2. Fase Final - Analise Do Plano de Conteudo - I Ciclo

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Unida Exegese do Novo Testamento I 1 Interpretando o Plano de Conteúdo de textos bíblicos A dimensão espaço-temporal da ação Júlio P. T. Zabatiero Introdução Penso que a melhor maneira de definir o conteúdo de um texto é descrever esse conteúdo primariamente como os significados que são atribuídos à ação humana pelo texto. Analisar o plano de conteúdo de um texto visa compreender como esse texto interpretou e comunicou para seus leitores e leitoras o significado da ação humana em um dado tempo e espaço, em uma sociedade e cultura específicas. Repare que estamos falando no significado da ação e não no significado de palavras ou idéias. As idéias estão a serviço da ação humana, e não vice-versa. O que um texto comunica não são idéias desligadas da realidade, são idéias incorporadas na ação humana. A interpretação dos significados de um texto é, como temos visto, um processo complexo. Interpretar o texto significa examinar o texto sob diferentes pontos de vista, sendo dirigido pelo próprio texto nesse processo. É como se a gente estivesse analisando as diferentes camadas de uma cebola, ou de um determinado solo em que queremos plantar ou construir algo. 1. Que é analisar a dimensão espaço-temporal da ação Após as fases preliminar e preparatória, chegamos à fase final da interpretação. A fase final possui cinco ciclos, mas nesta disciplina de Exegese do Novo Testamento I estudaremos apenas o Primeiro Ciclo. No primeiro ciclo, a nossa atenção recai sobre o aspecto mais elementar e básico da ação: pessoas agem, umas em relação a outras, em algum lugar e em alguma época. O sentido de nossas ações

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  • Unida Exegese do Novo Testamento I 1

    Interpretando o Plano de Contedo de textos bblicos

    A dimenso espao-temporal da ao

    Jlio P. T. Zabatiero

    Introduo

    Penso que a melhor maneira de definir o contedo de um texto descrever

    esse contedo primariamente como os significados que so atribudos ao

    humana pelo texto. Analisar o plano de contedo de um texto visa compreender

    como esse texto interpretou e comunicou para seus leitores e leitoras o significado

    da ao humana em um dado tempo e espao, em uma sociedade e cultura

    especficas. Repare que estamos falando no significado da ao e no no significado

    de palavras ou idias. As idias esto a servio da ao humana, e no vice-versa. O

    que um texto comunica no so idias desligadas da realidade, so idias

    incorporadas na ao humana.

    A interpretao dos significados de um texto , como temos visto, um

    processo complexo. Interpretar o texto significa examinar o texto sob diferentes

    pontos de vista, sendo dirigido pelo prprio texto nesse processo. como se a gente

    estivesse analisando as diferentes camadas de uma cebola, ou de um determinado

    solo em que queremos plantar ou construir algo.

    1. Que analisar a dimenso espao-temporal da ao

    Aps as fases preliminar e preparatria, chegamos fase final da

    interpretao. A fase final possui cinco ciclos, mas nesta disciplina de Exegese do

    Novo Testamento I estudaremos apenas o Primeiro Ciclo. No primeiro ciclo, a nossa

    ateno recai sobre o aspecto mais elementar e bsico da ao: pessoas agem, umas

    em relao a outras, em algum lugar e em alguma poca. O sentido de nossas aes

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    no depende s do que fazemos e com quem e para quem fazemos, mas tambm da

    maneira como ocupamos o espao e usamos o tempo. Os textos tm uma capacidade

    muito grande de dar sentido s aes no tempo e no espao, e precisamos aprender a

    entender e interpretar essa capacidade textual.

    Comeamos a interpretao do significado do texto com as pessoas agindo no

    tempo e espao porque, lingisticamente falando, o ato da enunciao (a ao de

    enunciar, dizer algo, de mobilizar a lngua para comunicar algo a algum) possui

    como caracterstica bsica o dar sentido s pessoas (actorializao), ao tempo

    (temporalizao) e ao espao (espacializao).

