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O LETRAMENTO LITERÁRIO NO ENSINO MÉDIO: UMA ANÁLISE DE MANUAL DIDÁTICO Autor. RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar seções de leitura literária no livro didático de língua portuguesa Linguagem e interação, destinado a alunos do ensino Médio, a fim de investigar se a abordagem do texto neste manual está em consonância com a proposta do ensino da disciplina literatura como prática social. A pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo - interpretativa teve como ponto de partida a leitura de textos geradores presentes no livro, a seleção de exercícios e a análise dos mesmos com base nas teorias acerca de escolarização da literatura de Soares (1999) e de letramento literário de Cosson (2006). THE LITERARY LITERACY IN THE SECONDARY SCHOOL: AN ANALYSIS OF DIDATIC MANUAL ABSTRACT: This paper analyze sections of literary reading in Portuguese textbook “Linguagem e interação”, intended for students in secondary school, in order to investigate whether the approach of the text in this manual is in line with the proposal of the teaching of literature as social practice. The bibliographic research of a qualitative – interpretative nature started with the reading of texts present in book, the selection of exercises and the analysis of the same based on theories about schooling of the literature of Soares (1999) and literary literacy of Cosson (2006) PALAVRAS- CHAVE: Leitura. Livro didático. Letramento literário. KEYWORDS: Reading. Didatic manual. Literary literacy Ensino de literatura no Brasil – breve introdução O ensino de literatura no Brasil parece estar pautado numa perspectiva histórica que privilegia a abordagem descritiva de estilos de época, obras e autores mais significativos. Nessa

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O LETRAMENTO LITERÁRIO NO ENSINO MÉDIO: UMA ANÁLISE DE MANUAL DIDÁTICO

Autor.

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar seções de leitura literária no livro didático de língua portuguesa Linguagem e interação, destinado a alunos do ensino Médio, a fim de investigar se a abordagem do texto neste manual está em consonância com a proposta do ensino da disciplina literatura como prática social. A pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo - interpretativa teve como ponto de partida a leitura de textos geradores presentes no livro, a seleção de exercícios e a análise dos mesmos com base nas teorias acerca de escolarização da literatura de Soares (1999) e de letramento literário de Cosson (2006).

THE LITERARY LITERACY IN THE SECONDARY SCHOOL: AN ANALYSIS OF DIDATIC MANUAL

ABSTRACT: This paper analyze sections of literary reading in Portuguese textbook “Linguagem e interação”, intended for students in secondary school, in order to investigate whether the approach of the text in this manual is in line with the proposal of the teaching of literature as social practice. The bibliographic research of a qualitative – interpretative nature started with the reading of texts present in book, the selection of exercises and the analysis of the same based on theories about schooling of the literature of Soares (1999) and literary literacy of Cosson (2006)

PALAVRAS- CHAVE: Leitura. Livro didático. Letramento literário.

KEYWORDS: Reading. Didatic manual. Literary literacy

Ensino de literatura no Brasil – breve introdução

O ensino de literatura no Brasil parece estar pautado numa perspectiva histórica que

privilegia a abordagem descritiva de estilos de época, obras e autores mais significativos.

Nessa vertente, observamos a supervalorização do contexto histórico e da biografia dos

autores, além de tornar o texto fonte para estudo de conceitos estruturalistas – estudo do

narrador, versificação, figuras de linguagem, entre outros. Teóricos como Cereja (2004),

Leahy-Dios (2004) e Amorim (2013), afirmam que esse tipo de abordagem do texto literário –

introduzida no século XIX - não auxilia na “construção de um saber relevante para sujeitos

sociais” (LEAHY-DIOS, 2004). Conforme atesta William Roberto Cereja (2004), os alunos

não são levados a dominar as estratégias de leitura e interpretação, são incapazes de reconhecer

recursos estilísticos e de associar forma e conteúdo, não relacionam elementos internos e

externos do texto, além de não associarem o texto literário a outros textos e discursos.

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Contribuindo para o descrédito do ensino da literatura, é necessário apontar a falta de

uma formação inicial de qualidade para os professores que, atualmente, passam, em média, três

anos em cursos de licenciatura que, muitas vezes, mal se adéquam ao proposto pelas Diretrizes

Curriculares para os Cursos de Letras. De acordo com esse documento, os acadêmicos da área

deveriam “ter domínio do uso da língua ou das línguas que sejam objeto de seus estudos, em

termos de sua estrutura, funcionamento e manifestações culturais”. Além disso, deles se

esperam múltiplas competências e habilidades para atuarem como professores, pesquisadores,

críticos literários, o que, ao nosso entender, não tem sido proporcionado pela organização e

grade curricular vigente de cursos de Letras de grande parte das universidades que atualmente

oferecem essa formação. Ademais, o estudo da literatura nos cursos de licenciatura é muitas

vezes sobreposto por uma massiva quantidade de disciplinas de língua, ministradas sem

aparente relação com o objeto literário (cf. AMORIM, 2013).

