2013 dissertação elba_monique_chagas_da_cunha

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Universidade Federal Rural de Pernambuco Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Programa de Pós–Graduação em História Social da Cultura Regional Linha de Pesquisa: Sociedade, Cultura, Memória e Patrimônio ELBA MONIQUE CHAGAS DA CUNHA Sertão, sertões: colonização, conflitos e História Indígena em Pernambuco no período pombalino (1759 – 1798) RECIFE – 2013

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  • 1. Universidade Federal Rural de Pernambuco Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao Programa de PsGraduao em Histria Social da Cultura Regional Linha de Pesquisa: Sociedade, Cultura, Memria e Patrimnio ELBA MONIQUE CHAGAS DA CUNHA Serto, sertes: colonizao, conflitos e Histria Indgena em Pernambuco no perodo pombalino (1759 1798) RECIFE 2013

2. 2 ELBA MONIQUE CHAGAS DA CUNHA Serto, sertes: colonizao, conflitos e Histria Indgena em Pernambuco no perodo pombalino (1759 1798) Dissertao apresentada pela aluna Elba Monique Chagas da Cunha ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Cultura Regional da UFRPE, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Histria, sob a orientao da Professora Doutora Suely Cristina Albuquerque de Luna. Recife 2013 3. 3 Ficha catalogrfica C972s Cunha, Elba Monique Chagas da Serto, sertes: colonizao, conflitos e Histria indgena em Pernambuco no perodo pombalino (1759- 1798 / Elba Monique Chagas da Cunha. Recife, 2013. 135 f. : il. Orientadora: Suely Cristina Albuquerque de Luna. Dissertao (Mestrado em Histria Social da Cultura Regional.) Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de Histria, Recife, 2013. Referncias. 1. Poltica indigenista pombalina 2. Historia indgena 3. Capitania de Pernambuco I. Luna, Suely Cristina Albuquerque de, orientadora II. Ttulo CDD 981.34 4. 4 5. 5 Aos meus pais, Antnio Jos da Cunha e Maria do Carmo Chagas da Cunha, pelo apoio e amor incondicional. 6. 6 AGRADECIMENTOS Nesta fase da escrita, to importante como qualquer outra deste trabalho, o momento de tornar pblico todo o apoio e incentivo que tive durante esta caminhada. Agradecer acredito que seja uma de nossas mais necessrias obrigaes, sendo tambm uma das tarefas mais delicadas. Isto porque ao longo de nossa jornada encontramos tantas pessoas que ajudaram de forma mais direta que acabamos negligenciando as que tiveram uma participao menos bvia. Assim, gostaria de agradecer a estas pessoas: amigos, familiares, colegas e os mais diversos profissionais que cruzaram meu caminho, bem como aos professores que de diversas formas, com discusses em sala de aula, conselhos, estmulos, sugestes e crticas, deram suas contribuies a este trabalho e ajudaram a produzi-lo. A minha famlia agradeo pelo apoio e incentivo incondicional que tornou possvel minha formao acadmica, principalmente a minha me Maria do Carmo Chagas da Cunha, um dos meus alicerces, pelo amor, dedicao e fora. Ao meu pai, Antnio Jos da Cunha, meu outro alicerce, pelo exemplo de ser humano e por ter me dado todo apoio que um pai possa dar a um filho. Minha irm Elva Millena, pela coragem e garra. A minha tia Maria Jos pelo exemplo, f e fora. Falando em famlia, no posso deixar de falar daquela que vamos construindo ao longo da vida. Aquela formada por amigos que com o passar do tempo se tornam essenciais nossa caminhada. Comeando por aqueles que acompanham minha jornada desde menina, a Elma, que sempre me deu fora e apoio s minhas decises. Suellen (amiga e Tia Su), uma fortaleza, coragem e porto seguro; a mame Aline, uma mulher forte e independente; a futura mame Gerlaine, pela fora, gentileza e coragem. Um trio que me acompanha desde a adolescncia, com elas aprendi a ser a pessoa que sou hoje. A Roberta, Kayro, Andreza, Anderson, Jim os faxa companheiros muito amados e sempre postos quando solicitados. Estes amigos com certeza tornam meu fardo mais leve. A todas as amizades que construi na universidade, Alexandre (in memorian), Eduardo, Ntalli, Jos, Helder, Elizabet, Julianne, Romerito, Gabriel, Rodrigo, Rafaela, Suzana. Os antigos e novos colegas do Laboratrio de Arqueologia da UFRPE. Um agradecimento especial Vanessa Mello, pela confeco do resumo em lngua estrangeira; a Faubina Nascimento, pela correo do trabalho. A Mrcio (Ninja) pelo exemplo, apoio e contribuies, Hylka, mulher, amiga, me, guerreira, dona de um fibra extraordinariamente linda e que 7. 7 encanta; a Rodrigo Marinho, pela amizade construda ao longo dos trabalhos de campo; ao mestre Csar, amigo, compreensivo e sempre gentil e a Pollyanna Calado pelo apoio ttico necessrio defesa do trabalho. Sou muito grata aos meus amigos da graduao, Emmanuelle Valeska, Bruno Melo, Vittor Prestrelo, Gustavo Mendona, que compartilharam de muitas angustias, noites em claro e conversas on line, num verdadeiro mutiro para conseguirmos alcanar nossos objetivos, so pessoas queridas, amigos que levarei sempre comigo. A Josu Lopes um agradecimento mais que especial pelo carinho, apoio, incentivo, contribuies, cumplicidade e por sempre estar ao meu lado, sempre me apoiando seja qual for a situao. Mais que um amigo se tornou um irmo. Agradeo minha orientadora a Prof. Dr. Suely Cristina Albuquerque de Luna, que foi quem primeiro acreditou no meu potencial acadmico, que alm de orientar, rompe com as barreiras profissionais, aconselhando tambm na vida, me apoiando e dando o tempo necessrio para a concluso deste trabalho. Da mesma forma quero agradecer a Prof. Dr. Ana Nascimento e ao Prof. Dr. Osvaldo Giro, pelas dicas, incentivo, confiana e apoio necessrios, que tanto acrescentaram minha formao. A Prof. Dr. Ftima Lopes (UFRN) agradeo pela leitura crtica do texto e pelas sugestes para a finalizao deste trabalho. Da mesma forma agradeo ao Prof. Dr. Edson Silva (UFCG) sempre disposto a me ajudar na pesquisa, com questionamentos, indicaes de leitura e disponibilizao de material. Uma pessoa muito querida, que alm da ajuda profissional, tambm me ajudou muito com conselhos e conversas num momento bastante delicado por qual passei. Maria da Penha, este agradecimento tambm se estende a voc, muito obrigada pela fora e pelos conselhos. A CAPES/ CNPQ, agradeo pela bolsa de pesquisa, o que viabilizou a realizao deste trabalho. Agradeo ao Programa de Ps Graduao em Histria da UFRPE, em especial a Alexsandra Barbosa, que durante o tempo que foi Secretria do programa executou seu trabalho de forma exemplar, com dedicao, carinho e pacincia sempre ajudou a todos a resolver as questes burocrticas que surgiram no caminho. Aos professores do programa, Tiago Melo, Wellington Barbosa, Kalina Silva, Angela Grillo, Sueli almeida, agradeo imensamente pelos conselhos e contribuies a este trabalho. A todos os professores e tcnicos do curso de Licenciatura Plena em Histria da 8. 8 UFRPE, aos funcionrios dos arquivos e bibliotecas que foram uma ponte na busca para elucidar nossas inquietaes. A professora Maria Lana, ao professor Lucas Silva agradeo pela pacincia, compreenso, apoio e carinho. Por fim e no menos importante, agradeo a Lucas Michel, Nilde, Marcus, Mariinha, Anne. Pessoas que cruzaram meu caminho, mas por fora do destino tiveram que seguir outra trilha, sempre me lembrarei com carinho dos momentos que tivemos juntos, sem dvida foram muito importante para minha formao tanto acadmica quanto pessoal. A todos vocs muito obrigada. 9. 9 RESUMO Em meados do Sculo XVIII, houve uma mudana na poltica planejada por Francisco Xavier de Mendona Furtado, Governador de Gro-Par do Maranho junto com a Coroa Portuguesa para os indgenas que foi compilada em uma nica lei conhecida pela Historiografia pelo Diretrio dos ndios ou pelo Diretrio Pombalino. Estudiosos apontam que as reformas pombalinas no Brasil tinham basicamente trs pontos fundamentais: o econmico, o poltico- administrativo e o cultural-pedaggico. Na Capitania de Pernambuco, alm destes trs objetivos, o Diretrio foi responsvel por trazer a paz e tranquilidade aos incultos sertes que, apesar de ser considerada uma regio pecuarista integrada as principais atividades mercantis coloniais, no usufrua da estabilidade e tranquilidade almejada pela sociedade e pela Coroa. Nesse perodo, tm-se notcias de grupos indgenas como os Paraqui, Xoc, Mangueza, Pipe, dentre outros, causando destruio a fazendas de gado da regio, gerando pnico e instabilidades para as vilas e povoados. Estas incurses indgenas serviram como justificativa para a implantao da nova poltica indigenista que visava incorporar e/ou reincorporar os ndios em aldeamentos estabelecidos, transformando-os em vilas controladas pelo Estado. Palavras Chave: Poltica indigenista pombalina; Histria indgena; Capitania de Pernambuco 10. 10 ABSTRACT In the middle of eighteenth century, there was a politics change that was planned by Francisco Xavier de Mendona Furtado, the Governor of Gro-Par do Maranho between Portuguese crown to the Indians that was considered in a single law which is knowed for the historiography for the Indians Directory or for the Pombalino directory. Some studies show us that pombalinas reforms in the Brazil have basically three points: economic, political- administrative, cultural-teaching. In the captaincy of Pernambuco, furthermore theses three aims, the directory was responsible for bring peace and stillness to the unrefined backwoods that was considered a cattleman region linked with the main colonial mercantile activities, did not enjoy stability and tranquility desired by society and crown. In this period, there are news about Indians groups like: Paraqui, Xoc, Mangueza, Pipe and others, causing destruction to cattle farms of the region, creating panic and instability in the towns and villages. These Indian incursions woks like a strategic to the implantation of the new Indians politics that view incorporate or reincorporate the Indians divided in villages established, become this villages controlled by the government. At this assignment we will discuss the process of implantation of new Indian politics trying to understand how the natives living with the social force that tried to control them with this news politics and how the backwoods of Pernambuco become ,from the action of this Indians that participated of the change, making conflicts and alliances like a resistance way, as well as understand the process of developed of people already organized in villages had helped in the implementation of the new guidelines. Key-words: Indigenous politic pombalina; Indians history; Captaincy of Pernambuco 11. 