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2 Primeiros passos
Desde o início do século XX, os artistas vinham experimentando
uma profusão de meios expressivos. Nada (ou tudo) parecia se adequar
em definitivo ao ritmo acelerado do fim do milênio. As matérias-primas
foram catadas em todas as esquinas. A maneira de utilizá-las,
conseqüentemente, também sofreu intensas reaveriguações. E mesmo os
meios até então “triviais” da arte – pintura, escultura – constrangidos a se
apresentarem de outros modos que não os já longamente reconhecidos.
As céleres mudanças do mundo real foram perseguidas, acompanhadas
pari passu pelas produções plásticas daqueles tempos: futuristas,
cubistas, dadaístas, surrealistas, dentre outras empresas, et pour cause,
todas exibiram uma versão diferenciada para os mais diversos
acontecimentos do planeta.
De maneira geral, é possível anotar para quase todas as artes do
século a deflagração de uma vontade de envolvimento com as coisas
cotidianas – reclamando-as, exaltando-as ou incorporando-as. Assim
sendo, não é de estranhar a incidência de várias mídias em uma mesma
realização, a requisição da simultaneidade de todos os sentidos humanos
na apreciação da obra de arte e, por fim, a meta até então insuspeita: a
inclusão física do artista em ocorrências públicas. Mais que espécies de “liberdade de expressão”, as ousadias
fauvistas ou abstracionistas evidenciaram uma renovada atração pela
realidade fenomênica. Os primeiros expressionistas conferiram “formas
públicas às angústias pessoais”, seguiram exalando as mais intensas
apreensões existenciais e, por fim, revelaram preocupações políticas –
“expressionismo social”. As collages cubistas anexaram elementos do
cotidiano e interessaram-se pela simultaneidade da percepção moderna.
O futurismo exibiu uma relação passional pelos muitos avanços
tecnoindustriais do momento. Fascinados ou perturbados pelas
conquistas científicas, os futuristas glorificaram a aceleração do mundo,
celebraram a agitação da vida mundana.
Os quinze anos de atividades dadaístas ecoaram as muitas
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apreciações niilistas sobre a cultura ocidental, que guarneciam as rodas
da intelligentsia, especialmente aquelas sobre o militarismo da guerra. O
surrealismo ofereceu uma espécie de continuidade lógica, mais
organizada, ao projeto dadaísta, privilegiando as transgressões do
inconsciente. E a pedagogia social da Bauhaus foi mais longe,
prescrevendo a associação das necessidades e influências da sociedade
às exigências estéticas e funcionais, assimilando as mais recentes ofertas
tecnoindustriais na produção dos objetos utilitários.
Já um breve inventário dos hoje denominados happenings,
performances, body art, ou environments resgataria necessariamente as Noites futuristas (1910-13), as sessões do Cabaret Voltaire, de Hugo Ball
(1915-16), as incursões teatrais de Oskar Schlemmer na Bauhaus. As
eventuais coligações dos franceses Apollinaire, Cocteau e Satie; dos
russos Mayakovsky, Nijinsky e Diaghilev, dentre muitos outros criadores
ligados à música, ao ballet, às artes cênicas e à poesia em equações
pluripoéticas.1
Marcel Duchamp é, não à toa, constantemente chamado a participar
das boas arqueologias artísticas do século XX. Figura intensa e
reservada, indispensável à compreensão do pós-modernismo, não
obstante o reduzido conjunto de obras tão originais quanto controversas,
desiguais e pervarsivas deixadas à posteridade. Os inúmeros dispositivos
acionados por seus ready- mades foram cruciais para os questionamentos
estatutários do ofício. Em 1923, apresentou o primeiro objeto conceitual
por excelência – Grand verre –, resultado (inacabado) dos estudos
iniciados 10 anos antes. O artista levou para Nova York os ânimos
dadaístas e surrealistas, preparando as aventuras poéticas de Pollock, da
Minimal, da Pop, da Conceptual, dentre outros desenvolvimentos norte-
americanos. Nos primórdios das performances, Duchamp comparece
através de seus alter egos Rrose Sélavy e R. Mutt, ou mesmo através de
um longo e significativo silêncio.
Através dos mais variados meios, sistemas ou teorias, manifestos ou
programas, técnicas ou estratégias, das mais diversas justificativas
1 Ver GOLDBERG, RoseLee. Performance art.
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conceituais, de tudo um pouco, os artistas da vanguarda histórica
mostraram-se diligentes no que diz respeito às incursões relacionais ou às
investigações autocríticas da arte. Estas abordagens permearam o enredo
modernista, cifraram os primeiros exercícios reconciliatórios cujos
diagnósticos ainda se encontram em andamento. Trata-se de sondagens
pioneiras das vias de acesso à realidade política, à fisicalidade mundana.
Se não cumpriram de fato tais intuições, levam, ao menos, os méritos da
expectativa de uma mobilização mais abrangente, uma atenção temporal
distinta.2
Considerando que a perigosa energia circulante na Europa quando
tais manobras tiveram início foi, ao menos em parte, responsável por
esses comportamentos devolutivos, não seria sensato admitir que a
diversificação das atividades experimentais assistidas no segundo pós-
guerra atendeu a uma atualização dos sentimentos daquele momento
anterior? Quantas mil vezes lemos que o Dadaísmo agendou uma
enérgica revolta contra a insanidade da guerra, da matança generalizada
e da lógica instrumental que regia toda uma sinfonia de gravíssimos
equívocos? Ora, qualquer semelhança entre esses fatos e os averiguados
cerca de meio século após seria mera coincidência?
Na ponta do lápis, o maior movimento cultural da Europa no
entreguerras verificou-se no oceano Atlântico. Após um primeiro
assentamento na Alemanha, a vanguarda estacionou em Paris antes de a
Segunda Guerra dispersar por completo a concentração. A debandada
intelectual em direção aos EUA deixou para trás um continente que exibia
apenas medo e desolação. Albers, Gropius, Mondrian e Ernst aportaram
em Nova York para retomar seus trabalhos. Alguns, como Dali,
procuraram apenas um asilo temporário. Na Europa, outros grandes
artistas prosseguiram isolados em suas atividades.
Alberto Giacometti, abrigado na sua Suíça natal durante o período
bélico, produziu e dizimou um sem-número de figuras tridimensionais
absurdamente encolhidas. As sobreviventes continuaram a pervagar
2 Ver, para maiores informações, as publicações: DE MICHELLI, Mario. As vanguardas artísticas; ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna; e STANGOS, Nikos (org.), Conceitos da arte moderna.
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constantemente obliteradas pela grandiosidade espacial do mundo,
penetradas por uma melancólica desorientação. A arte de Giacometti,
especialmente significativa para o momento, comenta o mood dominante:
coibidas, suas figuras exibem uma perda contínua de massa física
equivalente a um insuportável ganho de densidade psíquica. São apenas
matérias que não chegam a dizer algo completo sobre uma vida, mas
somente sobre um existir desprovido da idéia de homem: não sabemos se
estão mortos ou vivos. Para onde vão? Que mundo habitam tais seres
filiformes? Num vaivém imóvel, com pés tão pesados que não lhes
deixam muita liberdade de ação, esses seres/quase não-seres passeiam
lentamente condenados a uma solidão vagamunda de um presente
ininterrupto, fora da História.
