2008_-_FLVIA_FLORENTINO_VARELLA

59
Flávia Florentino Varella Decadência, historiografia e a imagem imperial nas obras de Tácito Monografia de Bacharelado Orientador: Fábio Faversani Co-orientador: Valdei Lopes de Araujo Universidade Federal de Ouro Preto Instituto de Ciências Humanas e Sociais Departamento de História Mariana, 21 de janeiro de 2008.

description

Texto sobre história da Africa

Transcript of 2008_-_FLVIA_FLORENTINO_VARELLA

  • Flvia Florentino Varella

    Decadncia, historiografia e a imagem imperial nas obras de Tcito

    Monografia de Bacharelado

    Orientador: Fbio FaversaniCo-orientador: Valdei Lopes de Araujo

    Universidade Federal de Ouro PretoInstituto de Cincias Humanas e Sociais

    Departamento de Histria

    Mariana, 21 de janeiro de 2008.

  • SUMRIO

    1. Introduo.....................................................................................................................02

    2. Tcito: suas obras e historiografia................................................................................04

    3. A histria em Roma: decadncia e escrita da histria..................................................14

    4. Problemas de se escrever uma histria do Imprio: dissimulao e corrupo moral..29

    5. A proximidade feminina e a imagem imperial (Anais, livros XIII-XVI).....................37

    6. Concluso.....................................................................................................................55

    Bibliografia.......................................................................................................................57

    2

  • 1. INTRODUO

    Esta monografia resultado de uma bolsa de iniciao cientfica concedida, por um

    ano e meio, pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais

    (FAPEMIG) na qual estudamos a relao entre a proximidade de algumas mulheres ao

    imperador Nero e a composio de seu governo, nos Anais de Tcito. Nossa hiptese era

    que a proximidade deste Imperador com mulheres que almejavam participao na esfera

    poltica foi feita de forma negativa para ressaltar uma administrao negligente, baseada

    no conselho de pessoas inferiores. Inversamente, a dissociao dessas mulheres tinha um

    smbolo positivo. Uma personagem que foge a esta regra Otvia, segunda mulher de

    Nero, que foi retratada por Tcito como sem ambies polticas. Nesse caso, a

    associao de Otvia a seu marido era feita positivamente e sua dissociao

    negativamente. Ao longo da pesquisa tive o interesse em aprofundar questes relativas

    histria da historiografia romana, ou seja, os princpios que norteavam a escrita da

    histria e sua composio. Esta monografia , portanto, a juno de dois interesses que

    mantive em minha graduao: o estudo dos problemas relativos escrita da histria e o

    estudo do mundo clssico.

    No primeiro captulo Tcito: suas obras e historiografia fizemos uma pequena

    apresentao das obras de Tcito e das leituras que fizeram delas ao longo dos sculos no

    intuito de situar o leitor no corpus taciteano, assim como na histria das interpretaes

    geradas pela sua leitura. Argumentamos, nessa primeira parte, que a histria escrita por

    Tcito, apesar de muitas vezes ser interpretada como poltica, inaugurou uma nova forma

    de pensar e fazer histria. Propomos que o objeto de Tcito, nos Anais, eram as paixes

    humanas e como elas modificavam os rumos do Imprio e o objetivo final desta obra foi

    superar a sensao de decadncia gerada pela corrupo e adulao, frutos de sua poca.

    3

  • Nesse sentido, no captulo dois A histria em Roma: decadncia e escrita da

    histria apresentamos alguns temas importantes em Tcito, principalmente a temtica

    da decadncia, e o papel que a retrica teve em suas solues historiogrficas. Com o

    intuito de ressaltar o lugar de destaque que a retrica tinha na forma de se escrever

    histria em Roma, analisamos a incorporao da memria como faculdade do orador na

    retrica romana. Com isso, a Retrica a Hernio teve grande importncia em nossa

    anlise.

    No captulo trs Problemas de se escrever uma histria do Imprio: dissimulao e

    corrupo moral mostramos algumas das dificuldades que a escrita da histria

    apresentava na sociedade romana e o problema exposto por Tcito de ter que escrever

    uma histria imparcial e, por isso, verdadeira, utilizando-se de escritos corrompidos pela

    adulao e pelo medo.

    O captulo final A proximidade feminina e a imagem imperial (Anais, livros XIII-

    XVI) desenvolvemos mais de perto algumas das articulaes historiogrficas feitas por

    Tcito, nos Anais. Circunscrevemos nossa anlise em apenas uma das argumentaes

    que caracterizam e salientam o governo de Nero: a proximidade feminina.

    4

  • 2. TCITO: SUAS OBRAS E HISTORIOGRAFIA

    Arnaldo Momigliano em seu artigo A tradio herodoteana e tucidideana1 aponta

    duas tradies historiogrficas opostas nascidas na Grcia antiga e que se mantiveram

    at a modernidade. A hiptese de Momigliano que a maior parte da historiografia

    Ocidental se organizou a partir da ruptura que aconteceu na Antiguidade Clssica entre

    uma historiografia baseada no modelo de Herdoto e outra na de Tucdides. Sua

    proposta que teramos uma grande continuidade de questionamentos impostos pela

    historiografia desde a sua fundao. A tradio advinda de Herdoto seria

    marcadamente composta pelo antiquariato e pela erudio. Neste tipo de histria

    estariam inseridos acontecimentos diversos, sem nenhuma restrio do que deveria ou

    no ser escrito. Esse tipo de histria tinha como principal fonte a experincia em

    viagens. Por outro lado, na histria tucdideana, fundamentalmente uma histria

    poltica, as aes polticas e militares prevaleceriam no relato e o interesse difuso estaria

    excludo, formando, assim, uma dignidade para histria fundamentada na narrao

    destes eventos.

    O problema que se impe como, por meio dessa proposta de anlise, poderamos

    pensar a histria produzida por Tcito. Claramente ele no poderia ser apresentado

    como um historiador herodoteano. Seria at plausvel encaix-lo dentro do campo dos

    historiadores polticos e militares, afinal, o foco principal de Tcito so as figuras

    polticas mais importantes, e, quando existem, as batalhas romanas. Contudo, no

    podemos deixar de lado um elemento central da narrativa taciteana: a composio da

    natureza humana. Em passagem dos Anais, sua segunda obra historiogrfica, encontra-

    se o relato a respeito da composio e importncia de seu livro:

    1Arnaldo MOMIGLIANO. A tradio herodoteana e tucdideana. In:__. As Razes Clssicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC, 2004, pp. 53-83.

    5

  • [...] assim como nos tempos antigos, quando o governo era popular, ou era patriciano ou aristocrtico, se julgava necessrio conhecer o carter do povo e os meios de moderar a sua efervescncia, e ento passaram tambm por mui hbeis e sagazes todos os que se aplicaram com cuidado a estudar o esprito do senado e dos grandes; assim igualmente agora que tudo est mudado, e que temos s um prncipe que governa, no me parece fora de propsito indagar, e escrever estas coisas. H sempre poucos que sejam capazes de distinguir por si mesmos o que bom do que mau, ou o que til do que prejudicial; e a maior parte da gente precisa para se instruir de exemplos alheios: apesar disto, tambm sei que quanto mais instrutivos so estes objetos menos devem agradar.2

    A importncia da obra de Tcito, que, gradualmente consolida-se na modernidade,

    reside em seu talento para criar personagens vazados dramaticamente e em tramas

    instigantes. Nesse ponto nossa anlise diverge radicalmente da proposta de Momigliano

    em dois pontos fundamentais. Primeiramente, o autor entende a historiografia como um

    campo autnomo que, desde o princpio, desenvolveu-se com questes prprias e

    valorizando sempre o mtodo crtico como legitimador da verdade. Para o autor, A

    Histria da Guerra do Peloponeso teve mais crdito na Antiguidade porque no se

    desconfiou teoricamente do mtodo de Tucdides, coisa que ocorreu com Herdoto.3 No

    decorrer de nossa anlise percebemos que a realidade epistemolgica da Antigidade

    Clssica distinta da moderna e frequentemente os parmetros historiogrficos so

    outros. O segundo ponto que divergimos de Momigliano caracteriza-se apenas como

    uma extenso do primeiro. A proposta de Momigliano correntemente deixa de fora o

    contexto de produo de cada obra historiogrfica ao enfocar demasiadamente as

    heranas que passam de um historiador a outro at chegar poca moderna.4 O grande

    problema da anlise de Momigliano para este trabalho que ele interpreta a

    historiografia como um grande bloco que tem como explicao a continuidade. Com

    isso, buscamos analisar a histria produzida por Tcito como inovadora em diversos

    2 TCITO. Anais, IV, 33. Nesta monografia utilizamos a traduo de J. L. Freire de Carvalho, volume 25. So Paulo: W.M. Jackson. (Clssicos Jackson).3 Arnaldo MOMIGLIANO. (2004), p. 67.4 Arnaldo MOMIGLIANO. Fbio Pictor e a origem da Histria Nacional. In:__. As Razes Clssicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC, 2004, p.152.

    6

  • sentidos, sem negar, contudo, que existia uma forma historiogrfica mais ou menos

    consolidada na poca da escrita de sua histria.

    Diversos j foram os usos da historiografia antiga e conforme o gosto de capa poca

    Tcito foi mais ou menos lido. Durante a Idade Mdia, Tcito no foi mencionado pelos

    escritores. Apenas no Renascimento, aps a descoberta de alguns cdices contendo parte

    de sua obra, que voltou a ser lido regularmente. Os trs cdices que contm as obras de

    Tcito foram achados separadamente e com acentuada diferena temporal. O primeiro,

    Mediceus II, datado do sculo XI, foi encontrado por Boccacio na biblioteca do

    monastrio de Monte Cassino em 1362. No sculo XV, o segundo cdice, Aesinus, foi

    achado por Enoch de Ascoli. E, em 1509, o terceiro cdice, Mediceus I, datado do sculo

    IX, foi encontrado por ngelo Arcimbaldo, agente do cardeal Giovanni de Mdici. Nos

    Medicei I e II se encontram as Histrias e os Anais. As obras menores, Germnia,

    Vida de Agrcola e Dilogo dos Oradores se encontram no Aesinus.5 Em 1572, Justus

    Lipsus, foi quem primeiro ressaltou a importncia das obras tacitenas para o

    entendimento dos arcana imperii e, em 1581, Carolus Pachalius publicou o primeiro

    comentrio poltico sobre Tcito.6 A importncia da obra de Lipsus para a histria da

    leitura de Tcito reside na utilizao da interpretao produzida por Tcito dos governos

    tirnicos para a anlise da conjuntura em que vivia, fenmeno que, em 1590, se

    consolidar como tacitismo. Essa abordagem que coloca as proposies de Tcito fora de

    seu contexto histrico foi por longos anos um dos ramos principais de estudo do

    historiador latino.7 Nos sculos XVI e XVII a importncia de Tcito no pensamento

    poltico foi grande, mas no se resumiu a isso. Montaigne escreveu que:

    [] this form of history is by much the most useful [...] there are in it more precepts than stories: it is not a book to read, 'tis a book to study and learn: 'tis full of sententious

    5 Fbio JOLY. Tcito e a Metfora da Escravido. So Paulo: Edusp, 2004, p. 45.6 Sigo as proposies de Arnaldo Momigliano. 7 Arnaldo MOMIGLIANO. (2004), p.186.

