conjunto de deveres deixa pouco
espao ao poder. So deveres jurdicos correspectivos a direitos cujo titular o filho.
3. REGULAO DO PODER FAMILIAR NO NOVO CDIGO CIVIL COMPARADA COM A DO CDIGO DE 1916
O novo Cdigo, nos arts. 1.630 a 1.638, manteve a disciplina normativa do Cdigo anterior,
adaptando-a aos princpios determinantes na Constituio, notadamente quanto ao exerccio
conjunto do poder familiar pelo pai e pela me, conforme j tinha antecipado o Estatuto da Criana
e do Adolescente. O enunciado deficiente da Lei do Divrcio, que se referia ao exerccio do ptrio
-
poder pelo marido com a colaborao da mulher, apenas atenuando a desigualdade entre os
gneros, foi expurgado de vez, na linha do estabelecido pelo ECA.
Do confronto entre os dois textos (o antigo e o novo Cdigos), chega-se surpreendente concluso
de que a estrutura legal do antigo ptrio poder foi mantida intacta, com modificaes tpicas de
redao. A ordem, a seqncia e o contedo dos artigos permaneceram, como se a mudana da
denominao e dos titulares (do pai para o pai e a me) e a excluso das referncias a filhos
ilegtimos fossem suficientes.
Houve, apenas, duas incluses ao texto de 1916: a) outro tipo de extino do poder familiar (por
deciso judicial); b) outro tipo de perda do poder familiar, por ato judicial (incidir, reiteradamente,
em falta aos deveres inerentes aos pais).
Manteve-se o que j estava previsto com relao aos titulares do poder familiar, ao exerccio e
suspenso e extino.
A alterao de monta foi a excluso de toda a Seo III do Cdigo de 1916, relativa ao ptrio poder
quanto aos bens dos filhos, transferida para o Ttulo destinado ao Direito Patrimonial, na forma de
Subttulo II deste, com a denominao de Do Usufruto e da Administrao dos Bens dos Filhos
Menores (arts. 1.689 a 1.693). A matria, todavia, diz respeito ao poder familiar. O novo Cdigo
mantm o usufruto legal dos bens dos filhos em favor dos pais. A incluso de artigo prevendo a
representao dos filhos menores de 16 anos e a assistncia aos filhos entre 16 e 18 anos de
natureza pessoal, no se atendo apenas s questes de cunho patrimonial. Modificando o texto
legal anterior, h inovao no sentido de instituio de verdadeiros bens reservados em benefcio
do filho maior de 16 anos que os adquirir em virtude de qualquer atividade profissional que
desenvolva (art. 1.693).
4. A INTERPRETAO CONFORME COM A CONSTITUIO
O princpio da interpretao conforme com a Constituio uma das mais importantes
contribuies dos constitucionalistas nas ltimas dcadas. Consiste, basicamente, em explorar ao
-
mximo a compatibilidade com a Constituio das normas infraconstitucionais a ela anteriores ou
supervenientes, e a partir dela. Apenas deve ser declarada a inconstitucionalidade de uma norma
quando a incompatibilidade dela com a Constituio for insupervel. Essa diretriz hermenutica
harmoniza-se com os princpios da presuno de constitucionalidade das normas
infraconstitucionais e da fora normativa prpria da Constituio. Mais importante a funo que
desempenha na interpretao do contedo das leis, que h de ser conformado, delimitado e
densificado pelos princpios e normas constitucionais. Assim, o Cdigo h de ser interpretado,
sempre, a partir da Constituio. No passado e, infelizmente, na atitude de muitos aplicadores do
Direito, a operao hermenutica encontrava-se invertida, pois a Constituio era tida apenas como
uma moldura, cujo contedo era preenchido pelas leis e cdigos. No que concerne aos princpios, a
regra do art. 4. da Lei de Introduo ao Cdigo Civil, de vedao de non liquet (Quando a lei for
omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princpios gerais de
direito), favoreceu a inverso hermenutica, pois os princpios foram tidos como supletivos. Essa
regra da LICC h de ser interpretada em conformidade com a Constituio, ou seja, apenas em
relao aos princpios gerais que no sejam constitucionais, pois estes no so supletivos, mas
conformadores da lei.
O advento do novo Cdigo traz baila essas demarcaes conceituais, imprescindveis sua
interpretao adequada. Significa dizer que suas normas ho de ser interpretadas em conformidade
com os princpios e regras que a Constituio estabeleceu para a famlia no ordenamento jurdico
nacional, animados de valores inteiramente diferentes dos que predominavam na sociedade
brasileira, na poca em que se deu a redao do captulo relativo ao ptrio poder do Cdigo de
1916, que, em grande medida, manteve-se no captulo destinado ao poder familiar para a famlia do
sculo XXI. As palavras utilizadas pelo legislador de 1916, reaproveitadas pelo legislador do novo
Cdigo, so apenas signos, cujos contedos devero ser hauridos dos princpios e regras
estabelecidos pela Constituio.
5. REGRAS SOBREVIVENTES DO ESTATUTO DA CRIANA E DO ADOLESCENTE SOBRE PTRIO PODER
O ECA trata do poder familiar em duas passagens, a saber: a) no captulo dedicado ao direito
convivncia familiar e comunitria, arts. 21 a 24; b) no captulo dedicado aos procedimentos,
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relativamente perda e suspenso do ptrio poder, arts. 155 a 163, que estabelecem regras
prprias, uma vez que a legislao processual apenas supletiva.
As regras procedimentais do ECA permanecero, pois o novo Cdigo delas no trata nem com elas
incompatvel. No ECA so legitimados para a ao de perda ou suspenso do poder familiar o
Ministrio Pblico ou quem tenha legtimo interesse. Prev-se a possibilidade de decretao
liminar ou incidental da suspenso do poder familiar, ficando o menor confiado a pessoa idnea
(art. 157). A sentena que decretar a perda ou suspenso ser registrada margem do registro de
nascimento do menor (art. 163).
Quanto ao direito material, h convergncia entre o novo Cdigo e o ECA sobre o exerccio conjunto
pelo pai e pela me, com recurso autoridade judiciria para resolver as divergncias. O Estatuto
ressalta os deveres dos pais, enquanto o novo Cdigo, repetindo o anterior, opta pelas dimenses
do exerccio dos poderes, como ser demonstrado abaixo. No ECA h previso de hiptese de perda
do poder familiar no prevista no novo Cdigo, justamente voltada ao descumprimento dos deveres
de guarda, sustento e educao dos filhos (arts. 22 e 24). Em suma, no se vislumbra antinomia
(cronolgica ou de especialidade) entre os dois textos legais, no se podendo alvitrar a derrogao
da lei anterior (ECA), salvo quanto denominao ptrio poder, substituda por poder familiar.
Como a menoridade, no novo Cdigo, foi reduzida para at os 18 anos deixou de haver
divergncia com o que o ECA denomina de criana (at 12 anos) e adolescente (at 18 anos) para
fins do poder familiar, passa a ser a denominao comum aos campos de aplicao de ambas as leis.