Curiosamente, os anos 40 foram inundados por uma vaga de
abstracionismo lírico cujo quartel-general europeu continuava a radicar-se
em Paris. Deixando de lado as apreciações teóricas que a subdivide em
figurativa, objetiva, formalista e seus contrários semânticos, guardemos
apenas a noção de que a “tendência informalista” foi o tipo de arte que
sobreviveu durante a guerra. Considerando-se o quanto de indescritível e
nebuloso apresentava-se o futuro da existência sobre o planeta, as coisas
só poderiam ser, se muito, dedutíveis.
Este amplo direito de deduzir abriu o campo crítico para que a
questão da liberdade fosse acionada como o principal Leitmotiv do
momento, ainda que alguns artistas da École de Paris tivessem seus
trabalhos abstratos relacionados a funestos festejos da era das explosões
atômicas, celebrações das últimas conquistas tecnológicas com sabores
neofuturistas, ou ligados a estranhas comemorações patológicas.
Soulages, Wols e Brien são os personagens mais entusiasmados do
Tachisme. Além, é claro, do carismático Georges Mathieu que pretendeu
apostar uma corrida com a máquina, ser tão veloz e espetacular quanto
os produtos tecnológicos, o primeiro pintor a fazer de sua obra um
espetáculo público, como anota Argan.3
Por conta de um conforto metodológico, as iniciativas subjetivantes
3 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna.
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da Paris ocupada são freqüentemente cotejadas às ocorrências artísticas
norte-americanas então emergentes. O confronto equivocado, covarde
até, não recolhe bons resultados críticos, ao contrário, só constrange o
Tachisme à condição de um mero contraponto tímido e gauche do
Abstract Expressionism. Seja como for, já que o assunto não é da alçada
desta tese, fato é que as obras francesas, independentemente do motivo
alegado – combalidas pela energia do conflito, ou mitigadas pela tradição
da belle facture, surgem anêmicas dessas comparações, ofuscadas pela
exuberância pictórica de Jackson Pollock, mais agressivo e autêntico. O
trabalho do norte-americano ocupava um outro nível de qualidades
artísticas, muito acima do que poderia supor o grupo francês. Somente as
implicações franqueadas pelo all-over e pelo dripping bastariam para
encerrar a contenda.
“Expressionismo abstrato” é a designação, um tanto holística,
genericamente aplicável a um amplo espectro de pintores ativos durante a
década de 1940 e instalados em Nova York. De Willem de Kooning a
Barnett Newman, a noção sustenta duas tendências centrais: action
painting e colour-field painting. Basicamente, o movimento explica-se pela
admissão dos aspectos subjetivantes através do ato da pintura – daí a
variedade de estilos atendida pelo título, mais caracterizado pela
concepção que sublinha os foros íntimos do que por uma homogeneidade
técnica ou por um programa político.
Como o termo implica, o “expressionismo abstrato” não define um
estilo figurativo e nem mesmo adere aos limites da representação
convencional, de acordo com as óbvias referências a Kandinski e às
deformações arbitrárias dos expressionistas alemães. Também conhecido
por New York School, o grupo teve a sua quintessência em Jackson
Pollock, que, animado pelas chancelas do surrealismo, afrouxou o
comando da prática artística em favor dos desígnios subconscientes.
Reativando as paixões de Walt Whitman, traduzindo as dimensões
continentais novomundistas em telas gigantescas e consagrando o all-
over como o paradigma do olhar contemporâneo, o pintor marca o
deslocamento do centro artístico ocidental.
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Sancionadas pelos célebres argumentos de Harold Rosenberg4 e
espalhadas por Hans Namuth, as imagens de Pollock “em ação” – action
painting – influenciaram o mundo e, vertidas anos após anos, a
espontaneidade de sua pintura gestual forneceu as feições plásticas de
um “transe” expressivo, e/ou vice-versa. Daí por diante, incontáveis
adventos artísticos seriam creditados à “fase pública” do maior pintor
americano.5 Na ordem do dia sentava o encanto cromático, o enigma de
uma ocupação paradimensional, a inacreditável capacidade de absorção
espacial e de magnetismo psicofísico, propalados pelos trabalhos
monumentais de Jackson Pollock. Desde então, suas obras recrutavam a
revisão de um novo estatuto para a percepção, para a arte, para o artista.
As balizas conceituais entre obras de arte e as ações do dia-a-dia
começam a mostrar uma fragilidade, uma iminente diluição de suas
fronteiras virtuais. Danto comenta: In fact, if works of art can generally be supposed to embody what
they are about, as I have sough to argue in The Transfiguration of the Commonplace, there is a deep continuity between works of art and the symbolic expressions of everyday life. This would be the germ of truth in anything called an Expressionist Theory of Art (which need have little to do with feelings); and it would be the natural connection, so irresistible to Freud, between psychoanalysis and the explanation of art.6
O grande trunfo da pintura sobre as outras manifestações de arte é,
de fato, a sua capacidade de conceder visibilidades. Mas não é só isso,
pois ela vai mais longe e de maneira sedutora – a pintura quer ser tão
convincente como as coisas e não pensa poder atingir-nos a não ser
como elas: impondo-nos um espetáculo irrecusável,7 assegura Merleau-
Ponty. Porque, continua o filósofo,
...para que a obra de arte – que justamente se dirige em geral a apenas um dos nossos sentidos e nunca nos ataca por todos os lados, como o vivido – satisfaça-nos o espírito como faz, é mister que seja diferente da existência arrefecida, que seja, como diz Gaston Bachelard, “superexistência”. Mas ela não pertence ao arbitrário, ou, como se diz, à ficção. A pintura moderna, como o pensamento moderno em geral, obriga-
4 ROSENBERG, Harold. “Os actions painters norte-americanos”. In A tradição do novo. 5 ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit. 6 DANTO, Arthur C. Beyond the brillo box. p. 63. 7 MERLEAU-PONTY, Maurice. “A Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio.” In Signos. p. 49.
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nos a admitir uma verdade que não se assemelha às coisas, que não tenha modelo exterior, nem instrumentos de expressão predestinados, e que seja, contudo Verdade.8
* * *
O desenvolvimento “oficial” da performance na Europa nos anos 50
do século XX seguiu paralelo ao que nos EUA somente mais tarde
adquiriu a definição do que foi aceito pelos artistas como um meio poético
viável – os happenings. Apenas dez anos após o fim da Segunda Grande
Guerra, alguns criadores sentiram a impossibilidade de admitir o conteúdo
aparentemente apolítico e espetacular do expressionismo de Jackson
Pollock. Os europeus consideravam um tanto irresponsável a atividade
reclusa dos americanos em seus studios, quando as muitas necessidades
políticas alcançavam um drástico limite.9 Tal humor socialmente alerta
encorajou uma quantidade substancial de manifestações e gestos
dadaístas para atacar os valores estabelecidos da arte e mesmo da
cultura em geral.
Porém, por mais que surgissem inconseqüentes, as pinturas de
Pollock trouxeram seriíssimas questões para a superfície político-cultural.
Allan Kaprow afiançou um discurso póstumo que, ao lado do catálogo
crítico de Greenberg,10 iluminou o generoso caminho pavimentado entre a
pintura de Pollock e o mundo ocidental. Em 1958, Kaprow comentava:
(...) temos então uma arte que tende a perder seus limites, que tende a preencher nosso mundo com sua própria existência, uma arte cujo significado, a aparência, o impulso, parecem romper radicalmente com as tradições dos pintores desde, ao menos, os gregos. A quase destruição dessa tradição por Pollock pode bem significar o retorno a um ponto em que a arte estava mais envolvida com o rito, a ocidental tende a depender cada vez mais de desvios para realizar-se, dando a mesma ênfase às “coisas” e às “relações” entre elas. (...). Assim, esse seria um passo
8 Idem. p. 59. 9 Fora as considerações generalizantes sobre a inegável importância de Pollock, ou as observações restritas à prática, hoje dispomos de uma farta produção editorial sobre as nuances políticas da arte do século XX. Para acompanhar uma discussão mais afeita as tais aspectos, ver WOOD, Paul (et alii). Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. HARRISON, Charles (et alii). Primitivismo, cubismo, abstração: começo do século XX. Além dos já citados ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. DE MICHELLI Mario. As vanguardas artísticas. 10 GREENBERG, Clement. The collected essays and criticism, I-IV.
