1999 Tese
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IVAN CLUDIO PEREIRA SIQUEIRA
IVAN CLUDIO PEREIRA SIQUEIRA
PAULINHO DA VIOLA: O caminho de volta
(Um estudo potico-musical da cano popular brasileira)
USP
1999
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada
Mestrado em Letras
Paulinho da Viola: O caminho de volta (Um estudo potico-musical da cano popular brasileira)
Ivan Cludio Pereira Siqueira
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a
obteno do ttulo de Mestre em Letras.
rea de concentrao: Teoria Literria e Literatura Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Roberto Ventura
So Paulo
1999
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memria de Romana, a Lia dos causos e das cantigas.
Minha av era brasileira, nascida nas Minas Gerais do comeo
deste sculo. Atravs do seu amor pela terra, conheci algo
essencial: as lendas, cultura e cano brasileira: o samba
sopro do esprito e da natureza africanos fecundados em solo
tupi.
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A G R A D E C I M E N T O S
- A Roberto Ventura pela orientao e confiana em mim depositada.
- Aos professores Joaquim Aguiar e Luiz Tatit pelas sugestes apresentadas.
- Durante o desenvolvimento desta dissertao, contei com o apoio financeiro de
Bolsa de Estudos concedida pela FAPESP, imprescindvel para a realizao deste
trabalho, a quem agradeo em especial.
- Aos funcionrios do Departamento de Teoria Literria da USP, em especial ao
Lus, pelo apreo.
- minha me, pelo esforo e dedicao incansveis.
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SIQUEIRA, Ivan Cludio Pereira. Paulinho da Viola: O caminho de volta.
(Um estudo potico-musical da cano popular brasileira). So Paulo,
1999, p. 120. Dissertao de Mestrado em Letras. Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.
RESUMO
As relaes entre melodia e letra so tomadas como ponto de partida para a
interpretao das canes de Paulinho da Viola, um dos maiores sambistas de todos os
tempos. Sua obra analisada nos aspectos esttico e sociolgico, sendo vista como
parte da presena histrica da arte negra na cano popular brasileira.
Palavras-chave: Melodia. Letra. Samba. Msica Popular Brasileira.
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SIQUEIRA, Ivan Cludio Pereira. Paulinho da Viola: O caminho de volta.
(Um estudo potico-musical da cano popular brasileira). So Paulo,
1999, p. 120. Dissertao de Mestrado em Letras. Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.
ABSTRACT
The relationships between melody and lyric are interpreted in Paulinho da Viola`s
songs, one of the best composers of samba music. His musical work is studied on
aesthetic and social aspects as part of black presence in the Brazilian popular song.
Keywords: Melody. Lyric. Samba. Brazilian Popular Song.
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SUMRIO
Introduo.................................................................................................08
1 A problemtica da cano popular: melodia e letra..............................10
1.1 Cano potica.................................................................................10
Audio da palavra
1.2 Bossa nova e tropiclia.....................................................................10
O canto da palavra e a palavra cantada
1.3 Potica e cano: confluncias..........................................................18
Os precursores da cano-poema
2 Metodologia e anlise: as canes.........................................................20
2.1 Outras leituras do cancionista...........................................................80
3 Espao e configurao do samba...........................................................95
3.1 O perodo de formao.....................................................................95
3.2 As primeiras manifestaes da msica popular...............................97
4 O Caminho de Volta............................................................................104
Uma perspectiva temporal
5 Concluso............................................................................................112
Bibliografia.............................................................................................113
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Introduo
Esta dissertao resultado do convvio apaixonado com a cano popular brasileira e
do olhar curioso que procura entreabrir a mnima fresta para alm das obviedades que certas
canes evidenciam, atravs da abordagem de suas categorias estruturais nas canes de
Paulinho da Viola. Partindo da constatao de que ainda existem poucos estudos sobre as
relaes que se estabelecem entre msica e palavra - a cano frequentemente tratada
apenas pela sua faceta lingustica -, o trabalho segue um modelo analtico que une essas duas
particularidades da cano.
A cano abordada como um objeto uno e multifacetado e as categorias estruturadas
a partir da letra e da melodia so vistas como a sua prpria essncia. No que se refere
metodologia, as canes so tomadas do ponto de vista lingustico e musical. A investigao
dos caracteres musicais visa mostrar como a melodia apoia os limites da fala transformada em
canto.