    Nos modos mais habituais de interpretao bblica relativamente comum

    no prestar ateno ao tempo e ao espao enquanto elementos decisivos no processo

    de significao dos textos. Note bem: estamos tratando dos significados que o texto

    atribui s pessoas, tempo e espao nele mesmo (no prprio texto) e no s pessoas,

    tempo e espao fora do texto. Trata-se, ento, de analisarmos as pessoas, tempo e

    espao enquanto elementos significativos do prprio texto, enquanto efeitos de

    Enunciar atribuir

    significado :

    Ao e Interao

    de

    Pessoas no

    Tempo e no

    Espao

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    sentido produzidos pelo prprio ato de enunciar. Por isso, cabe aqui uma

    advertncia: no confunda a anlise enunciativa das pessoas, tempo e espao com a

    anlise contextual de autor, lugar e poca de escrita do texto. O que analisamos so

    os sentidos que as pessoas, tempo e espao recebem no texto, e no os seus

    referentes histricos. Isto no quer dizer que um texto no lide com a realidade -

    simplesmente ressalta que, no texto, encontramos a realidade sempre interpretada,

    significada, mediada pela linguagem.

    Para fazermos a anlise da dimenso espao-temporal da ao, seguimos as

    seguintes perguntas:

    Perguntas do I Ciclo

    2. Como fazer a Anlise do I Ciclo: Dimenso Espao-Temporal da Ao

    1. Alistar:

    * as pessoas (personagens) que agem ou recebem ao, suas aes e suas

    caracterizaes;

    * os indicadores de espao e suas caracterizaes;

    * os indicadores de tempo e suas caracterizaes;

    2. Analisar a organizao das aes das pessoas no tempo-espao do texto;

    3. Elaborar uma sntese.

    (1) Quem age, onde, quando, fazendo o que, a quem;

    (2) como so caracterizados pessoa, tempo e espao no texto;

    (3) como o texto organiza essas aes e relaes no

    tempo e no espao?

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    3. Definies

    Ao: atividade significativa de pessoas (humanas ou no), construda no e

    pelo texto. Os verbos so a classe gramatical usada para expressar a ao.

    Caracterizao: atribuio de qualidades, defeitos, caractersticas gerais ou

    especficas a pessoas, espaos e tempos. Adjetivos so a classe gramatical usada

    para expressar caractersticas. Alm de adjetivos, a caracterizao pode ser efetuada

    tambm por meio de recursos sintticos como: adjuntos e complementos nominais,

    oraes subordinadas subjetivas e oraes subordinadas adjetivas. As pessoas

    tambm podem ser caracterizadas por suas aes;

    Pessoa: a ao sempre realizada por algum, que chamamos de pessoa (ou

    personagem). Pessoa uma construo do enunciador, e pode ser uma

    representao mais prxima possvel de pessoas reais, ou pode ser uma pessoa-tipo,

    construda a partir de pessoas reais, mas no equivalente a uma em particular. So

    vrios os recursos possveis para construir a pessoa no texto: as prprias aes que a

    pessoa realiza, os papis scio-culturais que desempenha, as caracterizaes que

    recebe, e os juzos que dela so feitos;

    Espao: Quem age, sempre age em algum lugar. Nos textos, os espaos so

    locais significativos que delimitam e organizam a ao humana, sejam espaos reais

    ou imaginrios. Como no caso das pessoas, os espaos podem ser tpicos ou no, e

    ajudam a construir os efeitos de sentido intencionados na enunciao. Os espaos se

    organizam ao redor de oposies do tipo aqui-l, dentro-fora, perto-longe,

    esquerda-direita, etc., em funo de um ponto a partir de que ele se organiza. Os

    espaos podem ser apresentados em relao a um momento externo ao texto (ou ao

    momento da fala), ou em relao a um momento interno ao texto, em relao ao que

    narrado no prprio texto. A importncia e os significados do espao variam de

    acordo com o texto e carecem de anlise cuidadosa.

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    A construo do espao se d mediante a figurativizao, ou seja, mediante a

    adjetivao concreta dos lugares distncia, proximidade, tamanho, nomes,

    caractersticas geogrficas. A figurativizao um mecanismo lingstico de

    recobrir temas, de ocult-los atravs das figuras. No caso do espao, o que se busca

    na anlise sempre mais do que a sua geografia, mas a sua significao, quais os

    sentidos que o espao adquire mediante a ao e a interao humana. Por exemplo,

    quando se diz estou me sentindo em casa, no nos referimos casa enquanto lugar

    de moradia, mas casa enquanto um espao seguro, agradvel, familiar;