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extremamente importante, e o que melhor responderia às queixas daqueles que querem que ponhamos na arte um pouco de vida. (...). Mas agora, em todo caso, pode-se considerar que, salvo raras exceções, a arte, vejo, deixou-nos no momento em que devíamos começar a refletir sobre o espaço e os objetos de nossa vida cotidiana, e mesmo a espantar-nos com eles: desde nossos corpos, roupas, casas, até a extensão da rua 42. 11
Os vinte anos subseqüentes ao segundo pós-guerra foram
emblemáticos para as filosofias inclusivas, mas a década de 1960 é
especialmente representativa da proeminência dos empreendimentos
performáticos, quando os artistas tomaram as ruas de Düsseldorf, Paris e
Nova York procurando catalisar a energia criativa da sociedade. As
ocorrências européias que melhor exemplificam tais atitudes concentram-
se nas figuras hiperbólicas do francês Yves Klein, do italiano Piero
Manzoni e do alemão Joseph Beuys. Além, óbvio, das audições do grupo
Fluxus que, de maneira geral, sintetizam o espírito dominante. Os EUA
registram os espetáculos de Kaprow, Morris e Warhol, para citar apenas
os mais notórios. A recorrência dos gestos públicos teve caráter
epidêmico de um lado e do outro do mapa ocidental. Os grandes artistas
da época puseram o corpo à obra com as inevitáveis divergências
ideológicas, sim, mas algo os uniam: o reexame dos objetivos da arte, de
todas as artes. O resultado, é sabido, foi o colapso das antigas
convenções estéticas.
Há muito a noção vinha assediando os grandes pensadores; há
muito a subversão instigava os artistas: a pintura é ilusória e a escultura é
uma dura realidade. Na segunda metade do século XX, o ofício estreava
uma fase de exercícios, ampliava o espectro semântico da linguagem
poética visual. Tony Smith, Donald Judd e Frank Stella apresentaram-na
como presença real, uma espécie de “pensamento físico”. O Fluxus
tratou-a como permanente experiência moral; Warhol complicou o
entendimento da relação entre arte e mundo, embaralhou as duas
noções; e Joseph Beuys reencaminhou o Leitmotiv de Duchamp – arte é
pensamento: mais que fato plástico, é reflexão sobre a vida:
11 KAPROW, Allan. “O legado de Jackson Pollock”. In Art News, outubro de 1958, tradução de Cecília Cotrim de Mello.
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Before Duchamp, it had seemed obvious that the distinction between artworks and other things was perceptual, that paintings looked as distinct from other things as roses, say, look distincts from tomcats. With Duchamp, and those who followed him, it became philosophically evident that the differences are not of a kind that meets or even can meet the eye.12
Ao longo do século passado, o conceito de escultura foi pensado e
repensado. O mesmo pode ser dito da pintura e ainda de toda a espécie
de atividade artística: o cerne da questão, obstinado numa verificação
auto-examinadora, deflagrou uma duradoura crise identitária. A base do
escrutínio conceitual nos EUA veio estofada pelos artigos abstratizantes e
surrealistas importados da Europa, devidamente aclimatados por
Duchamp. O farto emprego de elementos reconhecíveis pela massa,
baratos ou industriais, estranhos à tradição, ou oriundos do
subconsciente, as manifestações multimídias aglutinadas às grandes
máximas do momento, decidem reorientações abrangentes e libertadoras.
As leituras “ajuizantes” então em decurso revelaram-se ineficazes – a arte
torna-se um setor da filosofia, assevera Arthur Danto:
(…) Greenberg’s narrative is very profound, but it comes to an end with pop, about which he was never able to write other than disparagingly. It cames to an end when art came an end, when art, as it were, recognized that there was no special way a work of art had to be. Slogans began to appear like “Everything is an artwork” or Beuys’s “Everyone is an artist”, which would never have occurred to anyone under either of the great narratives I have identified.13
A pintura traçou um caminho tortuoso para chegar a um ponto
bizarro dentre as várias iniciativas libertadoras que caracterizaram o “seu
modernismo”. Começando por buscar uma autonomia já no século XIX,
atravessa um estágio de intensas experimentações, alcança um espaço
próprio dentre as artes e, por fim, apega-se literalmente à
tridimensionalidade e/ou aos seus efeitos. A escultura, depois de passar
por uma dura fase de investigações acerca da reunião entre volume e
espaço, interessou-se pela estrutura e alcançou a experiência topológica,
como nos cubos negros de Tony Smith ou nas intimações biogeomânticas
de Beuys. Houve, até mesmo, inúmeros decretos de morte das duas
12 DANTO, Arthur C. Beyond the Brillo Box. p. 95. 13 Idem. p. 125
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modalidades. Um dos últimos consagrou o nascimento simultâneo dos
“objetos específicos”, como definiu Donald Judd, em 1965, a natureza de
algumas produções então recorrentes.14
O espírito era, é ainda, de indagação: sobre a real natureza das
aparentes contradições, sobre a relação entre arte e antiarte, entre pintura
e escultura, entre “arte” e o ready-made, entre o objeto de arte e o espaço
institucional que ele deve, (se deve), ocupar. Tudo estava aberto a
exames e experimentos. A tensão do momento demandava atitudes
drásticas, e as efetivações plásticas responderam com um conjunto de
concepções regidas pelo acirramento das intervenções físicas e das
contravenções estéticas.
* * *
O Nouveau Réalisme, movimento concebido, em meados da década
de 1940, principalmente pelo crítico Pierre Restany e por Yves Klein,
dentre outros, adiantou a ambiance melancólica das recorrências
artísticas européias do segundo pós-guerra. Klein passou uma boa parte
de sua curta vida determinado a encontrar o receptáculo ideal para um
espaço pictórico espiritual (ou uma pintura espaço-espiritual).
Apresentando um expressionismo físico permeado por uma aura de
misticismo, suas ações públicas trouxeram de volta uma atmosfera
romântica ao cenário devastado da Europa. Durante os anos 1940-50,
dedicou-se às pesquisas teóricas, estéticas e teológicas, contrariando as
“revelações de identidades pessoais” praticadas pelos pintores
americanos. Assimilando simultaneamente os comandos espaciais
expansivos de Rothko e Pollock, Klein evocava a intuição de uma ordem
cosmológica. Em meados da década de 1950, proclamara a sua entrada
na Era do Espaço – quando o espírito sobreviveria livre do corpo –, em
contraposição à Era da Matéria até então vigente.
Klein demonstrou um especial desempenho conceitual em Escultura
aerostática (1957), que consistia em “anulações ou absorções
14 JUDD, Donald. “Specific objects”. In Arts Yearbook 8, 1965. pp. 74-82.
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conceituais” configuradas nos 1.001 balões de ar azuis despachados
simultaneamente no céu de Paris, que jamais retornariam. Segue-se a
esta fase, as experiências conhecidas como O vazio15 (1958-62) e, destas
para o Salto no vazio (1960) foi um pulo. Para Klein, “arte” era um modo
de vida, jamais uma imagem preestabelecida de um pintor com o pincel
na mão num studio. A imagem congelada do artista & modelo no ateliê,
limitava suas ações e atuações sociais. Assim, o “modelo” veio a ser a
atmosfera do presente pontual.