    7

  • opinions, right or wrong: 'tis a nursery of ethic and politic discourses, for the use and ornament of those who have any place in the government of the world.8

    No sculo XVIII, atribuia-se valor principal Antigidade Clssica nos assuntos

    relacionados retrica. Quando se tratava de cincia e de conhecimento os antigos

    eram considerados ultrapassados pelos modernos. Hugh Blair expe que: Tacitus is

    eminent for his knowledge of the human heart; is sentimental and refined in a high

    degree: conveys much instruction with respect to political matters, but more with respect

    to human nature".9 Com a organizao de arquivos e o refinamento da crtica

    documental, os historiadores antigos foram mais questionados sobre as suas informaes

    e, em larga medida, no conseguiram responder a esses questionamentos de forma

    favorvel. Verificou-se que parte do contedo que os estudiosos modernos consideravam

    como verdadeiros no se sustentavam. A importncia de Tcito dentro da historiografia

    moderna no se deve descrio das tticas de guerra e do relato dos acontecimentos

    romanos, mas, em larga medida, pelas suas descries morais que retratam o bem e o

    mal, ou seja, o que deve e o que no deve ser seguido. Essa perspectiva deixa de ser

    consensual nas anlises feitas de Tcito contemporaneamente. Ronald Syme, em texto

    sobre o relato de Tcito, afirma que:

    [] not much be said about personality of Nero, no item where the credit and veracity of Cornelius Tacitus can be seriously impugned. He wrote of times within the reach of memory or of reliable testimony. What has been transmitted by Suetonius and by Cassius Dio shows a remarkable concordance [...] The concordance has been ascribed to the influence of a single dominant source, used by all three. A better explanation serves: the portrayal of Nero corresponds in large measure with the facts.10

    Apesar de Syme ser um renomado estudioso no assunto, nesse ponto, nossa

    interpretao se distancia. Tcito no estava preocupado em fornecer um relato fidedigno

    8 Citado por Hamilton FYFE. Introduction. In: TACITUS. The Histories. Translated with introduction and notes by W. Hamilton Fyfe, fellow of Merton College. Oxford: Clarendon Press, 1912.9 Hugh BLAIR. Historical Writing. In: __. Lectures on Rhetoric and Belles Lettres. London: Charles Daly, 1839, p. 484.10 Citao extrada de Joan-Pau RUBIS. Nero in Tacitus and Nero in Tacitism: the historians craft In: Js ELSNER & Jamie MASTERS. Refections of Nero: culture, history & representation. London: Duckworth, 1994, p. 29.

    8

  • do que aconteceu em seus livros que contam a histria romana, mas em como isso

    poderia tornar-se til atravs do ensinamento moral. A importncia da verossimilhana

    nas artes escritas no mudou desde Aristteles.

    impossvel pensar em qualquer texto romano sem levar em conta o contexto de sua

    produo e leitura. Tcito no uma exceo a esta regra. Suas histrias narram o

    passado pensando na sua utilidade e continuidade no presente. Nesse sentido, faremos

    uma breve contextualizao e descrio das obras de Tcito e da poca em que foram

    escritas.

    Estima-se que Tcito tenha nascido entre 55 e 57,11 ou seja, durante o principado de

    Nero. De famlia eqestre, foi cnsul suffectus, magistratura mais importante em Roma,

    sob o governo de Nerva no ano de 97. Por causa de sua origem, atribui-se s suas obras

    certo conservadorismo, ou seja, buscando ascenso poltica adotou fervorosamente os

    valores morais aristocrticos orientadores de sua narrativa. Suas obras se remetem ou so

    influenciadas pelas dinastias Jlio-Cludia, Flvia e Antonina. Quando da fundao do

    Imprio por Augusto, com a vitria na batalha do cio em 31 a.C, constituiu-se grande

    parte da organizao institucional do Principado; regime que tinha como principais

    foras polticas o princeps, o senado, o exrcito e o povo. Depois de Augusto, mais

    quatro descendentes das gens Iulia e Claudia governaram o Imprio: Tibrio (14-37),

    Caio Calgula (37-41), Cludio (41-54) e Nero (54-68). Com exceo de Augusto, a

    imagem que chegou at ns desta dinastia , em maior ou menor grau, de maus

    governos.

    Com o suicdio de Nero, apresentaram-se vrios grupos que desejavam governar o

    Imprio Romano. Nero no deixou descendentes e nem recorreu prtica da adoo o

    que acarretou mais uma guerra civil em Roma. Em apenas um ano governaram quatro

    imperadores: Galba, Oton, Vitlio e Vespasiano. Aps esse perodo de lutas internas, a

    11 Todas as datas so depois de Cristo e quando no forem indicaremos com o a.C.

    9

  • estabilidade poltica e social teve incio com uma nova dinastia comeada por

    Vespasiano. A partir da dinastia Flvia, os imperadores passaram cada vez mais a ter

    origem provinciana. Os primeiros governantes Flvios - Vespasiano e Tito, seu filho -

    foram considerados bons imperadores e temos como sinal disso a morte natural de

    ambos. Entre os Jlio-Cludios, mais uma vez, apenas Augusto pereceu de morte natural.

    Domiciano, terceiro e ltimo membro da dinastia Flvia, considerado pela

    historiografia como o segundo Nero e foi assassinado por fora de uma conspirao.

    Aps as conturbadas dinastias Jlio-Cludia e Flvia, Roma tem um perodo de

    tranqilidade com os Antoninos. sob essa dinastia que Tcito escreveu grande parte de

    sua obra. Os governantes Antoninos foram os que alcanaram maior prestgio na

    historiografia,12 tanto romana quanto contempornea.

    O primeiro livro escrito por Tcito foi uma biografia laudatria sobre seu sogro Jlio

    Agrcola, terminada no ano de 98 e intitulada Vida de Agrcola. A biografia um

    gnero que estava organizado de modo a mostrar o carter do biografado da melhor

    maneira possvel. Assim como Suetnio, em sua Vida dos Doze Csares, Tcito tem

    como objetivo narrar a vida de uma pessoa como um organismo fechado, construindo a

    personalidade do biografado. Contudo, Suetnio e Tcito divergem na composio deste

    gnero de obra. Enquanto Suetnio d maior nfase construo do carter e da

    psicologia do biografado, Tcito enfoca prioritariamente a atividade poltica. Arnaldo

    Momigliano sugere13 que teriam dois tipos de biografia na Antiguidade Clssica. Uma

    que utilizaria do carter do biografado e outra da carreira poltica como elemento

    fundamental na composio da obra. A Vida de Agrcola poderia tambm ser chamada,

    sem risco de distoro entre ttulo e contedo, de O Consulado de Agrcola na

    Bretanha. Tirando alguns dados, a maior parte da composio gira em torno do

    12 Pierre GRIMAL. As Dinastias do Alto Imprio. In: __. O Imprio Romano. Lisboa: Edies 70.13Arnaldo MOMIGLIANO. A Origem da Pesquisa Antiquria.. In:__. As Origens Clssicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC, 2004, passim.

    10

  • consulado que Agrcola adquiriu e seu governo na Bretanha. No apenas de Suetnio

    que Tcito diverge na composio de sua biografia. Tanto Plutarco quanto Cornlio

    Nepos no se aproximam da biografia taciteana. Plutarco, em passagem clebre, expe a

    natureza de sua obra da seguinte forma:

    realmente, no estou escrevendo a Histria, mas narrando vidas; tambm, no so, por certo, as aes mais preclaras que evidenciam a virtude ou o vcio; muitas vezes, um ato sem importncia, uma frase, um gracejo qualquer revelam melhor um carter do que as batalhas de milhares de baixas, os exrcitos em linha mais extensos e os stios das cidades14

    Quando Plutarco define o vocbulo histria est claramente pensando em Tucdides,

    que produziu um modelo de decoro e dignidade para este tipo de narrativa fundamentado

    na histria poltica e militar. Porm, o que interessa neste momento que Tcito no

    escreve sua biografia nos termos assinalados por Plutarco e pe como elemento central

    de sua obra o que Plutarco achou, no mnimo, secundrio para este gnero: as aes

    mais preclaras. Apostamos na hiptese de que nesta biografia Tcito faz um esboo do

    gnero histria. Na Vida de Agrcola tambm se nota um interesse do autor em dados

    geogrficos e culturais da Bretanha, que passam por assuntos como a localizao, origem

    do povo, fora militar, o governo, clima, solo, os metais e a conquista e dominao pelos

    romanos.

    Esse interesse difuso de Tcito foi plenamente realizado na sua segunda obra,

    Germnia, escrita no mesmo ano que a Vida de Agrcola. Na primeira parte da

    Germnia so descritos a origem e os costumes dos habitantes locais, tais como a

    utilizao do solo, os tipos de metais que se encontram, a religio, o calendrio, a

    poltica, os jogos, funerais, escravos, libertos, etc. A segunda parte um pequeno trecho

    da composio que aborda as instituies e os ritos dos vrios povos, do em que

    diferem e dos que da Germnia imigraram em massa para as Glias.15 Existe muita 14 PLUTARCO. Alexandre. In:__. Vidas. So Paulo: Cultrix, s/d, p. 138.15 TCITO. A Germnia, 27. Utilizamos a edio traduzida por Agostinho da Silva e publicada em: Obras Menores. Lisboa: Livros Horizonte, 1974.