11 SUMRIO INTRODUO........................................................................................................................12 CAPTULO 1 (RE)INVENTANDO MUNDOS: rupturas e permanncias na poltica indigenista colonial...................................................................................................................25 1.1 A misso como alicerce da poltica indigenista..........................................................26 1.2 Conflitos no espao colonial: colonos, missionrios e indgenas.................................36 1.3 - Eis que sai de cena a Igreja e sobe nos palcos o Estado: o Diretrio dos ndios .........43 CAPTULO 2: O TEMPO DOS HOMENS PRTICOS: o Diretrio dos ndios em Pernambuco, novas estratgias para a civilizao dos indgenas..........................................54 2.1 A Direo em Pernambuco ............................................................................................54 2.2 As estratgias para a civilizao dos indgenas ...........................................................59 2.2.1 - Trabalho e produtos na Direo em Pernambuco..................................................59 2.2.2 Saindo da ignorncia e rusticidade: transformando ndios em homens de bem e ndias em mulheres honestas ............................................................................................70 2.2.3 Educando os curumins: a escola de meninos e meninas nas vilas .......................77 CAPTULO 3 - TRANSFORMANDO AS ZONAS ESTRANHAS EM ESPAOS COLONIAIS: o Diretrio Pombalino como projeto de civilizao portuguesa nos incultos sertes pernmbucanos...............................................................................................................86 3.1 Serto, sertes: espaos de conflito, palco dos contatos..............................................87 3.2 A guerra das bandeiras: as mobilizaes dos ndios pela manuteno dos seus espaos ..............................................................................................................................................95 3.3 O Diretrio dos ndios: a fundao das vilas no Serto Pernambucano e a poltica de terras. ..................................................................................................................................104 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 118 REFERENCIAS .....................................................................................................................122 Livros, Artigos, teses e Dissertaes ..................................................................................122 Fontes Impressas e Digitalizadas........................................................................................130 Fontes manuscritas .............................................................................................................131 12. 12 INTRODUO O que possibilita uma construo de uma narrativa histrica? Quais relatos do passado so possveis? O que o fazer historiogrfico permite e no permite?1 . Ao ler Certeau encontramos respostas que nos levam a refletir que o historiador produzir uma narrativa intimamente ligada ao seu tempo, suas intencionalidades, suas necessidades. Assim, a (re)escrita da Histria torna-se algo necessrio e inevitvel, devido a especificidades de cada momento e dos objetos de estudo que os indivduos selecionam no seu presente, relacionando este conhecimento com seu passado. Desdobramentos e sensibilidades de cada tempo faz com que novas possibilidades de percepo do passado se construam. Neste sentido, teorias, metodologias e experincias se acrescentam ao rol de conhecimentos, possibilitando novas formas de produo do saber que podero formular uma infinidade de representaes do seu objeto de estudo. Pode-se olhar sobre o mesmo tempo e represent-lo diferentemente, mas coerente e corretamente2 . Estas representaes nos revelam as possibilidades de tcnicas e fontes diversas que o historiador pode optar sem que sua anlise deixe de ter consistncia, como tambm, no anule as demais pesquisas. Cada produo nos revela o campo de contingncia de cada autor em seu tempo. Neste sentido, as leituras que se sucedem no eliminam seus predecessores. Os autores posteriores podem at ser melhores que os anteriores do ponto de vista terico metodolgico, na abrangncia de profundidade de sua anlise, mas no o substituem nem os tornam descartveis3 . Sendo assim, apresentar um panorama geral referente ao estudo das comunidades indgenas no Brasil poder nos ajudar a entender como a temtica ganhou novos olhares e formas, apresentando uma abertura no leque de informaes sobre estes povos. Iniciamos nossa discusso sobre a pesquisa histrica acerca dos povos indgenas no Brasil atravs de um balano sinttico da historiografia brasileira. Buscamos identificar como as produes histricas dos sculos XIX e XX construram uma imagem dos povos indgenas brasileiros at o surgimento, no final do Sculo XX, da Nova Histria Indgena no Brasil, possibilitada graas s mudanas tericas e metodolgicas ocorridas neste perodo. Para tal, 1 CERTEAU, Michel. A operao historiogrfica. In: A escrita da Histria. Rio de Janeiro, Forense Universitria, 2007, p. 45 2 REIS, Jos Carlos. As identidades no Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, v.1, 2000, p. 26. 3 Idem, p. 12 13. 13 tomamos como base o estudo de Jos Carlos Reis sobre a formao do Brasil4 . Nossa escrita se inicia no Sculo XIX, j que foi neste perodo que a Histria viveu sob a hegemonia do cientificismo metdico, que adotava uma srie de procedimentos e mtodos buscando regras universais, com o intuito de tornar o conhecimento histrico em uma cincia. Influenciada pela viso Positivista e pelo processo de profissionalizao, esta Histria metdica anunciava uma concepo do fazer historiogrfico caracterizado tambm pela sucesso linear dos fatos. Nesta perspectiva, cabia, ao historiador, a tarefa de reconstruo dos fatos atravs dos documentos escritos. No Brasil, esta influncia europeia chegou atravs dos intelectuais ligados ao Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, que tinha por finalidade e objetivo metodizar, construir e guardar os documentos histricos, fatos relevantes e sujeitos considerados importantes, que ajudassem a construir uma identidade coletiva para aquela nao recm-criada, alm de visar conhecer geograficamente todo o territrio. Assim, o Instituto lanou um concurso para escolher a melhor forma de se produzir a Histria nacional. O projeto vencedor foi Como se deve escrever a Histria do Brasil, escrito por Karl Philipp Von Martius. Seguindo este texto, Francisco Adolfo de Varnhagen, que era scio do IHGB, escreveu, utilizando uma grande quantidade de documentos coloniais, uma histria sistemtica em uma viso totalizante da formao da nao brasileira. Nas primeiras pginas de sua obra, ele abordou o indgena brasileiro, descrevendo os seus costumes considerados brbaros; a localizao e distribuio geogrfica de alguns povos, concluindo que de tais povos na infncia no h histria: h s etnografia5 . Assim, para este autor, a Histria do Brasil claramente s comeou quando os portugueses aportaram nestas terras. Para alm de povos sem histria, no Sculo XIX, os indgenas tambm foram classificados como povos sem futuro devido Teoria do Evolucionismo que enquadrava as sociedades humanas em categorias, dentre elas os povos americanos, considerados primitivos, fatalmente no sobreviveriam. Esta viso ficou tambm impregnada na historiografia nacional, e teve sua sentena dada com Martius que escreveu no h dvida: o americano est prestes a desaparecer. Outros povos vivero quando aqueles infelizes do Novo Mundo j dormirem o sono eterno6 . 4 Ibidem 5 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Histria geral do Brasil [1854]. So Paulo: Melhoramento, 1978, p. 30. 6 MARTIUS, Carl Friedrich. O Estado de Direito entre os autctones do Brasil. So Paulo: Melhoramento, 14. 14 Diante destas perspectivas, metodologicamente, os ndios no poderiam ser estudados pela Histria, e no campo terico tambm o Evolucionismo relegava-os ao lugar de peas vivas da pr-histria humana e destinava-os ao inevitvel desaparecimento. Entre os scios do IHGB, havia aqueles que ainda pensavam em outro patamar para o indgena americano na formao do Brasil. Era o movimento Indianista que concebia o ndio como smbolo da identidade nacional brasileira, todavia, este idealizado j no existia no Sculo XIX. Os romnticos tambm adotaram a teoria evolucionista do desaparecimento dos povos indgenas. Assim o espao conquistado pelo nativo, na Histria do Brasil, seria de perdedor. Na primeira dcada do Sculo XX, Capistrano de Abreu escreveu Captulos de Histria Colonial nos quais, seguindo os passos metodolgicos de Varnhagen, mostrou o ndio atravs de uma perspectiva de descrio etnolgica sobre os nativos na Amrica, suas guerras, estrutura poltica, econmica e sociedade. No entanto, o momento histrico que ele escreveu era uma continuidade dos discursos produzidos ao longo do Sculo XIX sobre o indgena. Na dcada de 1930, Srgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, nas suas produes, evidenciaram a permanncia das caractersticas da perspectiva metdica utilizada para organizar a histria indgena na historiografia brasileira. De certa maneira, o ndio foi apontado como povo fraco e fadado de fracasso e extino, legitimando e formando no imaginrio coletivo uma viso negativa do indgena. Nos anos de 1940, entraram em cena as interpretaes marxistas sobre a formao do Brasil. Nessas histrias, o indgena, ento, apareceu como um coadjuvante da Histria colonial europeia. Nela, ele foi apresentado atravs das relaes com os colonos. Como exemplo, temos Caio Prado Junior que apontou as estratgias portuguesas para aproveitar os indgenas como participante da colonizao, atravs das misses, aldeamentos e entradas. Contudo nela, o ndio foi, tambm, eliminado, desta vez no fisicamente, mas culturalmente atravs do processo chamado de aculturao, conceito que afirmava que toda sociedade inferior quando em contato com uma superior, tende a perder suas caractersticas culturais, econmicas e sociais. Observa-se, portanto, que as imagens de degenerao vinculada ao desaparecimento dos ndios serviram como argumento para a negao da identidade tnica dos indgenas e a afirmao da mestiagem das populaes indgenas7 , bem como o direito 1982, p. 70 7 SILVA, Edson Hely. O lugar do ndio. Conflitos, esbulhos de terras e resistncia indgena no Sculo XIX: o caso de Escada-PE. (1860-1880). Recife: UFPE, 1995 (Dissertao de Mestrado em Histria). 15. 15 Histria. A partir da dcada de 1970, aquela velha tese do desaparecimento dos ndios no Brasil comeou a ser contestada graas s mudanas tericas e metodolgicas do movimento dos Annales que provocou uma renovao na produo historiogrfica nacional. Os trabalhos acadmicos superaram a estrutura de Histria voltada para a poltica, os estadistas e heris nacionais. Entrou em cena, ento, a chamada Histria vista de baixo destacando as vivncias, experincias e a vida social das pessoas comuns, possibilitadas, inclusive, pelo dilogo entre a Antropologia e a Histria. Este inovador debate trouxe aspectos relevantes que alargaram os horizontes de anlise para ambas. Na Antropologia, o interesse pelos processos de mudana social possibilitou, conforme mostrou Manuela Carneiro da Cunha, perceber no desenrolar dos povos grafos a dialtica entre a estrutura e o processo; do outro, a necessidade de perceber, naquilo que propriamente se poderia chamar de etno-histria, a significao e o lugar que diferentes povos atribuem temporalidade8 . Na Histria, os historiadores passaram a valorizar os comportamentos, as crenas e as vivncias das pessoas comuns, possibilitando outros conceitos para as suas anlises. Isto significou para a historiografia sobre os ndios uma nova postura, um novo olhar, que segundo John Manuel Monteiro tinha por objetivos, recuperar o papel histrico de atores nativos na formao das sociedades e culturas do continente, no se esquecendo de repensar o significado da histria a partir da experincia e da memria de populaes que no registraram ou registraram pouco seu passado atravs da escrita9 . A partir destas novas perspectivas terico-metodolgicas, no final do Sculo XX, o que John Monteiro identificou como A nova Histria indgena no Brasil emergiu graas s mudanas ocorridas neste perodo que permitiu a Histria ampliar o leque de discusses abordando mtodos e conceitos da Antropologia, produzindo outras escritas sobre fatos histricos. Com a utilizao de novas metodologias e teorias, a Histria dos povos indgenas no Brasil tem mudado e novos trabalhos esto sendo produzidos no intuito de revelar este ndio como elemento ativo na sociedade na qual foi brutalmente inserido. Trabalhos como os de Ricardo Pinto de Medeiros, Regina Celestino de Almeida, Ftima Martins Lopes, John Manuel Monteiro, Juciene Ricarte Apolinrio, Geyza Kelly Alves da Silva, Edson Silva, Anna 8 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introduo. Revista de Antropologia, vols. 30/31/32, So Paulo, 1989, p. 3 9 MONTEIRO, Jonh. O desafio da histria indgena no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luis Donisete (org.). A Temtica indgena na escola: novos subsdios para professores de 1 e 2 graus. Braslia: MEC, MARI, UNESCO, 1995, p. 227 16. 