As Antropometrias (1958-62) deveriam estar arroladas como
integrantes da body art, do happening, ou de algum termo equivalente,
assim como todo um conjunto de eventos por ele promovido. Compatíveis
com as actions de Pollock ou inspiradoras das action-musics do Fluxus, o
trabalho de Klein merece, decerto, uma especial atenção. Mas, para
anotar uma singularidade em meio ao turbilhão de iniciativas que
conformam o período, deixemos em suspenso o diagnóstico genérico
sobre a arte de Klein como parte da sua adoção de uma “sensibilidade
imaterial” com “qualidades espirituais”: talvez o único material possível
para o momento europeu.
Já o italiano Piero Manzoni lidou menos ainda, ou quase nada, com
os problemas do “espírito universal” para dedicar-se com afinco à
afirmação do corpo humano, ele mesmo, como material de arte válido,
legítimo. Ambos – Klein e Manzoni – acreditavam essencial revelar o
processo de arte, desmistificar a sensibilidade pictórica e prevenir suas
realizações de restarem para sempre estáticas, como relíquias de
museus. Enquanto as demonstrações do francês eram freqüentemente
baseadas num fervor místico, as do italiano centravam-se na realidade
cotidiana dos corpos, de suas funções e formas, como expressões de
personalidade. Manzoni assinou corpos, enlatou o próprio excremento,
inflou balões com seu próprio ar: o que sobrou do mundo.
Klein e Manzoni são registros autorais de obras que evaporaram –
os dois criadores interditaram as manobras mercadológicas, esvaziaram
os muitos usos comerciais ou políticos, desviaram das mais diversas
15 O nome real da exibição é “La spécialisazon de la sensibilité à l’état matière première en sensibilité picturale stabilisée”. Catálogo Yves Klein, pp. 273.
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perversões culturais, vetaram os vícios sociais. O romantismo do poeta
excêntrico, a arrogância do intelectual avant-garde, a aflição existencial
do artista aviltado pelo sistema, isto é, as personas e/ou as dores privadas
que caracterizaram seus antecessores via produção artística foram
substituídas por atitudes veramente intangíveis. Desencantados com tudo
e todos, desenganados por definição, os criadores do segundo pós-guerra
europeu não mais recorreram às fábulas ingênuas e ineficazes, aos
romances de cobertor ou às utopias delirantes, às monstruosas
construções para resolver suas misérias originais, seus tricôs terminais,
seus debates envergonhados sobre a eminente auto-exterminação da
espécie. Danto relaciona tal escoamento quimérico, esta decepção
egóica, mais uma vez, ao nivelamento arte-mundo:
The sixties was a paroxysm of styles, in the course of whose
contention, it seems to me – and this was the basis of my speaking of the ‘end of art’ in the first place – it gradually became clear, first through the nouveaux realistes and pop, that there was no special way works of art had to look in contrast to what I have designated ‘mere real things’. To use my favorite example, nothing need mark the difference, outwardly, between Andy Warhol’s Brillo Box and the Brillo boxes in the supermarket.16 Durante a década de 1950, as obras de Robert Rauschenberg e
Jasper Johns ostentaram tanto as dúvidas representacionais quanto as
indisposições contemporâneas, os dois afinavam suas linguagens com a
atmosfera de desconforto moral que embalava o período pós-Pollock.
Com trabalhos e estilo de vida incomuns, ambos refletiram uma profunda
insatisfação com a sociedade contemporânea e o desejo de escapar dos
valores sufocantes convencionais da classe média. Foram idiossincráticos
e abrangentes, singelos e triviais, excêntricos e vulgares: não explicitaram
protestos sociais em suas obras, mas contrapartidas culturais
consistentes. Para Leo Steinberg, a obra de Johns decide um corte
dramático para a (na) arte moderna.17
Em 1954, Johns começa a pintar de uma maneira radicalmente
diversa dos expressionistas abstratos – suas telas distinguiam objetos
familiares: alvos ou bandeiras norte-americanas, números ou letras.
16 DANTO, Arthur C. After the end of the art. p. 13. 17 STEINBERG, Leo. Other criteria.
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Símbolos, signos, representações de representações, estranham a
objetividade e a imprecisão da execução pictórica. Procedimento artístico
que faz com que pinturas & signos/obras de arte & símbolos oscilem
múltiplas naturezas, driblando as aferições convencionais que arbitravam
a distância entre as categorias representacionais do mundo. Johns
freqüentemente integrou elementos tridimensionais em suas pinturas –
réguas e termômetros, por exemplo, arranjados com liberdade. Suas
obras antecipam os humores da Pop Art. A noção que reunia e confundia
os múltiplos nexos representacionais entre arte & objeto de arte, orientou
uma ampla reformulação conceitual do ofício.
Sob a égide de Wittgenstein, Johns pode afirmar que o sentido de
uma obra suporta tanto a inexistência de significados – seja para artistas,
latinhas ou mesmo para a existência –, quanto a vigência de outros tantos
não tão nobres, porém, igualmente importantes: o significado (ou a
ausência de) de uma coisa vem junto ao modo de usá-la. Justificando,
assim, tanto a existência do artista como a da arte, que devolvem, como
num espelho, o sucesso ou a ruína de uma cultura. As mídias já haviam
criado um novo ambiente para experiências – o meio é a mensagem,
sentenciara McLuhan acerca das novas relações comunicacionais que
vinham catalisando uma nova (des)ordem de pensamento e um novo
modo de vivenciar os acontecimentos. Johns trabalhou, então, com um
amálgama de meio e mensagem. A pergunta frente a suas provocações,
será antes “como isto quer dizer?”; e, somente após este primeiro
confronto, admitimos que a pergunta necessária é “o que isto quer dizer?”
Duvidando da identidade corrente da coisa representada e
assuntando o modo de seu vir-a-ser no mundo, o artista joga com o
complexo semiótico da obra e das imagens corriqueiras. Letras e números
são conceitos que não podem ser representados, porque são eles
mesmos representações sem identidade material. Porém, a acuidade
delegada ao trato estético contradiz a idéia: na pintura e na imagem de
letras e números, as substâncias coincidem. Realçando o aspecto
tautológico da imagem e da operação artística, Johns destaca o absurdo
da enunciação de conceitos integrais, evidenciando o diálogo niilista com
Duchamp.
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Johns assenta uma série de dilemas filosóficos referentes à
linguagem da arte, à percepção e à realidade, conflitos há muito
localizados entre linguagem e pensamento. Através do filósofo austríaco,
ele nos reenvia à pintura de Magritte: sua linguagem não é uma
linguagem literária traduzida para a pictórica, mas já nasce pictórica,
como na obra do belga. Se, com Magritte pensamos, como ensinara
Foucault,18 “o que sei não é o que vejo, mas isto é uma pintura”, com
Johns a reflexão obrigatoriamente transforma-se em “o que eu vejo é o
que eu vejo, mas por que isto é arte?” O artista americano joga com
intencionalidades, mas, perversamente: examina signos, sinais, para
enfim, investigar a insipidez do momento.