    11

  • especulao sobre o objetivo dessa obra. Alguns propem que seria apenas um tratado

    etnogrfico, enquanto outros acham que foi uma forma de Tcito, atravs da

    comparao, evidenciar a decadncia moral do povo romano.16 Ainda que a comparao

    seja um elemento importante a guiar a composio da obra, vale a pena destacar que

    vrias passagens esto centradas exclusivamente na descrio dos germanos. Assim,

    parece-nos adequado tomar essa obra de Tcito como uma legtima corografia, apesar

    deste termo ainda no existir em Roma. Como toda corografia, comea situando

    espacialmente o povo em questo e trata de assuntos genricos relacionados entre si.17

    A terceira obra de Tcito, escrita aproximadamente no ano 102, foi o Dilogo dos

    Oradores,18 na qual apresenta a conversao entre os oradores Marcos Apro, Jlio

    Segundo, Curicio Materno e Messala sobre a decadncia da oratria. O dilogo comea

    com a indignao de Apro em relao a Materno. Materno havia lido publicamente uma

    tragdia, de sua autoria, intitulada Cato, e Apro achava que ele estava se dedicando

    muito s letras ao invs de exercer a sua funo de orador. Apro argumentava que,

    enquanto orador, Materno poderia, ao mesmo tempo, iniciar e conservar amizades, criar

    laos de dependncia e chamar a si provncias, pe de lado uma ocupao que , em

    nossa Cidade, a que se pode pensar de maiores frutos quanto a utilidade [...]19 para

    escrever tragdias. Em sntese, uma discusso que envolve a histria da oratria,

    assuntos relativos a sua composio e inegvel utilidade tanto do ponto de vista pblico

    quanto pessoal e um debate sobre o carter do tempo presente em relao s pocas

    16 Ettore PARATORE acredita que a segunda interpretao seria abusiva e prefere a interpretao de que a obra teria a funo de mostrar aos romanos o perigo que poderiam ser essas populaes to vlidas, frugais e aguerridas [...], Cf. PARATORE, Ettore. Tcito.In:__. Histria da Literatura Latina. Traduo de Manuel Losa. 13 a. reimpresso. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, p. 728. Para argumentos a favor da segunda postura vide: Fbio Duarte JOLY. (2004), p. 98.17 Para mais detalhes sobre a corografia na antiguidade: Momigliano A Origem da Pesquisa Antiquria.. (2004).18 Para uma discusso sobre o debate acerca da autoria taciteana desta obra: Ettore PARATORE (1983), pp. 722-5.19 TCITO. Dilogo dos Oradores, 5. Utilizamos a edio traduzida por Agostinho da Silva e publicada em: Obras Menores. Lisboa: Livros Horizonte, 1974.

    12

  • passadas. Mais adiante, quando o assunto especfico for a retrica, retomaremos esta

    obra com o objetivo de auxiliar a anlise com relao importncia da composio

    retrica na historiografia romana.

    As Histrias, escritas entre 108 e 109, comeam com a guerra civil que se instaurou

    em Roma aps a morte de Nero. Estima-se que teria um total de doze livros. Chegaram

    at ns apenas cinco, estando o quinto incompleto. No pouco que resta dessa obra pode-

    se perceber elementos que no esto presentes nos Anais como o relato sobre a fundao

    de templo,20 a origem do deus,21 a concentrao na narrao dos costumes, geografia e

    religio de uma nica cidade fora dos limites de Roma22 entre outros exemplos. Os

    elementos historiogrficos de sua composio sero discutidos oportunamente, em

    auxlio ao estudo dessa questo nos Anais.

    A ltima obra de Tcito, e a que nos interessa mais de perto, so os Anais. Datados

    entre os anos de 115 e 120 abordam a dinastia Jlio-Cludia. O relato comea, como

    toda obra historiogrfica de Tcito, com uma breve contextualizao que, neste caso,

    remete ao principado de Augusto. No escrever a histria do principado de Augusto,

    pois os sucessos do antigo povo romano que, segundo sua variedade, ora foram

    prsperos, ora adversos, j grandes escritores tm publicado: e para as coisas de Augusto

    no faltaram talentos ilustres [...].23 Sua histria merece ateno pois tudo quanto se

    escreveu no governo de Tibrio, de Cludio, de Caio, e de Nero mentiroso em

    conseqncia do medo: e o que depois da morte deles se publicou tem o mesmo carter,

    por estarem os dios ainda muito recentes.24 Colocando-se na posio divina,

    reinvidicada desde Homero, que possibilita a melhor viso dos acontecimentos, Tcito

    20 TCITO. Histrias, II, 4. Utilizamos a edio traduzida por Berenice Xavier. Vol. 1. Rio de Janeiro: Athena, 1937.21 TCITO. Histrias, IV, 84. Utilizamos a edio traduzida por Berenice Xavier. Vol. 2. Rio de Janeiro: Athena, 1937.22 Idem, V, 2-13.23 TCITO. Anais, I,1.24 Idem, Idbem.

    13

  • d credibilidade ao seu relato. No estando envolvido nas circunstncias pode escrever

    melhor sobre elas. Grande parte deste livro tambm perdeu-se no tempo; do principado

    de Caio Calgula no restou nada, os de Cludio e Nero esto incompletos e o de Tibrio

    foi o nico que permaneceu completo.

    Tcito comeou com escritos menores e, tendo sua carreira poltica em boa situao,

    dedicou-se escrita da histria propriamente dita. No prximo captulo veremos como a

    histria e algumas temticas relacionadas, diretamente ou indiretamente ela, mostram-

    se nas obras de Tcito.

    14

  • 3. A HISTRIA EM ROMA:DECADNCIA E ESCRITA DA HISTRIA

    No meu intento referir seno as opinies que se fizeram mais notveis ou pela sua decncia ou pela sua insigne baixeza: porque creio ser o principal objeto dos anais por em evidncia as grandes virtudes, assim como revelar todos os discursos e aes vergonhosas, para que, ao menos, o receio da posteridade acautele os outros em carem nas mesmas infmias. TCITO. Anais, 3, 65.

    .

    A principal concepo que orientou a escrita da histria em Roma foi a formulao

    da histria enquanto magistra uitae. Ccero criou vrios lugares comuns para a histria:

    denominou Herdoto como seu pai fundador, a chamou de magistra uitae e enumerou

    suas leis. A concepo de uma histria mestra da vida, tipicamente romana, tem como

    base fundamental o exemplo que destitudo de tempo e lugar. A principal funo da

    histria est no ensinamento por meio dos feitos e homens ilustres do passado. Com isso,

    atravs da exposio dos grandes exemplos histricos, espera-se incentivar a imitao.

    Na Histria de Roma, Tito Lvio esclarece que o que principalmente h de so e

    fecundo no conhecimento dos fatos que consider[e]s todos os modelos exemplares,

    depositados num monumento, em plena luz: da colhes para ti e para o teu estado o que

    imitar; da evitas o que infame em sua concepo e em sua realizao.25 A histria

    enquanto monumento mostra, na luz da verdade, como os fatos aconteceram e se devem

    ou no serem seguidos.

    A histria mestra da vida assemelha-se ao uso que a retrica fazia da histria na

    medida em que esta fornecia uma parte dos exemplos a serem utilizados no debate. A

    histria, enquanto gnero demonstrativo, buscava seus recursos na experincia e na

    observao do mundo. Os gneros deliberativo e judicirio, por outro lado, tm seus

    25 TITO LVIO. Ab Urbe Condita. Apud: Franois HARTOG. A Histria de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 207.

    15

  • preceitos e regras muito bem expostas nos tratados de retrica romanos. Com isso,

    propomos que para entender a escrita da histria no perodo imperial romano se faz

    necessrio o entendimento da retrica na medida em que o conhecimento desta arte era

    aplicado de forma direta na confeco da histria. A retrica fazia parte do conjunto de

    aprendizados que os homens das classes privilegiadas de Roma deveria empreender.

    Nesse captulo discutiremos alguns pontos que estavam em jogo na hora de escrever

    histria na poca imperial. Nessa perspectiva, em um primeiro momento, as mximas

    ciceronianas serviro como uma espcie de fio condutor do ponto de chegada: a

    importncia da retrica na anlise da historiografia taciteana

    3.1. COMPOSIO HISTRICA E DECADNCIA DOS COSTUMES

    Depois de definir a histria, Ccero enumerou suas leis: "com efeito, quem ignora

    que a primeira lei da histria no ousar dizer algo falso? Em seguida, no ousar dizer

    algo que no seja verdadeiro? Que no haja, ao se escrever, qualquer suspeita de

    complacncia? Nem o menor rancor?.26 O historiador deve criar a sensao em seus

    leitores de que a verdade seu nico propsito. Mais uma vez em Roma o topos da

    aparncia entra em jogo. Ccero, em outra obra, pedindo a um amigo que escrevesse a

    histria da conjurao contra Catilina, na qual esteve diretamente envolvido, sugere que

    ele faa brilhar os fatos com mais ardor do que talvez sintas, negligenciando as leis da

    histria. O comprometimento com a imparcialidade foi exposto por Tcito na sua

    frmula clebre sine ira et studio. A afirmao de que escreve suas histrias sem dio

    nem afeio particularmente til. O debate em torno da parcialidade costumeira do

    historiador persiste at hoje apesar de ter sofrido modificaes significativas quanto ao

    tratamento da temtica. No faltaram historiadores que foram chamados de parciais.

    26 CCERO. Do Orador. Apud: Franois HARTOG. (2001), p. 151.

    16

  • Porm, no Imprio Romano, a falta de parcialidade ou a credulidade nisso poderia custar

    a vida como bem demonstra o julgamento do historiador Cremcio Cordo, relatado nos

    Anais.27 No comeo das Histrias e dos Anais, Tcito tenta, atravs da afirmao de sua

    imparcialidade, negar uma coisa da qual sabe que provavelmente ser acusado.28

    Em outra passagem, Ccero expe como seu amigo poderia escrever a sua histria de

    forma a melhor engrandecer sua glria:

    com efeito, do comeo da conjurao at nosso retorno, parece-me que se pode compor uma obra de porte mdio, e que poders aplicar tua famosa cincia das perturbaes internas, na explicao das causas da revoluo ou das solues para os prejuzos, tanto criticando o que julgas censurvel, quanto aprovando, com a exposio das justificativas, o que te agrade - quanto ainda, se julgas dever agir o mais livremente, como costumas, sublinhando a perfdia, as ciladas, a traio de muitos contra ns.29

    No era apenas Tcito que aplicava a cincia das perturbaes internas e

    sublinhava as perfdias e ciladas. Ao que tudo indica, j neste perodo tais movimentos

    faziam parte do gosto dos ouvintes. Por outro lado, temos a possibilidade da histria

    servir como veculo de promoo pessoal. pressuposto bsico que tudo que relatado

    na histria, louvvel ou no, digno de memria. Ccero tinha a necessidade imediata de

    engrandecer a sua glria e viu na histria um veculo para tanto. Contudo, o relato teria

    mais credibilidade se redigido por uma outra pessoa que no fosse ele prprio.30 Aqui se

    mostram mais dois componentes da histria: a busca pela glria e o no envolvimento

    com a situao relatada que, algumas vezes mal compreendido, foi tomado como

    distanciamento temporal.

    Outra face da histria a sua verso como instrumento de ao poltica. Em seu livro

    Dilogo dos Oradores, Tcito aponta a mudana do espao poltico como um dos

    motivos para a decadncia da eloqncia em Roma. Na Repblica, o principal local de

    atuao e debate poltico era o Frum onde os oradores tinham a oportunidade de

    27 TCITO. Anais, IV, 34-5.28 esta tambm a concluso de Fbio Duarte Joly. (2004), p. 53-8.29 CCERO. Ad Familiares. Apud: Franois HARTOG. (2001), p. 155-7.30 Idem, p. 159.