16 Elizabeth Lago, Joo Pacheco de Oliveira, Manuela Carneiro da Cunha dentre tantos outros, foram pioneiros neste sentido, e tm colocado o ndio como agente ativo da e na Histria, capaz de tomar atitudes importantes que mudaram tanto o rumo da histria dos seus grupos, como tambm dos colonizadores que por aqui passaram. Porm acreditamos que este um tema que ainda tem muito por revelar devido a sua dinmica extremamente fecunda. Nosso estudo sobre o Diretrio dos ndios na Capitania de Pernambuco est voltado para o Serto que, como veremos, era um espao onde, em meados do Sculo XVIII, as relaes coloniais ainda no estavam totalmente dominadas pelos colonos, causando conflitos e incertezas. O recorte temporal justamente o perodo em que a lei esteve em vigor, por ser de nosso interesse entender o primeiro impacto de implantao e repercusso da lei para as comunidades indgena e colonial, como um todo. O desejo de estudar a temtica indgena surgiu durante o curso de Graduao no qual tivemos pouco contato com o assunto, uma vez que no existia, em nossa universidade, uma disciplina especfica sobre os ndios. Assim na Monografia de Concluso de Curso10 , propomo-nos a estudar um pouco da Histria desse povo e o seu contato com o europeu, atravs de estudos j realizados sobre os nativos brasileiros e tambm com pesquisas de campo realizadas na rea da implantao da Refinaria do Nordeste Abreu e Lima. Em consequncia, buscamos trazer luz as relaes entre os portugueses e os amerndios, em uma reflexo acerca da cultura indgena inserida na nova estrutura social. Isto nos possibilitou entender que os processos comumente classificados como destruio, na verdade, podem ser encarados como o reflexo de uma reafirmao e (re)criao de uma identidade necessria para a manuteno das comunidades indgenas e sua insero na sociedade portuguesa na Amrica. Esta nova jornada tem, ento, como objetivos continuar os estudos j realizados que buscaram (re)ver a temtica indgena, sob uma nova tica, ampliando o leque de discusses para alm da frmula clssica europeu + ndio = massacre/aculturao; buscar, alm de aprofundar informaes sobre as implicaes que as leis pombalinas trouxeram para as populaes indgenas; atentar para as particularidades das relaes que a legislao previa principalmente para os sertes da Capitania de Pernambuco. Desta forma, estudar as aes, metamorfoses e estratgias desses ndios coloniais utilizadas para sobreviverem na nova ordem social, tambm so focos de nosso estudo. Somando a esta discusso, procuraremos observar a atuao das foras indgenas e da Coroa no controle e administrao desses 10 CUNHA, Elba Monique Chagas da. Revisitando a Histria dos grupos indgenas no litoral da Capitania de Pernambuco. Recife: UFRPE. 2010 (Monografia de concluso de curso). 17. 17 novos lugares de ndios, bem como na manipulao de aes que procuraram assegurar a liberdade e sobrevivncia dos nativos no espao colonial. Ao longo de nossa Graduao, pela qual tivemos contato com uma bibliografia bsica sobre o assunto e tendo acesso a documentos encontrados nos arquivos referentes ao nosso objeto de estudo, percebemos que h ainda muito a ser explorado sobre a temtica indgena, especificamente sobre o impacto causado pela poltica pombalina nas comunidades nativas da capitania de Pernambuco e as variadas aes produzidas a partir deste Diretrio. Maria Regina Celestino de Almeida defendeu que a associao com os portugueses teria representado para as populaes nativas um prejuzo menor diante das inmeras identidades existentes no universo colonial, por exemplo, a condio de ndios aldeados, se lhes afiguraria melhor que a de escravo. Alm do mais, a autora aduz que os europeus traziam consigo instrumentos e tcnicas que se tornaram objeto de desejo dos indgenas e cujo acesso se dava por meio do estabelecimento de relaes amistosas, as quais, por sua vez, tinham um enorme valor para a poltica de amizades e confrontos das naes indgenas onde habitavam. Tal fato acabou por constituir a Amrica Portuguesa. Ndia Farage, Marcus Carvalho e Maria Regina Celestino de Almeida, nos seus estudos, indicam que os pesquisadores ainda se deparam com o problema das associaes entre populaes indgenas e os europeus, que no foram amplamente estudadas. Arno Kern afirmou que a colonizao moderna implicou duas faces: por um lado, o etnocdio tanto fsico quanto cultural, que aniquilou diversos grupos indgenas; na outra face, um processo longo e gradual de uma agregao forada ou integrao de diversos grupos amerndios. Assim, subsistem enormes lacunas a serem preenchidas no que tange compreenso das diversas dimenses assumidas pelas relaes que emergiram do processo da conquista e que ficaram encobertas por esse dualismo tradicional.11 Maria Almeida, em sua Tese de Doutorado sobre os indgenas no Rio de Janeiro, discutiu que a condio de subordinado, que foi conferida aos indgenas aldeados, possibilitou a estes nativos se reinventarem, trocando a condio de submissos para de vencedores da ordem colonial, lutando contra uma histria de vencidos. Seguindo esta perspectiva, Almeida mostrou que a histria indgena precisa ser reavaliada, principalmente no que tange o papel do 11 Respectivamente: FARAGE, Ndia. As muralhas dos sertes: os povos indgenas no Rio de Janeiro e a colonizao. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS. 1990; CARVALHO, Marcus. Clientelismo e contestao: o envolvimento dos ndios de Pernambuco nas brigas dos brancos na poca da Independncia. In F. L. N. de Azevedo & J. M. Monteiro (Orgs.) Confronto de culturas: conquista, resistncia e transformao. Rio de Janeiro: Expresso e Cultura; So Paulo: Edusp. 1997; ALMEIDA, Op. cit., 2003; KERN, Arno Alvarez. Escravido e misses no Brasil Meridional: impactos e contatos entre as sociedades indgenas ibricas, no Perodo Colonial. In: M. Flores (Org.) Negros e ndios: Histria e Literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS. 1994, p. 36 18. 18 nativo como construtores de sua prpria histria, o que para John Manuel Monteiro um espao poltico pautado na rearticulao de identidades, contemplando ou no a sua insero nas estruturas de poder que passaram a controlar e vigiar a sua forma de viver. Monteiro afirmou que a construo ou recriao das identidades nativas e da solidariedade social muitas vezes se d precisamente em funo das mudanas provocadas pelo contato12 . Ainda nesta linha de pensamento, Gruzinski, no seu livro O pensamento mestio, escreveu que, para entender o contato preciso mergulhar em uma realidade poliforma composta de identidades mltiplas e de constantes metamorfoses.13 Partindo desta ideia, nosso estudo tem por objetivos buscar, na esfera poltica, utilizando as legislaes pombalinas para os indgenas, a identificao e compreenso dos impactos que tais leis produziram para a comunidade amerndia, bem como, as aes destes nativos diante desta nova regulamentao, visto que: [...] um grupo tnico no apenas uma coletividade que compartilha padres de comportamento normativo, ou cultura, tambm faz parte de sua estrutura a ao poltica desta comunidade. Tambm defendemos a idia de que um grupo indgena pode ser estudado no apenas pelos seus aspectos culturais, mas tambm pela sua interao poltica na sociedade colonial.14 Nesse sentido, nosso trabalho tem como objetivo apresentar uma anlise assentada noDirectrio com que se deve observar nas Povoaes dos ndios do Par e Maranho, enquanto Sua Majestade no mandar o contrrio, que foi a poltica implantada pelo Conde de Oeiras, futuro Marqus de Pombal, em meados do Sculo XVIII, inicialmente para o estado do Maranho e Gro-Par, sendo posteriormente ampliada para toda a colnia, com foco na Capitania de Pernambuco. A nova lei tinha por objetivo, segundo Isabel Vieira Rodrigues, fortificar, delimitar, povoar e desenvolver o Estado do Gro-Par e Maranho, a fim de garantir a posse de vastos territrios da Bacia Amaznica15 . Nessa poltica, segundo o Governador do Gro-Par e Maranho e irmo do Marqus de Pombal em potencial, os ndios foram includos, pois, como novos sditos para garantir a presena da Coroa portuguesa nas reas setentrionais da fronteira com os domnios espanhis. Na tentativa de encontrar o nativo como agente de sua Histria, Anna Lago procurou 12 MONTEIRO, John Manuel. Armas e armadilhas: Histria e resistncia dos ndios. In: NOVAIS, Adalto (Org.). A outra margem do ocidente. So Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 241. 13 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestio. So Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 28 14 SILVA, Geyza Kelly Alves da. ndios e identidades: formas de insero e sobrevivncia na sociedade colonial (1535-1716). Recife: UFPE. 2004, p. 13 (Dissertao de Mestrado em Histria). 15 RODRIGUES, Isabel Vieira. A poltica de Francisco Xavier de Mendona Furtado no Norte do Brasil (1751- 1759). In: Oceanos: A formao territorial do Brasil, n. 40, p. 94-110, out./ dez. 1999. 19. 19 compreender a elaborao e aplicabilidade do Diretrio Pombalino, para Pernambuco e suas capitanias anexas (Cear, Paraba e Rio Grande do Norte), buscando responder a uma pergunta: que motivaes impeliram o estado portugus a aplicar a mesma legislao a realidades to distintas como as do Gro-Par e Pernambuco16 ? Diante das leituras realizadas, notamos que houve adaptaes na lei o que nos levou a pensar: por que razo foram propostas mudanas na legislao aplicada na Capitania de Pernambuco? Com a implantao da nova lei houve, uma permanncia ou ruptura das estruturas scio-culturais j existentes entre os indgenas? E por fim, quais as consequncias da aplicao desta lei na Capitania? Buscando respostas para essas questes, encontramos trabalhos que nos mostram a interveno tanto dos agentes coloniais como dos indgenas que reagiram a essa legislao ocasionando as particularidades e adaptaes sofridas por ela. No entanto, diante das diversas particularidades, devido a imensa rede de relaes, estas questes precisam ser melhor estudadas. Visto que, segundo Carlos Arajo Moreira Neto, o Diretrio foi uma tentativa da Coroa de intervir na administrao das populaes indgenas, integrando-as sociedade, [...] o que aumenta extraordinariamente o processo de desorganizao e dominao dessas comunidades, iniciado pela ao missionria17 , uma vez que a relativa autonomia que os aldeamentos possuam quando eram administrados pelos missionrios, foi perdido quando o estado passou a controlar estes lugares. Assim, O Diretrio [...] um claro instrumento de interveno e submisso das comunidades indgenas aos interesses do sistema colonial. Nesse sentido, amplia e completa a obra de desorganizao da vida indgena tribal, inaugurada pelas Misses18 Todavia, assim como as organizaes religiosas no conseguiram garantir o sucesso esperado pelos missionrios, ou seja, que os ndios fossem, atravs da catequese, incorporados civilizao; pertinente se questionar se o Diretrio alcanou os objetivos esperados pelos Diretores e autoridades rgias a transformao dos ndios em sditos,19 e qual impacto esta nova poltica causou na sociedade colonial e na vida dos indgenas. 