Observamos ainda, segundo Amorim (2013) que documentos oficiais norteadores para o

ensino, como o Currículo Mínimo da rede estadual do Rio de Janeiro, continuam a corroborar o

ensino tradicional, de base historiográfica e tecnicista. Ainda de acordo com esse autor, a

abordagem literária perseguida por muitos professores – e incentivada por documentos oficiais,

tem permitido a passividade do aluno, que, em vez de agir criticamente no mundo que o cerca

pela leitura, é construído como um recebedor de informações sobre determinada obra, isto é,

de informações e interpretações acerca do literário cristalizadas a partir de uma determinada

visão de mundo e transmitidas pelo professor - e pelos livros didáticos.

Magda Soares (1999), ao discorrer sobre a escolarização adequada da literatura, ressalta

o papel da escola em conduzir eficazmente o aluno “às práticas de leitura literária que ocorrem

no contexto social”, o que nos leva a recuperar a noção de letramento. Afinal, a leitura está

articulada aos diferentes sentidos e funções atribuídas à escrita por uma determinada cultura, à

intensidade da sua participação no cotidiano e no imaginário dos sujeitos e à distribuição e

circulação da escrita.

O tratamento dado à literatura, especificamente nos livros didáticos do 2º ano do Ensino

Médio, os quais serão analisados nas próximas seções, tende à simplificação, ao básico. Esses

geralmente conciliam num único volume de cada série as três modalidades do programa para o

ensino da Língua Portuguesa – gramática, produção textual e literatura - incluindo, além da

parte teórica, roteiros ou questionários de leitura e análise de textos, listas de exercícios

gramaticais, propostas de produção textual.

Assim, os manuais de literatura que se apresentam “esquemáticos” e se apoiam em

pressupostos da pedagogia transmissiva, com forte tendência à memorização, tendem a

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satisfazer uma realidade de ensino de literatura que conta com professores mal preparados e

sem autonomia teórica para interferir em atividades que não abordam efetivamente a leitura do

texto literário. Com essa constatação, na maioria das escolas, há limitadas condições para que o

discente exerça a leitura de maneira a se inserir de modo mais pleno e participativo na

sociedade.

Nesse contexto, a pesquisa teve por objetivo a análise de livros didáticos do 2º ano do

ensino médio aprovados pelo PNLD e, para tanto, elegemos a obra de Faraco, Moura e Maruxo

Jr. Língua Portuguesa: Linguagem e interação, a fim de verificar se as seções de literatura

promovem uma leitura crítica, o letramento literário, ou apenas apresentam exercícios de

decodificação e conteúdo gramatical.

Essa proposta justifica-se pela necessidade de mudança desse paradigma e por provocar

uma reflexão acerca do ensino de literatura como prática social, baseado no conceito de

letramento literário. Ao analisarmos, segundo essa visão, o maior recurso de que os professores

dispõem em sala de aula – o livro didático – estaremos investigando se a literatura como

disciplina escolar auxilia na criação de uma consciência social crítica.

O ensino de literatura e cultura – promovendo uma consciência social

O ensino de cultura na escola é de grande importância para a formação do discente, uma

vez que promove a reflexão sobre o meio no qual ele próprio está inserido. Apesar dessa

importância, Guinsk (2008) assinala que a cultura perdeu sua autonomia como disciplina,

quando seu estudo foi dissolvido em outras matérias da grade escolar. E por conta dessa

fragmentação, o laço entre o ensino de cultura e de literatura se estreitou, na medida em que

esta disciplina é a que melhor representa e preserva a importância dos estudos culturais.

A autora entende como cultura o sistema de conhecimentos que constituem o modo de

vida de um indivíduo e da sociedade e defende que, em sala de aula, o professor deve mostrar a

aplicação desse conceito na vida do aluno, chamando atenção para o fato de a cultura interferir

em nosso jeito de falar, vestir e interagir. A leitura de textos literários viabiliza, nessa

perspectiva, a contemplação e compreensão de “diversidades culturais e lingüísticas”.