    17

  • mostrar a sua habilidade na eloqncia defendendo ou acusando em uma causa. A nova

    organizao social do Imprio fez com que esse espao perdesse parte de sua relevncia.

    No Dilogo, o orador Materno, tratando desse assunto, se pergunta: para qu muitos

    discursos perante o povo, quando no so os incompetentes e o maior nmero quem

    delibera, mas sim um s, e o mais sbio?.31 O princeps era a figura que tinha papel

    poltico central e sua casa, a domus Caesaris, era o espao que concentrava maior

    possibilidade de distribuio de benefcios. O espao de articulao poltica, em grande

    medida, passou do Frum para a domus. Alm do mais, as perturbaes que emergiam

    no regime republicano alimentavam a eloqncia na medida em que havia muitos casos a

    serem julgados. Materno argumenta que:

    h efetivamente, uma larga diferena entre se ter de falar de furtos, de frmulas ou de interditos, ou da propaganda nos comcios, da pilhagem dos aliados, do morticnio de cidados. Se certo que melhor que estes males no aconteam e que deve ser considerado como o mais perfeito regime da Cidade aquele em que no soframos tais coisas, igualmente verdade que, ao sucederem, subministram eloqncia grandes assuntos. Cresce, efetivamente, com a amplitude dos acontecimentos a fora do engenho e no pode pronunciar um brilhante e notvel discurso quem no tenha encontrado causa adequada.32

    O que estava em jogo que todos queriam um governo estvel, mas, na medida que o

    tm, a oratria decai. Na Repblica a eloqncia era nutrida atravs das guerras civis que

    propiciavam grandes assuntos e uma vida instvel. Com a estabilidade do regime

    imperial a eloqncia naturalmente perde sua fora, pois a estabilidade poltica no

    permite mais as grandes guerras romanas. Outro ponto importante em relao

    decadncia da oratria a mudana na educao dos jovens romanos apresentada pelo

    personagem Messala. Ele argumenta que antigamente os jovens eram criados pela

    senhora mais digna da famlia e agora so deixados s criadas e aos escravos.33

    Acrescenta-se a isso o infrutfero ensinamento da retrica. Antes os alunos aprendiam

    31 TCITO. Dilogo dos Oradores, 41.32 Idem, 3733 Idem, 29.

    18

  • acompanhando o principal orador para todos os lugares, enquanto naquele tempo so

    instrudos pelos rtores deixando de lado o ensinamento adquirido com a experincia

    prtica verdadeira, no Frum, para aprender a simples declamao de discursos suasrios

    e controversos. Ccero foi um magnfico orador pois:

    [...] no lhe faltou conhecimento da geometria, nem da msica, nem da gramtica, nem, finalmente, de qualquer das artes liberais. Aprendera as subtilezas da dialtica, a utilidade da moral, os movimentos da natureza e suas causas. E , excelentes amigos, dessa enorme erudio, desses numerosos conhecimentos, dessa sabedoria de todas as coisas que emana e flui aquela sua admirvel eloqncia; o vigor e a capacidade da eloqncia no se encerram, como outras coisas, em estreitos e breves limites, mas orador aquele que pode falar de qualquer tema com pulcritude, com elegncia, de forma persuasiva e segundo a dignidade do assunto, a oportunidade da interveno e o gosto dos ouvintes.34

    A erudio apresentada como condio fundamental para o falar bem. Um bom

    orador deve conhecer a natureza humana, o vigor das virtudes, a depravao dos vcios

    e o entender daquelas coisas que se no podem enumerar entre as virtudes e os vcios.35

    Todos esses conhecimentos, conforme o gosto da poca, foram empregados por Tcito

    na composio de suas histrias. As explicaes dos personagens Materno e Messala em

    relao a decadncia da oratria tem um vis tipicamente taciteano. Tanto a decadncia

    dos costumes quanto a mudana na organizao poltica so peas fundamentais para

    explicar os governos dos imperadores que Tcito relata. O mau governante ao mesmo

    tempo fruto da sociedade em que vive e produtor de vcios gerando, assim, o paradoxo

    relato na Vida de Agrcola. Depois de longo perodo de maus governantes, Nerva torna-

    se prncipe, restabelecendo a liberdade, porm:

    [...] pela natural debilidade, mais tardos so remdios do que males; assim, pois, como nossos corpos crescem com lentido e rpidos se extinguem, assim tambm mais facilmente se oprimem do que se restabelecem o talento e o estudo; efetivamente, do prprio estar inerte vem agrado e inao, odiada primeiro, depois se quer.36

    34 TCITO. Dilogo dos Oradores, 30.35 Idem, 31.36 TCITO. Vida de Agrcola, 43. Utilizamos a edio traduzida por Agostinho da Silva e publicada em: Obras Menores. Lisboa: Livros Horizonte, 1974.

    19

  • Um bom governante no suficiente em si para produzir uma sociedade melhor, pois

    a passagem do vcio para a virtude um processo lento que envolve a mudana nos

    prprios costumes. O mau governante no compromete apenas a estrutura econmica e

    poltica do Imprio, mas o prprio carter dos cidados. Tibrio, Caio, Cludio e Nero,

    no foram apenas maus governantes do ponto de vista administrativo; com seus

    exemplos alastraram o vcio e a servido por toda a sociedade j que o princeps o

    grande modelo a ser seguido pelos cidados. Com um governo fundamentado no vcio e

    no medo, dificulta-se o caminho para a virtude e a liberdade reinarem. O bom governante

    aquele que consegue ser virtuosos e incentiva os cidados a seguir seu exemplo.

    Definir um modelo de bom ou mau governante taciteano uma tarefa muito difcil tendo

    em vista que cada um dos Jlio-Cladios, por exemplo, foram condenados em aspectos

    diferentes. Contudo,

    a paixo do poder, essa antiga paixo inerente ao corao do homem, cresceu e rebentou ao mesmo tempo que a grandeza do imprio. Nos comeos de Roma, a igualdade era fcil de conservar, porem quando o mundo inteiro foi submetido e os nossos rivais, povos e reis, abatidos, pde-se ambicionar em toda liberdade as grandezas j ento asseguradas. Eram, ora tribunos facciosos, ora cnsules opressores e, na cidade e no Frum, tentativas de guerra civil. Em breve, Mario, o mais obscuro dos plebeus, e Sila, o mais cruel dos nobres, estabeleceram a dominao de um s sobre as runas da liberdade, vencida por suas armas. Em seguida, veio Pompeu, mais dissimulado e igualmente perverso, e desde ento no se combateu mais a no ser pela conquista do poder supremo.37

    O mau governo est na origem do prprio imprio romano que, com sua grandeza,

    despertou a ambio dos cidados. Com isso, o que existia em Roma era um mal de

    origem e no um simples problema que poderia ser resolvido tendo um princeps que se

    guiasse pelos princpios morais corretos.

    Outro ponto de destaque no Dilogo dos Oradores a discusso entre Materno e

    Apro sobre a utilidade das artes escritas, exemplificada pela poesia. Apro alega que esse

    tipo de escrita traz glria inane e infrutfera.38 A essa proposio Materno responde que:

    37 TCITO. Histrias, II, 32.38 TCITO. Dilogo dos Oradores, 9.

    20

  • comecei a me tornar famoso com a leitura de tragdias, porque foi com Nero que

    destru o vergonhoso poder de Vatnio, que julgava o que h de mais sagrado nos

    estudos; hoje, se tenho alguma fama e algum nome, creio que mais vieram dos versos

    que dos discursos.39 Materno alega que no s obteve glria como conseguiu, atravs de

    suas tragdias, derrotar um adversrio poltico. Frente ao declnio da oratria as outras

    artes escritas se tornam de grande valia para a atuao poltica. O espao das disputas no

    principado moveu-se do espao pblico para o espao domstico sendo a domus o

    principal lugar onde ocorrem as articulaes polticas e tendo o banquete como o lugar

    privilegiado de leitura das obras. A circulao e a atuao poltica no espao pblico na

    Repblica eram reservadas aos cidados homens. Por outro lado, na domus as pessoas

    que circulam e moram nela so de origem e estamentos distintos e todas elas tm a

    oportunidade, em maior ou menor grau, de interferir ativamente nos assuntos do imprio.

    nesta nova organizao social que surgem os libertos que acumulam grandes fortunas e

    postos elevados e mulheres que podem, atravs da proximidade com o imperador, atuar

    politicamente. Anteriormente ambos estavam excludos do Frum e, consequentemente,

    do mbito das decises polticas. Como a histria em Roma era dedicada em especial s

    grandes figuras que interferiam nos negcios pblicos e estava preocupada com a

    exortao moral, a possibilidade de interveno, a curto prazo, na realidade atravs dessa

    forma de escrita era grande. Por meio do relato dos maus imperadores, Tcito, ao mesmo

    tempo, narra e faz um diagnstico da sociedade romana, permitindo, assim, tanto ensinar

    como mostrar o que deve ser seguido ou renegado. Mesmo narrando fatos passados, a

    histria no deixa de influenciar e afetar o presente.

    3.2. RETRICA E HISTRIA

    39 Idem, 11.

    21

  • Outro debate corrente na Antiguidade Clssica a utilizao de elementos estilsticos

    na composio historiogrfica. Tucdides foi o grande expoente grego defensor de uma

    histria sem ornamento.40 Para ele, os poetas ornariam os fatos para os tornarem maiores,

    enquanto os loggrafos para os tornarem mais atraentes ao auditrio. Por outro lado, ele

    s desejava mostrar a verdade dos fatos, o que exclua o uso da ornamentao potica.41

    Essa possvel contradio entre adorno potico e verdade nua no foi estabelecida em

    Roma devido estreita relao que existia entre retrica e histria.

    A retrica ganhou destaque em sua formulao positiva dentro da cultura grega com

    a elaborao da Retrica por Aristteles. A retrica foi entendida como a faculdade de

    observar em qualquer caso as formas possveis de persuaso.42 Entre a teorizao grega e

    a romana existem diversos aspectos que so semelhantes e outros que foram

    acrescentados de forma decisiva pelos romanos, como o caso da memria enquanto

    faculdade do orador. O primeiro manual de retrica a tratar da memria como

    capacidade que o orador deveria possuir a Retrica a Hernio, escrita no sculo I a.C.,

    e que durante muito tempo foi atribuda a Ccero por estar dentro dos cdices que

    continham sua obra, mas que atualmente considerada de autoria desconhecida.