16 LAGO, Anna Elizabeth. O ideal de liberdade no Sculo XVIII: a poltica de Sebastio de Carvalho e a resistncia indgena em Pernambuco. In: CLIO. Revista de Pesquisa Histrica. N. 25-2, 2007. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2007, p. 216. 17 NETO, Carlos Arajo Moreira. ndios da Amaznia: de maioria minoria (1750-1850), 1750-1850. Petrpolis, Vozes, 1988, p. 20 18 LOPES, Ftima Martins. Diretrio dos ndios: implantao e resistncia no Nordeste. In: Tellus, ano 3, n. 5, p. 37-53, out. 2003. Campo Grande MS. 19 LOPES, Ftima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de ndios do Rio Grande do Norte sob o Diretrio Pombalino no Sculo XVIII. Recife: UFPE, 2005, p. 30 (Tese de Doutorado em Histria). 20. 20 Nestas breves consideraes, verifica-se que a historiografia brasileira ampliou suas possibilidades de abordagens e anlises sobre os nativos. Assim, podemos identificar o ndio como agente ativo na formao da sociedade brasileira, ao contrrio do que ainda se acredita no senso comum, que os responsveis pela criao da nossa sociedade foram apenas os portugueses, restando ao nativo a imagem cristalizada de aculturados, para os aliados/aldeados ou de exterminados, para os no-aliados. Para alicerar nosso trabalho, estabelecemos como leituras fundamentais e basilares os trabalhos de Ricardo Pinto de Medeiros, John Manuel Monteiro, Regina Celestino de Almeida, Francisco Jos Calazans Falcon, Rita Helosa de Almeida, Beatriz Perrone-Moiss e Patrcia Maria Melo Sampaio. Diretamente ligado ao nosso projeto, utilizamos o trabalho de Suely Maris Saldanha, Idalina Maria da Cruz Pires e Ftima Martins Lopes20 . Segundo Medeiros, a implantao da legislao indigenista pombalina na Capitania de Pernambuco ainda um assunto pouco pesquisado pela historiografia, uma vez que os conflitos e adaptaes que ela trouxe foi um processo bastante complexo, variando bastante segundo as conjunturas locais, condicionadas pelo precrio equilbrio de foras existentes entre populaes e lideranas indgenas, moradores e agentes coloniais. Desta forma, baseados nos estudos anteriormente citados, acreditamos que este projeto ampliar a rede de informaes para a histria indgena, de modo a fornecer subsdios para futuras investigaes, visando identificar o indgena como agente histrico-poltico-social da sua histria bem como da histria do nosso estado. 20 Respectivamente: MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Poltica indigenista do Perodo Pombalino e seus reflexos nas Capitanias do Norte da Amrica portuguesa. In: OLIVEIRA, Carla Mary da Silva; Medeiros, Ricardo Pinto de. (Org). Novos olhares sobre as Capitanias do Norte do Estado do Brasil. Joo Pessoa: Editora Universitria / UFPB, 2007 p. 125 a 160.; MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indgenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.; FALCON, Francisco Jos Calazans. Pombal e o Brasil, In: Jos Tengarrinha (Org.). Histria de Portugal. Bauru: EDUSC; So Paulo: Editora da Unesp; Lisboa: Instituto Cames, 2001.; ALMEIDA, Rita Helosa de. O Diretrio dos ndios: um projeto de civilizao dos ndios do Sculo XVIII. Brasilia: Editora da UnB, 1997.; PERRONE- MOISES, Beatriz. ndios livres e ndios escravos: os princpios da legislao indigenista do perodo colonial, In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das letras, 1992.; SAMPAIO, Patrcia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislao e desigualdade na colnia: Sertes do Gro- Par, c. 1755-c. 1823. Niteri: UFF (Tese de Doutorado) 2001.; SALDANHA, Suely Maris. Fronteiras dos sertes: conflitos e resistncia indgena em Pernambuco na poca de pombal. Recife: UFPE (Dissertao de Mestrado) 2002.; PIRES, Idalina Maria da Cruz. Resistncia indgena nos sertes nordestinos no ps-conquista territorial: legislao, conflito e negociao nas vilas pombalinas, 1757-1823. Recife: UFPE (Tese de Doutorado) 2004.; LOPES, Ftima Martins. op cit., 2005. 21. 21 Definio das fontes e metodologia entendendo e adotando o conceito de Histria enunciado por Raimundo Arrais, que a concebe como sendo: [...] um campo onde se travam batalhas no apenas entre exrcitos, mas tambm pelo poder de enunciao. O resultado dessas batalhas define o apagamento, seno o obscurecimento, da memria de uns sujeitos e a nfase na memria de outros [...]21 . Desta forma, estudar as sociedades indgenas no tarefa fcil, uma vez que o perodo que estudamos era um momento em que prevalecia a ideia de superioridade europeia e que os documentos do perodo estavam a servio da afirmao do direito europeu, e como nosso objeto de estudo era considerado inferior, sua Histria foi relegada a segundo plano. Mas, so exatamente estas lacunas, que nos inspira a investigar e tentar discutir tais fatos que por tanto tempo foram camuflados pela historiografia dos vencedores, servindo apenas como pano de fundo para a narrativa dos grandes colonizadores europeus, que vieram resgatar da perdio os selvagens do novo mundo. Para desenvolver nossos estudos, utilizamos, basicamente, os documentos manuscritos do Conselho Ultramarino, do Arquivo Pblico Jordo Emerenciano (APEJE) e do Arquivo da Biblioteca Nacional que dispe em seus acervos de leis, cartas, peties, documentos de rgo de controle. Tambm utilizamos textos de cronistas e viajantes que abordam o indgena, buscando compreender o contexto da pesquisa. Assim pretendemos utilizar os documentos para analisar a permeabilidade e a flexibilidade que marcaram os contatos/relaes entre a Coroa, os colonos e os prprios indgenas, bem como as polticas de alianas e guerras entre os mesmos. Sendo a escrita da Histria entendida a partir de relaes que se formam e se estabelecem entre um lugar social definido, um procedimentos de anlises e a construo de um texto22 precisamos ter em mente que estes escritos refletem o pensamento do seu tempo, e como tal, esto repletos de juzos de valor. No caso das relaes coloniais na Amrica, muitos documentos apresentam o ndio como culturalmente inferior ao europeu. Tais imagens foram, durante muito tempo, reproduzidas na Historiografia nacional, exigindo, por isso, muito cuidado nas anlises destes discursos. Devemos rever conceitos e quebrar com estas ideias do indgena passivo, submisso, selvagem, propondo novas abordagens e reflexes sobre a temtica em questo, procurando entender os nativos em sua alteridade. 21 ARRAIS, Raimundo. O pntano e o riacho: a formao do espao pblico no Recife do Sculo XIX. So Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004, p. 10. 22 CERTEAU, Michel de. Op. cit., p. 66. 22. 22 Com isso, acreditamos que a chamada Nova Histria, atravs das pesquisas e das anlises de documentos, possibilita outros olhares sobre as sociedades indgenas, fornecendo informaes que tm contribudo para ressaltar a complexidade cultural, e a importncia destes ndios na Histria do Brasil, pois segundo Ricardo Medeiros, diante de Uma grande quantidade de documentos burocrticos oficiais [...]. Foram priorizadas sobre a cultura, a localizao espacial, formas de contato, explorao da mo-de-obra, e as tentativas de sua destruio ou incorporao cultura dominante23 . Com a perspectiva da denominada Nova Histria Cultural, os estudos historiogrficos podem ser tomados como um lugar de reflexo e escrita em que a multiplicidade e a complexidade dos diferentes grupos humanos so objetos de reflexo. Assim, o ser humano colocado como um produto cultural a partir dos seus modos de viver, sentir, agir e pensar, como afirmou Clifford Geertz: O homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu [...] assumo a cultura como sendo essas teias e a sua analise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura de significados24 . Este fato por si s admite a relevncia de estudar a diversidade humana para alm dos fatores polticos e econmicos como preconizaria uma historiografia mais ortodoxa. Tambm baseados nesta ideia de teia, podemos repensar na histria dos grupos indgenas, para alm da sua cultura, e traando sua relao com o mundo que o portugus criou, tambm como construtor deste espao. Em outras palavras, o estudo sobre o indgena implica visualizar o nativo em suas mltiplas dimenses ao utilizar a interdisciplinaridade terica, ampliando o campo de viso sobre as sociedades humanas. Graas a esta interdisciplinaridade, foi possvel ampliar o campo de viso a respeito das vivncias cotidianas, possibilitando perceber a Histria como um espao de experincias humanas interligada a fatores diversos, a qual faz com que reconheamos que nossas produes so reflexes histricas baseadas em teorias e metodologias que selecionam outras abordagens para analisar, como por exemplo, a histria dos que tradicionalmente foram encobertos pelas grandes aventuras, fatos e heris. As sociedades indgenas estudadas por esse vis pode ser uma resposta diante de tantas limitaes e dificuldades encontradas para compreenso da complexidade dos povos nativos. Nas palavras de Peter Burke: 23 MEDEIROS, Ricardo Pinto. Povos indgenas do Serto nordestino no Perodo Colonial: descobrimentos, alianas, resistncias e encobrimentos. In: Fundhamentos. So Raimundo Nonato (PI), V1, n 2, 2002, p. 07-52. 24 GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 4 23. 