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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões
XV Simpósio Nacional de História das Religiões
ABHR 2016
Poder, violência e religião no século IV: Hilário de Poitiers e a construção da imagem de
Constâncio II
Melissa Moreira Melo Vieira1
1. INTRODUÇÃO
A interferência imperial no processo de desenvolvimento e alargamento do aparelho
eclesiástico é um dos princípios que orientam a sociedade romana tardo-antiga. Esse novo modelo
está intimamente relacionado ao processo de crescimento organizacional da Igreja, que ocorre
paralela e concomitantemente com a busca de centralização do poder na figura do imperador (CRUZ,
2007, p. 5). A aproximação da religião cristã com o poder político foi decisiva para a história ocidental,
pois permitiu que o discurso cristão desenvolvesse suas definições e princípios doutrinários na
condição de uma teologia política (CARVALHO, 2010, p. 78). Essa ligação do Estado Romano com a
Igreja potencializou uma nova autoridade política no século IV: o episcopado. O bispo exerceu um
papel importante na propagação do cristianismo e teve o seu poder legitimado dentro da esfera
imperial. Segundo Rapp (2005, p. 6), na qualidade de legítimo líder da comunidade, o bispo julgava os
assuntos religiosos a fim de conter os desvios doutrinais, que, nas interpretações discordantes acerca
da fé cristã, eram classificados como heresias (LEMOS, 2013, p. 9). Dentre essas heresias,
1 Mestranda em História Social das Relações Políticas pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Espírito Santo. A autora é membro do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano
(LEIR)/Seção-ES. Esse artigo é um fragmento do projeto de dissertação com o tema “Identidade, poder e rede de
sociabilidade na Antiguidade Tardia: a dinâmica das querelas religiosas segundo Hilário de Poitiers no contexto do
conflito ariano ocidental (343-361)”, orientado pela Prof. Dra. Érica Cristhyane Morais da Silva. E-mail para
contato: [email protected].
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abordaremos no presente artigo o conflito entre arianos e nicenos que, devido à nova configuração
das relações entre Estado e Igreja, não se limitou apenas ao campo teológico e tornou-se um conflito
político envolvendo o imperador Constâncio II e os bispos ocidentais.
Em detrimento a uma suposta ideia de unidade – difundida e aspirada pelas lideranças
eclesiásticas e pelo poder imperial – as igrejas locais desenvolveram estruturas distintas, cada uma a
seu modo, seja nas questões disciplinares, teológicas ou litúrgicas (LEMOS, 2013, p. 7). Numa
perspectiva geral, a Igreja assemelhava-se muito mais a um imenso mosaico, o que rompe com a
concepção de uma organização monolítica uniforme que ainda é perpetuada pela historiografia
(SILVA; SOARES, 2012, p. 143). Assumir que no final do Império Romano o secular e o religioso foram
percebidos como separados – e que a nossa visão deste período deve aderir a esta dicotomia – é um
resultado enganador do pensamento moderno (RAPP, 2005, p. 6). Essa suposta ideia de coesão,
contudo, ainda figura nos estudos específicos sobre os concílios do século IV. Ao negar a
uniformização da unidade eclesiástica, Burns (2002, p. 151) afirma que os denominadores comuns
eram obtidos por meio de negociações acertadas em concílios.
Em termos gerais, os concílios são reuniões com o objetivo de discutir e regulamentar
questões da doutrina da Igreja. Eles foram o marco legal dessa nova configuração hierárquica da Igreja
e, na teoria, agiam como fator de padronização de práticas e credos nos diversos grupos religiosos
que se denominavam cristãos (YOUNG, 2007, p. 17). Eles não eram, no entanto, uma reunião de todo
o corpo episcopal de uma determinada região: há uma distinção sutil que separa os que são ou não
convocados aos concílios (GAUDEMET, 1977, p. 32). Isso se deve ao fato de que os concílios eram
solicitados para discutir questões como condenações de bispos, exílios ou reconhecimentos de
credos, e a convocação dependia das posições doutrinárias e da representatividade dos bispos em
sua região. A convocação do imperador é um ponto significativo para a compreensão da diversidade,
das coesões e dissenções dos bispos convocados.