O artista estabelece, assim, uma arte apenas aparentemente
amistosa com o público – de fato, sua obra exige um intenso embate
estético, um denso processamento intelectual. A começar pela pergunta
se o fato plástico disposto à sua frente é, realmente, arte. Entrelaçando
modos de pensar diferentes em uma mesma obra, Johns anula as
obrigações metafísicas da abstração a fim de transportar as implicações
do quadro para além da superfície. Uma armadilha belíssima, à la
Wittgenstein. Durante séculos o método científico de enquadrar
logicamente o mundo baniu a opinião, e assegurou o conforto existencial
através da certeza de uma realidade tangível. Por outro lado, ao que tudo
indica, cancelou a subjetividade do observador quando não revelou suas
disposições para com os objetos. Afinal, estes não se alterariam em
função de um olhar vindo de qualquer outra cultura, sexo, idade ou
experiências vitais. Desde Kant, no entanto, denuncia-se esta e outras
falácias da ciência e sabe-se (?) o que é representação.
* * *
As obras de Frank Stella, Tony Smith e Donald Judd19 estruturaram
18 FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. 19 É indispensável esclarecer que Tony Smith teve sua formação em arquitetura e pertenceu a uma geração anterior à de Smith e Judd. Jamais pretendeu alinhar-se com os artistas da Minimal Art, no entanto seus cubes – Die e Black box – foram recrutados
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os meridianos conceituais do que mais tarde tomou a denominação de
Minimal Art.20 Stella tributa sua iniciação às Flags e aos Targets de Jasper
Johns: suas obras propõem charadas visuais. Smith jamais alegou o
emprego de grandes elaborações teóricas para conceber os dois cubos
negros, hoje essenciais para a compreensão do minimalismo. Os cubes
raptam o observador para uma convivência enigmática com peças
industriais tão brutas que descartam qualquer possibilidade de admissão
nos reinos convencionais da arte ou da funcionalidade. E Judd foi um
intelectual preparadíssimo para responder por suas equações
tridimensionais, por suas belíssimas formulações matemáticas.
Plasmadas em materiais up-to-date, extremamente afeitas ao gosto norte-
americano, suas peças insinuam a convergência do designer e do artista.
A aparente disparidade visual entre as demandas culturais
reclamadas na Europa e nos EUA do segundo pós-guerra deve muito às
configurações político-sociais do momento. De um lado, destruição e
derrota – vergonha e decepção; do outro, progresso e vitória – orgulho e
estímulo. No entanto, Europa e EUA definem, antes de tudo, modos-de-
ser – modus cogitandi:
(...) uma maneira de organizar a realidade para a tornar compreensível ao pensamento, maneira esta que pode manifestar-se em filosofia, em poesia, no mito, no rito, no direito, na vida quotidiana, na guerra e na política. Como tal, um modus cogitandi é um modelo abstrato: nunca se realiza plenamente e exclusivamente. É um ideal, um terminus ad quem que uma cultura determina e procura atingir. Não é certo que o atinja sempre sem se misturar com outras maneiras de pensar. Para quem observa uma cultura de longe, apresenta-se em perspectiva. (...) Este modelo é cultural, não ético.21
Em todas as situações visitadas, o algoritmo estético é o aliciamento
do individuo para o campo hermenêutico da obra, através da inclusão
física, da percepção diferenciada, ou da abrangência sociocultural
cobiçada desde a origem. Manobrando as lógicas mais elementares,
compartilhando os assuntos mais ordinários, tais modalidades poéticas
pretenderam cativar o espectador por outras vias que não a facilitada pela como obras especialmente significantes para o “movimento”. Ver, para este assunto, STORR, Robert. Tony Smith. 20 O termo foi cunhado por Richard Wollheim em 1965. 21 DUBY, Georges (org.). Umberto Eco, A civilização latina. p. 25.
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contemplação passiva. Bolindo com os juízos apriorísticos, estas peças
cutucam os mais arraigados conceitos sobre arte e, por extensão, sobre
tudo o mais. Visando decifrar toda uma classe de distúrbios similares, tais
disposições calculam a seqüência das operações mais convenientes à
empreitada: são mecanismos que utilizam meios análogos para atingir um
fim noutras áreas do raciocínio e da lógica, consistem de uma gramática
generativa da reconstrução dos valores humanos.
Ora, em resumo, qual é a raiz desses trabalhos? Diversos
levantamentos teóricos encaminham uma única resposta: o corpo
humano, o veículo sensível que (sempre) interfere em todos
discernimentos intelectuais. Se antes, a arte dizia o que gostaríamos de
ser, o que deveríamos ser, o que não poderíamos jamais ser, fornecendo
exemplos do que não somos; agora a obra deixa em aberto essas
mesmas questões: o que gostaríamos de ser, o que deveríamos ser, o
que podemos ser, o que somos? Visando a uma recondução aos seus
próprios interesses, recomendando a mobilização integral do ser humano,
desestabilizando suas certezas, essas efetivações artísticas convocam
todos os sentidos físicos intentando comover suas bases lógicas.
Rosalind Krauss adiantou, em parte, a questão:
A tese que venho defendendo até aqui é a de que a escultura de
nosso tempo dá continuidade a esse projeto de descentralização mediante um vocabulário radicalmente abstrato da forma. O caráter abstrato do minimalismo dificulta o reconhecimento do corpo humano nesses trabalhos e, portanto, dificulta nossa projeção no espaço dessa escultura, deixando intactos todos os nossos prejulgamentos já sedimentados. Entretanto, nosso corpo e nossa experiência de nosso corpo continuam a ser o tema dessa escultura – mesmo quando uma obra é formada por várias centenas de toneladas de terra.22
E mais, esta primeira “aversão”, por assim dizer, concorre para
confirmar o teor de realismo viabilizado pela obra. O espectador não é
enviado a outras esferas mentais, é mantido no “aqui & agora”. As peças
tratadas pela tese comungam uma especial preocupação com a realidade
física manejada por uma inusitada efetivação. Tamanha generosidade,
jamais anotada, não encontrou um entendimento imediato. O antigo
22 KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. p. 333
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padrão assentava um procedimento inverso: muita apreciação do homem
e pouca solicitação fenomenológica.
Como os trabalhos de Stella, Beuys, Smith, Judd, Fluxus ou Warhol
podem ser mais “humanos” que as pinturas e/ou as esculturas anteriores?
Como cubos negros ou poliedros coloridos podem ser mais cordiais do
que paisagens bucólicas ou mais cativantes que as cenas históricas?
Como os episódios efêmeros do Fluxus ou as instalações de Beuys
conseguem angariar tanta atenção quanto as peças de Matisse ou
Picasso? Como a aridez das Black Paintings de Stella ou a vulgaridade
de Warhol conquistam a vigília do espectador?
Michael Fried acendeu um vigoroso debate ao levantar suspeitas
sobre ocorrências de associações ilícitas entre práticas artísticas, a seu
ver, “distintas” – a escultura e o teatro. O crítico acusou os cubes de Smith
de recorrerem aos expedientes da arte do teatro para mobilizar o
espectador. Stella dizia que nada havia na superfície de suas pinturas
além do que lá está – tinta preta sobre tecido esticado em um chassis de
madeira que define seqüências, losangos, retângulos e quadrados
decididos por um pincel governado por uma lógica extremamente simples.
Ora, se parassem por aí, não passariam de ilustrações inteligentes de
planaridades e objetividade. Coisas que já vinham sendo perseguidas
pela vanguarda parisiense. E talvez, há muito mais tempo, como suspeita
Michael Fried:
a história da pintura desde Manet pode ser entendida como
consistindo na progressiva revelação de sua essencial objetividade. (...) Mas Minimals estão indo muito longe, fazendo objetos tão literais que eles direcionam o observador para relações externas, teatrais, em detrimento de sua pureza estética..23
O cubo de Smith reaparece domesticado nas instalações de Judd:
são as arrojadas caixas solitárias com faces em plexiglas coloridos e
transparentes. Elas afastam as dúvidas de que nada guardam, nem
mistério ou enigmas. São presenças pura e simplesmente. As cores
utilizadas pelo artista são extremamente mais dóceis que o negro do Die
23 FRIED, Michael. Art and objecthood. p. 160.
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ou do Black box. Não mais ameaçarão os exegetas da arte moderna,
como Fried. Embora continuem plenos de ausências.