23 [...] a nova histria comeou a se interessar por virtualmente toda a atividade humana. Tudo tem uma histria, ou seja, tudo tem um passado que pode em princpio ser reconstrudo e relacionado ao restante do passado. [...] O que era previamente considerado imutvel agora encarado como uma construo cultural, sujeita a variaes, tanto no tempo quanto no espao25 . Com a ampliao do nosso objeto de estudo, o historiador deixou simplesmente de contar os fatos, pois no mais se acredita que o pesquisador revela um suposto passado- coisa, para usar a expresso de Jacques Le Goff, que estaria organizado e pronto espera de ser divulgado. Descobrimos que a Histria plural, assim como o passado que a narra, e por isso no pode ser reduzida a uma nica forma e contedo26 . Assim, o historiador no pode se resumir a um coletor e repassador de informao, porque o documento j no uma janela transparente para o passado como disse Nietzsche, a partir da qual, a realidade se mostra nitidamente, mas uma materialidade, um discurso tambm, ou um monumento, na expresso de Michel Foucault, acmulo de interpretaes superpostas27 . Por isso o historiador um edificador, um crtico que atravs de fontes adquiridas em documentos constri novas vertentes, plantando novos questionamentos sobre a Histria. Este comportamento no apenas resgata o que j ntido, mas tambm, o que por algum motivo se encontra encoberto. O eurocentrismo foi e ainda persiste na base construtiva da nossa Histria, faz parte da anlise crtica do pesquisador interpretar os cdigos binrios, as dualidades, e realizar uma pesquisa que no d preferncia ao arbitre entre o bom e o mal, mas, tentar analisar e esclarecer o porqu do comportamento dos personagens histricos. Para entender o contexto que nos levar s situaes encontradas, no perodo abordado por este trabalho de dissertao, comeamos discutindo no primeiro captulo, intitulado (RE)INVENTANDO MUNDOS: rupturas e permanncias na poltica indigenista colonial, discutimos, traando um panorama, como foi estruturada e planejada a polticia indigenista ao longo do perodo colonial, e como aconteceu as mudanas do tratamento dispensado aos ndios em relao administrao dos aldeamentos, e de que forma a Coroa defendia a possesso de sua nova colnia. Para o captulo O TEMPO DOS HOMENS PRTICOS: o Diretrio dos ndios em Pernambuco, trabalho, educao e comrcio novas estratgias para a civilizao dos indgenas, tomamos como base a proposta dos estudos ps-colonialistas que propoem 25 BURKE, Peter (Org.). A escrita da Histria: novas perspectivas. So Paulo, UNESP, 1992. 26 RAGO, Margaretti; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (Orgs). Narrar o passado, repensar a Histria. Coleo Idias 2, So Paulo: Unicamp, 2000, p. 9 27 RAGO, Op.cit., p. 10 24. 24 medidas de desconstruo dos discursos produzidos que formaram uma viso de superioridade do Ocidente em oposio ao Oriente, na qual a cultura, os conceitos e esses saberes foram tambm colonizados na medida que a relao entre identidade x alteridade legitimam prticas de poder de um grupo sobre o outro. Considerando que no h imparcialidade na produo dos discursos e saberes, voltamos nosso olhar para os documentos produzidos na poca, refletindo como estes registros foram produzidos e a quem serviram estas informaes. A partir da legislao e sua proposta de adaptao, encontramos um governo preocupado em legitimar o uso da lei justificando suas alteraes como medidas importantes para o sucessso do empreendimento. O Diretrio dos ndios justifica tambm a mudana de paradigma como fator essencial, visto que o estado em que os ndios se encontravam eram responsabilidades dos antigos repsonsaveis por sua administrao, apontando os meios necessrios para garantir o sucesso da nova poltica. No terceiro captulo intitulado como TRANSFORMANDO AS ZONAS ESTRANHAS EM ESPAOS COLONIAIS: o Diretrio Pombalino como projeto de civilizao portuguesa nos incultos sertes pernambucanos, esboamos um quadro da aplicao dessa lei nos sertes da Capitania de Pernambuco, apresentando as necessidades de sua aplicao atreladas ao discurso sobre o espao/ambiente tambm como legitimador da nova politica. Abordamos tambm, a estratgias utilizadas para a transformao do espao no lugar da civilizao e as resistncias e lutas que marcaram este perodo. Por fim, apresentamos um dos resultados/consequncias que a lei trouxe para o espao estudado e o impacto causado nas comunidades indgenas. 25. 25 CAPTULO 1 (RE)INVENTANDO MUNDOS: rupturas e permanncias na poltica indigenista colonial. O principal objetivo deste captulo o de contextualizar o sistema de ocupao territorial e as polticas indgenas e indigenistas que o moldaram, apontando esta ao como um processo condicionado pela atuao dos vrios agentes sociais, como a Igreja, os colonos e os ndios. Dentre estes sujeitos, tomaremos como base a Igreja Catlica Romana por entender que seus projetos foram a pea chave que estruturou, guiou e participou ativamente da implantao da colnia. Num Imprio onde a Igreja e o Estado se complementavam, a religio foi uma poderosa aliada da colonizao, que , por ns, entendida como parte de um projeto que buscou no apenas a ocupao e explorao econmica das terras, mas tambm a incorporao/acomodao ao sistema das pessoas que aqui habitavam, no caso os indgenas. Neste sentido, Portugal transplantou para a Terra de Santa Cruz no apenas colonos/conquistadores, mas tambm os padres com a misso de direcionar, regrar, modificar e corrigir os ditos maus hbitos dos indgenas, para com isso traz-los civilidade. Desta forma, os religiosos representaram duas figuras: a do colonizador e a da f crist. Todavia, apesar de terem plenos poderes para atuar na conquista da colnia, no foram os nicos agentes deste processo, por conta disso, tiveram de lidar com as inconstncias e negao dos nativos e a insubordinao, autonomia e revolta dos colonos. Portanto, o processo de submisso f crist no foi to simples como se parece, tampouco pacfica como foi estruturada. Na prtica, a colonizao passou por diversos problemas e arestas que se moldaram ao longo do processo e conforme a dinmica local permitia e/ou exigia. Assim, o que era entendido como uma ambiguidade e incoerncia da poltica adotada , por ns, compreendido como medidas necessrias a implantao da colnia, uma vez que os ndios no foram passivos a este processo, tambm se posicionaram e foram atuantes neste processo. E tomando Serge Gruzinski como referncia, precisamos entender que a chegada dos europeus na Amrica foi um perodo de muitas turbulncias e sinnimo de desordens e caos. Com isso em mente, tentaremos apontar como estas adaptaes foram peas chave para a manuteno da empresa colonial. 26. 26 1.1 A misso como alicerce da poltica indigenista Quando os europeus aportaram no chamado Novo Mundo e se depararam com o nativo, teve incio um longo processo problemtico que envolvia o relacionamento entre ambas as partes. As consequncias deste contato j foram bem discutidas e j so conhecidas. O europeu assumiu a atitude de dominador conquistando o territrio e tentando submeter seus habitantes, os indgenas, aos seus costumes, pois, com o passar do tempo, as prticas dos amerndios tornou-se ameaadora com suas relaes scio-culturais negativa/demonaca, sendo considerada um obstculo ao sucesso do empreendimento colonial no apenas por amaldioar a terra, mas tambm por ser considerado um obstculo ao sucesso do empreendimento colonial. E ainda, o modo de vida dos grupos indgenas ser alvo de relatos de homens que, muitas vezes, descrevem o que no entendem, fazendo com que redimensionem o que visto para os moldes do que lhes conhecido28 . No decurso da conquista o europeu utilizou de vrios expedientes para submeter os nativos, utilizando desde a guerra e matana indiscriminada, at a tentativa de fazer com que o outro (o indgena), assimilasse suas relaes scio-culturais pela imposio da moral do trabalho e da cristianizao pela catequese. Tentava-se isso com os ndios aldeados. As dinmicas internas das sociedades nativas tambm foram muito utilizadas pelos invasores europeus, e deu o tom mltiplo e variado das aes de cada grupo indgena, que interpretaram, a partir das suas relaes scio-culturais e de interesses particulares e grupais, a presena e ao do elemento branco no seu territrio, direcionando o seu posicionamento frente ao outro29 . Em Pernambuco, as etnias que viviam na costa se aliaram aos colonos, compartilhando de seus interesses, em muitos momentos, trocando escravos e escravas por ferramentas, atravs de alianas pelo lao do casamento, ajudando na instalao dos engenhos e na conquista de novos territrios.30 Os ndios que resistiriam ao sistema foram considerados inimigos da Coroa. Desta forma, o mito ednico do selvagem no durara um sculo; em seu lugar, apareceu um ndio feroz, o senhor da terra, traioeiro e impiedoso. O missionrio, [...] no se deixou seduzir pela imagem crist da inocncia, sugerida pela carta de Pero Vaz de Caminha [...]31 . 28 SILVA, Geyza, op. cit., 2004, p. 25 29 Idem, p. 48 30 Ibidem, p. 70/ 71 31 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formao do patronato poltico brasileiro. So Paulo: Globo, 2008, 27. 27 Nesse sentido, o sistema colonial portugus instaurou uma poltica indigenista que fragmentou a populao nativa em dois grandes grupos: os aliados e aldeados e os no- aliados. Para estes ltimos considerados inimigos dos portugueses, eram dirigidas aes e representaes contrastantes. Os procedimentos adotados foram, genericamente falando, a catequizao reservada para os grupos aliados; porm, para os indgenas contrrios a este processo acusados de prejudicar o sucesso da colnia, eram obrigados a trabalhar como escravo por meio de mecanismos como, por exemplo, escravizao ou reduo forada, atravs das misses32 . Na poca das conquistas, os reis de Portugal tinham seu poder temporal ligado ao poder espiritual, tornando-se uma unio indissolvel e corporificada no exerccio do Padroado. Este, de acordo com Charles Boxer33 , pode ser definido como uma combinao de direitos, deveres e privilgios que so concedidos pelo papado Coroa portuguesa como patrona das misses e instituies catlicas romanas nos seus territrios e alm-mar. Na prtica, o Padroado concedia aos reis catlicos o direito de administrao dos negcios eclesisticos, tornando-os chefes da Igreja Catlica Romana nas suas possesses. Suas funes abarcavam alm da expanso da f catlica, mediante a construo e manuteno dos templos e do clero, a ajuda na implantao e administrao dos espaos coloniais e ordenao social, atravs do controle das prticas dos moradores, colonos e ndios. Assim, durante a implantao da colnia portuguesa nas Amricas, os padres culturais europeus eram permeados por um forte sentimento religioso e vigiados duramente pela Igreja Catlica que, em terras lusitanas, era controlada pelo Rei. Devido a isto a presena portuguesa desde cedo significou o incio da atividade missionria na terra brasilis. Desta forma, o Brasil nasceu sombra da cruz que representava o poder da Igreja e da espada imposta pela presena de colonos com habilidades de soldados. O esforo era grande para vencer as adversidades da terra e os costumes gentlicos. O primeiro passo foi a imposio da f crist, meio considerado mais eficaz para a submisso dos indgenas, por meio das ordens religiosas. Igualmente, a histria da colonizao da Amrica portuguesa se confunde com a histria, dando esforo de promover a evangelizao crist de seus habitantes naturais. Os primeiros missionrios a iniciar o trabalho de catequese junto aos ndios foi a p. 179 32 Ver SILVA, Geyza. op. cit. e Beatriz Perrone-Moiss. ndios livres e ndios escravos: os princpios da legislao indigenista do perodo colonial (sculos XVI a XVIII). In: Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. Ambas autoras exploram estes conceitos de aliados e no-aliados. 33 BOXER, Charles. O imprio martimo Portugus 1415-1825. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. 28. 