6. TITULARES DO PODER FAMILIAR
O novo Cdigo estabelece que os filhos esto sujeitos ao poder familiar, enquanto menores,
podendo levar interpretao ligeira de serem os pais os nicos titulares ativos e os filhos os
sujeitos passivos dele. Para o cumprimento dos deveres decorrentes do poder familiar, os filhos so
titulares dos direitos correspectivos. Portanto, o poder familiar integrado por titulares recprocos
de direitos.
O ECA estabelece que o poder familiar ser exercido pelo pai e pela me, na forma do que dispuser
a legislao civil. O novo Cdigo refere-se apenas titularidade dos pais, durante o casamento ou a
-
unio estvel, restando silente quanto s demais entidades familiares tuteladas explcita ou
implicitamente pela Constituio. Ante o princpio da interpretao em conformidade com a
Constituio, a norma deve ser entendida como abrangente de todas as entidades familiares, onde
houver quem exera o mnus, de fato ou de direito, na ausncia de tutela regular, como se d com
irmo mais velho que sustenta os demais irmos, na ausncia de pais, ou de tios em relao a
sobrinhos que com ele vivem.8
O poder familiar, concebido como mnus, um complexo de direitos e deveres. O poder familiar
no mais o mbito de competncia delegada ou reconhecida pelo Estado para exerccio de poder.
Assim, a cada dever do filho corresponde um direito do pai ou da me; a cada dever do pai ou da
me corresponde um direito do filho.
A convivncia dos pais, entre si, no requisito para a titularidade do poder familiar, que apenas se
suspende ou se perde, por deciso judicial, nos casos previstos em lei. Do mesmo modo, a
convivncia dos pais com os filhos. Pode ocorrer variao de grau do poder familiar, mxime quanto
ao que cumpre o dever de guarda, mas isso diz respeito apenas ao seu exerccio e no titularidade.
O novo Cdigo estabelece que havendo separao judicial, divrcio ou dissoluo da unio estvel,
o poder familiar permanece ntegro, exceto quanto ao direito de terem os filhos em sua companhia
(art. 1.631). No art. 1.589, quando tratou da dissoluo da sociedade conjugal, estabelece que o pai
ou a me que no for guardio poder no apenas visitar os filhos mas os ter em suas companhias,
bem como fiscalizar sua manuteno e educao, que so caractersticas do poder familiar. Do
mesmo modo, o art. 1.579 prescreve que o divrcio no modifica os direitos e deveres dos pais em
relao aos filhos. O direito (e dever) companhia dos filhos, daquele que o reteve na separao,
no exclui o do outro, na forma em que tiver sido decidido, amigvel ou judicialmente, no tocante
ao chamado direito de visita. A tendncia mundial, que consulta o princpio do melhor interesse da
criana, recomenda a mxima utilizao da guarda compartilhada, da manuteno da
coparentalidade,9 de modo a que o filho sinta a presena constante de ambos os pais, apesar da
separao fsica deles. Neste sentido, o direito companhia relativo e no pode ser exercido
contrariamente ao interesse do filho, que deve ter assegurado o direito companhia do pai ou me
que no seja o guardio. Em suma, o direito de um no exclui o direito do outro e o filho tem direito
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companhia de ambos. No caso da guarda compartilhada,10 por ser modo de preservao das
relaes familiares, entre pais e filhos, tendo ambos os pais direitos/deveres equivalentes, a regra
de excluso do novo Cdigo no pode ser aplicada.
importante frisar que o novo Cdigo revogou a norma contida no art. 10 da Lei n. 6.515/77, que
atribua a guarda dos filhos ao cnjuge que no tivesse dado causa separao judicial.
Consequentemente, o filho ficar sob a guarda de quem revelar melhores condies para exerc-la,
afastando-se a odiosa regra da culpa do pai ou da me.
O novo Cdigo no utiliza os termos criana e adolescente, presentes na Constituio, no
captulo dedicado famlia,11 porm menor. Mais uma vez, em conformidade com a Constituio,
menor deve ser entendido como criana ou adolescente, segundo a distino que o ECA faz.
O art. 1.633 do novo Cdigo determina, repetindo essencialmente o Cdigo anterior, que o filho no
reconhecido pelo pai fica sob o poder familiar exclusivo da me. A redao aprovada pelo Senado
Federal, para o artigo correspondente, previa autoridade da me, muito mais adequado do que o
malposto poder, que prevaleceu na Cmara dos Deputados. Se a me for desconhecida, diz a lei, o
menor ficar sob autoridade de tutor. Para haver tutela, todavia, ambos os pais devem ser
desconhecidos. O disciplinamento do ECA sobre desconhecimento dos pais, que permanece
aplicvel, mais abrangente, pois no apenas se refere tutela, mas colocao do menor em
famlia substituta, mediante guarda, tutela ou adoo (art. 28).
Por ser dever, o poder familiar assegura ao menor o direito imprescritvel ao reconhecimento do
estado de filiao (art. 27), exercitvel contra os pais.
7. EXERCCIO DO PODER FAMILIAR
Conferindo ao instituto o atributo preferencial de poder, o novo Cdigo reproduz, quase
literalmente, as sete hipteses de competncias (a redao : Compete aos pais, quanto pessoa
dos filhos menores: ...) atribudas aos pais, a saber: a) dirigir a educao e criao; b) ter direito de
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companhia e guarda; c) dar consentimento para casar; d) nomear tutor; e) representar e assistir o
filho nos atos da vida civil; f) retomar o filho contra quem o detenha; g) exigir obedincia, respeito e
servios prprios de sua idade e condio.
A leitura das hipteses de exerccio do poder familiar est a demonstrar que significam expresso do
poder domstico, sem referncia expressa aos deveres, que passaram frente na configurao do
instituto. O novo Cdigo omisso quanto aos deveres que a Constituio cometeu famlia, como
acima foram destacados.
O ECA, quando cuida do poder familiar, incumbe aos pais (art. 22) o dever de sustento, guarda e
educao dos filhos menores e, sempre no interesses destes, o dever de cumprir as determinaes
judiciais. Essa regra permanece aplicvel, pois aos poderes assegurados pelo novo Cdigo somam-se
os deveres fixados na legislao especial e na prpria Constituio. O dever de guarda no
inerente ao poder familiar, pois pode ser atribudo a outrem.
Tenho por incompatvel com a Constituio, principalmente em relao ao princpio da dignidade da
pessoa humana (arts. 1., III, e 227), a explorao da vulnerabilidade dos filhos menores para
submet-los a servios prprios de sua idade e condio, alm de consistir em abuso (art. 227,
4.). Essa regra surgiu em contexto histrico diferente, no qual a famlia era considerada, tambm,
unidade produtiva e era tolerada pela sociedade a utilizao dos filhos menores em trabalhos no
remunerados, com fins econmicos. A interpretao em conformidade com a Constituio apenas
autoriza aplic-la em situaes de colaborao nos servios domsticos, sem fins econmicos, e
desde que no prejudique a formao e educao dos filhos.
O induzimento ao menor para fugir do lugar em que se exercite o poder familiar constitui crime,
sujeito a pena de deteno de um ms a um ano, previsto no artigo 248 do Cdigo Penal. Tambm
constitui crime subtrair o menor autoridade de quem detm o poder familiar, sujeito pena de
deteno de dois meses a dois anos (art. 248 do Cdigo Penal). O crime considera-se agravado, com
pena de recluso de dois a seis anos, se a subtrao do menor, de quem detm o poder familiar, se
der com intuito de coloc-lo forosamente em lar substituto.