Michael Fried publica um complexo texto em 1967 tratando de várias
questões suscitadas pelas obras minimalistas em geral e pelas
declarações de Stella, Judd e Morris24. O ensaio, já famoso, intitula-se
“Art and objecthood” e sua tese central é definida da seguinte maneira:
(...) quero fazer uma afirmação que não posso esperar provar ou concretizar, mas que, não obstante, acredito ser verdadeira: o teatro e a teatralidade se encontram hoje em dia em pé de guerra, não apenas com a pintura modernista (ou a pintura e a escultura modernistas), mas com a arte em si e, até o ponto em que as diferentes artes podem ser descritas como modernistas, com sensibilidade modernista em si. Esta reivindicação pode ser dividida em três postulados:
1) O sucesso, até mesmo a sobrevivência das artes, passou a depender cada vez mais de sua capacidade de vencer o teatro. (...)
2) A arte degenera na medida que se aproxima da condição de teatro. (...)
3) Os conceitos de qualidade e valor – e, na proporção em que estes são centrais para a arte, o conceito da própria arte – são significativos, ou inteiramente significativos, somente no âmbito das artes individuais. O que reside entre as artes é teatro. 25 Comecemos por identificar uma preocupação de Fried com as
“misturas” entre as artes que, venhamos e convenhamos, nunca fez parte
do programa das vanguardas e menos ainda da arte do segundo pós-
guerra. A briga era pela pureza da pintura, contra as formas plásticas que
aportaram em sua superfície com o intuito de construir um real “dentro” da
tela, ignorando a existência do próprio plano que a sustentava.
Resumindo, a luta da pintura não era exatamente contra a escultura, mas
com os elementos estranhos à sua atualidade de pintura. Era um
problema de foro íntimo da pintura a ser resolvido internamente, ou seja,
uma autocrítica.
No mais, conhecemos algumas iniciativas vanguardistas que foram
justamente na direção contrária à tal não-contaminação exigida por Fried.
Surrealistas e dadaístas que o digam. Já a arte da segunda metade pós-
guerra, acabou por assentar algumas novas categorias artísticas que não 24 BATTCOCK, Gregory (org.). “Questions to Stella and Judd”. In Minimal art: A critical anthology; “Specific objects” (Donald Judd. Écrits) e “Notes on sculpture” (Gregory Battcock, idem), respectivamente. 25 FRIED, Michael. Art and objecthood. p. 163.
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constavam do programa da tradição – as peças de Stella, por exemplo,
são objetos específicos que fazem uma baldeação entre a pintura e a
escultura. E não foi por descuido do artista – esta era a busca.
Dentre os muitos “princípios estéticos” do minimalismo, nada fora
definido acerca de um possível abrigo dos preceitos teatrais. Portanto,
nada impedia as experiências noutras searas artísticas. Aliás, Fried
enquadrou no delito apenas Tony Smith e Robert Morris. Deste último,
nada temos a dizer já que artista & obra apresentaram-se
sistematicamente no teatro. Rosalind Krauss, que responde ao crítico no
texto Balés mecânicos: luz, movimento e teatro, encerra assim a
discussão: Fried afirmara que a teatralidade deve atuar em detrimento da
escultura – turvando o sentido da natureza singular da escultura, privando-a, desta forma, de um significado que era escultural e privando-a, ao mesmo tempo de seriedade. Porém a escultura que acabo de abordar [Morris dentre outros] baseia-se numa impressão da insuficiência do que era escultura, porque fundamentada em um mito idealista. E, ao tentar descobrir o que a escultura é, ou o que pode ser ela, utilizou-se do teatro e de sua relação com o contexto do observador como uma ferramenta para destruir, investigar e reconstruir.26
E quanto a Tony Smith? Ameaçado pela obstinação silenciosa e
opaca do cubo negro, Fried viu-se obrigado a permanecer perambulando
em torno da peça, imaginando uma situação inversa à relação entre
público e atores num teatro de arena. Vejamos como o crítico chega à
teatralidade: para ele, o efeito de presença é obtido na marra por conta da
escala “humana” do objeto; segundo, a perfeição geométrica captável de
um só relance assemelha-se às relações superficiais do dia-a-dia entre os
humanos; e, finalmente, o grande vazio aparente indicaria a existência de
uma vida interior, secreta. Daí que Fried conclui que o cubo é
antropomorfo. É como se o observador estivesse procurando conhecer
outra pessoa e a situação que o reúne ao cubo consiste, então, em pura
teatralidade.
O que confundiu o crítico foi o fato de que o verdadeiro alvo destas
peças é o corpo do observador e a experiência da reunião com elas – daí
26 KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. p. 289
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o “antropomorfo”. As sensações experimentadas por Fried foram
transferidas para o cubo, já que, dos primeiros momentos com
paralelepípedos, não existe segurança acerca de identidades – quem é o
sujeito e quem é o objeto? São coisas que só a partir desta convivência
poderão ser pensadas – e tal é a obra continuando no tempo. O que
assusta e o faz passar adiante rapidamente a sensação é perceber que
um “eu” desconhecido – “eu sou assim?” – está sendo construído pela
experiência.
Uma vez que a Minimal Art não admite a contemplação de
narrativas, Fried supõe que exista um ritual de acasalamento público-
obra. Por serem extremamente eloqüentes, as obras da modernidade
histórica satisfaziam-se – e nos satisfaziam – com uma plácida
contemplação através da qual tudo que tinha de ser dito estaria, segundo
Fried, “presente e seria apreendido instantaneamente”. Do lado de cá do
Atlântico, a proposta de “fruição” nestes anos do segundo pós-guerra
apostam na experiência matérica das coisas mesmas. Destinam-se, de
fato, a um tipo de experiência estética diferenciada.
Daí a busca de uma radical planaridade, a urgência da
tridimensionalidade, enfim, a clareza das propostas artísticas se torna
mais pertinente ao momento. Isto é o que vai obrigar o espectador a
vivenciar atitudes estéticas mais exigentes e densas – incluso aqui o
movimento do corpo em torno da obra. Mas a experiência obra-
espectador-espaço não configura necessariamente um teatro.
A orientação que se busca vem a ser uma repotencialização da vida
através de efetivações poéticas. Tal coexistência estética oferta uma
vivência inaugural e, portanto, manifesta a abertura de um campo
hermenêutico no qual vibram possibilidades para o questionamento do
ser-no-mundo. O termo mais correto seria literalidade – essas obras são
tão diretas, literais mesmo, cristalinas em seus “dizeres”: Stella oferta
puzzles gigantescos que só requerem as mais básicas operações lógicas
do observador, Beuys é um ator de “feira livre” encarnando a
desorientação espiritual do momento, e os cubes de Smith acionam uma
regressão antropológica; Judd exibe a elegância da tecnologia
contemporânea, o Fluxus demanda o emprego da criatividade no
49
cotidiano, e Warhol sanciona ironicamente o gosto popular, contra os
privilégios elitistas do mundo da arte.