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A motivação dos imperadores cristãos, a partir do século IV, em realizar os concílios, refletia a
preocupação destes em preservar uma coesão e unidade na comunidade cristã, pois uma
fragmentação poderia implicar em uma divisão na própria sociedade (CARVALHO, 2006, p. 272).
Contudo, buscar uma unidade de ideias, dentro dessa complexa sociedade, composta de interesses
distintos, que assegurasse uma relação equilibrada entre a política e a religião mostrou-se frágil
(FIGUEIREDO, 2012, p. 17), resultando em diversos conflitos entre os bispos e o imperador. Isso pode
ser verificado no decorrer do século IV d.C., por meio do surgimento de múltiplos conflitos nessas
relações, ligados aos interesses de legitimação da política imperial e às relações de poder, autoridade
e prestígio da organização eclesiástica (FIGUEIREDO, 2012, p. 17). As disputas religiosas no século IV
geraram diversas contendas entre membros do episcopado e do corpo imperial, e estes conflitos
também criaram um conjunto mais elaborado de regras para a definição de legitimidade religiosa. A
hierarquia eclesiástica foi potencializada, juntamente com a coerção religiosa pura e simples, que
serviu para reforçar – ao invés de conciliar – visões de mundo e de grupos de identidades divergentes
(BROWN, 1999, p. 98).
Dentre os conflitos mais significativos em vista da documentação conservada, estão aquelas
conhecidas como controvérsias trinitárias, com destaque ao Arianismo, que surgiu em Baucális, no
Egito, com os sermões de Ário. No ano 312, Ário assumiu o presbitério e pregava sobre a origem e a
natureza de Jesus. Ário questionava a divindade de Jesus, afirmando que antes de Cristo existir, Deus
ainda não era pai (ENTRINGER, 2009, p. 37). Então, como sendo uma criação, o Filho tinha uma
essência distinta e inferior ao Pai e não era eterno como Ele. Sem muita demora, o bispo de Alexandria
logo tomou conhecimento sobre os sermões de Ário e convocou um concílio no ano 318 com líderes
da igreja do Egito e Líbia com o objetivo de reprovar e condenar a doutrina de Ário. O presbítero,
contudo, levou a controvérsia a uma dimensão hierárquica, pois recusou-se a abandonar sua doutrina
e assim foi banido da Igreja, juntamente com seus seguidores. A querela alcançou as ruas e atraiu os
leigos de Alexandria, que escolheram um posicionamento favorável ou contrário a Ário. Mesmo com
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a condenação de Ário no Concílio de Niceia, a doutrina ariana continuou a expandir-se. O Concílio de
Niceia não respondeu à questão central da teologia trinitária, e a harmonia oficial após o Concílio
ocultou as diferenças teológicas que estavam presentes e que alimentavam novas discussões e
disputas (DÜNZL, 2007, p. 61). Segundo Magalhães (2009, p. 113), as disputas entre os grupos nicenos
e arianos em cada cidade “converteram-se em uma verdadeira luta pela hegemonia e controle dos
espaços de culto entre os grupos rivais, liderados por seus bispos respectivos”.
O presente artigo tem como objetivo analisar a imagem do imperador Constâncio II construída
pelo bispo Hilário de Poitiers na inventiva Contra Constantium Imperatorem, bem como compreender
o contexto em que a obra e o autor se inserem. A análise se dará a partir do conceito de
representações, proposto por Roger Chartier. As representações são variáveis segundo as disposições
dos grupos ou classes sociais; almejam à universalidade, mas são sempre assentadas e determinadas
pelos interesses dos grupos que as forjam. As representações não são discursos imparciais: produzem
estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo a legitimar
escolhas (CHARTIER, 1990). Sendo assim, num contexto de conflito entre bispos e imperador, são
estabelecidas novas relações de poder e representações entre os personagens e grupos envolvidos,
de modo a afirmar um controle e hegemonia em um determinado âmbito.