Essa prática docente torna comum que conflitos sociais movidos por estereótipos e

preconceitos sejam amenizados quando os estudos culturais estão aliados às aulas de língua

portuguesa, estrangeira e literatura, na medida em que essa didática gera o conhecimento

crítico. Podemos reafirmar, então, a importância do texto literário como ferramenta de ensino

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de cultura e língua e assinalar que o gosto pela leitura traz uma “redescoberta do universo no

qual estamos inseridos”. (GUINSK, 2008)

Esse valor da literatura também foi discutido por Leahy-Dios que afirma “a educação

literária pode ter um papel central na criação de uma consciência sociopolítica nos futuros

cidadãos de qualquer sociedade” (2004, p.16). Segundo a autora, a disciplina pode

desempenhar esse papel por estar sustentada numa associação de três importantes pilares

educacionais: estudos da língua, estudos culturais e sociais.

Além disso, Leahy-Dios coloca diversos motivos para justificar a importância e a

complexidade da literatura como disciplina escolar. Resumidamente, a complexidade centra-se

no fato de que essa matéria lida com um dos maiores instrumentos de poder e de expressão

artística, que é a palavra. Sem deixar de levar em consideração que a palavra e a língua são

culturalmente e socialmente construídas, podemos dizer que a literatura “lida com o sensorial e

o racional de indivíduos e grupos sociais, (...) atua na comunicação de ideias, sentimentos,

emoções e pensamentos” (LEAHY-DIOS, 2004, p.18).

Nesse contexto, a autora observa o ensino de literatura no sistema educacional brasileiro,

explicitando que nossos currículos seguem um modelo positivista, tendendo a uma abordagem

voltada para o contexto histórico e sociocultural. Assim, a finalidade dos estudos literários no

Brasil está em identificar elementos da poesia e da ficção, gêneros, autores e classificá-los na

história literária.

Levando em consideração tais observações, cabe delinear também os papeis exercidos

por professores e alunos na educação literária para compreender, de fato, a contribuição da

literatura na vida desses indivíduos. Entendendo o docente e o discente como as vozes

principais do processo pedagógico, os estudos literários podem ajudar a construir saberes

necessários para uma participação efetiva na sociedade.

Finalmente, a educação literária pode ser tomada como metáfora social porque está

pautada num currículo influenciado por valores sociais e um cenário cultural:

(...) a educação literária, em seu atual formato escolar, se mostra na maior parte das vezes marcada mais profundamente por elementos didáticos que propriamente literários, apesar de ambos constituírem formas de expressão da organização e dos valores sociais, sendo, consequentemente, metafóricos. (LEAHY-DIOS, 2004, p.26)

Dessa forma, a autora reitera a importância social da literatura e da cultura como

disciplinas escolares. Nesse sentido, é importante pensar em como esse processo de

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escolarização da literatura acontece e em quais são suas consequências para todos os

envolvidos na dinâmica ensino-aprendizagem.

A escolarização da literatura e o letramento literário como proposta

Em seu artigo “A escolarização da literatura infantil e juvenil”, Magda Soares argumenta

sobre a complexa questão da escolarização da leitura literária, especialmente aquela

direcionada ao público infantil, respondendo a algumas questões pertinentes também à nossa

pesquisa. Como se dá a escolarização da leitura literária? Em que sentido essa escolarização

pode trazer consequências positivas ou negativas para o leitor?

Escolarizar a literatura seria um processo segundo o qual a escola apropria-se do texto

literário, tornando-o parte de seu material didático, visando a atender um objetivo pedagógico.

Nesse sentido, a leitura escolarizada torna-se desvinculada da leitura por prazer, fruição, uma

vez que sempre é exigida a comprovação por meio de fichas, questionários e provas que

objetivam avaliar se a leitura realmente aconteceu.

Apesar do caráter classificatório e formal inerente à instituição escolar, que seleciona e

organiza os conteúdos, Soares coloca que o termo escolarização não deve ser encarado apenas

no sentido pejorativo, uma vez que esse fenômeno torna-se prejudicial ao aprendizado do aluno

somente quando o texto literário é deturpado ou utilizado para outros fins que não sejam a

proficiência nas habilidades de interpretação.

De fato, a leitura literária quando realizada de maneira adequada na escola é capaz de

tornar o indivíduo proficiente e crítico, como foi explicitado na primeira parte desses

pressupostos, e como coloca Soares: “aquela que conduza mais eficazmente às práticas de

leitura que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores que correspondem ao ideal de

leitor que se quer formar” (SOARES, 1999, p. 25), enquanto a escolarização inadequada pode

provocar o efeito contrário, a aversão à leitura.