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8. SUSPENSO DO PODER FAMILIAR
O novo Cdigo manteve, praticamente intactas, as hipteses de suspenso e extino do poder
familiar, salvo o acrscimo de normas de remisso a outras de mesma natureza. A suspenso
impede, temporariamente, o exerccio do poder familiar.
So trs as hipteses de suspenso do poder familiar dos pais, a saber (art. 1.637): a)
descumprimento dos deveres a eles (pais) inerentes; b) runa dos bens dos filhos; c) condenao
em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de priso. As duas primeiras hipteses
caracterizam abuso do poder familiar.
Os deveres inerentes aos pais, ainda que no explicitados, so os previstos na Constituio, no ECA e
no prprio Cdigo Civil, em artigos dispersos, sobretudo no que diz respeito ao sustento, guarda e
educao dos filhos. De modo mais amplo, alm dos referidos, a Constituio impe os deveres de
assegurarem aos filhos (deveres positivos ou comissivos) a vida, a sade, a alimentao, o lazer, a
profissionalizao, a dignidade, o respeito, a liberdade, a convivncia familiar e comunitria, e de
no submet-los (deveres negativos ou de absteno) a discriminao, explorao, violncia,
crueldade e opresso.
A suspenso pode ser sempre revista, quando superados os fatores que a provocaram. No interesse
dos filhos e da convivncia familiar, apenas deve ser adotada pelo juiz quando outra medida no
possa produzir o efeito desejado, no interesse da segurana do menor e de seus haveres.
9. EXTINO DO PODER FAMILIAR
A extino a interrupo definitiva do poder familiar.
So hipteses exclusivas: a) morte dos pais ou do filho; b) emancipao do filho; c) maioridade do
filho; d) adoo do filho, por terceiros; e) perda em virtude de deciso judicial.
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A morte de um dos pais faz concentrar, no sobrevivente, o poder familiar. A emancipao d-se por
concesso dos pais, mediante instrumento pblico, dispensando-se homologao judicial, se o filho
contar mais de 16 anos. A natureza da adoo, que imita a natureza e impe o corte definitivo com
o parentesco original, leva ao desaparecimento do poder familiar.
A perda por deciso judicial, por sua vez, depende da configurao das seguintes hipteses: a)
castigo imoderado do filho; b) abandono do filho; c) prtica de atos contrrios moral e aos bons
costumes; d) reiterao de faltas aos deveres inerentes ao poder familiar. A quarta hiptese no
existia no Cdigo anterior.
Quanto ao castigo imoderado, por sua relevncia, merece ser destacado abaixo. A moral e os bons
costumes so aferidos objetivamente, segundo standards valorativos predominantes na
comunidade, no tempo e no espao, incluindo as condutas que o Direito considera ilcitas. No
podem prevalecer os juzos de valor subjetivos do juiz, pois constituiriam abuso de autoridade. Em
qualquer circunstncia, o supremo valor o melhor interesse do menor, no podendo a perda do
poder familiar orientar-se, exclusivamente, no sentido de pena ao pai faltoso.
Por sua gravidade, a perda do poder familiar somente deve ser decidida quando o fato que a ensejar
for de tal magnitude que ponha em perigo permanente a segurana e a dignidade do filho. A
suspenso do poder familiar deve ser preferida perda, quando houver possibilidade de
recomposio ulterior dos laos de afetividade.
10. O CASTIGO MODERADO DOS FILHOS
Como resqucio do antigo ptrio poder, persiste na doutrina e na legislao a tolerncia ao que se
denomina castigo moderado dos filhos. O novo Cdigo, ao incluir a vedao ao castigo imoderado,
admite implicitamente o castigo moderado. O castigo pode ser fsico ou psquico ou de privao de
situaes de prazer.
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Deixando de lado as discusses havidas em outros campos, sob o ponto de vista estritamente
constitucional no h fundamento jurdico para o castigo fsico ou psquico, ainda que moderado,
pois no deixa de consistir violncia integridade fsica do filho, que direito fundamental
inviolvel da pessoa humana, tambm oponvel aos pais. O artigo 227 da Constituio determina
que dever da famlia colocar o filho (criana ou adolescente) a salvo de toda violncia. Todo
castigo fsico configura violncia. Note-se que a Constituio (art. 5., XLIX) assegura a integridade
fsica do preso. Se assim com o adulto, com maior razo no se pode admitir violao da
integridade fsica da criana ou adolescente, sob pretexto de castig-lo. Portanto, na dimenso do
tradicional ptrio poder era concebvel o poder de castigar fisicamente o filho; na dimenso do
poder familiar fundado nos princpios constitucionais, mxime o da dignidade da pessoa humana,
no h como admiti-lo. O poder disciplinar, contido na autoridade parental, no inclui, portanto, a
aplicao de castigos que violem a integridade do filho.
NOTA DE RODAP
1 Com influncia no recente Cdigo Civil da provncia canadense de Qubec (1994), arts. 597 a 612. O
artigo 699 refere-se a direito e dever de guarda, sustento e educao, que podem ser delegados. Sobre
a Lei francesa de 4 de maro de 2002, cf. Claude Lienhard, Les Nouveaux Droits du Pre, Paris: Delmas,
2002, passim.
2 Family Law. St. Paul: West Publishing, 1991, p. 191.
3 Para Jos Artur Rios (cf. verbete autoridade, no Dicionrio de cincias sociais. Rio de Janeiro:
Fundao Getlio Vargas, 1986), forte em Max Weber, autoridade no se confunde com poder, que a
coao fsica ou psquica exercida sobre grupos ou indivduos que a ela so forados a se submeter. A
autoridade pode ser chamada de poder legtimo, pois a ascendncia sobre outros indivduos, fundada
na legitimidade.
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4 Registre-se, ainda, a tentativa de encontrar expresso neutra compreensiva da transformao havida
no instituto, a exemplo de poderes e deveres parentais
sugerida por Luiz Edson Fachin. FACHIN, Luiz Edson. Em nome do pai, estudo sobre o sentido e alcance
do lugar jurdico ocupado no ptrio dever, na tutela e na curatela. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.).
Direito de famlia contemporneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 585-604.
5 Patria potestas in pietate debet, non in atrocitate, consistere.
6 Orlando Gomes (Direito de Famlia, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 389) considera o mnus um
ministrio correspondente a um cargo privado, que deve ser exercido no interesse do filho.
7 Perfis do direito civil: introduo ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 1997, p. 129.
8 Aqui no o espao adequado para discorrer, mais largamente, sobre tese que tenho sustentado de
no constiturem numerus clausus os trs tipos de entidades familiares, pois todas as unies de pessoas
com finalidades afetivas, com intenes sexuais ou no, e que assim se comportam socialmente,
enquadram-se no conceito de famlia, previsto no artigo 226 da Constituio, no sendo necessrio
nem constitucionalmente sustentvel equipar-las a sociedades de cunho econmico ou lucrativo
(sociedades de fato).