28 Ordem Franciscana que at 1549 era a nica a se dedicar a tal responsabilidade nas terras de Santa Cruz conforme atestou Glauce Burity34 , prestando relevantes servios Coroa portuguesa na pacificao dos grupos considerados rebeldes anunciando a doutrina de Cristo. Depois dos Franciscanos, diversas ordens religiosas foram introduzidas na colnia, dentre elas, se destacaram: os Jesutas, Capuchinhos franceses e italianos, os Carmelitas e Oratorianos35 . Sem falar nos sacerdotes seculares que em diversos momentos tambm administraram aldeamentos que se encontravam sem missionrios. O aldeamento religioso foi um dos elementos da poltica de catequese indgena posta em prtica no Brasil pela Igreja Catlica com total apoio da Coroa. O trabalho das ordens religiosas foi muito importante para a consolidao do Estado portugus na Amrica. A atuao dos missionrios com os ndios no perodo colonial deu-se efetivamente nesses espaos, tambm conhecidos como misses, que foram criados para facilitar o trabalho de converso e, ao mesmo tempo, cooperar com o processo de colonizao atravs do fornecimento de mo de obra e pacificao dos nativos36 . Embora tenham sido os Franciscanos os pioneiros na evangelizao dos ndios nas primeiras dcadas da colonizao, a ordem religiosa no se estabeleceu com aldeamentos e residncias fixas. Suas misses foram prejudicadas, pois, segundo Frei Jaboato, os Franciscanos eram submetidos e influenciados na deciso de abandonar a catequese indgena, [...] por causas particulares, violncias dos que governavam, ambio dos Principais, interesse dos Procos, e emulao de Religiosos de outra Famlia, de que se seguiam aos nossos, sditos, e Prelados, turbaes, contendas, calunias, e outros graves, e quotidianos incmodos, [...], foram os nossos desobrigados desta pesada carga,[...]37 Neste trecho escrito pelo Frei Jaboato, encontramos indcios dos conflitos que envolveram os diversos atores do mundo colonial. Entraves com outros missionrios, desentendimento com as diversas autoridades locais, embaraos com os nativos, bem como as inmeras reclamaes geradas pelos colonos levaram os Franciscanos, em 1619, a abandonarem a converso indgena, encerrando o seu trabalho missionrio. Aps se retirarem 34 BURITY, Glauce Maria Navarro. A presena dos Franciscanos na Paraba. atravs do Convento de Santo Antnio. Rio de Janeiro: Bloch, 1988, p. 25. 35 CAVALCANTI, Alessandra Figueiredo. Aldeamentos e poltica indigenista no bispado de Pernambuco sculos XVII e XVIII. Recife: UFPE, 2009, p.36 ( Dissertao de Mestrado em Histria) 36 CAVALCANTI, op. cit. 2009, p. 40-41. / SOUSA, Mnica Hellen Mesquita. Misso na Ibiapaba: Estratgias e tticas na Colnia nos sculos XVII e XVIII. Fortaleza: UFC. 2003, p. 12 (Dissertao de Mestrado em Histria) 37 JABOATO, Antonio Santa Maria de. Novo Orbe Serfico Braslica ou crnica dos frades menores da provncia do Brasil (1761). Rio de Janeiro: Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. 1 vol. 2 parte, p. 363. 29. 29 da catequese indgena, dedicaram-se meramente a ministrar o culto e os sacramentos para os moradores das vilas e povoados. S em 1705 foi quando os Franciscanos voltaram a aceitar o trabalho missionrio, desta vez na misso dos Cariris, no serto paraibano. Com as constantes queixas relacionadas s misses indgenas, fez-se necessrio a implantao de um instrumento regulador para direcionar e mediar os conflitos. Foi assim que, em 1655, em Lisboa, foi criada a Junta Geral das Misses. Por Carta Rgia datada de 7 de maro de 1681, a Junta das Misses foi instaurada em Pernambuco. De acordo com Pedro Puntoni38 , diversidade das ordens religiosas envolvidas na implantao da colnia, atuando diversamente uma da outra, bem como a necessidade da Coroa portuguesa em controlar o processo decisrio, foi que transportou para alm-mar a Junta. Nesse sentido, ela tinha por obrigao conferir a nomeao dos religiosos que iam para as aldeias administrar as atividades envolvidas, bem como controlar os negcios tratados nas misses. Em suma, essas prticas eram uma forma da Coroa estender sua fora e poder sobre os religiosos, mediando os conflitos existentes. Para garantir a eficcia da converso dos ndios, a poltica dos aldeamentos permanentes foi implantada, haja vista no era raro encontrar queixas de retorno aos velhos costumes considerados pagos na ausncia dos padres. Dentro da mentalidade europeia, acreditava-se que a colnia era habitada pelo maligno, sendo necessrio, portanto, conforme afirmou Serafim Leite, destruir em cada um o pendor multi-secular da sua prpria psicologia, afeita a antropofagias, poligamias e outros vcios carnais, e gula, em particular bebedeiras, ajuntando-se a isto o seu nomadismo intermitente39 . A mobilidade indgena era um fator que prejudicava muito a catequese, pois exigia do missionrio a procura constante dos redutos indgenas que cada vez mais adentravam na mata, procura de alimento e fugindo do litoral ocupado pelos portugueses. Esta constante busca pela catequizao representava uma dura tarefa que deveria ser reafirmada a cada dia. A institucionalizao das ordens religiosas na colnia se deu com a instalao de conventos, colgios, igrejas e da efetivao das misses as quais poderiam ser fixas ou volantes, disseminando a proliferao de smbolos religiosos, tais como cruzeiros, oratrios e imagens. Essas instalaes possibilitaram a ao missionria junto aos 38 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Brbaros: povos indgenas e a colonizao do Serto Nordeste do Brasil, 1650 1720. So Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de So Paulo: Fapesp, 2002. 39 LEITE, Serafim. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugal; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1938-1950. 10 v. il. p.7 30. 30 aldeamentos indgenas40 . Essas aldeias eram um espao nos quais os nativos seriam reunidos e administrados pelos padres, que nas atividades cotidianas moldavam os ndios para a vivncia crist com vigilncia constante. Os missionrios com a fixao em um local tambm ficaram livres de procurar pelos grupos indgenas que constantemente mudavam de lugar. Os aldeamentos tambm so apontados como uma conteno militar, e tambm serviam para obteno de trabalhadores para os colonos e soldados na defesa do territrio41 . Do mesmo modo, esses locais foram apontados como reduto nos quais os indgenas puderam sobreviver e (re) inventar seu cotidiano, fugindo do extermnio42 . Inicialmente a poltica dos Aldeamentos foi posta em prtica com o deslocamento de populaes indgenas de seus territrios para aldeias fundadas no litoral, sendo elas situadas prximas s povoaes coloniais atravs dos Alvars de 21/08/1582 e Proviso Rgia de 01/04/1680, entre outros [...]43 . A proximidade das vilas possibilitava a utilizao das aldeias como barreira e mo-de-obra para os moradores das vizinhanas. Os missionrios eram os administradores dos aldeamentos e detinham o poder poltico, cultural, social e econmico sobre os nativos, tinham ao livre dentro das misses, apesar de algumas ordens deverem obedincia ao Estado, atravs do Padroado, representado pelo governador da Capitania. Com pensamentos e expectativas diversas, o lema dos colonos era a submisso para integrao dos indgenas ao sistema. A legislao indigenista foi lanada tambm para conter os problemas das relaes entre colonos e ndios. Geralmente, o problema era a escassez de mo-de-obra, mas tambm havia queixas dos moradores acerca dos ndios, como a destruio de suas lavouras e o roubo de gado44 . A Companhia de Jesus, por exemplo, adotou diversas estratgias para catequizao dos indgenas, dentre elas estava a converso do chefe da comunidade que tinha o poder de influenciar os demais. Pois, desta maneira os ndios poderiam ser convertidos e controlados com mais facilidade. Esta estratgia foi utilizada por Manoel da Nbrega, para subordinar e 40 OLIVEIRA, Joo Pacheco de; FREIRE Carlos Augusto da Rocha. A presena indgena na formao do Brasil. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade. LACED/Museu Nacional, 2006, p. 48 41 FAORO, op. cit., p. 231; CAVALCANTI, op. cit., p. 119; BAETA, Lus Felipe. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e represso cultural. Rio de Janeiro: Forense/Universitria, 1978, p. 114. 42 Maria Regina Celestino de Almeida aborda este direcionamento em seus trabalhos. 43 Cf. CUNHA, op. cit. p. 118; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Os luso-brasileiros em Angola: constituio do espao econmico brasileiro no Atlntico Sul, 1500-1700. Tese de Livre-docncia. Campinas: 1994, p. 81. Apud PUNTONI, Pedro. Op.cit., p. 54 44 LOPES, Ftima Martins. Misses religiosas: ndios, colonos e missionrios na colonizao da Capitania do Rio Grande do Norte. Recife: UFPE, 1999. (Dissertao de Mestrado em Histria). 31. 31 convencer um Paj, atravs do dilogo, a aceitao dos costumes europeus e religiosidade catlica, fazendo-o agente da civilizao: Procurei encontrar-me com um feiticeiro, o maior desta terra, ao qual chamavam todos para os curar em suas enfermidades; e lhe perguntei em virtude de quem fazia ele estas coisas e se tinha comunicao com o Deus que criou o Cu e a Terra e reinava nos Cus ou acaso se comunicava com o Demnio que estava no Inferno? Respondeu-me com pouca vergonha que ele era Deus e tinha nascido Deus e apresentou-me um a quem havia dado a sade, e que aquele Deus dos cus era seu amigo e lhe aparecia frequentes vezes nas nuvens, nos troves e raios; e assim dizia muitas outras coisas. Esforcei-me vendo tanta blasfmia em reunir toda a gente, gritando em vozes altas, mostrando-lhe o erro e contradizendo por grande espao de tempo aquilo que ele tinha dito [...] Finalmente ficou ele confuso, e fiz que se desdissesse de quanto havia dito e emendasse a sua vida, e que eu pediria por ele a Deus que lhe perdoasse: e depois ele mesmo pediu que o batizasse, pois queria ser cristo, e agora um dos catecmenos45 . Identificamos atravs deste excerto, por meio da oratria, os padres argumentavam, com os lderes indgenas utilizando as brechas do seu discurso para apontar as falhas e assim convencer a todos a se tornarem cristos, desta forma, podemos entender um pouco como a atividade missionria era realizada. Esta talvez tenha sido uma das metodologias mais difceis, pois era exigido que o missionrio conhecesse as relaes scio-culturais e simblicos do grupo, o que inclua a ordem poltica, social e prticas religiosas para a construo dos contra-argumentos utilizados nos discursos. Para sua eficcia, estes deveriam ser proferidos na lngua nativa. A fim de garantir o sucesso das misses, os padres deveriam ser dotados de qualidades mpares que o Frei Martinho de Nantes classificou no final do Sculo XVII como: 1- conhecimento da lngua da tribo; 2- amor aos filhos da selva; 3- desprendimento de bens terrenos; e 4- firmeza na castidade, pois a mulheres indgenas se ofereceriam a qualquer homem46 . Mas no era apenas o preparo do missionrio que determinava o sucesso de sua obra. Outras dificuldades para o xito do pregador eram, por exemplo, os nativos que facilmente esqueciam os ensinamentos cristos e voltavam a praticar seus costumes. Para Cristina Pompa, a evangelizao era mais que uma imposio; era um processo de tradues mtuas, que a linguagem religiosa parece tornar-se o terreno de mediao, na qual missionrios e indgenas viam outros reflexos de suas prticas scio-culturais. Diante desta interao durante o processo de evangelizao/traduo, criaram-se novos paradigmas, no qual os indgenas propensos a aceitar a ideologia missionria, modificavam-lhe os sentidos, introduzindo-os aos 45 NBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia/So Paulo: Edusp, 1988, p. 95 46 CAVALCANTI. op. cit., p. 49 32. 