É preciso considerar também que a leitura literária na escola é, em grande parte, efetuada

por meio do livro didático de português, considerado o instrumento mais utilizado pelo

professor hoje. Essa predileção pelo livro didático não é arbitrária, pois com a quantidade de

conteúdos a serem cumpridos no bimestre, o tempo não é suficiente para a leitura de romances

inteiros, por exemplo. Os manuais trazem fragmentos de textos que, de certa forma,

possibilitam ao professor apresentar um maior acervo de leitura para os alunos e, ao mesmo

tempo, cumprir as exigências curriculares.

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É no livro didático, no entanto, que se observam as maiores inadequações no que diz

respeito à leitura literária escolarizada. Com o objetivo de refletir sobre as práticas dos livros

didáticos e ilustrar problemas, Soares coloca quatro aspectos da leitura na escola, que irão

nortear a análise de proposta neste TFC. São eles: a) a pertinência da seleção de textos:

gêneros, autores e obras; b) a seleção do fragmento que será estudado; c) a transferência de

suporte: do literário para o didático; e d) as intenções e objetivos dos exercícios que

acompanham esse fragmento. Para a autora, todos esses aspectos são relevantes para que a

escolarização da leitura literária seja adequada.

Nessa perspectiva, vemos que a escolarização adequada da literatura é importante e

necessária, como também mostra Cosson: “É por possuir essa função maior de tornar o mundo

compreensível transformando sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas

intensamente humanas que a literatura tem e precisa manter um lugar especial nas escolas”

(2009, p.17). A afirmação do teórico dialoga com o posicionamento de Soares acerca da

escolarização da literatura. Porém, o autor enfatiza a inadequação desse processo e propõe um

ensino de literatura baseado na noção de letramento literário.

Antes, porém, como já sinalizamos na introdução deste trabalho, é necessário dizer que o

ensino da literatura brasileira parece estar pautado na perspectiva historicista, privilegiando a

diacronia e a exposição dos estilos de época numa sucessão perfeita, que nunca existiu de fato.

Cosson observa que as atividades que seguem aos fragmentos de textos estudados contemplam

o domínio de informações sobre escolas literárias e a comprovação da leitura por meio de

atividades avaliativas. Nesse sentido, os alunos não se sentem atraídos pelo texto literário e,

por consequência, não entendem a importância do ato de ler.

As práticas descritas acima não promovem o que o autor chama de letramento literário, a

leitura como prática social e como responsabilidade da escola. Nesse caso não se trata da

leitura simples, mas sim da leitura que nos faz ler melhor, “porque nos fornece, como nenhum

outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência

o mundo feito linguagem.” (COSSON, 2009, p.29)

Para alcançar tal objetivo é necessário encarar o ensino de literatura por outra

perspectiva, especialmente no que diz respeito à seleção de textos, que não deve obedecer a

uma organização diacrônica. O teórico coloca que “O letramento literário trabalhará sempre

com o atual, seja ele contemporâneo ou não. É essa atualidade que gera facilidade e o interesse

de leitura dos alunos.” (COSSON, 2009, p.34)

É preciso atentar, por fim, para as três etapas de leitura que, segundo o autor, guiam a

ideia de letramento literário: os processos de decodificação, ativação dos conhecimentos

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prévios do leitor e, finalmente, a interação entre autor, texto e leitor. É nesse ponto que a leitura

torna-se uma prática social. “A leitura é uma série de convenções que uma comunidade

estabelece para a comunicação entre seus membros e fora dela. (...) Aprender a ler e ser leitor

são práticas sociais que medeiam e transformam as relações humanas” (COSSON, 2009, p.39).

Escolha do corpus e análise

A obra escolhida para análise é Língua Portuguesa-Linguagem e Interação dos autores

Faraco, Moura e Maruxo Jr- Volume 2 da Editora Ática para alunos do 2º ano do Ensino

Médio. Esse livro foi escolhido porque é utilizado por muitos colégios da rede pública e

privada, geralmente com uma boa aceitação por parte do corpo docente. Os autores têm certa

tradição na escrita de livros didáticos e manuais gramaticais, sendo, assim, já conhecidos no

meio escolar. Além disso, na apresentação do manual do professor, os autores afirmam que a

obra tem como metodologia norteadora o trabalho integrado entre gramática, literatura e

produção textual, a fim de promover a reflexão sobre as práticas de linguagem e comunicação,

como práticas sociais, que demandam níveis de interação. Entendemos, dessa forma, que o

texto literário será trabalhado de maneira crítica e é isso que pretendemos analisar.