9 Sobre a experincia francesa da mediao para promoo da guarda compartilhada, v. GANANCIA,
Danile. Justia e mediao familiar: uma parceria a servio da co-parentalidade. Revista do Advogado,
AASP, n. 62, mar. 2001, p. 7-15.
10 Ainda sobre a guarda compartilhada, na perspectiva da psicanlise, cf. NICK, Sergio Eduardo. Guarda
compartilhada: um novo enfoque no cuidado dos filhos de pais separados ou divorciados. In: BARRETO,
Vicente (Org.). A nova famlia: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 127-168.
11 O ttulo do Captulo VII do Ttulo VIII justamente Da Famlia, da Criana, do Adolescente e do
-
Idoso.
(*) Doutor em Direito Civil (USP), professor da UFAL e da UFPE (Ps-graduao).
6.2. Responsabilidade Civil na Relao Paterno-Filial
Giselda Hironaka (fonte: www.ibdfam.com.br)
1. Primeiras palavras
O enfrentamento do presente tema que me foi especialmente deferido, neste conclave, pela
conhecidssima e eterna gentileza de nosso Presidente, o Dr. Rodrigo da Cunha Pereira
descortinou para mim, ao tempo em que me dediquei a imaginar como construir esta exposio,
um panorama to variado e rico, que no tenho hoje nenhuma dvida de que se trata de mais um
daqueles assuntos que no se esgotam, que no auto-desenham os seus prprios limites, mas, ao
contrrio, oferecem de modo contnuo e incessante, ao pesquisador, ao estudioso e ao operador
do direito, um fabuloso manancial de aspectos que podem ser sempre e sempre percorridos, sem
o risco do esgotamento da seiva profcua que o vivifica.
Pessoalmente, na minha atividade acadmica, tenho dedicado muita ateno e grande esforo de
pesquisa volta da temtica da responsabilidade civil, mormente esta conhecida como indireta, da
qual se diz ora ser uma responsabilidade subjetiva por culpa presumida ora se tende a dizer ser
uma responsabilidade objetiva, por se lhe conferir cada vez menos o nus probatrio da culpa.
Estou a me referir responsabilidade dos pais pelos danos causados pelos seus filhos menores,
conforme a regra da Lei Civil que ainda vige, o Cdigo de 1916, em seu art. 1521, especialmente.
Tem me sensibilizado, igualmente, nesta vertente da relao paterno-filial em conjugao com a
responsabilidade, este vis naturalmente jurdico, mas essencialmente justo, de se buscar
compensao indenizatria em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por fora de
uma conduta imprpria, especialmente quando a eles negada a convivncia, o amparo afetivo,
moral e psquico, bem como a referncia paterna ou materna concretas, acarretando a violao de
direitos prprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias,
-
como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputao social, o que, por si s, profundamente
grave.
Mas, dizia-lhes antes, o descortinamento do tema, conforme minha concepo, permitiu-me logo
verificar que havia um estreitamento na temtica que me fora presenteada, de sorte que a
preocupao com a responsabilidade deveria cingir-se civil e, sob este vis, deveria decorrer dos
laos familiares que matizam a relao paterno-filial.
Ora, assim visualizado o tema, imps-se, prontamente, para mim, esta idia de que deveria trat-
lo sob as tintas da responsabilidade civil propriamente dita, costurando os conceitos to
conhecidos, para mim e para tantos dos senhores da urgncia da reparao do dano, da re-
harmonizao patrimonial da vtima, do interesse jurdico desta, sempre prevalente, mesmo face
de circunstncias danosas oriundas de atos dos juridicamente inimputveis...
E no me satisfiz com esta idealizao estrutural, j bem formatada na minha mente.
Pensei ainda mais e conclu que a insatisfao vinha de um fato muito simples: se amos nos reunir
em Congresso de Direito de Famlia, certamente a pujana do tema deveria como o sadio ramo
de trigo que se enverga ao ritmo do vento, mas no se quebra inclinar-se para um outro lado e
suscitar outra ordem de inquietaes, alm daquelas (importantssimas igualmente, no resta
dvida) que se condensa na preocupao com a vtima quer a vtima de danos produzidos por
filhos menores e indenizveis pelos seus pais, quer a vtima consolidada na pessoa do prprio filho,
pela violao de seus direitos de personalidade, principalmente na recuperao de sua
normalidade patrimonial ou moral, como instrumento de superior categoria e valorao,
endereado mantena da dignidade da pessoa humana.
Pensei ento que seria adorvel e certamente oportuno revirar os alicerces mais profundos do
assunto para trazer tona as inquietaes, as dvidas, as questes que nem sempre so do
interesse imediato do direito, mas que so, indubitavelmente, a sua raiz mediata. Melhor de tudo,
pensei, esta busca, ainda que significativamente difcil para mim, revelaria aquela nova maneira de
se procurar desvendar e descrever o fenmeno jurdico a partir de sua interface com os
fenmenos no-jurdicos que o antecedem.
-
Este , senhores, o rico caminho da interdisciplinaridade, que admite a um agrupamento de
pessoas como este nosso de hoje, sob as dobras da diversidade de pensamento, de linhas e de
construes cientficas, dobras essas que caracterizam e personificam o IBDFAM que nos
sentemos uns ao lado dos demais, socilogos, antroplogos, psiclogos, filsofos e homens do
direito. Sem castelos ou prises. Sem moldes pr-estruturados e estratificados. Mas
absolutamente abertos contemplao da vida como ela , e atentos aos contornos do caminho
que leva realizao pessoal e plena de cada um dos homens, enquanto membro do grupo
familiar que o abriga e guarda.
E a inquietao intrigante que se encontrava presa dentro de mim, emergiu e expandiu-se,
desdobrando-se na mais singela das perguntas: Por que impe-se e repercute no Direito de
Famlia a responsabilidade advinda da relao paterno-filial?
Em que bases extra-jurdicas estariam assentadas as razes, as justificativas e os fundamentos da
imposio de tal dever?
Poderia, acaso, a filosofia fornecer alguma base para a discusso da responsabilidade civil na
relao paterno-filial?
Poderia, acaso, a psicologia adequadamente explicar qual o liame existente entre pais e filhos, que
seja capaz de gerar e de justificar a concretude desta responsabilizao, face de terceiros, mas
e principalmente face deles prprios, um em ralao ao outro?
Sim, certamente sim, do mesmo modo como outros segmentos de apreciao e formulao do
conhecimento humano, como a antropologia, como a sociologia, e como todas as demais
persecues cientficas que tenham por objeto de interesse imediato o homem e sua circunstncia
relacional humana.
E assim, sob este desenho pr-jurdico, sob esse matiz fundante, sob esta inquietao acerca da
raiz, decidi mudar o curso de minha apreciao, a qual lhes trago hoje, deixando-a sob suas mais
que competentes consideraes e crticas.
2. O arco filosfico da circunstncia relacional humana, entre pais e filhos.
-
Levando o conceito de responsabilidade civil para suas bases mais longnquas, que o confundem
com o termo genrico da responsabilidade, e o dever clssico da prestao do devido, a filosofia,
por exemplo, tem sim, muito que dizer.