Como referncia, utilizei O cancionista, de Luiz Tatit, que aborda as relaes entre
fala e canto, oferecendo elementos para a anlise do componente meldico e lingustico.
Segundo Tatit, na voz que canta h uma outra que fala e os principais conceitos que
sistematizam essa ocorrncia so a figurativizao, a tematizao e a passionalizao.
Figurativizao compreende a programao entoativa da melodia, isto , a voz que
canta oculta uma outra falante. Esse processo pode ser averiguado de duas maneiras: pelos
diticos, na esfera lingustica, atravs da presentificao de um eu que canta sempre aqui e
agora; e na melodia, pela existncia dos tonemas (ascendentes, suspensivos e descendentes),
que determinam o instante asseverativo do segmento (frase musical). Tematizao diz
respeito ao processo de segmentao e de criao de clulas rtmicas pela acelerao do
andamento e pela evidncia do pulso e dos ataques consonantais. Por passionalizao,
entende-se a continuidade meldica no prolongamento das frequncias, fato que se d por
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meio do espraiamento das vogais e do subsequente relevo das curvas meldicas. Assim,
tematizao e passionalizao1 so processos ligados s leis musicais, enquanto a
figurativizao remete s leis lingusticas.
A dissertao contm trs ncleos: um metodolgico, outro analtico e o ltimo
histrico. Inicia-se pelo primeiro, fazendo consideraes preliminares sobre o mtodo de
anlise da cano a ser empregado e enfocando a bossa nova e a tropiclia, movimentos
musicais que exerceram grande influncia na formao musical de Paulinho da Viola. A bossa
nova foi responsvel pela revalorizao dos sambistas do morro e pelo acesso dos
universitrios a esse tipo de msica. A tropiclia despertou o interesse acadmico pela cano
popular especialmente por sua ligao com a poesia. O intuito estabelecer um dilogo entre
a bossa nova, a tropiclia e o samba tradicional, para mostrar como essas influncias agiram
na formao do estilo do cancionista.
Na segunda parte so analisadas as canes de Paulinho da Viola e de outros
compositores interpretadas por ele, procurando salientar como a sua obra pode ser entendida
como o caminho de volta ao samba tradicional e, ao mesmo tempo, como uma obra que
dialoga com o presente, tendo como trao bsico a urbanidade.
Paulinho da Viola conhece a tradio musical do samba e tem conscincia de sua
relevncia enquanto suporte para o dilogo contemporneo. Para ele, o samba um espao
privilegiado de criao artstica e de socializao. Por isso, Paulinho da Viola uma espcie
de mediador cultural que se nega ao saudosismo esttico e aos modismos, revelando na sua
arte a tenso que explica a sua prpria condio de negro de classe mdia.
Na ltima parte traado um panorama histrico da msica popular no Brasil,
mostrando que Paulinho da Viola representa um elo de ligao entre o samba tradicional e as
canes contemporneas, alm do resumo da sua discografia.
1 Luiz Tatit. O cancionista: composio de canes no Brasil. So Paulo, Edusp, 1996.
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1 A problemtica da cano popular: melodia e letra
1.1 Cano potica
Audio da palavra
A cano popular um dos campos mais fecundos da cultura brasileira e o interesse
acadmico por ela cresceu de modo considervel a partir da dcada de 1980, decorrncia, em
parte, das anlises pioneiras sobre a bossa nova. Esses estudos foram reunidos por Augusto de
Campos em Balano da bossa2, coletnea que procurava compreender as singularidades
tcnicas e culturais do estilo musical no final da dcada de 1960.
Augusto de Campos abordava, em seu livro um marco para o estudo da cano , os
aspectos poticos da cano-poema e sugeria que a melhor poesia brasileira estava nas letras
das canes. Segundo ele, Caetano Veloso era o grande poeta do momento e o artista que
melhor esboava uma continuidade formal da linha evolutiva introduzida pela bossa nova. No
mesmo aspecto, Celso Favaretto apontava que Caetano Veloso e o tropicalismo tiveram a
felicidade de efetuar, atravs da cano, a sntese entre poesia e msica3.