    Tempo: Quem age, sempre age no tempo. Duas so as dimenses do tempo

    que devem ser analisadas na interpretao de textos: a cronolgica (que tem a ver

    com a sucesso de momentos do tempo), normalmente indicada pelos termos

    presente, passado e futuro; e a dimenso qualitativa (que tem a ver com o modo de

    descrio da ao no tempo, e que na gramtica e na semitica se chama de aspecto

    ou modo de ao), normalmente indicada pelos termos completo (quando a ao

    vista em sua totalidade, realizada), e incompleto (quando a ao vista ainda em

    ocorrncia, no-realizada). Alm desses dois modos genricos de descrever a ao

    no tempo, cada um deles pode ser ainda qualificado como incoativo (quando se

    descreve a ao em seu incio), durativo (quando se descreve a ao em sua durao,

    em seu processo de acontecer), iterativo (quando se descreve a ao em sua

    iteratividade, sempre comeando), e terminativo (quando se descreve a ao em seu

    trmino, final).

    As formas lingsticas de marcar o tempo so os tempos verbais, os advrbios

    e as expresses adverbiais de tempo. Como no caso do espao, os tempos podem ser

    ordenados em relao ao momento da fala, ou em relao a um marco temporal

    dentro do texto. Esses tempos so ordenados como tempos concomitantes,

    anteriores e/ou posteriores seja ao momento da fala, seja ao marco temporal

    presente no texto, mediante um arranjo de tempos verbais e/ou advrbios temporais,

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    que pode ser bastante complexo.

    De forma simplificada, no caso do sistema verbal, temos na lngua

    portuguesa: o uso do tempo presente do verbo para indicar predominantemente ao

    concomitante; os tempos pretritos do verbo para indicar predominantemente ao

    anterior, e os tempos futuros do verbo para indicar predominantemente ao

    posterior ao marco temporal (da fala, ou do texto). possvel, porm, usar um

    tempo verbal para expressar tempo cronolgico no correspondente ao tempo

    verbal, por exemplo: (a) podemos usar o tempo verbal presente com sentido

    cronolgico de passado (e.g.: Era o tempo esperado: Jesus nasce, sonhos iro se

    realizar...); ou (b) podemos usar o tempo verbal do pretrito perfeito para indicar

    tempo cronolgico futuro e modo condicional de ao (e.g. Correu, caiu!); etc.

    Se pensarmos no modo da ao, basicamente encontramos: (a) o modo

    incompleto da ao geralmente designado pelos tempos verbais do presente, do

    pretrito imperfeito e do futuro, bem como pelo gerndio e infinitivo; (b) o modo de

    ao completo geralmente designado pelos tempos verbais do pretrito-perfeito e

    pretrito mais-que-perfeito, e pelo particpio. Mas, assim como no caso do tempo

    cronolgico, possvel usar os tempos verbais de formas diferentes da comum.

    Alm desses dados bsicos, podemos notar, por exemplo, que o particpio e o

    gerndio tendem a iludir a temporalidade cronolgica, criando o efeito de sentido da

    permanncia, durabilidade ou atemporalidade. O subjuntivo e o imperativo tendem a

    criar um efeito de expectativa, de ao ainda a ser realizada, de incompletude.

    4. Exemplo

    Marcos 1

    9. Naqueles dias veio Jesus de Nazar da Galilia e por Joo foi batizado no rio

    Jordo. 10 Logo ao sair da gua, viu os cus rasgarem-se e o Esprito descendo

    COMO POMBA sobre ele. 11 Ento foi ouvida uma voz dos cus: Tu s o meu

    FILHO AMADO, em ti me comprazo.

  • Unida Exegese do Novo Testamento I 7

    1. Alistar ...

    [Quem age, fazendo o qu, a quem, sendo caracterizado como]

    Jesus: veio de Nazar (9) foi batizado por Joo, no rio Jordo (9) ao sair da gua,

    viu os cus rasgarem-se (10) e o Esprito descendo sobre ele (10) foi caracterizado

    pela voz do cu como meu filho amado, em ti me comprazo (11)

    Joo: batizou Jesus no Jordo (9)

    Esprito: foi visto por Jesus descendo sobre ele, caracterizado como pomba (10)

    pessoa indeterminada: as que ouviram a voz dos cus (no texto, foi ouvida uma voz

    dos cus) (11)

    [... Onde]

    Nazar da Galilia (9); Rio Jordo (9 e 10 [da gua]); cus (10 e 11)

    [... Quando]

    Naqueles dias (9); logo ao sair (10); ento pode ter o sentido de depois (11)