Basicamente, ela tem muito que dizer sobre essa responsabilidade na relao entre pais ou s o
pai, ou s a me e filhos, sempre que a idia de famlia estiver presente ou for o centro das suas
questes.
H, a propsito, uma longa histria do conceito de famlia na prpria histria da filosofia, alm da
histria das instituies civis. E essa uma histria que vem desde os gregos portanto, desde o
incio da filosofia ocidental e que se confunde muitas vezes com a prpria filosofia poltica, com o
prprio pensamento em torno do direito e das sociedades.
J de uma forma muito sofisticada, o tema da famlia aparece nessa ligao com a poltica
justamente no pensamento poltico de Aristteles, quando, em sua Poltica, apresenta uma
explicao da plis (cidade) como sendo uma associao de vrias associaes menores, das quais
a originria a famlia.
A cidade, antes de ser uma reunio de poderes, de instituies, de leis, uma associao de
famlias. Essa concepo aristotlica da cidade como uma reunio de famlias, clebre na histria
da filosofia poltica, no prosseguiu, todavia, com grande repercusso desde a Idade Mdia.
A partir do longo perodo medieval, a concepo da vida poltica se ver derivada, em especial, das
prprias instituies e da presena efetiva de certos poderes ou autoridades, perdendo-se de certa
forma a idia grega de que a cidade uma grande famlia. Mais do que isso, quer no perodo
medieval, quer nos perodos subseqentes (em especial naquele em que se desenvolve o jus-
naturalismo moderno), ser possvel encontrar longas consideraes jurdicas a respeito do que a
famlia ou deva ser.
Mas h algo na concepo aristotlica que fundamental, que talvez no convenha esquecer,
mesmo quando se desviar a ateno para as concepes mais modernas. Trata-se do seguinte,
resumindo este aspecto: Por que a cidade uma associao mxima que resulta da reunio de
outras associaes que resultam, por sua vez, da reunio de associaes menores que so, enfim,
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as famlias? Porque, justamente, a famlia uma associao natural humana (como a cidade, de
certa forma, ser de maneira mais complexa), onde as relaes dentro dessa associao so
naturalmente determinadas. O que permitiria, assim, conceber no s a famlia, no s a cidade,
mas qualquer associao, a sua condio de elo de ligaes naturais.
H, bem sabe e lembra Aristteles, vrios tipos diferentes de associaes, e conseqentemente
vrios tipos diferentes de cidades, de famlias e de comunidades de toda ordem. A conseqncia
que, se for o caso de tentar uma classificao dos tipos de cidade ou dos tipos de famlia, isso s
ser possvel se for definido um critrio para a tipologia.
Esse critrio buscado por Aristteles para a classificao das cidades; e encontrado no como
critrio nico, mas como critrio duplo: primeiro, uma cidade pode ser governada por um s, por
poucos ou por muitos; segundo, o governo pode ser puro ou corrompido. Conseqncia: h seis
tipos de cidades trs tipos puros (monarquia, o governo de um s; aristocracia, o governo de
poucos; politia, o governo de muitos) e trs tipos impuros, corrompidos, que so
correspondentes s trs formas puras (respectivamente: tirania, oligarquia e democracia).
E para a famlia? Diferentemente do que ocorre com a cidade, para o caso da famlia no h
critrio que permita sua classificao em vrios modelos puros; existem, certamente, vrios tipos
de famlia, no sentido de que h famlias com diferenciados nmeros de componentes, que se
beneficiam ou no de servos, propriedades, etc. Mas, diferente do que ocorre com a cidade (onde
o poder pode estar na mo de um s, ou no), no caso da famlia o comando familiar est sempre
nas mos dos pais, e para certas funes est exclusivamente em poder do pai. Em outras
palavras: em Aristteles, assim como em toda a tradio grega, um consenso entre os autores a
idia de que so os pais que tm autoridade sobre seus filhos, e que o marido que tem
autoridade sobre sua esposa (ou suas esposas).
Por que essa autoridade masculina, paterna e marital? Porque ela , como toda autoridade, uma
autoridade natural, segundo a viso filosfica de Aristteles.
Ora, segundo a concepo clssica, ento, ser por uma necessidade natural humana que os filhos
devam obedecer aos pais e a mulher deva obedincia ao marido. Se a famlia antiga, assim,
patriarcal, porque a natureza inteira o .
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Essa concepo clssica, que obviamente se encontra em completo descompasso com a
contemporaneidade, a concepo que, como se sabe, mais dominou as teorias ou doutrinas em
torno da famlia, por toda a histria da humanidade. De fato, Aristteles est mais presente do
que distante em certos aspectos: ainda que nunca mais se tivesse desenvolvido a idia de que a
cidade uma reunio de famlias, por praticamente toda a histria da humanidade se manteve a
idia de que a famlia a mais originria das associaes naturais, e que sua composio envolve
uma autoridade natural dos pais sobre os filhos e do marido sobre a mulher.
Por isso mesmo, pressinto que a anlise do tema, a partir de Aristteles seja relevante, na medida
em que deixa claro o que sempre estar em questo, na composio da famlia: a famlia uma
associao na qual algum tem poder sobre outrem, restando saber, primeiro, a quem e por que
se deve esse poder e, segundo, se a famlia no pode ser uma associao baseada em outra coisa
que no a dominao ou a dependncia.
Sempre que se tratar das relaes de famlia e da responsabilidade envolvida nas relaes de
famlia, fundamental ser que se trate, tambm, da base dessa relao.
A inquietao tipicamente ps-moderna assenta-se em buscar a resposta pergunta: no seio da
famlia da contemporaneidade desenvolve-se ainda, e tipicamente, uma relao de poder ou
possvel afirmar, por exemplo, que a nfase relacional se encontra deslocada para a afetividade?
O tema da responsabilidade nas relaes de famlia envolve necessariamente essa viso clssica da
autoridade, para bem ou para mal.
O olhar histrico de contemplao pretrita sobre o assunto admite afirmar que marcante essa
significao da famlia do passado mais como uma relao de poder do que como uma relao de
afeto. Por conseqncia, a famlia aparece tradicionalmente como uma associao cujos
benefcios se dirigem mais para os pais (e mais ainda para o pai ou o marido) do que para os filhos
(ou para a mulher).
A tradio patriarcal, de ndole francamente autoritria, na concepo das relaes de famlia,
pretendeu muitas vezes, e na inteno de justificar-se como instituio civil, faz-lo por vieses
imaginados racionais ou cientficos.
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E mesmo que uma tal justificao fosse ideolgica e impossvel, o principal argumento utilizado
para a defesa da autoridade do patriarca foi, desde os gregos, a existncia de uma hierarquia ou
de uma dependncia natural. Essa idia que est na base das concepes antigas e clssicas de
famlia e que se faz notar principalmente na imposio da autoridade nas relaes familiares
curiosamente aparecer tambm como ndice, no plo oposto dessa relao, vale dizer, aparecer
como o fator de consagrao da responsabilidade dos pais diante dos filhos, assim como do
marido diante da mulher.
O que a tradio mostra, enfim, que a concepo da autoridade baseada numa idia de
natureza, mas ao mesmo tempo essa idia de natureza traz uma concepo de responsabilidade
muito equivalente.