A análise dos exercícios visa a avaliar se as questões promovem o letramento literário,

levando em consideração que os textos de diferentes autores trazem implícitos vários

questionamentos sociais, que devem ser trabalhados em sala de aula para que o aluno realize

uma leitura crítica, compreendendo não só o texto, como também o contexto da época que

permitiu sua escritura.

Análise das seções de leitura literária.

Realizaremos, nesta etapa, a análise das seções de leitura literária presentes no livro

didático Língua Portuguesa: Linguagem e interação volume 2 de Faraco, Moura e Maruxo Jr.

A referida obra, aprovada pelo PNLD, fez parte da escolha de livros didáticos realizada na rede

estadual do Rio de Janeiro no ano de 2011, para o triênio 2012 -2013-2014, e teve boa

aceitação por parte dos docentes. Podemos perceber que um dos pontos relevantes para a

aceitação é o diálogo entre os conteúdos presentes na parte de literatura do livro e no Currículo

Mínimo – documento de referência para os docentes da rede, que traz as habilidades e

competências mínimas a serem abordadas naquele bimestre.

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Pensando no diálogo com esse currículo, elegemos textos relacionados aos conteúdos

ministrados no primeiro e segundo bimestre cujos eixos temáticos são, respectivamente: poesia

e romance no romantismo, conto e romance no realismo e naturalismo. A principal habilidade

de leitura nesses bimestres é “Relacionar os modos de organização da linguagem na literatura

às escolhas do autor, à tradição literária e ao contexto social da época.” (SEE-RJ, 2012, p.17)

Esta habilidade aponta para um trabalho que contemple os aspectos do texto literário de

maneira integrada e que possibilitaria o ensino de literatura como prática social, uma vez que

faria o aluno entender as mudanças que determinaram vários aspectos de nossa sociedade atual,

ocorridas nos séculos XVIII e XIX. Dessa forma, a ferramenta livro didático é essencial para a

apresentação de textos e autores variados e de um grupo de questões que visem à compreensão

dessa outra realidade cultural e consequentemente da linguagem empregada pelo autor.

O livro didático escolhido apresenta uma boa seleção de textos dos períodos analisados e,

na seção “Para ir mais longe”, tenta estabelecer um diálogo entre textos de diferentes épocas,

trazendo o recurso da intertextualidade1. Porém, percebemos que nem todos os textos vêm

acompanhados de questões que levem à análise ou à comparação. E, ainda, há questões que

trazem o simples objetivo de decodificar informações ou servem como pretexto para outros

conteúdos, não promovendo, assim, o letramento literário. É o que veremos a seguir:

Eixo temático: Poesia e romance no romantismo

Texto 1: Marieta - Castro Alves.

Segundo Cosson, as três etapas do processo de leitura são essenciais para que a leitura

seja, efetivamente, uma prática social, porém o exercício analisado só corresponde à primeira

etapa, de decodificação, pois a questão 12 referente ao poema Marieta não promove reflexão

sobre o poema nem sobre o tema do capítulo, que trata essencialmente do amor idealizado nas

poesias.

A simples colocação na ordem direta não proporciona inferências sobre a escolha do

autor, o porquê de não utilizar a ordem direta no texto original. Finalmente, entendemos que o

poema serviu de pretexto para uma questão meramente de identificação da ordem dos termos

numa oração, deixando de lado aspectos importantes da poesia de Castro Alves.

1 Segundo Koch (2003), a intertextualidade se configura, em seu sentido restrito, na relação entre textos previamente existentes. Dessa maneira, textos dialogam em diversos níveis, como por exemplo, temática, forma e conteúdo, deixando as marcas dessa relação perceptíveis ao leitor.

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Texto 2: Memórias de um sargento de milícias (fragmento) Manuel Antonio de Almeida

Questão: 19. No Brasil, o romantismo em prosa apresenta quatro tendências:

a) romance urbanob) romance regionalistac) romance indianistad) romance histórico

Responda em seu caderno: em qual das três primeiras tendências você enquadraria cada um dos textos lidos? Justifique sua classificação.