    Segundo este tratado, um orador deveria possuir inveno, disposio, elocuo,

    memria e pronunciao. Sendo a inveno a busca e descobrimento dos argumentos

    adequados para provar uma tese;43 a disposio a capacidade de arranjar adequadamente

    as evidncias e provas ao longo do discurso; a elocuo o momento que se confere uma

    forma lingstica s idias; a memria [..] a firme apreenso, no nimo, das coisas, das

    palavras e da disposio44 e a pronunciao a arte de falar que dividida em trs estilos:

    40 Para sua infelicidade foi correntemente lembrado na Antiguidade pela beleza da sua oratria. 41 TUCDIDES. Histria da Guerra do Peloponeso. Apud: Franois HARTOG. (2001), p.79.42 ARISTOTLE. Rhetoric, I, 2, 1355b. Utilizamos a edio Americana traduzida por: W. Rhys Roberts. Mineola: Dover Thrift Editions, 2004.43 Na Retrica a Hernio apontada como a parte mais difcil do discurso.44 [Ccero]. Retrica a Hernio. I, 3. Utilizamos a recente traduo brasileira feita por Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra. So Paulo: Hedra, 2005.

    22

  • grave, mdio ou tnue. A memria, como caracterstica do orador, uma adio

    legitimamente romana. Na Retrica a Hernio a memria dividida em natural e

    artificial. A primeira vem do nascimento, enquanto a artificial adquire-se com o

    exerccio retrico e divide-se em lugares e imagens. Os lugares esto ligados dimenso

    espacial e as imagens, forma.45 Assim, a partir da lembrana da imagem, seguir-se-ia

    para a dos lugares. Por isso, necessrio dispor tanto as imagens quando os lugares em

    ordem.46 No referido tratado citado como exemplo da mnemotcnica um caso de

    envenenamento:

    Se quisermos lembrar disso prontamente, para fazer a defesa com desenvoltura, colocaremos, no primeiro lugar, uma imagem referente ao caso inteiro: mostraremos a prpria vtima, agonizante, deitada no leito. Isso se soubermos quais so suas feies; se no a conhecemos, tomaremos um outro como doente, mas no de posio inferior, para que possa vir memria prontamente. E colocaremos o ru junto ao leito, segurando um copo com a mo direita, tbuas de cera com a esquerda e testculos de carneiro com o dedo anular. Assim conseguiremos lembrar das testemunhas, da herana e da morte por envenenamento.47

    Com a disposio apresentada possvel tanto ao orador como ao ouvinte

    lembrarem mais facilmente do caso. A descrio e os elementos chaves da cena so

    fundamentais para a memorizao e a vvida apreenso da imagem. Esperava-se que o

    historiador montasse seu relato ao invs de apenas rememorar coisas acontecidas.

    Quanto mais perfeita fosse a imagem mais facilmente atingiria o efeito desejado o no

    esquecimento no tempo - e maior seria a glria do orador. O principal que se tenha

    algo exemplificador, no complexo, de todo o caso para facilitar a memorizao.

    Outro ponto importante de fixao na memria a intensidade da imagem. Se esta

    for forte e incisiva ser mais fcil de ser lembrada do que ser for fraca e obtusa:

    As coisas pequenas, comezinhas, corriqueiras, que vemos na vida, no costumamos guardar na memria, porque nada de novo ou admirvel toca o nimo. Mas, se vemos ou ouvimos algo particularmente torpe, desonesto, extraordinrio, grandioso, inacreditvel ou ridculo, costumamos lembrar por muito tempo. assim que

    45 Idem, III, 29.46 Idem, III, 31.47 Idem, III, 33.

    23

  • esquecemos a maioria das coisas que vemos ou escutamos a nossa volta, mas quase sempre nos lembramos muito bem de acontecimentos da infncia. Isso no pode ter outra causa seno que as coisas usuais facilmente escapam memria, as inusitadas e insignes permanecem por mais tempo.48

    O enredo dos Anais, particularmente, a aplicao desta mxima retrica na

    medida em que os acontecimentos de um imprio baseado na adulao e no medo

    fonte de desgraa e de acontecimentos calamitosos.

    A escrita da histria por Tcito foi pensada atravs do ornamento de sentena

    retrico denominado exemplum que a utilizao de eventos e personagens do passado

    para melhor demonstrar uma situao.49 O exemplo tem o objetivo de mostrar, diante

    dos olhos, o que aconteceu. Alm disso, os exemplos ocupam o lugar de testemunhos.

    Aquilo que o preceito recomendou e o fez levemente comprovado pelo exemplo,

    como se fosse um testemunho.50 Escolhia-se o evento que fosse o mais completo sobre

    um caso que se desejasse mostrar, selecionava-se os momentos que melhor

    demonstravam a hiptese e montava-se uma estrutura textual que favorece a

    memorizao do relato. Tcito escolheu os Jlio-Cludios por achar que eram o

    exemplo pleno da decadncia dos costumes romanos, selecionou os fatos dentro de cada

    principado que mostrasse essa contnua degradao romana e montou sua histria de

    forma que seus leitores e/ou ouvintes pudessem lembrar mais facilmente dos eventos,

    ou seja, dramaticamente.

    Um dos caminhos para entender a escassa citao de fontes por Tcito,

    principalmente como forma de provar a veracidade do que relatado, a diferena

    epistemolgica que o termo verdade tinha em sua poca em relao

    contemporaneidade. Apesar da historiografia romana inovar em relao grega na larga

    utilizao de fontes pblicas documentais, no havia, obviamente, a concepo de uma

    histria cientfica em Roma. A histria taciteana tem o objetivo de demonstrar a 48 Idem, III, 5.49 [Ccero]. (2005), IV, 60-62.50 Idem, IV, 2.

    24

  • degradao dos costumes romanos num certo perodo utilizando como veculo principal

    os exemplos extrados da prpria histria do povo romano. No haveria a necessidade

    latente de testemunhos; o que Tcito relata est diante dos olhos: a prpria

    demonstrao histrica. O exemplo na retrica romana serve para demonstrar como o

    que se disse e o testemunho serve para confirmar que como se disse.51 Assim, atravs

    da histria, demonstrar-se-iam como as coisas foram e como se desenrolaram.

    O ornamento de sentena demonstratio, que significa exprimir um acontecimento

    com palavras tais que as aes parecem estar transcorrendo e as coisas parecem estar

    diante dos olhos52 o equivalente latino da enargeia grega. Carlo Ginzburg, em artigo

    sobre os elementos textuais que fazem com que o leitor tenha a percepo de que os

    fatos relatados dentro de um texto histrico so reais, coloca a enargeia como um

    desses elementos que garantem um efeito de verdade histrica.53 Na Antigidade, a

    fora da demonstratio como garantidora da posio de verdade do trabalho

    historiogrfico sobrepujou o uso de testemunhas.

    A importncia principal, para nossa anlise, na adio da memria retrica est na

    posio destacada que a composio da imagem adquire em Roma no sentido de no

    deixar as coisas carem no esquecimento. Os romanos tentaram, por meio da retrica, dar

    vida longa a sua histria. Em primeiro lugar, a memria pode ser pensada juntamente

    com a tradio analtica seguida, em larga medida, por Tcito. Tal tradio herdou dos

    Annales pontificum a forma de organizar a histria, ou seja, inicia-se o ano com o nome

    dos cnsules e depois se relatam os principais acontecimentos deste perodo. Em uma

    tbua pintada de branco o pontifex maximum escrevia anualmente os principais

    acontecimentos da cidade de Roma sem nenhum ornamento.54 Podemos afirmar que, 51 Idem, IV, 5.52 Idem, IV, 68.53 Carlo GINZBURG. Ekphrasis e citao. A micro-histria e outros ensaios. Traduo de Antnio Narino. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 219-20.54 Arnaldo Momigliano levanta a hiptese que do comeo para o fim da Repblica os Anais foram manipulados, aumentados e falsificados, englobando, assim, acontecimentos polticos e militares que

    25

  • pelo menos, desde Ccero a composio dos Annales sofreu grandes mudanas. Ccero

    argumenta que,

    de fato, a organizao dos anais prende-nos mediocremente, da mesma forma que a enumerao dos fatos, enquanto freqentemente as desventuras perigosas e variadas de um homem eminentemente geram admirao, ateno, alegria, pena, esperana, medo; e se terminam com uma morte insigne, o esprito ento se eleva pelo agradabilssimo prazer da leitura.55

    Nos Anais, Tcito utiliza da forma analtica abrindo cada ano com a indicao dos

    cnsules que governaram, mas tm clara a certeza de que a histria indissocivel do

    ornamento que a retrica propicia. A escolha da forma analtica por Tcito para relatar

    sua histria pode ser entendida atravs da facilidade que a ordenao traria para a

    lembrana do relato.

    O outro ponto em que a memria nos auxilia na anlise das obras historiogrficas de

    Tcito em relao s imagens. No tratado retrico apresentado, um elemento

    fundamental para se lembrar a fora da imagem. Quanto mais algo torpe, desonesto,

    extraordinrio, grandioso, inacreditvel ou ridculo, costumamos lembrar por muito

    tempo. O foco principal da narrativa taciteana a decadncia moral do imprio e de

    seus imperadores e dos que o cercam. Dentro da sua narrativa no faltam imagens do

    gnero descrito na Retrica a Hernio que so parte central na trama. Como o prprio

    Tcito declara,

    sei muito bem que muitos dos fatos que tenho referido, e que ainda espero referir, ho de parecer talvez a certa gente coisa de pouca importncia, e como tais indignas de memria; porm no se devem comparar os meus Anais com as histrias antigas do povo romano.56

    Tcito tem clara conscincia de que est escrevendo um outro tipo de histria, com

    um enfoque e composio diferentes dos historiadores latinos que o antecederam.

    Enquanto Lvio escreveu uma histria monumental do povo romano que remontava as

    origens mticas e tratava de grandes guerras civis, ele est fadado a escrever sobre um

    antes no existiam, pp.139-141.55 CCERO. (2001), p. 157.56 TCITO. Anais, IV, 32.

    26

  • imprio que correntemente esteve em um regime de paz e que tem como ponto principal

    de atuao poltica a domus Caesaris. Tcito no tratar de grandes guerras, mas de

    grandes escndalos e decadncias morais de uma forma que no final seu leitor estar apto

    a reconstruir as imagens que ele criou. Sua predileo pelo estilo retrico asitico,

    exuberante e grandiloqente,57 na composio de seus personagens e desenrolar de

    tramas tornou-se parte constituinte de sua narrativa.

    Como tentamos demonstrar at agora, o entendimento dos preceitos da retrica pode

    ser de grande utilidade para entender a historiografia romana e, conseqentemente, a

    composio histrica taciteana. Como a histria compunha o gnero demonstrativo era

    natural que o historiador se utilizasse dos elementos retricos quando fosse compor sua

    obra. A histria, assim como os discursos, tinha a sua leitura pblica, meio pelo qual a

    difuso da obra era mais corrente. A oratria e a histria caminhavam juntas;58 a histria

    estava dentro da retrica na medida em que era um sub-gnero do discurso

    demonstrativo.59 Longe de querer levantar um debate em torno da m leitura sobre a

    retrica que desembocou na sua compreenso como o falar bem sem contedo,

    gostaramos de chamar a ateno para a aplicao da retrica dentro do trabalho

    historiogrfico.