A primeira explicao para a idia de que a associao mais primitiva a famlia, pode ser vista,
ainda em Aristteles, por meio de sua afirmao de que a famlia o resultado da associao
daqueles seres que "no podem, por natureza, ficar separados um do outro". Refere-se, o filsofo
grego, ao homem e mulher.
Ou seja: Aristteles at concebe que as famlias tenham ou no posses, que tenham ou no filhos,
mas no concebe uma famlia sem a idia de casamento, e muito menos concebe as famlias
homoafetivas. A concepo corrente da famlia brasileira at muito pouco tempo era vulgarmente
aristotlica, ainda que a prtica da famlia brasileira fosse muitas vezes o inverso da sua imagem...
E porque o novo Cdigo Civil no incluiu as unies homoafetivas entre as entidades familiares,
talvez seja o caso de dizer que, em termos oficiais, ainda estamos na viso aristotlica de famlia,
onde essa associao originria s legtima se obedecer ao que a sociedade patriarcal considera
normalidade sexual e moral.
Mas enfim, a idia original a de que a famlia uma associao que decorre da natureza humana,
na medida em que decorre de uma necessidade de vida em comum, que Aristteles, e novamente
a tradio posterior a ele, atribuir relao entre homem e mulher.
E que relao essa? Uma relao fsica, apenas, ou uma relao de dependncia?
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Aristteles coloca que uma relao de dependncia, especialmente da mulher em relao ao
homem: esta, sozinha, no apenas no capaz de procriar, como no seria capaz de subsistir, e
muito menos comandar uma cidade ou um exrcito. E no seria capaz por qu? Porque, por sua
constituio natural, ela seria mais fraca que o homem, incapaz, enquanto s ele seria capaz, para
a prtica de certas aes que demandam fora e prudncia.
Aristteles quer apontar, portanto, uma deficincia, uma debilidade natural na mulher, visvel seja
por sua comparao ao homem, seja por sua prpria compleio.
Ora, sob o preconceito dessa idia de que a mulher fisicamente, mas tambm racionalmente,
inferior ao homem, Aristteles sequer foi um dos primeiros: a idia j estivera colocada com todas
as letras por Demcrito de Abdera, quando recomendou que a mulher no se exercite na palavra,
porque isso coisa perigosa, ou que ser governado por uma mulher , para o homem, a suprema
violncia.
Esse argumento pretensamente naturalista de que a mulher inferior ao homem hoje nos assusta
com sua brutalidade? Pois foi o principal argumento utilizado em quase toda a histria da
humanidade para tentar justificar o poder patriarcal ou masculista sobre as mulheres. esse o
principal argumento utilizado hoje em dia para justificar a violncia domstica contra as mulheres
e meninas no Brasil, assim como a violncia generalizada contra as mulheres e meninas em
regimes fundamentalistas como o do Taleban, que por uma certa e infeliz contingncia tem sido
constantemente focado e criticado em nossos dias.
Numa palavra, o argumento da debilidade ou incapacidade natural da mulher o argumento mais
utilizado para tentar justificar a autoridade do homem em relao mulher dentro da estrutura
familiar, ao mesmo tempo que a dependncia da mulher em relao ao homem, nessa mesma
estrutura.
O nosso tema aqui no , diretamente, essa relao patriarcalista entre homens e mulheres, entre
maridos e esposas, entre pais e filhas, e por isso no o caso de levar adiante a anlise e a crtica
dessa concepo irracional que sempre insiste em se manifestar at hoje na concepo dos papis
do homem e da mulher na famlia.
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Mas fundamental que tenhamos comeado por apont-la, pois ela a base para aquela outra
relao que constitui, aqui, o nosso tema principal: a relao entre pais e filhos.
O que a histria mostra, e as histrias do pensamento e das instituies mostram junto, que, se a
relao entre homens e mulheres, em famlia, foi sempre baseada numa concepo naturalista de
dependncia e subordinao da mulher, com muito mais razo ser apontada uma dependncia e
subordinao dos filhos em relao aos pais.
Se a prpria subordinao da mulher era vista como necessria, mesmo sendo a mulher um
indivduo adulto e experiente, o que dizer ento, e sempre, de pessoas que tinham pouca
experincia ou no tinham experincia nenhuma? Pessoas que no tinham condies de se
manterem sozinhos? Dir-se- no apenas que dependiam muito mais dos adultos na relao
familiar, mas, conseqentemente, que deviam, na mesma proporo, muito mais obedincia.
Se a famlia, nessa concepo clssica e reiteradamente patriarcal, foi tida como uma relao de
poder praticamente desptico, cujo pater era o detentor exclusivo ou principal de todo o poder de
deciso quanto liberdade e o destino dos integrantes da famlia, ento os filhos estiveram,
certamente, numa posio muito prxima escravido: sua dependncia fsica, material e moral
foi eternamente a causa do seu dever incessante de obedincia.
Se assim , o que dizer, ento, de uma concepo de famlia que a v como uma associao
daqueles que no podem deixar de estar unidos (Aristteles), ao mesmo tempo em que o homem
, naturalmente, o cabea de sua famlia (cultura grega, teologia judaico-crist, direito romano...)?
Nessa associao, o elo de ligao e o ndice dos deveres no se indicam pelo amor, no se
matizam pela recproca generosidade, no se caracterizam pela mtua proteo, mas sim se
realizam por meio da dominao. E se trata de dominao porque, na concepo patriarcal
clssica, jamais haver um espao para que a mulher e os filhos assumam, contra a vontade do pai,
o posto que deveria lhes corresponder.
O correr histrico desnudar a certeza de que, para se vislumbrar a igualdade de direitos entre
homem e mulher e tambm entre pais e filhos na conduo da famlia, sero necessrios
milnios.
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Mas esse longo tempo, necessrio certamente para a concepo dessa igualdade de direitos, de
certa forma seria necessrio, tambm, para a concretude da prpria responsabilidade paterna
como um dever dos pais, em lugar de um poder dos pais.
A idia de responsabilidade paterna que existe hoje no encontra grandes referncias nas
concepes antigas de natureza humana e de famlia. verdade que o mundo antigo concebeu
deveres dos pais, dos chefes de famlia; mas a concepo de responsabilidades civis muito mais
recente. Por qu? Porque, se a simples responsabilidade envolvida no dever de assistncia
classicamente determinada pelo poder do pai sobre sua famlia, a responsabilidade envolvida nos
danos decorrentes da m gesto dessa chefia de famlia no decorre mais do arbtrio desse
mesmo pai de famlia.
Vale dizer: na concepo antiga e tradicional de famlia, o pater tinha obrigaes, mas tinha
tambm poder suficiente para arbitrar quais seriam essas obrigaes, j que era senhor de suas
mulheres e de seus filhos.
Ao contrrio, em concepes mais recentes de famlia e que remontam, no mximo, ao incio do
perodo moderno os pais de famlia tm certos deveres que independem do seu arbtrio, porque
agora quem os determina o Estado.