    Verbos no pretrito perfeito: veio, foi batizado (9) viu (10) foi ouvida (11) ao no

    passado, no modo completo e terminativo, ou seja, as aes so vistas como j

    realizadas e descritas a partir de seu trmino;

    Verbos no infinitivo: sair (10) rasgarem-se (10) - indicam aes concomitantes s

    aes dos verbos aos quais esto ligados: Jesus, no mesmo momento em que saiu

    da gua, viu os cus se rasgarem;

    Verbo no gerndio: descendo (10) tambm indica ao concomitante do verbo da

    orao principal (viu), destacando o modo incompleto da ao, descrita em sua

    duratividade;

    Verbo no presente: me comprazo (11) indica ao incompleta e, neste caso, a ao

    vista em sua duratividade.

    Obs.: (s) os verbos de ligao normalmente indicam estado.

  • Unida Exegese do Novo Testamento I 8

    2. Analisar

    [... Como esto organizadas as aes e relaes no tempo e no espao]

    As aes e relaes esto organizadas no espao predominantemente atravs

    de movimentos: (a) Jesus sai de Nazar, da Galilia, e vai ao rio Jordo para ser

    batizado; (b) Jesus entra no rio para ser batizado e sai dele para ouvir a voz dos cus

    e receber o Esprito; (c) o Esprito e a voz descem do cu para a terra, tornando-se

    audveis e visveis. Alm da nfase no movimento, o texto ressalta o aspecto

    perifrico do acontecimento Galilia e Jordo no so lugares centrais do ponto de

    vista poltico e religioso na poca. Destaca-se a ausncia do Templo, onde

    oficialmente deveriam ocorrer as experincias de Deus conforme a doutrina do

    Judasmo, substitudo aqui pelo cu, lugar da morada de Deus, que expressa a sua

    liberdade em relao estrutura poltica e ao Templo.

    Quanto organizao temporal, a combinao dos verbos sugere a

    dinamicidade do evento que est sendo narrado tudo acontece rpida e

    efetivamente, o tempo um tempo de realizao, de acontecimentos decisivos. Ao

    lado dessa caracterstica de dinamicidade, o texto tambm sugere que o tempo

    cronolgico pouco relevante, pois simplesmente situa o acontecimento naqueles

    dias (marco temporal externo ao texto, em contraste com o restante do texto, no

    qual o marco temporal que organiza as aes interno ao texto), estimulando quem

    l o texto a prestar ateno ao acontecimento em si, e no sua posio cronolgica.

    O texto formulado predominantemente na terceira pessoa, produzindo efeito de

    objetividade quem l pode ver a cena narrada. Somente a fala da voz do cu est

    na primeira pessoa e produz efeito de subjetividade, isto , indica a proximidade

    pessoal entre a voz e Jesus, sugerindo aos leitores que esse Jesus digno de ser

    levado a srio.

    3. Elaborar uma sntese

  • Unida Exegese do Novo Testamento I 9

    O texto situa o batismo e a vocao de Jesus em um espao no-oficial, um

    espao que se pode entender como crtico em relao aos espaos oficiais da religio

    judaica na poca. o espao de Joo, um profeta que criticava os dirigentes polticos

    e religiosos de seu tempo; o espao das pessoas impuras e pecadoras seja a

    Galilia dos gentios, de onde vem Jesus (no se poderia imaginar o Messias vindo

    de um local impuro!), seja o local do batismo, freqentado por pessoas arrependidas,

    ou seja, pessoas que reconheciam seu pecado e tambm a incapacidade da religio

    oficial lidar com esse pecado. Esse espao perifrico, marginal, crtico, legitimado

    pela revelao divina, que se manifesta do cu, santificando o lugar impuro e

    no-oficial. A temporalidade dinmica, veloz, contrasta com os ritmos lentos e

    rotineiros dos rituais de investidura oficial (seja nas cortes, seja nos templos), que

    visa impressionar a audincia pela sua lenta durao e enfatizar, assim, a diferena

    entre a solenidade oficial e o tempo cotidiano.

    Concluso

    Repetindo o que escrevi no texto da semana passada. Fazer exegese s se

    aprende FAZENDO. Acima exemplifiquei como fazer. Agora, voc precisa tentar.

    No desanime com as dificuldades que voc possivelmente ir enfrentar. Persevere.

    Insista. No desista.

    Faa, agora, a anlise da dimenso espao-temporal da

    ao da percope de Marcos 1,12-13 e entregue a sua

    anlise usando a TAREFA desta semana.