    Fbio Joly, em seu livro dedicado ao estudo da metfora da escravido em Tcito,

    sugere o abandono das anlises estilsticas, que ressaltam apenas a funo de

    entretenimento da retrica, e prope uma sociologia da retrica. A metfora da

    escravido, enquanto figura de linguagem, no seria apenas um ornamento, mas

    reveladora de uma prtica social, ou seja, a adeso dos cidados ao regime poltico

    vigente.60 Sem negar ou abdicar das possibilidades de anlise, em nosso trabalho as 57 Ettore PARATORE, p. 724.58 CCERO. El orador, 66. Utilizamos a traduo espanhola trasuzida por: :E. Snchez Salor. Madrid: Alianza Editorial, 2004, e PLNIO O JOVEM. Cartas. Apud: HARTOG. (2001), p. 169.59 Renato AMBRSIO. Ccero e a Histria. In Revista de Histria da USP. Nmero 147, 2 semestre de 2002, p. 29.60 Fabio Duarte JOLY. (2004), p. 48-59.

    27

  • questes relativas composio da obra assumem um lugar central. A histria, at o

    sculo XVIII, sempre teve duas funes claras: entreter e ensinar. Na poca moderna,

    muitos alegam que essas so palavras com smbolos opostos e que entreter carrega

    tacitamente uma no-verdade em si. Esse no era o entendimento que Tcito tinha da

    questo. A retrica era o aparato tcnico que conseguia ao mesmo tempo entreter e

    ensinar. Como vimos anteriormente, a retrica no est presente na obra historiogrfica

    taciteana apenas para divertir seu pblico ou como reveladora de prticas sociais, ela faz

    parte da prpria forma como se compe a histria, e , de certa forma, o horizonte

    limitador da composio do trabalho historiogrfico na medida em que est

    intrinsecamente ligada a este. Tcito pensava na composio de sua obra utilizando-se da

    retrica e aplicava os elementos de composio oferecidos por esta. Trabalhos que

    aprofundem essa questo sero de grande contribuio para o melhor entendimento da

    historiografia romana.

    28

  • 4. PROBLEMAS DE SE ESCREVER UMA HISTRIA DO IMPRIO:DISIMULAO E CORRUPO MORAL

    A Antigidade Clssica teve duas preocupaes que a escrita da histria

    contemplou: a preservao da memria e o ensinamento. Desde seu pai fundador o

    relato da histria era feito para que nem os acontecimentos provocados pelos homens,

    com o tempo, sejam apagados, nem as obras grandes e admirveis, trazidas luz [...] se

    tornem sem fama.61 Na memorialstica antiga a preocupao era com a exposio de

    uma histria que, focando as grandezas de um povo, tinha como objetivo manter viva na

    memria das pessoas os feitos gloriosos acontecidos. Apenas em Roma que o

    ensinamento das virtudes atravs das grandes figuras histricas ser efetivamente

    consolidado. A historiografia romana esteve correntemente preocupada em no deixar

    cair no esquecimento os feitos ilustres e de ensinar atravs da histria. At o sculo I

    ambas as perspectivas tratavam a histria sempre em seu lado positivo, buscando os

    grandes exemplos virtuosos, feitos gloriosos ou homens ilustres.

    Toda a historiografia clssica anterior a Tcito sempre utilizou desse modelo de

    entendimento baseado na escrita do bom e do justo. Contudo, Tcito no consegue mais

    ver seu tempo como grande produtor de virtudes, o que no anula a existncia delas.62 O

    que descreve no se limita aos grandes homens e suas virtudes. Expande a sua narrativa

    centrando nos prncipes viciosos e numa sociedade corrompida pelo luxo. Disso deriva

    que sua histria totalmente inovadora na medida em que prope, atravs da

    explanao das causas e conseqncias, a recusa imitao. O princpio de uma

    histria mestra da vida o mesmo. O que muda como o efeito desejado alcanado.

    No principado de Nero, Tcito escreve que:

    61 HERDOTO. Histrias. Apud HARTOG, Franois. (2001), p. 43.62 TCITO. Histrias, I, 2-3.

    29

  • por todas estas maravilhas decretaram-se ofertas para todos os templos; o que de propsito quero relatar para que aqueles que lerem os fatos deste tempo, escritos por mim, ou por outros autores, saibam de uma vez, que em todas as ocasies que o prncipe ordenou assassnios ou desterros sempre se mandaram dar graas aos deuses: de maneira que aquilo, que antigamente era o sinal de pblicas fortunas, s veio a ser depois o smbolo de pblicas desgraas. Contudo nunca deixarei ainda de referir qualquer outro senatus consulto que se fizer notvel ou por alguma nova espcie de adulao, ou por algum exemplo de excessiva pacincia.63

    A memria que Tcito tenta reavivar a que condena e julga o passado como

    indigno de ser imitado. Coloca a histria como o tribunal da posteridade em que os

    feitos no sero escritos apenas para serem memorados, mas para serem julgados.

    Franois Hartog prope que quando h crise, experincia de uma ruptura entre o

    passado e o presente, o modelo da historia magistra entra tambm em crise: deve-se

    imitar, mas no se pode mais.64 Tcito resolve essa experincia de ruptura com o

    passado invertendo a proposio da histria mestra da vida relacionada imitao. No

    que no se possa mais imitar, no se deve mais imitar.

    O modelo explicativo do passado romano como decadncia comea a se delinear

    somente a partir de Tito Lvio. Em seu clebre Prefcio, expe o Imprio como uma

    poca que a degenerao dos costumes est num momento crtico e que no podemos

    mais suportar nem nossos vcios, nem seus remdios.65 Contudo, no h uma

    formulao clara da memria como reforo negativo, pelo contrrio, o autor almeja

    esquivar-se do espetculo dos males.66 Lvio v no Imprio caractersticas positivas

    que superam as negativas j que jamais nenhum estado foi maior, mais venervel, mais

    rico em bons exemplos, nem houve nunca cidade na qual a cobia e o luxo se tenham

    introduzido to tarde, nem onde a honra dada pobreza e parcimnia fosse to

    63 TCITO. Anais, XIV, 64.64 Franois HARTOG. (2001), p. 220.65 TITO LVIO. Ab Urbe Condita. Apud Franois HARTOG. (2001), p. 207.66 Idem, p. 205.

    30

  • grande.67 Lvio viveu no principado de Augusto e concebia a sociedade romana

    dependente de uma liderana que conduzisse o Imprio. Sem essa liderana, teramos a

    desagregao tanto em razo dos vcios romanos quanto em funo das ameaas

    exteriores. A sombra da decadncia s poderia ser superada com um novo regime

    poltico. Sua histria remonta a tempos mticos tentando suprir a necessidade de tornar

    presente a magnitude romana e evidenciar como o momento presente era diverso de

    todos os demais.

    Tcito no tinha mais essa viso de mundo que foi posta abaixo pela prpria

    experincia do tempo. Apesar de Tcito e Lvio terem propostas historiogrficas

    diferentes esto buscando o mesmo resultado: a superao da decadncia romana. A

    escolha de tratar do principado dos Jlio-Cludios de extrema relevncia se pensarmos

    a partir do prefcio dos Anais em que acusa no haver sob aqueles prncipes liberdade

    de expresso para que uma histria verdadeira fosse escrita, s existindo ento o medo e

    a adulao. Na seqncia, Tcito afirma que ele pode escrever uma histria sem dio

    nem rancor, pois o perodo em que vive propicia as condies para tanto. Com essa

    distino temporal, Tcito enfatiza que houve um tempo de decadncia que deve ser

    mostrado, mas Roma pode alcanar a restaurao. Os Anais so a tentativa de

    evidenciar a regenerao romana.

    No Dilogo dos Oradores, Tcito adianta o que ser sua proposta historiogrfica. O

    ponto central na discusso neste dilogo a decadncia da oratria. Existe uma noo de

    que o governo de Vespasiano seria inferior ao perodo republicano na arte da eloqncia.

    O orador Apro defende o argumento de que essa afirmao seria invlida j que os

    antigos de que tratam seriam quase que contemporneos, pois existe menos de cem anos

    de distncia entre eles. Para Apro seria um problema de cronologia essa sensao de

    decadncia e, muito mais que isso, seria um problema de incompreenso de poca: 67 Idem, p. 207.

    31

  • no estou querendo saber qual o mais eloqente; contento-me com o ter provado que no um s o rosto da eloqncia, que naqueles mesmos a que chamais antigos se surpreendem vrios aspectos, que no alguma coisa inferior a outra apenas por ser diferente e que por um vcio da maldade humana que sempre se louva o velho e que do presente se desdenha.68

    A postura de Apro que a exaltao e delimitao de um passado pouco distante no

    permite que se veja as qualidades do tempo presente.

    A problemtica da decadncia da oratria explicada de outra forma pelo orador

    Messala. Para ele a decadncia existe e foi gerada pelo descaso da juventude, pela

    negligncia dos pais, por ignorncia dos mestres e por esquecimento dos costumes

    antigos.69 A sociedade estava menos preocupada com seus costumes que envolviam

    tanto a educao quanto a tradio. Na Repblica as crianas eram educadas pela

    mulher mais virtuosa da casa. Agora, porm, a criana, quando nasce, entregue a

    qualquer criadinha grega, qual se juntam um ou dois dos escravos, quaisquer deles, na

    maior parte das vezes ordinarssimos e imprprios para servios srios.70 esse tipo de

    educao que Tcito atribuiu a Nero. O gosto deste imperador pelos histries, pela

    msica, pelo teatro e demais artes gregas apontado como um sinal negativo dentro

    dos Anais. Em sua infncia, Nero foi criado por escravos que mais tarde iro servir de

    apoio para seus atos moralmente condenveis. No princpio do governo deste

    imperador, Tcito afirma que o discurso de ascenso feito por Nero foi escrito por

    Sneca e que era o primeiro imperador romano a no saber a arte da eloqncia. Nero

    gostava de outras coisas e desde a sua primeira idade comeou logo a aplicar para

    outros objetos o seu esprito inquieto: exercitava-se nas artes do buril, da pintura,

    msica vocal, e do manejo dos cavalos [...].71 Esse argumento de Tcito da decadncia

    68 TCITO. Dilogo dos Oradores, 18.69 Idem, 28. O argumento da decadncia da oratria gerada pelo descaso dos pais em relao aos filhos tambm encontrado em PETRNIO. Satyricon. Belo Horizonte: Crislida, 2004, I-V. 70 TCITO. Dilogo dos Oradores, 29.71 TCITO. Anais, XIII, 3.

    32

  • dos costumes refletidas em Nero central na composio deste personagem e ser

    retomado em sua plenitude quando Agripina assassinada por ordem de seu filho.