32 seus costumes47 . O capuchinho francs Martinho de Nantes deixou relatos das dificuldades na converso, no qual conta que durante muito tempo no batizou nenhum ndio, apenas dava a extrema uno aos adultos que se encontravam beira da morte devido incerteza dos ncolas em permanecerem na f. O capucho s fazia o batismo depois de os ndios demonstrassem ter se convertido verdadeiramente, e mostrando [...] sinais e provas de seu desejo de tornar-se cristo pela fidelidade s prticas respectivas, de forma que queremos ter cristos pelas obras antes que pelo nome48 . O missionrio, por vezes, dizia que muitos acreditavam que era impossvel a converso dos indgenas, pois suas atitudes eram variadas. Havia os que eram mais dceis, que se convertiam facilmente; bem como os dissimulados que fingiam a converso, e outros que eram indceis e perversos, por serem muito dedicados as suas cerimnias pags e, alm disso, muitas vezes, pervertiam os ndios j convertidos. No trecho abaixo, percebe-se como a converso era fluida: Os Padres da Companhia ensinara um destes ndios, por sentirem nele habilidade, a ler e a escrever, canto e latinidade, e ainda algum pouco das artes, mostrando-se ele em tudo mui gil e de bons costumes; chegaram a lhe fazer dar ordens menores, e cuido que ouvi dizer que tambm a epstola e evangelho, para o ordenarem em sacerdote de missa. Mas o bom do ndio, obrigado de sua natural inclinao, amanheceu um dia despido, e se foi com outros parentes seus, para o serto, aonde exercitou seus brbaros costumes at a morte, no se alembrando dos bons que lhe haviam dado.49 Se mesmo com a fixao dos missionrios nas aldeias e o controle da catequizao os nativos ainda buscavam maneiras de fugir da doutrinao, percebe-se claramente que diariamente os padres tentavam controlar ao mximo o tempo dedicado aos ensinamentos cristos, assim, o sistema de aldeamento seria o mtodo mais eficaz. Estes foram regulamentados em Alvar em 1700, confirmado pela lei de 04/07/1703, na qual a Coroa determinava que, em cada misso, haveria uma lgua de terra em quadra para a manuteno do aldeamento dos ndios e dos padres. A lei determinava tambm que nestes espaos deveriam ter no mnimo cem casais. Esta foi uma soluo encontrada onde El-Rei procurava assegurar meios para constituir os aldeamentos e pr certos limites aos interesses dos colonos50 . 47 POMPA, Cristina. Religio como traduo: missionrios, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru, So Paulo: EDUSC, 2003 48 NANTES, Martinho de. Relao de uma misso no Rio So Francisco: relao sucinta e sincera da misso do padre Martinho de Nantes, pregador capuchinho, missionrio apostlico no Brasil entre os ndios chamados cariris. So Paulo: Ed. Nacional, 1979, p. 10; 18. 49 BRANDO, Ambrsio Fernandes. Dilogos das grandezas do Brasil. 1. ed. Recife: Universidade do Recife, 1962, p. 239 240. 50 CAVALCANTI, Op. cit., p. 39 33. 33 Luiz Felipe de Alencastro, em Os luso-brasileiros em Angola, argumentou que o descimento e as misses tinham por objetivos criar aldeamentos de ndios mansos que protegeriam os moradores dos ndios ainda bravos. Estes lugares, alm dessa funo, circunscreviam as reas coloniais, impedindo que os escravos fugissem das fazendas e dos engenhos para a floresta tropical. Enfim, as autoridades e os moradores estimulavam os descimentos de indgenas a fim de manter contingentes de mo-de-obra nas proximidades das vilas e dos portos51 Neste universo em criao, Florestan Fernandes52 observou que o projeto colonizador possua trs vertentes, dividindo os atores sociais da seguinte maneira: o colono, que ele considerou o agente efetivo da colonizao, para os quais, utilizava a submisso indgena atravs da escravido; o administrador ou agente da Coroa, que compartilhava e comungava dos interesses indicados, mas que era forado a restringi-los ou a ameniz-los, devido a presses externas; e os Jesutas, cujas atividades contrariavam, com frequncia, os interesses dos colonos e, mesmo, as convenincias da Coroa, mas concorriam igualmente para atingir o fim essencial, que consistia em destruir as bases da autonomia das sociedades nativas e reduzi-las dominao do no-ndio. Ainda de acordo com Florestan Fernandes, os Soldados de Cristo, como eram conhecidos os Jesutas, operavam como autnticos agentes da colonizao, uma vez que apesar dos motivos espirituais que os inspiravam, funcionavam como agentes da destribalizao dos ndios, destruindo seus costumes ancestrais e colocando-os de forma vulnervel submisso do branco colonizador. Geyza Kelly da Silva, ao abordar a identidade indgena, percebendo algumas aes movidas pelos indgenas, discutiu a ressignificao e reconstruo da cultura indgena, tratando a adaptao ao aldeamento como estratgia de se afirmar etnicamente e modo de sobreviver na sociedade colonial53 . Maria Regina Celestino de Almeida tambm tratou as aldeias como espao de ressocializao dos povos indgenas, espao que, alm de cristo e portugus, foi tambm de ndios, e que tornou possvel a (re)criao das identidades indgenas. Em sua perspectiva, os aldeamentos no foram lugares onde somente ocorreram perdas culturais e tnicas; foi um espao onde estes ndios puderam desenvolver prticas scio-culturais e polticas que lhes permitiam colaborar e tambm negociar com a sociedade colonial para adquirir possveis vantagens54 . 51 Cf. ALENCASTRO. Op. cit. 52 FERNANDES, Florestan. Organizao social dos tupinambs. So Paulo: Ed Hucitec, 1989 53 SILVA, Geyza. Op. cit. 54 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indgenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais 34. 34 Apesar de serem considerados ideais para a converso e administrao dos indgenas, nem todos os religiosos tinham o perfil desejado pela Coroa e pela Igreja, que seria o de doutrinar os nativos a viverem conforme os desgnios cristos, que era a base da sociedade lusa. Assim, vrias foram as denncias e pedidos das autoridades locais para o envio de religiosos para assumirem as misses. A situao mais difcil era nos locais mais afastados dos centros administrativos da Capitania de Pernambuco, como por exemplo, no Cear, onde atravs de uma Carta do Governador de Pernambuco, Henrique Lus Pereira Freire de Andrada ao Rei, pediu que fossem enviados Jesutas para os aldeamentos, pois os que l se encontram no eram suficientes ou no possuam as qualidades necessrias para a converso dos indgenas55 . Muitos aldeamentos ficavam ausentes de missionrios o que se confirma atravs dos pedidos enviados pelas autoridades locais para a vinda de religiosos. Em vrias ocasies, tem- se o registro da atuao de clrigos seculares nos aldeamentos, devido falta de religiosos regulares nas aldeias indgenas. De acordo com Alessandra Cavalcanti, citando o Padre Arlindo Rubert, a presena dos clrigos seculares nos aldeamentos cresceu da mesma forma que as misses nas capitanias abrangidas pela jurisdio do Bispado de Pernambuco, passou de 7 clrigos em 1687 para 30 clrigos em 173356 . Estes padres seculares foram criticados porque dizia-se que suas maiores preocupaes eram com questes temporais, o que nos e enquadrava com o perfil desejado para os missionrios, que deveriam dar mais ateno a cristianizao dos ndios. Desta forma, os seguidores de Incio de Loyola entendiam os aldeamentos como um salto qualitativo na catequese, pois teriam ali os nativos reunidos, o que os liberava do encargo de procurar as aldeias indgenas que mudavam de lugar, proporcionava a continuidade na vivncia crist, a vigilncia constante, a disciplina de horrios. Pode-se ainda apontar a conteno militar, que os impediria de se unir a estrangeiros e combater os portugueses, poderiam servir de trabalhadores e soldados. A questo do trabalho ocupava um lugar central na vida das aldeias, era importante retirar os catecmenos do cio e disciplin-los em relao aos horrios dedicados aos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 34. 55 CARTA do [Governador da Capitania de Pernambuco], Henrique Lus Pereira Freire de Andrada, ao Rei [D. Joo V], remetendo informaes sobre a Junta das Misses da dita Capitania; as dvidas a respeito dos conflitos existentes entre ndios, missionrios e paisanos por causa da demarcao da terra das aldeias, a exemplo do Cear; apontando os meios convenientes ao sossego de ndios e moradores. Anexos: 44 docs. Data de 13 de agosto de 1741. AHU_ACL_CU_015, Cx. 57. D. 4894. 56 CAVALCANTI, Op. cit, p. 49 35. 35 servios. A disciplina era palavra de ordem e os indgenas, assentados nas aldeias, trocaram a caa e a pesca pela agricultura e o cuidado com as lavouras. Um pequeno trecho do estudo de Serafim Leite demonstra como os jesutas davam importncia ao trabalho braal nas aldeias, acreditando ser um mtodo eficaz para a converso dos nativos. Os ndios andavam ocupados nas suas lavranas. E foi uma conquista da civilizao a regularidade no trabalho57 . Nesse universo (re)criado, os aldeamentos tambm serviram como refgio para alguns ndios escravizados, devido s prises ilegais de nativos feitas por colonos atravs do apresamento ilegal. A Coroa proibiu que ndios refugiados fossem tirados fora das aldeias, como tambm que os missionrios entregassem-nos aos seus supostos senhores, antes da deciso do Governador da Capitania, do Ouvidor Geral e depois de serem ouvidas as partes, para averiguar a condio de escravo do ndio. E mesmo se fosse provado estar na condio de escravido, se a razo de sua fuga para a aldeia fosse espiritual, havia ainda uma chance dele no ser entregue ao seu senhor58 . Seguindo esta linha de pensamento, as misses foram vistas no como um espao para o ndio na sociedade colonial, mas um lugar da cultura crist para a salvao e enquadramento do nativo aos moldes europeus, alm de servir estrategicamente como ponto poltico, geogrfico e militar para a Coroa portuguesa. Nesses locais, os indgenas foram inseridos dentro de uma nova lgica social, econmica, poltica e ecolgica, com as quais as diversas tradies scio-culturais de outras etnias em contato com as prticas crists se misturavam, forjando uma identidade nica e uniforme, de acordo com o modelo sdito-cristo, mas tambm puderam utiliz-lo para sobreviver e reescrever a sua histria utilizando estes ambientes, como ferramenta importante para a integrao uma sociedade em construo j apontado por Regina Celestino 59 . Alm de controlar a populao nativa, mantendo-a confinada, a Coroa planejava tarefas maiores: fazer do ndio um povoador para a imensa rea que tinha que ocupar, muito alm de sua capacidade demogrfica. Pedro Puntoni ressaltou que era uma estratgia da metrpole construir o domnio colonial atribuindo ao indgena o papel de povoador: Os autctones eram os nicos capazes de dar o conhecimento das terras e contribuir para as tropas com os homens necessrios s diversas guerras e escaramuas travadas entre os colonizadores e tribos que se manifestavam hostis, e entre colonizadores de diversas 57 LEITE, Serafim. Op. cit., . p. 93. 58 Livro de Registro de Cartas Rgias, Provises e Outras Ordens para Pernambuco do Conselho Ultramarino. AHU_ACL_CU_015, cdice 257. 11/01/1701 - Carta Rgia. fl. 65 59 SILVA, Geyza. Op. cit. p. 96. / ALMEIDA, Maria. op. cit., p. 34 36. 36 naes60 . Diante de relaes to complexas com objetivos to diversos e at contraditrios, explica-se que os atores envolvidos neste ambiente frequentemente entrassem em conflito, uma vez que a ocupao colonial foi um projeto sem volta, cada sujeito buscou a sua maneira se estabelecer e conquistar seu espao, que se tornou palco de diversas contendas e acusaes como veremos a seguir. 