3. A concepo jus-naturalista de famlia e a distinta visualizao do ptrio poder.
A partir do Renascimento e da modernidade, ser chefe de famlia continuou significando deter um
poder privilegiado e amplo, mas que j no mais um poder superior capacidade cada vez
mais visvel dos outros integrantes da famlia. A modernidade abre espao para uma
transformao lenta, mas radical, na concepo de famlia, j que investe pela primeira vez
(especialmente no mbito do jus-naturalismo) na idia de igualdade entre homem e mulher
quanto capacidade para chefiar a famlia.
Quem mostra isso com muita nfase desde a dcada de 1970 um dos maiores historiadores do
jus-naturalismo, Alfred Dufour. Num timo estudo publicado originalmente em 1975, mas
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retomado e desenvolvido anos mais tarde, denominado Autoridade marital e autoridade paterna
na escola do direito natural moderno, Dufour mostra que uma das maiores contribuies do jus-
naturalismo foi inovar na concepo dos direitos entre os integrantes da famlia.
Neste estudo, Dufour mostra que tanto a relao entre homem e mulher recebeu inovaes
importantes no ambiente jus-naturalista, como tambm as recebeu a relao entre pais e filhos,
ainda que em menor medida. No que diz respeito relao entre homens e mulheres, autores
como John Locke no sculo XVII, mas tambm como Christian Wolff, e seu discpulo Daniel
Nettelbladt, no sculo XVIII, investiram na idia de que a mulher, como o homem, detm uma
autoridade natural sobre os filhos, e efetivamente equivalente do homem.
No que respeitasse, pois, autoridade sobre os filhos, a mulher teria os mesmos direitos que o
homem, e por razes naturais diferentes daquelas que eram alegadas por Aristteles ou por toda a
tradio medieval crist: a mulher, como o homem, causa da existncia dos filhos, e isso torna a
sua autoridade natural. Esta lgica menos restritiva do que a concepo anterior, mas ainda,
sem dvida, um reconhecimento tmido do potencial racional da mulher, j que ela no
desenhada, ainda, como uma possvel autoridade equivalente de seu prprio marido.
No que respeita relao paterno-filial, por outra parte, nota-se que as mudanas sero tambm
visveis, embora se mostrem menores do que a relativa equalizao de direitos ou de autoridade
entre homem e mulher. Todavia, apesar do seu menor peso, dar-se- igualmente, nesta
circunstncia relacional, uma mudana suficiente para caracterizar, enfim, a concepo da relao
entre pais e filhos como uma relao na qual sempre haver uma responsabilidade dos pais em
relao s necessidades dos filhos, a ponto de se poder dizer que a que nasce, propriamente,
uma concepo articulada de responsabilidade civil na relao paterno-filial.
Esta interferncia do jus-naturalismo moderno na reformulao da concepo em tela, ocorrida
nos sculos XVII e XVIII, fez com que se realizasse, aos poucos, a noo propriamente jurdica de
responsabilidade que se desenvolve at se tornar responsabilidade civil, no incio do sculo XIX
e tambm porque a, na modernidade, que a condio jurdica dos filhos dentro da famlia passa
a ser apresentada segundo critrios que se pretendem racionais ou cientficos, para alm dos
antigos critrios do costume.
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certo que esta concepo jus-naturalista, assim como traada, guarda uma grande distncia com
respeito concepo contempornea ou ps-moderna. Contudo, penso que dedicar uma certa
ateno maneira como os autores modernos trabalharam o assunto, pode dizer muito
contemporaneidade, quando somos convidados a considerar a famlia como uma entidade real,
concreta, cuja significao e cujas necessidades talvez no estejam mais definidas unicamente pela
lei ou pelo arbtrio do juiz.
4. O desafio da modernidade para demonstrar, racionalmente, os fundamentos da autoridade e da
dependncia entre os seus componentes.
Ao tratar da famlia, os autores modernos tinham, ento, o desafio de demonstrar racionalmente
quais os fundamentos da autoridade e da dependncia entre os seus componentes. claro que o
tema desta autoridade em famlia era (como sempre ) um princpio corrente; mas, por mais
consensual que fosse a idia de autoridade marital e paterna, no plano da teoria jurdica havia
sempre a necessidade de evidenciar os seus fundamentos. Um dos paradoxos originados dessa
tarefa, todavia, foi a revelao, por vezes, de que uma certa prtica por quase todos aceita no
tinha fundamentos to racionais, como se poderia imaginar.
Qual efetivamente seria a razo e o fundamento da existncia perenizada de um ptrio poder, a
significar uma autoridade dos pais sobre os filhos, garantida pelo Estado, e que permite queles
determinar a vida destes. O que que, enfim, impulsiona o Estado a conceder e garantir um tal
poder?
A argumentao original , novamente, a que se aperfeioa na noo da natureza.
Os filhos vm ao mundo na dependncia completa dos pais, e assim permanecem enquanto no se
tornam, eles mesmos, adultos ou emancipados. A dependncia natural to certa e inegvel, que
sequer pode ser recusada pelos pais. Perfeitamente compreensvel e aceitvel.
Mas a questo que insiste em no calar, e que decorre desta singela verdade versa sobre a dvida
de qual seria a origem da autoridade dos pais?
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Ou, em outros termos, por que a dependncia dos filhos equivale a uma dominao por parte dos
pais, a uma autoridade destes sobre aqueles, enfim?
O ptrio poder, justamente, no um poder acidental, involuntrio. Ele exercido pelos pais
como dominao sobre os filhos. J que uma dominao, talvez o ptrio poder no envolva
nenhum componente afetivo. Ao menos, nenhum componente positivamente afetivo, como a
generosidade com respeito aos filhos.
Ao contrrio, talvez o seu sentido seja sempre, ou prioritariamente, negativo, no sentido de um
aproveitamento ou usufruto dos filhos, um exerccio desenvolvido talvez mais em benefcio
dos prprios pais, do que para a alegria ou proveito dos filhos. Por que isso? Porque, de ponta a
ponta, na relao entre pais e filhos simbolizada pelo ptrio poder, os filhos no tm poder
nenhum.
A idia de ptrio poder, assim, pressupe algo semelhante antiga concepo da subordinao da
mulher ao homem: ela devida segundo a natureza. Ela devida porque a parte dominada na
relao mais fraca, mais dbil... Numa palavra, dependente da outra.
Talvez.
Mas o que causa esta dependncia, de fato? A natureza, como se fosse uma condio sem
conserto ou mudana? Ou as circunstncias, como se fosse uma condio determinada
unicamente pela maior fora do dominador?
Se a reflexo nos fizer passear os olhos para a histria da condio feminina, facilmente observar-
se- que a causa da dependncia reside exatamente na segunda opo: o que historicamente
determinou, s mulheres, a ausncia de direitos e a submisso ao patriarcado foi uma
circunstncia de imposio pela fora, reiterada pelos costumes e pelas instituies, ao mesmo
tempo que endossada pelo prprio direito.
Desde a Antigidade, o homem caput de sua mulher e das mulheres de sua famlia. No porque
tenha sido um desejo das mulheres. Mas elas sempre viveram em um mundo dominado por
instituies patriarcais, cuja estrutura no permitia a prpria modificao.
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O mesmo pode ser descrito para a situao dos filhos.