1.2 Bossa nova e tropiclia
O canto da palavra e a palavra cantada
A tropiclia foi um caso singular da arte de vanguarda no Brasil contemporneo. Suas
propostas extrapolavam o mbito da cano com o experimentalismo ligado s ideias
concretistas, o exagero nas vestimentas, a elaborao do cenrio e a composio das capas dos
discos, que no mais se prestavam apenas para guardar o vinil. Essas ideias faziam parte de
um projeto artstico que queria atingir determinados efeitos no consumidor, atravs do design
da capa e da sua integrao com a msica.
A participao de intelectuais, poetas e artistas no movimento expandiu o raio de ao
das ideias vanguardistas e das atitudes artsticas ligadas a concepes polticas da arte. Assim,
2 Augusto de Campos et alii. Balano da bossa. 5ed. So Paulo, Perspectiva, 1993.
3 Celso F. Favaretto. Tropiclia, Alegoria, Alegria. So Paulo, Kairs, 1979, p.18.
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a tropiclia se inscreveu como movimento de vanguarda centrado na msica, mas cujo
alcance se estendeu ao cinema, ao teatro e literatura.
A bossa nova imprimiu uma nova funo ao intrprete, que passou a participar do
processo de criao da composio, do arranjo e da concepo instrumental, deixando para
trs a figura da estrela que utilizava a cano como mero suporte para a sua personalidade
musical. Antes a ateno recaa sobre os cantores, depois da bossa nova, a cano que
passou a assumir o papel central. Essas posturas representavam um importante avano em
relao ao samba tradicional das dcadas de 1930 e 1940, que ainda dependia da genialidade
de um ou outro sambista para ultrapassar a redundncia dos registros e temas musicais.
A regravao de Chega de saudade por Joo Gilberto, em 1958, considerada o
marco inicial da bossa nova. Com o tempo, o movimento intensificaria a sua vocao
camerstica, tornando mais complexas as solues musicais, porm, ampliando a
despreocupao com os aspectos sociais da cano. Esse excesso de lirismo culminou com a
diviso do movimento em duas tendncias: uma voltada para as solues de carter musical e
outra vinculada militncia poltico-social - a cano de protesto. A reelaborao do samba
pelos bossanovistas no atraiu os ouvintes acostumados batida do samba tradicional e s
mensagens ligadas ao cotidiano. Criticava-se, na bossa nova, o excesso de influncias do jazz
americano, o que passou a ser visto como desapego s razes da msica brasileira. No centro
dessa controvrsia estava o dado social do pblico mais instrudo da bossa nova, formado por
moradores da zona sul carioca, enquanto o samba estava mais ligado populao
predominantemente negra, pobre e marginalizada dos morros da zona norte.
A bossa nova provocou um hiato na histria da cano popular brasileira. De acordo
com Jos Miguel Wisnik, o refinamento da primeira fase da bossa nova gerou uma ciso
irrecupervel e fecunda entre dois patamares da msica popular: o romantismo de massa que
hoje chamamos brega e que tem em Roberto Carlos o seu grande rei e a msica
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intelectualizada, marcada por influncias literrias e eruditas, de gosto universitrio ou
estetizado4.
Abordarei um trecho de um samba de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro e de uma
cano de Antonio Carlos Jobim, um dos fundadores da bossa nova, para salientar as
exigncias de cada estilo e mostrar como a proposta de refinamento da bossa nova culminou
com uma msica popular de estilo camerstico, cujas nuances sonoras se distanciavam do
gosto do ouvinte mdio. O samba Sem compromisso, lanado no ano de 1944 e regravado
por Chico Buarque em 1974 no disco Sinal fechado. A cano da bossa nova guas de
maro, gravada por Elis Regina no LP Elis, de 1972.
Sem compromisso (Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro)
Voc s dana com ele E diz que sem compromisso
bom acabar com isso
No sou nenhum pai Joo
Quem trouxe voc fui eu
No faa papel de louca
Pra no haver bate-boca
Dentro do salo
O samba de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro uma narrativa linear sobre um baile
em que o enunciador reclama a falta de ateno da mulher. Essa cano tem uma cadncia
toda especial, mesmo na sua simplicidade. Ela flui aos poucos, de modo sorrateiro,
imprimindo um sentido singular letra. No um samba rasgado, em que a percusso se
sobrepe mensagem e nem propriamente um samba-cano, em que a percusso atenuada.