2. CONSTÂNCIO II, O IMITATOR CONSTANTINI
Constâncio II assumiu a posição de Augusto do Oriente em 337, após a morte de seu pai,
Constantino2. O Ocidente ficou sob o governo de seu irmão Constante até a sua morte, em 350, e
após isso Constâncio passa a ser o único imperador que daria continuidade às diretrizes do reinado
2 Com a morte de Constantino em 337, teve início um período de lutas internas pelo poder. Os numerosos meios-
irmãos e sobrinhos de Constantino foram assassinados por políticos. Constâncio II defendia uma sucessão dinástica
ordenada, livre da disputa entre os diversos ramos da família. Essa ideia, assassinato dos membros da família, foi
defendida por Helena, mãe de Constantino, sendo provável que Constâncio II, o homem-forte do novo regime, tenha
ordenado o massacre (CARVALHO, 2013, p. 7).
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de seu pai, como se ele consistisse em um imitator Constantini (ANTIQUEIRA, 2012, p. 128). Em meio
a inúmeros conflitos entre os bispos orientais e ocidentais, Constâncio II não desistiu de suas
tentativas de restaurar a unidade da Igreja (DÜNZL, 2007, p. 94). A ação política de Constâncio sobre
a igreja foi intensa, tendo o seu governo desenvolvido um padrão específico de relações entre
Estado/Igreja, que se afasta em larga medida daquilo que se observa no período precedente, quando
Constantino, embora intervindo nas disputas eclesiásticas, deixou sempre aos bispos uma ampla
margem de autonomia (SILVA, 2003, p. 85).
Os conflitos político-religiosos do século IV sempre sofreram intervenções do poder imperial,
ora em forma de apoio a uma doutrina específica, ora em forma de repulsa. Esse fator era deliberado
pela orientação político-religiosa do representante do poder imperial (PAPA, 2014, p. 3) e, no caso de
Constâncio II, a doutrina adotada como ortodoxa foi o arianismo. O imperador adotou a posição
teológica da maioria dos bispos orientais, que posicionaram-se contra o credo niceno e seu principal
símbolo: Atanásio de Alexandria. A partir de 350, Constâncio iniciou uma ofensiva para submeter os
bispos ocidentais às suas decisões. Os bispos que não aceitassem um determinado credo subscrito
pelo imperador poderiam ser substituídos por outros alinhados com a corte, o que resultava no exílio
dos recalcitrantes (SILVA, 2003a, p. 90).
As ações reproduzidas por Constâncio II em benefício dos arianos “atestam um controle estrito
exercido pelo imperador sobre a Igreja, o que encontra a sua justificação ideológica na produção de
uma mística imperial de inspiração cristã que faz do soberano o vértice da hierarquia religiosa” (SILVA,
1998, p. 12). Para que suas decisões fossem perpetuadas dentro dos concílios, Constâncio precisava
de apoio episcopal e, durante a expansão de seu governo para o Ocidente, Constâncio tinha cada vez
mais sob sua influência os bispos da Ilíria, Valente de Mursa e Ursácio de Singiduno. O imperador deu
a eles lugares privilegiados como bispos da Corte e eles desempenhavam o papel de seus conselheiros
(DÜNZL, 2007, p. 91).
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O arianismo, que já estava presente na teologia oriental desde as pregações de Ário em 318
(ENTRINGER, 2009, p. 39), ainda não era uma questão para a teologia ocidental. A maioria dos bispos
da parte ocidental da Igreja foi atraída diretamente para a disputa ariana apenas quando o imperador
Constâncio – com o apoio de Valente de Mursa e Ursácio de Singiduno, seus partidários – convocou
concílios em Arles (353) e Milão (355) para discutir a deposição de Atanásio (BORCHARDT, 1966, p.