Sabemos que o sentido está mais entranhado do que manifestado
pela obra. E, entranhada, a agonia está lá, é real. E não está sozinha, já
que também lá estão estampados não só os agentes invisíveis,
catalisadores de um sentimento, mas também os meios visíveis que os
representam de algum modo, pulsando a sensação de realidade emanada
pela obra. Krauss atribui o desconforto do observador contemporâneo à
descentralização mediada pelo caráter abstrato do minimalismo. Porém,
não se trata apenas de um recurso de estilo e, assim, o artista não
“repassa” tão somente um valor vital ou sensual, (...) mas o emblema de
uma maneira de habitar o mundo, de tratá-lo, de interpretá-lo (...).27 A
abstração ameaça poderosos constructos, seus recursos celebram,
simultaneamente, os ajustes estranhos e familiares, angariam todas as
instâncias lógicas. Desconstroem os pactos que fomentaram a
devastação do segundo pós-guerra através de instigantes jeux d’esprit. O
que há de ambíguo e irredutível em todas as grandes obras de arte,
explica Merleau-Ponty,
... não é uma fraqueza provisória de que se poderia esperar libertá-las, é o preço a ser pago para ter uma (...) linguagem conquistadora, que nos introduza em perspectivas alheias, em vez de nos confirmar nas nossas.28
As obras que expressam a desolação nos enviam sinais de coisas
que, à primeira vista, desejávamos confirmar; depois deste primeiro
encontro, não desejamos mais ter encontrado tal ressonância, ter tomado
conhecimento mas, aí, queremos saber muito mais e para sempre. Somos
perversos por natureza e, de uns tempos para cá, isto que sempre fora
disfarçado pela civilização tornou-se rotina.
De fato, estes assuntos não são novos, foram tratados à exaustão
pela vanguarda histórica, como vimos. O tema já foi até diretamente
atacado por Nietzsche, que despachou inúmeros avisos acerca da
27 MERLEAU-PONTY, Maurice. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”. In Signos. p. 55. 28 MERLEAU-PONTY, Maurice. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”. In Signos. p. 81.
50
perspectiva trágica do homem: é preciso aceitar a vida e a realidade com
total conhecimento dos seus aspectos ruins. Aceitar a realidade como ela
é, sem auto-enganos: a única natureza do homem é não ter natureza.
Não é possível encontrar definição para o que o homem é, porque ele
simplesmente é. Ou, como em Clement Rosset: qualquer definição
duplicaria uma realidade do que é singular. A filosofia tem que servir para
viver a realidade e não para duplicá-la.29
* * * A preocupação com um possível resgate espiritual do homem
remete ao “quase manifesto” filosófico de Edmund Husserl intitulado “A
crise da humanidade européia e a filosofia” (1935), no qual o pensador já
advertia para o perigo que residia na falência da humanidade européia,
desta humanidade que havia perdido a significação de depositária
espiritual herdada da Antiguidade grega e que ela mesma teria alterado.30
Beuys apresentou uma semelhante disposição para “manifestos” de
caráter político-filosóficos nos quais a tônica era a crítica ao
“irracionalismo” advindo da perda do sentido vital do racionalismo grego –
logos –, o saber substancial perdido pela civilização moderna. Para o
filósofo, a humanidade européia compreendia o complexo de todas as
culturas oriundas da civilização grega – mais precisamente do VII e do VI
séculos a.C. – e, assim, tudo o que repete tal sentido vital grego seria
europeu per si.
O artista dirige-se justamente ao homem ocidental cuja história
fragmentada torna a sua contemporaneidade tão contraditória: propõe um
retorno à sabedoria elementar. A perda da totalidade que a filosofia
representava como ciência única que era, a mais alta criação espiritual
dos gregos, na medida em que abraçava tudo o que é – uma ciência
universal –, resultava no desmembramento típico do cartesianismo, na
diversificação em ciências particulares que pretendiam dar conta 29 ROSSET, Clement. A antinatureza. Ver também as considerações do autor sobre a mesma questão em O real e o seu duplo. 30 STRASSER, Stephan, Introdução de La crise de l’humanité européenne et la philosophie, de Edmund Husserl, p. 227.
51
separadamente das diversas abrangências do ser, setorizando o
conhecimento em dois “monstros” que são a ciência e a filosofia moderna.
Beuys, como Husserl nos idos da década de 1930, viu a urgência de se
compreender o espírito, já que a origem da crise estaria no naturalismo
com que a modernidade histórica pretendeu dar conta dos
desapontamentos existenciais. Ou ainda mais especificamente, no
objetivismo (na sua concepção psicofísica) que confere ao espírito uma
realidade natural como se fosse um anexo real dos corpos..31 O tão
nefasto naturalismo, segundo o pensador, constitui a banalização e o
embrutecimento da força do espírito. Isto é, o espírito deixa de ser espírito
para se tornar algo apreensível como matéria: Os gigantescos sucessos do conhecimento da natureza devem ser
agora estendidos ao conhecimento do espírito. A razão provou sua força na ordem da natureza. Do mesmo modo que o sol é o mesmo sol que ilumina e aquece, assim também a razão é razão única (Descartes). É necessário que o método das ciências da natureza revelem também os mistérios do espírito.32
Beuys reivindica a universalização de seu material autobiográfico,
expondo a si mesmo como um autêntico fenômeno europeu, criticando a
Aufklärung que teria mergulhado o homem num niilismo frio e distante. O
artista ritualiza cada um de seus atos, usa a terminologia cristã ou ainda
os símbolos trazidos dos mitos para obter, assim, uma renovação
espiritual através do retorno a sabedorias pré-científicas ou mesmo pré-
letradas. Tanto quanto Husserl, Beuys parece alertar constantemente
sobre a confusão que afeta as relações de método e de conteúdo entre as
ciências da natureza e as do espírito que se tornam insuportáveis.33 O
fracasso das tentativas de nos aproximarmos do espírito acirra o duro
embate com o real que temos diante dos olhos, desgovernado e
totalmente desprovido de sentido: um “irracionalismo” como culto da
liberdade do espírito. A perda da espiritualidade, isto é, da
autocompreensão do espírito, significa a perda da totalidade e uma
conseqüente ameaça de barbárie objetivista. É preciso que o espírito seja
tratado como espírito de maneira sistemática, o que implica para Husserl 31 HUSSERL, Edmund. La crise de l’humanité européenne et la philosophie, p. 252. 32 Idem. p. 25. 33 Idem. p. 254.
52
um novo racionalismo: A crise da existência da Europa tem apenas duas saídas: ou a
Europa desaparecerá se tornando sempre mais estranha à sua própria significação racional, que é seu sentido vital, e soçobrará ao ódio do espírito e à barbárie; ou bem a Europa renascerá do espírito da filosofia, graças a um heroísmo da razão que se sobreporá definitivamente ao naturalismo.34
Assim como Husserl, Beuys alimentou esperanças de reconquistar
os valores históricos e pareceu mesmo adotar esta “missão”, pedindo um
novo homem renascido do sofrimento e da paixão para que se preserve a
imaginação humana e a expressão criativa como tarefa infinita. O filósofo
espera a renovação do racionalismo com a mesma finalidade: A ratio que está agora em questão é a operação do espírito que se
compreende a ele mesmo de maneira realmente universal e realmente radical; esta compreensão toma a forma de uma ciência universal, capaz de responder por ela mesma e que inaugura um mundo absolutamente novo de atividades científicas, onde todas as questões imagináveis encontram seu lugar: as questões do ser, as questões de norma, as questões ditas da existência.35
Se, por um lado, Beuys e Husserl adotam questões originárias
semelhantes, por outro, é preciso, obviamente, diferenciá-los no que
concerne aos impulsos intelectivos: o primeiro é o que pode-se nomear de
“romântico especulativo”, o outro, como atesta a totalidade de sua obra
filosófica, um “meticuloso racionalista”. O diagnóstico é o mesmo, mas o
remédio, muito diferente.