Essas duas instncias so alcanadas: a cadncia somtica marcada pela tnica na percusso e
a letra simples que fala por si.
4 Jos Miguel Wisnik. Algumas questes sobre msica e poltica no Brasil in Cultura Brasileira - Temas e
Situaes (Org. Alfredo Bosi - tica) apud Sandra Reimo. Roberto Carlos continua romntico e singelo. O Estado de So Paulo, 20 dez. 1997. Caderno de Cultura, p. D-10.
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---mi
sso
c---sdana ele E---diz---que------sem---compro
Vo com
Fm7 C/E F/D# F7
Atravs do segmento5 acima se verifica que os dois versos se inscrevem praticamente
na mesma altura. Ascendncia e descendncia significativas s ocorrem nas duas ltimas
slabas do segundo verso. Essa linearidade meldica pe em primeiro plano a expresso
lingustica desses versos. As inflexes intervalares de subida (quinta justa) e descida (tera
menor) no final do segundo verso preparam as prximas articulaes meldicas, inserindo a
letra no contexto mais musical.
----bom---acabar
com --sou---nenhum---pai
--- i-- Jo
--o
---sso No
--
F7/9+ Bbm7 Eb7/9 Ab7+ Gm7/5- C7/G
Embora as ascendncias e descendncias simulem uma nova proposta meldica, em
que a valorizao das curvas pudesse indicar outro percurso, elas apenas equilibram o curso
meldico ao programa entoativo, visto que a sequencia dos versos retoma a articulao
meldica do primeiro segmento. Somente os dois ltimos versos apresentam diferenas de
perfil cromtico, mas tendo como base as alturas j estabelecidas.
5 Esse diagrama, elaborado a partir de Luiz Tatit, permite a espacializao da melodia. Cada linha representa um
semitom e as extremidades indicam o ponto mais grave (abaixo) e o mais agudo (acima).
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A dico do canto de Chico Buarque sublinha a equivalncia dos valores somticos e
lingusticos dessa cano e a sua interpretao favorece os pormenores inerentes estrutura da
composio, equilibrando tenso vocal, entoao e pronncia dos vocbulos. As cifras abaixo
dos segmentos indicam as marcaes bsicas do acompanhamento musical na verso gravada
por Chico Buarque e servem para demonstrar que os acordes, embora sofisticados por
dissonncias, apenas preenchem o campo harmnico, oferecendo as bases tonais para o canto
manter as precises de altura e durao, no exercendo as funes de direcionamento do fio
meldico. Eles embelezam a harmonia mas no so decisivos para a construo meldica.
guas de maro (Antonio Carlos Jobim)
pau, pedra, o fim do caminho um resto de toco, um pouco sozinho
um caco de vidro, a vida o sol
a noite, a morte, o lao, o anzol
peroba do campo, o n da madeira
Caing candeia, o matitaper
guas de maro uma completa estilizao do ritmo, deslocando os acentos
rtmicos, suprimindo a cadncia rtmica linear e eliminando a percusso caracterstica do
samba. Ao atenuar o esprito africano do gnero, promoveu um temperamento no estilo com
vistas sofisticao.
O contedo da letra no faz aluso social, mas trata de duas matrias essenciais
pau, pedra tomadas como abstraes das sensaes do compositor. Pau e pedra
correspondem clula geradora de todos os sintagmas da letra, assim como o motivo rtmico
que se origina pela sua entoao a frase musical base para as demais. O que importa no
s o sentido da palavra em si, mas o significado que decorre da relao sonora com as demais
palavras combinadas em sequencia. A configurao essencialmente musical resultado da
articulao entre o som das palavras e o som construdo pela harmonia sobre a melodia.