    Tcito tambm pretende separar o que na poca moderna tentou-se juntar: a

    cultura clssica. Quando busca a fundao de Roma, utiliza o mito de Rmulo e Remo,

    assim como Lvio. Virgilio totalmente descartado na sua proposio de que os

    romanos teriam como fundador Enas, um sobrevivente da Guerra de Tria e,

    fundamentalmente, grego. A origem que Tcito busca a dos sabinos e latinos,

    almejando uma Roma romana e no grega. Todas as menes aos costumes gregos

    feitas por ele so negativas e Nero inicia a sua fase de decadncia quando comea a

    mostrar-se como um apreciador dos costumes gregos.

    Outra explicao para a decadncia da oratria apresentada pelo personagem

    Materno e que, em certa medida, Messala tambm corrobora. O argumento de Materno

    que eles degeneraram muito mais, quando comparados aos antigos, com relao

    liberdade do que quanto eloqncia.72

    Um dos problemas que a histria de Tcito enfrentou foram os arcana imperii.

    Com o advento do principado a esfera de decises foi transposta do Frum, um lugar

    que era visto como o espao em que a persuaso era central para conseguir se destacar,

    para a Domus, onde o que importava para se tornar proeminente era a opinio do

    Imperador. Assim, ocorreria uma transio do convencimento de muitos para a adulao

    de um s como forma de promoo social. A presena da dissimulatio73 foi, cada vez

    mais, sendo ressaltada pela historiografia romana como parte constitutiva do jogo

    poltico. A caracterizao do imperador Tibrio, nos Anais, como um homem

    72 TCITO. Dilogo dos Oradores, 27.73 O livro de Plutarco intitulado Como distinguir o bajulador do amigo pode ser entendido nesse contexto da dissimulao. John PERCIVAL. Tacitus and the pricipate. In Greece and Rome. 2, 27, 1980, p. 119 prope que dominao estaria ligada a dissimulao.

    33

  • enigmtico est de acordo com a prpria origem e fundao do principado74 como um

    regime poltico em que tudo mudava de acordo com os interesses do momento. Aps

    um dos discursos de Tibrio aos senadores, Tcito declara que:

    deste discurso havia mais ostentao do que a verdade: e tal era Tibrio, que ainda nas coisas que de propsito no queria ocultar, ou fosse por hbito, ou por carter, empregava sempre as expresses mais obscuras e equvocas: e por conseqncia agora que se esforava por encobrir profundamente seus pensamentos, muito mais confuso e ininteligvel se fazia.75

    O grande nmero de rumores que Tcito relata e mesmo a freqente meno de

    uns dizem isso, outros dizem aquilo pode ser vista como um dos sintomas dessa falta

    de transparncia da sociedade imperial.76 O topos do condicionamento entre liberdade

    poltica e verdade histrica comea a se delimitar nesse contexto do Principado.

    O regime poltico seria de fundamental importncia na medida em que ele poderia

    inibir as virtudes, como mostra o j citado exemplo de Cremucio Cordo. Se, por um

    lado, o imperador coibiria os cidados que quisessem se manifestar livremente, por

    outro, a prpria sociedade reproduziria indivduos corrompidos. John Percival

    argumenta que a liberdade a qual Tcito se remete seria a possibilidade de poder se

    expressar contra ou de se expressar sem medo de represlias.77 Nessa perspectiva, o

    prprio Tcito aparece como um modelo de libertas j que durante governos tirnicos

    como o de Domiciano prosperou consideravelmente.78

    No so apenas condies imediatas, na medida em que as entendemos como

    condicionantes da escrita da histria, que delimitam o que uma histria ir contar; existe

    tambm uma tradio que se impe a Tcito. Judith Ginsburg demonstrou como a

    74 Para uma explicao detalhada sobre a relao direta entre o carter de Tibrio e a natureza do principado: Miriam GRIFFIN. Tacitus, Tiberius and the Principate. In MALKIN, I. and RUBINSOHN, Z.W. (eds.). Leaders and Masses in the Roman world: studies in honor of Zvi Yavetz, Mnemosyne Supplementum 139, Leiden, 1995.75 TCITO. Anais, I, 11.76 Katherine CLARKE. In arto et inglorius labor: Tacitus Anti-history. In British Academy, 114, 2002, p. 95.77,John PERCIVAL. Tacitus and the pricipate. In Greece and Rome, 2, 27, 1980, p. 125.78 Idem, p. 127-9.

    34

  • estrutura analtica seguida na repblica com sua ordem cronolgica e anunciao dos

    consulares, apesar de parecer central na narrativa taciteana no passa de elemento

    formal.79 A organizao de sua histria no mais estritamente cronolgica. Outro

    ponto interessante em relao tradio historiogrfica a insero de prodgios nos

    Anais. Em um trecho das Histrias, Tcito coloca que:

    certo, seria indigno da severidade desta obra recolher fbulas para divertir a credulidade dos leitores; mas h tradies s quais se d um crdito tal, que eu no ousaria rejeit-las. No dia da batalha de Bedriac (dizem os habitantes da regio), uma ave de uma forma estranha pousou perto de regium Lepidum, em um bosque muito freqentado e ali ficou, sem se assustar com a aproximao das pessoas ou das aves que revoavam em torno dela, at o momento em que Othon se apunhalou. Ento, desapareceu, e comparando-se a hora, reconheceu-se que o comeo e o fim desse prodgio concordavam com o momento da morte do prncipe.80

    Mesmo que Tcito no achasse que os prodgios sempre expressassem a verdade,

    fazia parte da tradio historiogrfica, que remonta a Herdoto,81 a insero deles na

    narrativa. Nos Anais isso mais claro. Enquanto nas Histrias ainda existe certa

    relatividade quanto veracidade do maravilhoso, nos Anais eles tm um papel quase

    que alegrico. A maioria das vezes so inseridos com um carter de pressgio como o

    caso do final do livro dcimo terceiro em que descreve que: neste mesmo ano a

    figueira Ruminal, que est no comcio, e que oitocentos e quarenta anos antes j tinha

    servido de abrigo a Rmulo e Remo, perdeu todos os seus ramos, e teve o tronco quase

    seco; o que se tornou como um funesto prodgio, at que tornou a reverdecer.82 Nada

    se modificou com a anunciao deste prodgio, apenas a crena na modificao que

    sustentava a sensao de mudana. Por outro lado, a partir do momento em que um

    prodgio no se apresenta mais como tal - o que se tomou como um funesto prodgio,

    at que tornou a reverdecer - ele descartado como forma de explicao dos

    79 Judith GINSBURG. Tradition and theme in the Annals of Tacitus. Salem, N.H.: Ayer, 1981.80 TCITO. Histrias, II, 50.81 Para o maravilhoso em Herdoto: Cyntia MORAES. Maravilhas do mundo antigo: Herdoto, pai da histria? Belo Horizonte: UFMG, 2004.82 TCITO, Anais, XIII, 58.

    35

  • acontecimentos histricos. O carter de revelao encontrado no prodgio pode mudar

    facilmente de acordo com o tempo ou com as pessoas que o interpretam. No ano de 59,

    afirma terem sido:

    muitos os prodgios, e assaz continuados, mas todos inteis. Uma mulher pariu uma serpente; e outra, estando nos braos do marido, foi morta com um raio. Escureceu-se repentinamente o sol, e nos quatorze bairros de Roma caiu o fogo do cu; mas todas essas coisas sucederam certamente sem particular destino dos deuses, porque Nero ainda continuou por muitos anos a governar, e a ser pelos seus crimes o flagelo do mundo.83

    A crise vivida sob maus imperadores interferia nas leituras dos pressgios na

    medida em que uma sociedade corrompida no conseguia mais distinguir o que eram

    sinais divinos ou simples fenmenos naturais. As pessoas crdulas e atordoadas no

    sabiam mais distinguir suas perspectivas dos pressgios divinos. A crise social que se

    instaura com um governo do vcio e do dio geram esse tipo de problema.

    O grande dilema de Tcito foi a concluso de que escrever sob maus

    imperadores impossvel porque no h liberdade, os relatos produzidos poca so

    frutos da adulao e os imediatamente posteriores so testemunhos dos dios. Porm,

    escrever a certa distncia - sine ira et studio - dos fatos narrados tambm implica em

    dificuldades porque os testemunhos remanescentes so justamente aqueles descritos

    como fruto da adulao ou do dio. O desafio indito da historiografia taciteana foi

    alcanar o objetivo de escrever uma histria verdadeira a partir de testemunhos falsos.

    83 TCITO. Anais, XIV, 12.

    36

  • 5. A PROXIMIDADE FEMININA E A IMAGEM IMPERIAL:O PRINCIPADO NERONIANO (ANAIS, LIVROS XIII- XVI)

    Os que governavam faziam de ordinrio aes mais brilhantes pela influncia dos bons conselhos do que pelo seu prprio brao e valor. TCITO, Anais, 13, 6.

    Correntemente a historiografia tem analisado os primeiros cinco anos do

    principado neroniano como a melhor fase deste governo, ou seja, o Quinquennium

    neronis.84 Alguns fatores textuais neste perodo so ressaltados por Tcito para mostrar

    a boa fase deste governo. Delegar poder ao Senado, escolher bons dirigentes militares e

    estar cercado por um conselho no corrompido so alguns elementos empregados para

    criar uma sensao positiva. No final deste perodo, em 59, a caracterizao do

    principado neroniano na narrativa taciteana vai gradualmente decaindo at chegar a total

    corrupo moral do imperador. Daqui em diante os elementos positivos vo ficando

    cada vez mais raros e os negativos so ressaltados. Diversos so os elementos negativos

    empregados por Tcito. Nesta parte da monografia iremos analisar como o historiador

    latino utiliza um desses elementos negativos, a proximidade feminina, na construo da

    imagem do imperador Nero e de seu principado nos Anais. Neste contexto o carter do

    governante e a sua administrao so coisas indissociveis.

    Nossa anlise infere que a partir da associao ou dissociao de personagens

    femininas a Nero, Tcito marca as fases deste principado. Agripina, sua me, Otvia,

    primeira esposa e Popeia, segunda esposa so as principais personagens femininas que

    so vinculadas a este Imperador. Essas associaes ou dissociaes carregam em si um

    smbolo positivo ou negativo de acordo com o desejo ou envolvimento dessas mulheres

    84 Sobre esta boa fase do governo de Nero vide Miriam GRIFFIN T. Nero: the end of a dynasty. London: Yale University Press, 1985.

    37

  • em assuntos polticos. Era notrio que em Roma as mulheres no poderiam participar

    formalmente de assuntos administrativos. Contudo, com o advento do Imprio, a

    transposio do lugar de poder foi feita do Frum para a Domus, o que permitiu que

    tanto as mulheres quanto os libertos pudessem participar, mesmo que informalmente, da

    administrao imperial.85 Em um primeiro momento que vai de 54, com sua ascenso ao

    trono, at o assassinato de sua me em 59, o governo de Nero apresentado como bom.