47). Ao confirmar a condenação de Atanásio, Constâncio II obrigou os bispos a se posicionarem a favor
da decisão imperial e exilou todos os que se opuseram à sua vontade, incluindo Libério de Roma,
Dionísio de Milão, Eusébio de Vercelli e Lúcifer de Cagliari (Historia Arianorum, 31-32). Segundo
Weedman (2007), os concílios convocados a partir de 353 eram uma forma de Valente de Mursa e
Ursácio de Singiduno – os bispos da Ilíria que apoiavam e aconselhavam o imperador Constâncio II –
de imporem a tendência pró-ariana do imperador no Ocidente. Foi nessa fase que os elementos
nicenos na Gália foram agrupados em torno de Hilário de Poitiers, que passa a ser visto como um dos
líderes da Igreja no Ocidente na luta contra os arianos (BORCHARDT, 1966, p. 23).
3. HILÁRIO DE POITIERS E A DEFESA DO CREDO NICENO
Hilário nasceu na Gália, por volta de 320 d.C. A cronologia de sua vida é incerta, mas crê-se
que tenha sido eleito bispo de Poitiers no ano de 350. Mesmo não tendo comparecido aos concílios
ocidentais de Arles (353) e Milão (355), de tendência ariana, Hilário trouxe à tona um decreto
rompendo a comunhão com os líderes arianos no Ocidente. Não se sabe de que forma este decreto
foi elaborado e se ele encontrou grande apoio entre os outros bispos na Gália. Os líderes arianos, no
entanto, responderam com a convocação do Sínodo de Béziers, no início de 356, que decretou o exílio
do bispo de Poitiers (BORCHARDT, 1966, p. 47). Sua condenação provavelmente veio dos bispos da
Gália agindo de acordo com Saturnino de Arles, bem como os seus partidários Ursácio de Singiduno
e Valente de Mursa (STEVENSON, 2014, p. 7). Hilário, que não teve a chance de afirmar plenamente
o seu caso diante dos bispos e do imperador, escreveu uma obra na qual indicou que a verdadeira
razão para o consenso na condenação de Atanásio foi a negação da fé nicena, ao invés da rejeição do
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bispo de Alexandria. Antes de ir para o exílio, publicou o compilado de cartas que posteriormente
recebeu o nome de Adversus Valentem et Ursacium.
Antes de setembro de 356, Hilário chegou ao Oriente e foi enviado para a Frígia, para onde os
bispos Paulino e Dionísio – mortos no exílio – foram enviados. Embora seja difícil recuperar a diferença
entre as condições de Hilário, Paulino e Dionísio nos exílios, dificilmente podemos evitar especular
que o bispo acabou em um local menos isolado e aberto a algumas formas de comunicação3. Assim,
ele foi capaz de manter uma posição dissidente no exílio. (STEVENSON, 2014, p. 14). Até certo ponto,
ele estava livre para viajar e no Oriente aprendeu os pontos mais delicados da disputa ariana. Durante
seus anos de exílio, ele escreveu sua principal obra exegética, conhecida como De Trinitate e
desenvolveu o seu próprio ponto de vista da teologia oriental e comunicou ao Oeste as ideias e
tendências religiosas do Oriente (BECKWITH, 2008, p. 9). Sob a influência do bispo Macedônio a partir
de 360, a cidade de Constantinopla converteu-se na fortaleza do arianismo e ratificou em concílio
este credo. Após o concílio, Hilário decidiu voltar para a Gália sem a permissão do imperador, embora
isso seja uma questão de debate entre os historiadores (WEEDMAN, 2007, p. 15). De volta ao
Ocidente, começou a trabalhar ativamente contra os interesses dos arianos, e, junto do bispo Eusébio
de Vercelli, tentou forçar, sem êxito, a remoção do bispo ariano Auxêncio de Milão. No mesmo ano,
escreveu a inventiva Contra Constantium Imperatorem, dirigida à Constâncio II.