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o fim o res um pou um ca a vi a noite
do to co co da o a
pau pedra caminho de toco sozinho de vidro sol morte
A/G D7+/F# Dm7+/F A/E Eb7/5- D7+/9
A repetio sistemtica acaba por criar clulas rtmicas do mesmo tema musical. Essa
recorrncia se d por intervalos de tera maior (nas duas primeiras oraes) e de segunda
maior (nas demais oraes). A percusso dos temas na melodia reforada pelos ataques
sonoros das consoantes em todo o segmento, mas a percussividade atenuada pelas vogais
abertas e fechadas que se distribuem pelas palavras e propiciam o equilbrio sonoro entre
ataque e durao do som. A economia meldica talvez soasse cansativa no fosse o uso
criativo dos acordes. Os encadeamentos contribuem para essa atmosfera sonora na medida em
que os acordes dissonantes no apenas preenchem o campo harmnico, como no samba
tradicional, mas direcionam a tenso e o caminho que a voz deve seguir. Na bossa nova, os
acordes adquirem significado no conjunto, pois a passagem de um para outro que produz
tenso harmnica, tornando desnecessria a incurso meldica por curvas acentuadas,
ascendentes ou descendentes.
campo
---deira
peroba do
o lao Cain- can- o mati
o an ta
zol o n da ma --ga --deia per
A6 A7 D/F# Dm/F A/E
G7/13
-
Quando os intervalos se alteram (para 4 justa), em relao aos do segmento anterior -
peroba do campo e (sexta maior) o n da ma----deira -, ensejando possvel mudana da
trajetria meldica, v-se que uma mera estratgia meldica para retornar aos intervalos de
tera e de segunda, o que se fundamenta atravs do retorno ao acorde fundamental A/E. Ou
seja, as curvas ascendentes e descendentes se alteram muito pouco. Cabe aos encadeamentos
de acordes a funo de enriquecer a harmonia e valorizar a simplicidade da melodia.
A interpretao de Elis Regina corrobora essa vocao econmica de guas de
maro, pontuando a msica com uma dico impressionante e valorizando a sonoridade das
palavras e a diviso dos compassos. A sua voz suave e pausada, acompanhada de violo,
tamborim, bateria e piano, cria uma pea musical belssima que, apesar da regularidade do
tema, no tem a pulsao rtmica em primeiro plano. uma cano para se ouvir atentamente.
De outro modo, as combinaes sonoras das palavras e o trabalho harmnico passam
despercebidos.
O samba tinha como referentes o morro, a figura do malandro, a beleza da mulher
negra e os atributos da raa, imagens que foram substitudas na bossa nova pelo mundo dos
brancos. A concepo meldico-harmnica da bossa nova a aproximava mais da arte erudita
do que da arte popular, pois pressupunha uma plateia intelectualizada. O piano de Antonio
Carlos Jobim reforava o carter erudito das intenes bossanovistas, embora a originalidade
do movimento tenha se cristalizado pela batida do violo de Joo Gilberto.
Joo Gilberto foi um dos principais elos de ligao entre a bossa nova e a tropiclia,
dolo que exerceu grande influncia principalmente em Caetano Veloso, um dos admiradores
das conquistas musicais da bossa nova. Os tropicalistas perceberam a dissociao entre a
elaborao daquela msica, as influncias de vanguarda e o gosto musical do brasileiro, e se
propuseram a reinserir a cano na linha evolutiva iniciada pela bossa nova. Mas, absorvendo
as novidades tecnolgicas responsveis por fenmenos como o grupo pop The Beatles ou a
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jovem guarda no Brasil. No LP homnimo, de 1968, Caetano Veloso escreveu na contracapa:
os acordes dissonantes j no bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez
transatlntica.
nesse mesmo cenrio que surgiram as primeiras canes de Paulinho da Viola, como
Coisas do mundo, minha nega, de 1968, e Foi um rio que passou em minha vida, de 1969.
A obra musical de Paulinho da Viola compartilha alguns conceitos com a bossa nova, como o
resgate de compositores do passado, o deslocamento do acento rtmico da frase lingustica em
prol da frase meldica, a economia de temas, favorecida pela riqueza harmnica dos
encadeamentos de acordes, e o despojamento da linguagem. Ele tambm teve contato com o
tropicalismo, de quem herdou o gosto pela poesia. A informao musical da bossa nova e a
informao potica da tropiclia tm grande influncia na sua obra, alm do samba tradicional
e do choro.
Em seu primeiro disco solo, Paulinho da Viola, de 1968, interpretou sambas de
Cartola e Casquinha, seguidos em lbuns posteriores de msicas de Nelson Cavaquinho e
Guilherme de Brito, Orestes Barbosa e outros sambistas. Compusera, em 1969, Sinal
fechado, um marco da cano popular, que mostra os requintes de forma e contedo em
estrita relao com a ferramenta artstica. No s nela, mas tambm em outras, a expresso
verbal est muito prxima da oralidade:
Ol como vai? Eu vou indo e voc tudo bem?