O exercício 19 foi escolhido porque é o único que se apresenta após o texto gerador e,

curiosamente, parece não se referir somente a ele, mas sim, contemplar textos vistos ao longo

do capítulo e até mesmo, textos que não estão no livro. O que entendemos dessa questão é uma

proposta de identificação de características fixas e imutáveis que enquadrariam os textos nessas

tendências. No entanto, teóricos da Teoria e História literária, como Alfredo Bosi, já

condenam este tipo de classificação, uma vez que, dessa forma, não são levados em

consideração aspectos singulares de cada obra e autor. Nas palavras de Bosi,

É fácil cair na tentação de gizar um esquema evolucionista para a história de nosso romance romântico (...) A ideia de um conhecimento progressivo do Brasil(...) pode levar o historiador ingênuo a escolher para critério tipológico os ambientes apanhados na ficção: romance urbano/romance campesino; romance do norte/ romance do sul; método que, no seu estreito sincronismo, não se dá conta dos tempos culturais díspares que viviam cidade e campo, corte e província ( 2006, p.133)

Levando em consideração, ainda, que o texto gerador dessa questão é importante para

entender o momento de decadência do império brasileiro e de transição da sociedade, além da

representação das classes menos favorecidas, pensamos na importância de questões que

abordassem o texto propriamente dito, promovendo o letramento literário. Neste caso, vimos

que a proposta de estudo do fragmento de Memórias de um sargento de milícias não está de

acordo com aquilo que Soares (1999) coloca como uma efetiva escolarização da leitura, pois as

intenções e objetivos do exercício não trazem reflexão crítica acerca da obra.

Eixo temático: Conto e romance conto e romance no realismo e naturalismo

Texto: O cortiço (fragmento) – Aluísio Azevedo

Questões:

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As questões 4 e 6 trazem uma temática frequentemente trabalhada pelos Livros Didáticos

em textos naturalistas, porém, não apresentam nenhuma justificativa nem propõe reflexão

acerca dessa escolha do autor. O aluno é levado a decorar essa comparação como característica

do naturalismo, mas não é apresentado o porquê desta aproximação entre seres humanos e

animais.

O exercício 7 é uma questão de mera identificação das figuras de estilo, sem promover

nenhum reflexão sobre o sentido que elas conferem ao texto.

O exercício 9 seria interessante, na medida em que solicita uma comparação entre as

figurações da mulher nas três escolas literárias estudadas até então. A discussão é rica,

especialmente se pensarmos nas reflexões acerca do papel e das representações da mulher nos

romances e na sociedade. No entanto, observamos que o enunciado é insuficiente para a

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inferência dos elementos dessa comparação. O aluno deve procurar semelhanças ou diferenças?

Questões sociais, como a levantada acima, não são abordadas. Além disso, a resposta sugerida

para o professor é extremamente simplista, não ajuda a direcionar a discussão e ainda sugere

que o único elemento de diferenciação seriam as características semelhantes a de um animal.

Dessa forma, observamos que os três exercícios selecionados aqui e propostos para o

fragmento de O cortiço objetivam a percepção de uma característica da escola literária

Naturalismo e a identificação de figuras de estilo. Retomando o pensamento de Cosson e

Soares, observamos que a escolarização do texto, nesse caso, não foi acompanhada de questões

que promovem a reflexão crítica. O aluno perde, dessa forma, conhecimentos importantes

sobre a significação da obra na época em que foi escrita e deixa de pensar sobre a atualidade

das críticas inseridas ali.

Considerações finais

A análise objetivou investigar se o trabalho com o texto literário no livro didático

Linguagem e interação volume 2 é feito de maneira crítica e para tal, analisamos as questões

que acompanham os textos selecionados. Isso porque, segundo Soares (1999), o objetivo das

questões é um aspecto relevante para o processo de escolarização da leitura literária.

Após a análise, constatamos que os exercícios contemplados aqui não estão de acordo

com os pressupostos do letramento literário, segundo os quais a leitura crítica é fundamental

para o desenvolvimento do aluno enquanto leitor.

Sendo o livro didático uma das ferramentas mais importantes para o docente, é

necessário apontar a necessidade do trabalho crítico com o texto literário, por meio das

questões, uma vez que a literatura como disciplina escolar é uma forma de tornar o aluno

proficiente e crítico para com a sociedade. Por fim, parafraseando Cosson (2009), o contato

com a literatura na escola é o que, normalmente, determina nosso gosto pela leitura. Logo, não

se trata de uma leitura simplista e sim, de uma leitura que nos faça capaz de ler o mundo.

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