    Nesta parte, a principal tentativa de Tcito desvincular Nero do grupo Agripina/Palas

    para vincul-lo a Sneca e Burrus. A virada deste perodo ocorre com o matricdio e as

    conseqncias morais que isso traz personalidade de Nero. Se antes Nero figurava

    como sendo aconselhado por Burrus e, principalmente, por Sneca, de 59 at 62 ele

    tenta a sua independncia destes e vincula-se a Popeia e Tigelino. Outro fator

    importante a constante sombra de Agripina e a insistncia de Tcito no argumento de

    que foi sua me que o levou ao poder, argumento desfavorvel ao Imperador. O terceiro

    perodo comea em 62, logo aps a morte de Sula e Plauto com o repdio de Otvia

    e o casamento com Popeia e termina no final do que restou dos Anais, em 65. Nesta

    parte, Nero j est totalmente transformado e correntemente acusado de seus crimes

    anteriores. Nossa marcao cronolgica a seguinte:

    1. Perodo: comea em 54 com a ascenso de Nero ao trono e termina em 59

    com o matricdio de Agripina. Fase marcada pela dissociao de Agripina e associao

    de Sneca e Burrus ao Imperador. Popeia aparece como o grande agente de suas

    decises moralmente condenveis.

    2. Perodo: comea logo aps o assassinato de Agripina, mostrando Nero

    revelando-se como um artista e atormentado pelo matricdio de sua me. Termina com o

    85 Andrew WALLACE-HADRILL. The Imperial Court In: BOWMAN, A. K., CHAMPLIN, E. & LINTOTT, A. The Cambrigde Ancient History. 2 nd edition. Vol. X: The Augustan Empire, 43 B.C. A.D. 69. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

    38

  • assassinato de Plauto e Sula. Nesta fase Nero associado politicamente a Agripina. Este

    perodo considerado em nossa anlise como de transio onde ocorre um novo

    rearranjo poltico e o desmascaramento da personalidade de Nero, mostrando sua

    vocao para artista e no para imperador. O consilium princeps rearranjado com a

    morte de Burrus e o afastamento de Sneca.

    3. Perodo: comea com o repdio de Otvia e casamento com Popeia.

    Marcado pelo grande nmero de mortes causadas pela conspirao pisoniana. Nesta

    fase, Nero aparece como totalmente incontrolvel.

    Nossa proposta que a nfase na associao de personagens femininas que

    almejem participao poltica sob Nero feita por Tcito para tentar marcar a

    insuficincia administrativa deste imperador. Quanto maior a associao de Nero a

    essas mulheres pior ficar seu governo. Vejamos mais detalhadamente os trs perodos

    do principado neroniano e como ocorrem essas associaes e dissociaes que

    sugerimos.

    5. 1. UM BOM PERODO DE GOVERNO (ANAIS 13, 1-14, 9)

    Para compreender o governo de Nero de fundamental importncia que

    primeiramente tenhamos clareza como a sua ascenso ao trono, ainda no principado de

    Cludio, foi relatada nos Anais. Neste contexto a figura com importncia central para

    entendermos tanto a formao como os primeiros anos do governo de Nero Agripina.

    Sob o principado de Cludio, Agripina obteve acentuada visibilidade nas descries de

    Tcito e foi largamente associada a este imperador como estratgia de desmerecer seu

    governo. Tcito usa Agripina para realar que o final do governo de Cludio foi dirigido

    por uma mulher e o incio do governo de Nero conseguiu anular esta influncia.

    39

  • Agripina tornou-se mulher do imperador Cludio graas a um consilium

    libertinus convocado por ele para decidir qual seria a melhor escolha para sua futura

    esposa. A deciso de Cludio, aps ouvir seus libertos, recaiu em Agripina. Por ela ser

    sua sobrinha foi necessria a autorizao do Senado para permitir a unio entre eles.86

    Foram senadores que se responsabilizaram por implementar a deciso tomada atravs

    do conselho de um liberto, Palas. A estratgia de Tcito deixar clara a inevitabilidade

    de um mau governo que se instituiu por libertos que deram poder a uma mulher, sendo

    que os senadores aparecem como servis colaboradores de seus inferiores hierrquicos.

    Com isso Tcito inverte os papis, na medida em que demonstra que o governo

    de Cludio no seguiu os preceitos da Res publica, apresentando o Imperador se

    aconselhando com libertos de estatutos to inferiores e no com membros da

    aristocracia romana. Tcito, nessa parte dos Anais, constri uma associao da imagem

    de Agripina a libertos e, conseqentemente, a imagem do imperador ligada a libertos e a

    uma mulher.

    Agripina ganha maior destaque no relato de Tcito a partir de seu casamento

    com Cludio. Seus furores so minunciosamente descritos bem como o fato de o

    imperador submeter-se prontamente s suas vontades, mesmo sendo estas as mais

    absurdas. Isso pode ser exemplificado quando Cludio pede a Tarqunio Prisco que

    acuse Estatlio Tauro unicamente porque Agripina queria seus jardins.87 O intuito ,

    obviamente, de ridicularizar este imperador. Em seu relato no foi apenas Agripina que

    controlou Cludio. Era uma caracterstica deste imperador ser manipulado por mulheres

    e libertos e, desta forma, ter um governo mal administrado devido m escolha de seu

    consilium.

    86 TCITO. Anais, XII, 4.87 Idem, XII, 59.

    40

  • Tendo participao no governo de Cludio, Agripina consegue participar dos

    assuntos da administrao do Imprio, assim como construir todo um crculo de poder

    no interior da corte de Cludio. Em outras palavras, Agripina tinha poder e se fortalecia

    porque muitos deviam favores a ela.

    Para obter esta posio, Agripina realizou as seguintes manobras polticas: a)

    trouxe Sneca do desterro para ser o preceptor de Nero88 e seu aliado poltico no interior

    da corte de Cludio; b) esforou-se para elevar Burrus ao comando da Guarda

    Pretoriana.89 c) articulou para que libertos de sua confiana fossem alados a postos

    estratgicos na administrao da Domus Caesaris. Alm de fortalecer sua posio,

    buscava paralelamente isolar e enfraquecer quem se colocasse fora de sua rea de

    influncia. o que ocorre quando ela progressivamente minou as possibilidades de

    Britnico, filho legtimo de Cludio, de ser o futuro imperador atravs do argumento da

    precariedade da sua educao e do afastamento de seus aliados polticos.90

    Agripina vai ampliando seu poder e enfraquecendo seus adversrios. Tcito

    indica que o coroamento desta articulao seria o assassinato de Cludio, a quem ela

    devia sua posio, para a construo de uma nova corte que teria por Imperador seu

    filho, Nero.

    Nos Anais, Nero descrito como um produto da ambio de Agripina que

    articula seu casamento com Otvia, filha de Cludio.91 Alm disto, coloca a seu servio

    alguns de seus aliados polticos, com nfase para Sneca, seu preceptor. Depois de

    isolar ou mesmo eliminar fisicamente possveis pretendentes sucesso de Cludio e

    fortalecer os apoios em favor da ascenso de seu filho ao trono, Agripina trama o

    assassinato de Cludio e Nero sobe ao poder.

    88 Idem, XII, 8.89 Idem, XII, 42.90 Idem, XII, 41.91 Idem, XII, 58.

    41

  • Nos cinco primeiros anos do governo de Nero, Tcito tenta desvincular a sua

    imagem como aliada poltica do imperador, vinculando Nero preferencialmente a

    Sneca e Burrus, pessoas de virtudes. Tcito mostrou Cludio cercado de conselheiros

    libertos e mulheres. Ao contrrio, Nero foi apresentado em seus primeiros anos ao lado

    de homens de grande valimento, membros da aristocracia romana. Agripina e os libertos

    que atuavam na corte passaram a um segundo plano e, em alguns anos, desapareceram

    completamente como o caso da supresso de Agripina entre 56 e 59. O ano de 56, que

    abarca seis captulos, praticamente todo dedicado discusso no Senado sobre a

    revogao da liberdade dos libertos que se mostrassem ingratos com seus ex-patres. O

    ano de 57 tem apenas trs captulos e o de 58 abarca vinte e quatro captulos dedicados

    guerra entre romanos e partos. Com essa supresso de Agripina da narrativa, e com o

    maior destaque dado a Sneca e Burrus como aliados polticos de Nero, Tcito

    caracteriza um bom perodo de governo.

    No relato, Nero tinha uma poltica de governo diferente daquela de Cludio.

    Entre outras inovaes, prometia manter os assuntos da Res publica independentes dos

    da domus.92 A principal personagem que tinha influncia advinda da domus era

    Agripina. Tcito indica o bom governo ao omitir a presena de Agripina, o que no

    significa que ela deixava de existir efetivamente: trata-se de um recurso narrativo.

    Tcito abre o livro 13o, no qual comea a narrativa do principado neroniano,

    contrapondo o perfil de Agripina aos de Sneca e Burrus. No primeiro pargrafo Tcito

    relata assassinatos cometidos por influncia de Agripina, no segundo ressalta as virtudes

    de Sneca e Burrus, criando um contraste com as maldades de Agripina, relatadas no

    pargrafo anterior. Tcito demonstra claramente a sua concepo que para se ter um

    bom governo seria necessrio que Nero tivesse como aliados Sneca e Burrus. Em

    outras palavras, Tcito divide, j no primeiro ano do governo de Nero, o que no governo

    92 Idem, XIII, 6.

    42

  • de Cludio era um nico grupo de poder articulado por Agripina. Produzindo atravs de

    seu relato uma separao entre Agripina de um lado e Sneca e Burrus de outro.

    Referindo-se a Agripina, Tcito declara que: Os assassnios seriam cada vez mais

    freqentes se Afrnio Burro e nio Sneca os no tivessem coibido.93

    No devemos tratar Sneca e Burrus como uma unidade. Ambos tinham

    posies diferentes tanto na corte quanto em relao a Agripina. Sneca, ao menos no

    relato de Tcito, conseguiu desvencilhar-se muito mais da aproximao poltica de

    Agripina. Por outro lado, Burrus correntemente citado por Tcito como ainda ligado

    me do imperador.94 O motivo de tal relativa independncia viria do cargo de senador

    que Sneca ocupava. Em outras palavras, Tcito coloca Sneca, enquanto senador, em

    uma posio de afastamento de uma personagem, Agripina, que sempre foi associada

    como elemento negativo. Por outro lado, Burrus vinculado de forma direta me do

    Imperador em quatro momentos marcantes na narrativa.95

    O anncio de Tcito do declnio gradual do poder de Agripina em 55, 96 menos

    de um ano aps o incio do governo de Nero, foi mais uma tentativa de desvincul-la do

    imperador. Tal afirmativa difcil de ser sustentada a partir do momento que

    analisamos mais de perto a narrativa taciteana. Tomemos alguns exemplos.

    No ano de 55, Tcito argumenta que Nero j estava to indisposto com a

    presena de