Porém, foi somente na esteira das perplexidades do segundo pós-
guerra que tais considerações encontraram um terreno fértil para o pleno
desenvolvimento de suas “profecias”. Benjamin, Adorno, Heidegger e
Wittgenstein são alguns dos pensadores que cedo esquadrinharam as
questões recentemente atualizadas por Harbemas, Gadamer e Vattimo,
dentre outros.
* * * 34 Idem. p. 258. 35 Idem. p. 256.
53
Torna-se clara a necessidade de uma nova dimensão crítica.
Algumas leituras, meramente casuais, encorajaram a liberdade crítica
procurada nesta tese. O Rembrandt de Georg Simmel foi um desses
estímulos. Um trecho, em especial, resume o empenho de se estabelecer
uma concepção de arte mais heurística do que dogmática: Il me semble à présent que l’une des tâches essentielles qui
incombent à la théorie de l’art, c’est justement de nier de plus em plus ce caractère immédiat du rapport entre la réalité et l'ouvre d’art. Il faut absolument reconaître que l’art est tout simplement une création formelle autonome, et qu’en tant que mise en forme des contenus universels il ne se nourrit pas d’emprunts à cette autre mise em forme que nous appelons la réalité. La fait que tous le grands artistes ont étudiés inlassablement la réalité naturelle ne constitue pas le moins du monde une preuve du contraire. Car si, comme je le suppose, l’ouvre d’art procède d’un germe psychique, qui ne contient pas du tout son extensivité qui deviendra visible à la fin, mais dont celle-ci représente une conséquence tout à fait allotropique de celui-là – cela ne préjuge en rien des conditions et des incitations dont l’âme de l’artiste a besoin pour que ce germe naisse en elle. 36 Decerto que o parágrafo guarda uma essência modernista, mas a
noção ampliada de “alotropia”, é instigante e atualíssima. Definindo a
capacidade de um mesmo elemento apresentar-se sob diferentes formas
físicas ou simbólicas, o autor estende o alcance do termo para explicar a
faculdade do “germe anímico” que rege as manifestações plásticas.
Contaminado pelas contingências, o “elemento” desenvolve uma
seqüência alotrópica: a criação artística não resulta de uma adequação
formal, de um ajuste modal entre realidade e representações humanas, e
sim de um acordo psíquico.
A superfície material do mundo, que apenas a percepção estética
pode referir-se, amargou um longo processo purgatório. A ratio moderna,
incomodada pela inevitável auto-reflexão advinda da presença física,
deflagrou um encadeamento tão amplo quanto complexo de seqüências e
conseqüências, que demandou a reconvocação de uma atividade
intelectual alternativa para dar conta dos muitos imprevistos existenciais.
Dos tempos em que apenas dois eixos estruturais básicos definiam as
ações humanas – sujeito/objeto & superfície/profundidade, cuja
36 Georg Simmel. Rembrandt. p. 52
54
intersecção já constituía um campo hermenêutico –, aos anos das
incontáveis experiências interdependentes, da crise da
representabilidade, da crescente relativização da vida em geral, a
aventura moderna comandou uma intensa atividade hermenêutica e,
talvez, exigiu sua exclusividade. O campo hermenêutico produz o pressuposto de que os significantes
da superfície material do mundo nunca são suficientes para expressar toda a verdade presente na sua profundidade espiritual, e, portanto, estabelece uma constante demanda de interpretação como um ato que compensa as deficiências de comunicação. 37
A arte de adivinhar, entender e/ou julgar as muitas formas de
interação humana, retomada pelas recentes inflexões filosóficas sobre os
alcances analíticos da prática hermenêutica, ou seja, quando os métodos
investigativos tradicionais revelaram-se inócuos aos procedimentos
poéticos, não consiste, exatamente, numa novidade. A retomada deseja a
resolução de um dilema, como insinua Hans U. Gumbrecht: Uma vez, contudo, que a percepção como ato físico e o mundo
material como seu objeto se tornaram novamente tópicos, surgem as questões de saber como eles se relacionam com um tipo de experiência que é baseada exclusivamente em conceitos – e se a percepção física e a experiência conceitual podem em todo caso ser mediadas ou reconciliadas.38
A própria linguagem já é sempre interpretação, enquanto procura
expressar o que se passa na alma de quem articula uma enunciação.
Interpretar é uma forma de “traduzir”, ou tornar compreensível um sentido
estranho ou ambíguo, caso em que uma nova formulação se sobrepõe a
uma outra. A realidade social, e sobretudo nela o fenômeno da
comunicação, possui dimensões tão variadas e mesmo misteriosas que é
mister atentar não só para o que se diz, mas igualmente para o que não
se diz. A hermenêutica trata da arte de perscrutar o sentido oculto das
produções humanas, na certeza de que no “contexto” há por vezes mais
do que no “texto”.39
37 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. pp. 12-13. 38 Idem. p. 14 39 GRONDIN. Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Apresentação de Benno Dischinger. p. 10.
55
Ora, depois de Freud, pouco restou intacto dos constructos do
humanismo clássico, não sobraram muitas dúvidas sobre os mandos e os
desmandos do inconsciente. Então, como os relatos convencionais, ainda
que atrelados aos aspectos puramente formais, poderiam dar conta de um
cubo de Tony Smith, senão através de métodos heterodoxos? E o que
dizer das ocorrências proselitistas do Fluxus? Ou dos vários modos de
siderar o espectador promovidos por Beuys? Como enquadrar as
desorientações estéticas de Warhol? Como balizar as obras de Stella e
Judd? Os procedimentos de natureza hermenêutica, aplicadas às
múltiplas modalidades de expressão do discurso humano, participam de
uma indispensável tarefa crítica, num momento em que não mais é
admissível estacionar o pensamento lógico em teorias ou metodologias de
compreensão e interpretação já caducas, estéreis ou inoperantes.
Sem dúvida, a hermenêutica resgata os trâmites da inteligência
emocional, uma espécie de sensibilidade ingênua própria à Idade Média,
há muito condenada. Hans Georg Gadamer explica, via Jean Grondin, no
que consiste, afinal, mais exatamente, o aspecto universal da
hermenêutica:
(...) no verbum interius (...) [A Universalidade] está na linguagem interior, no fato de que não se pode dizer tudo. Não é possível expressar tudo o que está na alma, o lógos endiáthetos. Isso me provém de Agostinho, do “De Trinitate”. Esta experiência é universal: o actus signatus nunca coincide com o actus exercitus.40 A obra de Beuys promove um reenvio ao pensamento dos
românticos alemães, solicita uma ampla reavaliação dos serviços
civilizatórios modernos. O artista convoca uma drástica regressão
espiritual: seus chamados repotencializam os ensinamentos estéticos do
romantismo, e os somam às práticas tribais. Beuys retoma, assim, as
polêmicas suscitadas pelas reformas culturais do Iluminismo. Há muito o
terreno teórico vinha sendo preparado para o implemento de novas
condutas críticas. Aliás, os muitos avisos filosóficos, as considerações
poéticas concorreram pari passu para as ocorrências trágicas, para o
acirramento da ratio moderna, e adiantaram uma saída honrosa para o 40 Idem. pp. 19-20.
56
beco existencial promovido pela modernidade. Tais raciocínios
mostraram-se atuais, lúcidos e úteis para os múltiplos pensamentos pós-
modernos.