No que se refere às inventivas, estas são construções retóricas criadas para determinados fins
polêmicos, como posturas adotadas por seus autores em resposta a conjunturas desfavoráveis
(FLOWER, 2013, p. 21). Estruturalmente, eram idênticas aos panegíricos: como em um negativo
fotográfico, cumpriam o mesmo papel de construir e destruir uma imagem de autoridade. Mark
3 O tratamento que Hilário recebeu no exílio não foi o mesmo que os bispos nicenos Eusébio de Vercelli e Lúcifer de
Cagliari gozaram. Enquanto estes foram privados de liberdade e comunicação externa, Hilário passou um período
com Basil de Ancyra, esteve presente no concílio de Selêucia em 359 e no mesmo ano solicitou uma audiência com
Constâncio em Constantinopla (De Synodis, 63, 90).
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Humphries (1997, p. 464) afirmou, a partir de uma análise das construções estruturais e ideológicas
das inventivas, que estas se classificam como anti-panegíricos. Ao debater as inventivas de Hilário,
Humphries (HUMPHRIES, 1997, p. 465) afirma que:
Longe de emergir do trabalho como um modelo de virtude imperial, como Constâncio teria aparecido
em um panegírico, a imagem duradoura do imperador criado por Contra Constantium é a de um
tirano bestial que criou uma guerra dentro da Igreja.
A figura do imperador foi tratada com desprezo e indignação em Contra Constantium, o que
nos permite ponderar sobre o quanto o desempenho de Constâncio causava aversão aos bispos
nicenos (SILVA, 2003, p. 229). Essa inventiva, produto de uma controvérsia, foi uma peça de
propaganda para instruir historiadores da igreja e do ensino clerical. Contra Constantium foi escrito
com uma perspectiva messiânica4, sendo as atitudes de Constâncio o cumprimento do presságio
anunciado por Cristo, segundo a qual haveria no futuro um período de negação dos verdadeiros
dogmas em prol das doutrinas difundidas pelos falsos apóstolos, ou seja, os bispos partidários do
imperador (SILVA, 2003, p. 230).
Em Contra Constantium há uma construção da imagem de um imperador que, por seu
posicionamento ariano, torna-se não apenas uma ameaça à Igreja, mas também personifica a imagem
do Anticristo: “Este é o momento de falar, pois já passou o tempo para ficar em silêncio. Nós
esperamos a vinda de Cristo, uma vez que o Anticristo ganhou. [...]” (Contra Constantium, 1).
Posteriormente, o bispo retorna a essa equiparação de Constâncio ao Anticristo e também o chama
de Anjo de Satã disfarçado de um anjo de luz, que reina sobre a terra pela ausência do Salvador: “O
tempo do Anticristo, disfarçado como um anjo de luz, chegou. O verdadeiro Cristo é escondido de
quase todas as mentes e corações. O Anticristo está obscurecendo a verdade e fazendo valer a
4 “É realizada a profecia que disse: Virá o tempo em que as pessoas não suportarão a sã doutrina, mas por opção de
suas paixões, eles dão mestres abundância á que agradam os ouvidos; e não só desviarão os ouvidos da verdade, mas
as transformarão em fábulas. ” (In Const., 2).
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mentira” [...] (Contra Constantium, 1). Os argumentos de caráter profético de Hilário possuem uma
forte relação com trechos bíblicos (SILVA, 2002, p. 231), dentre eles a segunda epístola aos
Tessalonicenses (2, 1-5) escrita por Paulo, que anunciava que a chegada do Anticristo – que tentaria
se passar por Deus – representaria o fim dos tempos:
Não vos deixeis enganar de modo algum por pessoa alguma; porque deve vir primeiro a apostasia, e
aparecer o homem ímpio, o filho da perdição, o adversário, que se levanta contra tudo que se chama
Deus, ou recebe um culto, chegando a sentar-se pessoalmente no templo de Deus, e querendo
passar por Deus.
Outras referências a textos bíblicos aparecem no decorrer da inventiva, dentre elas a
comparação de Constâncio a um “lobo em pele de cordeiro”, metáfora encontrada no livro de Mateus
(5, 15-16). Sobre ela, Hilário afirma: “O Senhor me ensinou uma outra palavra [...] quando Ele disse:
‘Cuidado com os falsos profetas, que vêm até vós vestidos com pele de cordeiro, mas, por dentro, são
lobos devoradores que, pelos seus frutos, os conhecereis, porque encontramos no coração o que se
encontra na face’” (Contra Constantium, 10).