Desde sempre, e com mais forte razo, os pais mas principalmente o pai so caput dos
infantes. Em parte, por causa de uma concreta dependncia dos filhos, que no tm nem foras,
nem meios, nem principalmente experincia para emancipar-se na vida. Mas, em parte porque a
famlia foi sempre constituda como um domnio particular de quem o instaurou. O crculo familiar,
no qual o chefe de famlia senhor dos membros da famlia, funciona como uma monarquia
particular, como bem lembraria Cesare Beccaria, no captulo 26 de seu tratado Dos delitos e das
penas.
A definio tradicional e jurdica de famlia, ento, e por todos os motivos, est muito longe da
definio de uma relao afetiva. Ela define diretamente uma espcie muito particular de domnio
e dominao.
Na famlia marcada pelo ptrio poder, como compreender, assim, algum fundamento natural ou
racional para a responsabilidade dos pais diante dos filhos?
Se esta responsabilidade, desde o incio, diz respeito a uma dependncia dos filhos em relao aos
pais, ento ela determinada mais pelos filhos do que pelos pais?
Ou determinada mais pelo Estado do que pelos filhos?
Num ou noutro caso, no , certamente, uma responsabilidade determinada pelos prprios pais,
porque no cabe a eles decidir a sua validade ou no. Se lhes coubesse, no seria, ento,
responsabilidade. Seria assuno volitiva de obrigao.
H, concretamente, uma condio de dependncia dos filhos em relao aos pais que , sim, uma
dependncia natural, em dois sentidos: primeiro, porque os pais so causa dos filhos; segundo,
porque os filhos, para se manterem, precisam do auxlio dos adultos; e como s existem porque
seus pais os deram existncia, so estes que devem ser encarregados da sua subsistncia.
A obrigao primeira dos pais em relao aos filhos , certamente, a transmisso da cultura. Lvi-
Strauss esclarece que, para que se passe da natureza (os meros impulsos, o simples biolgico,
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nossa parte mais animal) para a cultura (o humano, o criado), para que se passe do individual para
o social, so necessrias trs interditos bsicos: canibalismo, parricdio e incesto. Dada a condio
humana de indefenso, para que os filhos sobrevivam, as suas necessidades vitais primeiras sero
satisfeitas pela me, por um perodo relativamente prolongado em relao s outras espcies
animais.
Os filhos, assim, so um encargo natural trazido pela unio dos pais: o nascimento dos filhos
obriga os pais a manterem os prprios filhos, como se os filhos fossem, de certa forma, uma culpa
deles prprios, que no incumbe ao Estado assumir. Ou seja, mesmo nos termos em que os filhos
dependem dos pais para sobreviver e se desenvolver, no cabe, luz do vis da Antigidade que
est em foco, tentar enxergar, a, nenhuma relao afetiva.
Se ela ocorrer tambm, tanto melhor, um excedente. Aos olhos do Estado, a relao entre pais e
filhos a de uma sociedade causada por vontades completamente particulares, que no tm
poder nem legitimidade para transferir sua causalidade ao Estado, se este no o desejar. Porque
causam os filhos, os pais causam, conjuntamente, todos os gastos envolvidos na sua manuteno e
desenvolvimento.
Se assim , raciocine-se: por qual motivo o Estado ou outra entidade que no os prprios pais,
poderia ou deveria ser considerado co-responsvel nessa criao? Se e somente se
considerarmos que por nenhum motivo, ento, de fato, a relao paterno-filial pode ser avaliada
como uma relao de um senhor com seus prprios bens. Apenas isso.
Assim entendida, contudo, a relao paterno-filial no envolve, claro, o poder paterno de decidir
pela vida ou morte dos filhos (isto era coisa dos dspotas antigos), mas envolve, sim, uma
precedncia na determinao externa da vida dos filhos.
Quem deve decidir o destino e as preferncias dos filhos, seria o caso de se perguntar o Estado
ou os pais? Ou, ao menos, quem tem precedncia nessa deciso o Estado ou os pais? No
importa qual seja a resposta que se d, se a opo for por um dos dois o Estado ou os pais se
estar, com isso, aceitando a idia de que os filhos so coisa...
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Na verdade, saindo enfim desse plano que concebe a autoridade paterna como ptrio poder,
encontra-se o verdadeiro desafio de definir quem deve ter precedncia para decidir sobre os
destinos da criana ou do jovem atrelado, ainda, vida em famlia.
Sem dvida, a essncia da ps-modernidade responde e estampa a concepo contempornea
mundializada, ao menos em sociedades assemelhadas nossa: a prpria criana ou jovem,
sempre, que deve ter precedncia na determinao do seu destino. Sempre. Ainda que esteja sob
o ptrio poder, ou sob o poder familiar, como prefere a nova Lei Civil Brasileira , ou ainda que
esteja sob a dependncia dos pais ou do Estado.
Pais e Estado assim como toda a sociedade, afinal no podem, em momento nenhum, tratar a
criana como coisa s pelo fato de ser ela sem experincia ou sem atividade produtiva, sem
maturidade espiritual ou sem autonomia material. A criana, apesar de seu estado de extrema e
concreta dependncia, um ser humano como qualquer outro, um ser desejante e emotivo
como qualquer outro, que sente dor diante da crueldade alheia e revolta por no lhe ser
concedida a liberdade que capaz de administrar sozinha. E por ser dotada desse desejo e dessa
necessidade que a criana, enfim, dotada de dignidade e assim deve ser respeitada. No
respeitar essas necessidades e negar a relevncia do desejo tratar a criana como coisa,
efetivamente ser violento com ela, o que afasta, em definitivo, qualquer relao tica com a
criana.
Senhores.
Se o caso de pensar a responsabilidade na relao entre pais e filhos, vale a pena pens-la
apenas pelo vis do direito ou o caso de pens-la a partir especialmente da tica? o caso de
pens-la em ambos os planos, necessariamente, inclusive porque nenhum deles vlido sem o
outro, na considerao da responsabilidade.
Qualquer que seja o tema proposto, a respeito da responsabilidade, ele ser um tema tanto
jurdico quanto tico. Numa perspectiva tica, como fica essa responsabilidade? Ela no pode, de
forma alguma, negar validade ao desejo da criana. O contrrio demonstrar a vida em famlia
como uma relao de violncia, justamente porque uma relao de neutralizao e de
dominao apenas, o que muito bem mostrado, entre outros autores, por Michel Foucault, em
-
seus vrios estudos sobre as relaes de poder, mas especialmente a Microfsica do poder e, mais
ainda, na sua ltima obra, a Histria da sexualidade.
Importante tambm verificar que as consideraes acerca da responsabilidade na relao entre
pais e filhos no devem se reduzir ao fato de se averiguar quais so as obrigaes que j existem,
ou que decorrem desta relao por sua prpria condio e estrutura natural, nem de se averiguar
quais so os meios de compensao de danos na m gesto dessa autoridade paterna, por vez
patriarcal.
claro que envolve estes aspectos tambm, mas de forma alguma deve se restringir a eles, pois,
se ficarem, as consideraes, restritas a essa perspectiva tcnica, talvez no se ampliem
satisfatoriamente os horizontes. Talvez seja necessrio e at imprescindvel ir a um ponto
outro, de estranha inverso, e verificar que preciso conhecer o que h, nos filhos, que determina
a autoridade dos