1.2 Conflitos no espao colonial: colonos, missionrios e indgenas. Vimos que, coube Igreja a tarefa de administrar e doutrinar os indgenas atravs da catequese. Com a reduo dos ndios em aldeias, os missionrios colocavam em prtica a misso assumida com a Coroa e com a Igreja, que era a incluso dos indgenas no sistema colonial em todos os sentidos, passando do econmico para o social, nesse espao reservado aos nativos, atravs de atividades cotidianas deveriam ser moldados aos interesses coloniais. Com a criao destes espaos, surgiram novos problemas decorrentes da monopolizao dos indgenas, causando conflitos entre os padres e os colonos. Os nativos, por sua vez, tambm souberam criar situaes que possibilitaram a implantao da sociedade colonial, da economia local e at mesmo os costumes dos colonos. As consequncias da implantao dos aldeamentos missionrios o que veremos a seguir. A condio de aldeado foi imposta pelos europeus aos grupos indgenas como um instrumento para enquadr-los na sociedade colonial e objetivava provocar, com isso, um esvaziamento e uma ruptura com os smbolos scio-culturais nativos. Todavia, esta perda no foi completa, uma vez que foi utilizada como instrumentos poltico e como recurso de negociao por parte de algumas etnias que se colocando na situao de aliado/aldeado garantiam uma situao vantajosa para o grupo e principalmente, para os seus lderes61 . Nota- se, com isso, que em momentos de desigualdade, a etnicidade pde e se manifestou, como uma grande conscincia poltica por parte dos grupos que buscam reverter uma lgica de dominao62 . Neste sentido, as lideranas indgenas tiveram um papel fundamental na formao e manuteno dos aldeamentos, pois o incentivo obteno e manuteno de alianas se 60 PUNTONI, Pedro. Op. cit. , p. 50 61 ALMEIDA, Maria. Op. cit., 2003 62 POUTGNAT, Philipp. Teorias da Etnicidade Seguido de grupos tnicos e suas fronteiras de Fredrik Bart. So Paulo. Fundao Editora da UNESP. 1998, p.103. 37. 37 revelou em vrios ttulos honorficos e recompensas dadas aos aliados O trabalho de Geyza Kelly da Silva citado acima abordou como as identidades indgenas foram se adaptando ao sistema a exemplo das etnias Tabajara e Potiguar que se alternavam no poder dos cargos de capito, tenente e sargento, das Ordenanas dos ndios, concedidos atravs de Mercs Rgias. Os cargos normalmente eram hereditrios, passados de pai para filho, mas as patentes tambm podiam ser transferidas em virtude de morte a outro lder indgena que poderia ser parente ou no: Confirmao de Domingos Pessoa Perrasco Tenente do gov. dos ndios da Capitania de PE, por falecimento de Antonio Pessoa Arcoverde.63 . As estratgias adotadas pela Coroa na administrao colonial criou um cenrio complexo com oportunidades para os diversos grupos sociais, inclusive os liderados por nativos. O exemplo disto, podemos citar o poder dos lideres Camaro e Arcoverde64 , a obteno dos postos de comando dos teros de ndios como tambm no de administrar as aldeias de Pernambuco, como ndios governadores65 . Assim, em um jogo de interesses que iniciou com trocas de favores, os lderes Camaro e Arcoverde tornaram-se cmplices das tramas colnias, e inseridos em um jogo de cooperao com os colonos, para serem reconhecidos como lideres indgenas no espao colonial. Eles tiveram de submeter-se aos cdigos e s leis dos colonizadores. Uma das principais atribuies dos aldeados e aliados era a de participar nas guerras movidas contra os ndios hostis e estrangeiros, sendo tambm encarregados de defender as vilas e plantaes dos ataques do grupo inimigo e as fronteiras das investidas dos inimigos de outras naes. Considerados homens livres, os aldeados deveriam ser tratados como tais e serem remunerados pelos servios prestados, o que recomendado inclusive por regimentos legais, pois os colonizadores tinham total conscincia de que dependiam desta ajuda para a manuteno da colnia. J com os ndios inimigos, o tratamento era o oposto. Se a liberdade era sempre garantida aos aliados e aldeados, a escravido , por outro lado, o destino dos ndios inimigos. Nesses momentos, as leis expressamente consideram o direito de guerra secundrio diante da importncia da salvao das almas, civilizao ou defesa da liberdade natural dos ndios, 63 Confirmao do Rei de patente ao Governo de Pernambuco 14/05/1703. AHU_ACL_CU_015 cd.124-ff 19 1v. 64 Para melhor aprofundamento no tema indicamos o trabalho de Juliana Lopes que mostrou como a fora das lideranas indgenas foi importante para mediar conflitos no espao colonial. 65 SILVA, Geyza. op. cit., p. 106 38. 38 constantemente ameaadas pelos desrespeitos dos colonos s leis66 . Em 20 de maro de 1570, D. Sebastio proibiu a captura de ndios que eram vendidos como escravos, a no ser por guerra justa. Contudo, em Pernambuco, antes mesmo da regulamentao da lei sobre a escravizao por guerra justa, Mem de S, Governador-Geral, j havia decretado a escravizao dos Caet na tentativa de reprimir as aes dos nativos que estavam em guerra contra os portugueses. Essa poltica de Mem de S para com os indgenas foi um reflexo da vontade da Coroa para submeter, a todo custo, os nativos dentro dos padres ditados pela Igreja ou pelo Estado. Desse modo, o Rei utiliza a guerra justa, como um instrumento de combate contra a resistncia ao projeto colonialista poltico e religioso. Todavia, a medida gerou alvoroo nas capitanias, provocando a busca desenfreada dos indgenas, pois muitos colonos promoveram guerras contra vrias etnias, inclusive os aliados, justificando serem Caet. As propores foram to grandes que entre os convertidos/aliados geraram revoltas e fugas dos aldeamentos por medo de se tornarem cativos. Diante deste contexto, Mem de S revogou a lei contra os Caet, mas no antes dela provocar grandes perdas nas misses e danos s naes aldeadas, no mesmo tempo se fez consultar sobre outra praga universal que despovoava as aldeias: e era esta a capa de uma sentena que fora promulgada contra os ndios caets, dando a todos por escravos, e toda a sua descendncia pela morte que deram ao Bispo D.Pedro Fernandes Sardinha.67 Com brechas na lei, a captura e escravizao dos ndios permaneceram, e a justificativa para tais atos era a expanso da f catlica e civilizao. Os ndios contrrios ao sistema resistiriam buscando o Serto como refgio. No perodo coincidente com o fim da guerra dos brbaros misses foram fundadas nos sertes, o que mostra como a poltica dos aldeamentos serviu como barreira de controle para pacificao dos nativos68 . No cotidiano do universo colonial, indgenas, missionrios, colonos, padres seculares e soldados lutavam pelo controle da mo-de-obra dos ndios, principalmente os aldeados, vistos que estes j estavam moldados para a vida na colnia. As trocas de acusaes eram frequentes 66 PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos: os princpios da legislao indigenista do perodo colonial (Sculos XVI a XVIII). In: Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das letras, 2009, p. 123. 67 VASCONCELOS, Simo de (1597-1671). Crnicas da Companhia de Jesus. Petrpolis, Vozes; Braslia: INL, 197, p.104. 68 POMPA, Cristina. Histria de um desaparecimento anunciado: as aldeias missionrias do So Francisco, sculos XVIII XIX. In: OLIVEIRA, Joo Pacheco de. A presena indgena no Nordeste: processos de territorializao, modos de reconhecimento e regimes de memria. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011 39. 39 principalmente entre os colonos e os missionrios. Ambos argumentavam que o outro explorava o nativo, os colonos acusavam os padres de no cumprirem com suas obrigaes religiosas e de negarem o fornecimento dos aldeados para o trabalho nas vilas. Os padres revidavam acusando os colonos de utilizarem os indgenas considerados livres pela legislao portuguesa, como escravos em suas terras, na aldeia da [...] a que assistem dois Padres, vivem 200 tapuias pouco mais ou menos, mas como esto oprimidos dos moradores, que os tem cercado da sorte que os pobres no podem ter planta alguma; que logo no seja destruda: donde resulta o irem em ranchos procurar o sustento pelo mato, aonde gastam s vezes 15 a 20 dias ao dano considervel de suas conscincias; tratamos de os mudar, e se anda atualmente fabricando nova aldeia acima do sitio, com que agora assistem, algumas trs Lguas. Esta mudana tem custado bastante trabalho pela Repugnncia dos moradores quiseram estorvar, por que com ela cesso alguns dos seus interesses, o que os missionrios no querem atender com prejuzo das almas dos tapuias, cuja educao est encomendada69 . No trecho da carta acima, notamos o conflito existente entre os colonos e os padres. Estes acusam os colonos de impossibilitarem a vida nos aldeamentos, pois, com a destruio das plantaes, os ndios ficavam sem opo e para buscarem seu sustento procuram os matos se ausentando por longos perodos da misso, o que prejudicava muito a sua converso. A soluo encontrada pelos padres foi a mudana do aldeamento, causando tambm a insatisfao dos moradores/colonos, uma vez que, na verdade, estes queriam utilizar os aldeados como mo-de-obra, os padres se negavam a ceder aos interesses dos moradores, usando como justificativa o prejuzo alma dos nativos. As constantes denncias eram motivadas pelo monoplio da administrao direta dos ndios e pela autoridade que esta poderia proporcionar a quem detivesse o controle dos aldeamentos. Em torno da tal questo estava a escravizao dos indgenas e sua funo na construo e proteo das terras conquistadas. Em Itamarac, por exemplo, os ndios da Aldeia de So Miguel do Siri ou Sirigi fundada em 1591 em Pau dalho, tinham uma funo especfica: a proteo da Barra de Catuama e da Ilha, como fornecedores de trabalhadores para as fortalezas de Itamarac e Petimbu, quando estes necessitavam, atuando na proteo da capitania70 . A citada consulta acima tambm revela que os ndios se utilizavam dos servios 69 CARTA do Propsito da Congregao dos Padres de So Felipe Neri para o Secretrio do Conselho Ultramarino, Pernambuco 30/06/1700. AHU_ACL_CU_015, doc. 1859, anexo 2, fl. 1. 70 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao Rei D. Joo V, sobre uma consulta da Junta das Misses 28/04/1718, onde os ndios da aldeia Siri pedem para se comprarem terras onde possam fazer suas roas. AHU_ACL_CU_015, CX. 28, doc. 2540 40. 40 prestados Coroa para barganhar mercs reais. Os ndios da Aldeia Siri solicitaram terras para plantao de roas, argumentando que os aldeados passavam necessidade por no poderem manter suas plantaes, logo, necessitavam de terras para manterem suas roas, sanando os problemas de subsistncia. Este documento revela ainda, que os ndios conheciam os mecanismos legais da burocracia portuguesa e buscavam meios de sobreviverem neste espao, apesar de serem considerados inferiores. O Governador de Pernambuco negou o pedido dos ndios, mas estes no se deixaram abater e recorreram ao Conselho Ultramarino que reconheceu suas utilidades. Mesmo com parecer negativo do Governador da Capitania, o Conselho concedeu a aldeia trezentos e setenta e cinco braas de largo e trs mil de comprido. Outro exemplo dos impasses em torno do controle da populao nativa aldeada pode ser vista na carta enviada pelo Governador de Pernambuco ao Rei na qual relata que o Governador dos ndios, D. Antonio Domingos Camaro, se queixava de os colonos persuadiam os nativos com promessas de abandonarem suas casas e roas nas aldeias para viverem nas fazendas dos colonos. D. Antonio pediu q