Para que a imagem de Constâncio fosse marcada como um inimigo da fé, Hilário o compara a
antigos perseguidores do cristianismo, retirados de narrativas bíblicas e da história romana. Usando
a linguagem do martírio e referindo-se a ele como “o mais cruel imperador” (Contra Constantium, 8)
e o culpado de crueldades similares às de Nero, Décio e Maximiano5, Hilário estava abrangendo novos
personagens e contextos, de modo a encaixar Constâncio dentro de narrações pré-existentes da
história cristã. O bispo afirma que a perseguição de Constâncio é mais cruel do que a tortura e
violência dos imperadores de outrora, pois ele agiu ardilosamente no interior da Igreja, como um
imperador assumidamente cristão (Contra Constantium, 5).
5 “Clamo a ti, Constâncio, o que eu diria para Nero, o que Décio e Maximiano ouviriam falar de mim: você luta
contra Deus” (In Const., 7)
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Hilário finaliza a inventiva comparando a imagem de Constâncio à de seu pai, Constantino.
Para o bispo, as atitudes de Constâncio contra os bispos partidários do credo niceno eram uma
desonra à memória de seu pai (Contra Constantium, 27):
Ouça o significado sagrado de suas palavras, ouça a constituição imutável da Igreja, ouça a fé
professada por seu pai, [...] ouça a consciência do povo que condena a heresia, e entenda que você
é o inimigo da religião de Deus, o inimigo da memória dos santos e um rebelde contra a ortodoxia
do seu pai.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diferente dos conflitos entre bispos e imperadores pagãos, os cristãos ortodoxos pela primeira
vez tiveram que posicionar-se contra um imperador que era de fato cristão e estava entrelaçado nas
complexidades das disputas teológicas. Isso resultou em uma nova retórica de oposição que esperava
transformar a imagem de um imperador (FLOWER, 2013, p. 16). Hilário de Poitiers buscava se adequar
a um sistema de poder a partir do uso da retórica. Assim como ele, os autores das inventivas não
faziam parte de uma literatura outsider que lutava contra as estruturas do poder imperial e tampouco
eram representantes de uma Igreja autônoma que tentava se defender contra a intervenção do
Estado (FLOWER, 2013, p. 87). Entre uma multiplicidade de distintas virtudes, exemplos e métodos
que podem ser rearranjados para promover uma diferente versão do governante ideal para atender
e satisfazer o bispo de Poitiers, este almejava assentar a ortodoxia piedosa como o atributo definidor
da legitimidade de um imperador e retratando a política religiosa como o aspecto mais importante
do seu reinado (FLOWER, 2013, p. 125).
Em Contra Constantium, Hilário de Poitiers estava construindo uma representação.
Retornaremos ao conceito proposto por Roger Chartier: as representações não são discursos
imparciais, e produzem práticas e efeitos com o intuito de impor uma autoridade. Ora, é certo que
essas representações se colocam no campo da concorrência e da luta. Nessa luta, tenta-se impor ao
outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo social (CHARTIER, 1987, p. 17). Hilário, ao
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construir a imagem de Constâncio II como um imperador ímpio, estava definindo a identidade de um
imperador pelo ponto de vista de seus oponentes. Essa definição das identidades é um processo que
sempre depende da maneira pela qual um determinado grupo compreende, configura e representa
o seu mundo.
É necessário, portanto, compreender a inventiva de Hilário como um posicionamento político,
e não apenas teológico. Visto que o secular e o religioso não eram interpretados como separados,
atacar o posicionamento doutrinário de um imperador era uma ofensa política, e Hilário estava ciente
disso. Em um contexto de instabilidade de sucessões do poder imperial – já que não era possível saber
se o sucessor de Constâncio II seria de fato ariano – Hilário posicionou-se de modo a relacionar o
posicionamento ariano de Constâncio à sua incapacidade de gerir o império.
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