Tudo bem eu vou indo correndo
Pegar meu lugar no futuro e voc?
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1.3 Potica e Cano: confluncias
Os precursores da cano-poema
A juno entre poesia e msica j era praticada muito antes da bossa nova. Domingos
Caldas Barbosa (1738-1800), o famoso cantador de modinhas, j obtivera enorme sucesso na
Corte Portuguesa musicando versos de poesia. Integrante da Nova Arcdia, em Lisboa,
publicou o clebre Viola de Lereno. Toms Antonio Gonzaga (1744-1810?), autor de Marlia
de Dirceu, tambm musicou alguns de seus poemas, como a modinha Regao da Ventura:
No regao da ventura,/Marlia vive a brincar./Viva ela satisfeita,/Enquanto eu vivo a penar.
Durante o romantismo, a maioria dos grandes poetas musicou ou teve seus poemas
musicados, dentre eles: Gonalves Dias (1823-1864), lvares de Azevedo (1831-1852),
Casemiro de Abreu (1839-1860), Fagundes Varela (1841-1875) e Castro Alves (1847-1871).
Antes disso, h notcias do envolvimento do poeta barroco Gregrio de Matos (1623-1696)
com o lundu.
Apesar da longevidade, esse fenmeno s ganhou notoriedade para a crtica musical
aps o engajamento de Vincius de Moraes (1913-1980) como letrista da bossa nova. Quando
se ligou cano, ele j era um poeta destacado e suas letras musicadas receberam de
imediato a ateno da crtica, acostumada a ver a cano popular como algo de pouca
sofisticao. Formado em Letras (1929) e Direito (1933), exercia, na dcada de 1940, as
funes de diplomata, crtico de cinema e cronista. Publicou, em 1955, sua Antologia Potica
e, no ano seguinte, o poema Operrio em Construo, alm da pea de teatro Orfeu da
Conceio, transformada por Marcel Camus no filme Orfeu negro, com msicas dele e de
Antonio Carlos Jobim.
Vincius de Moraes foi deixando o crculo literrio durante a dcada de 1950, para se
dedicar integralmente cano, vindo a ser o maior poeta da bossa nova e tambm o seu
letrista mais produtivo, escrevendo mais de duas centenas de letras. As canes-poema que
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atraram o entusiasmo dos intelectuais, na dcada de 1960, so herdeiras da forma potico-
musical por ele cultivada.
Com Vincius de Moraes e depois com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Milton Nascimento e Paulinho da Viola, as letras das canes se tornaram sofisticadas e
abrigaram muito da melhor poesia que se produziu de 1960 at meados da dcada seguinte.
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2 Metodologia e anlise: as canes
Paulinho da Viola nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1942,
num ambiente familiar densamente povoado pela msica dos sambistas e dos chores, do qual
seu pai, Csar Farias, participava como violonista. Paulinho da Viola chegou a se diplomar
como tcnico em contabilidade, mas o encontro com Chico Soares em 1959, o canhoto da
Paraba, exmio violonista que tocava com as cordas invertidas, impressionou-o o bastante
para que viesse a se dedicar com afinco ao instrumento. Nos primeiros idos de 1960,
conheceu o poeta e letrista Hermnio Bello de Carvalho, que o levou ao Zicartola, restaurante
de Cartola e de sua esposa Zica, famoso pelos frequentadores e pela boa comida. Ali Paulinho
da Viola interpretou canes de sucesso e travou conhecimento com Cartola, a grande
influncia da sua obra.
Por volta de 1964, Paulinho da Viola j compunha com certa regularidade. Nessa
poca, integrou o conjunto Os Cinco Crioulos, com lton Medeiros, Nlson Sargento,
Anescarzinho e Jair do Cavaquinho. O grupo se celebrizou por acompanhar Clementina de
Jesus e Aracy Cortes no show Rosa de Ouro, criado por Hermnio Bello de Carvalho. O passo
seguinte foi o grupo A voz do Morro - unio dOs Cinco Crioulos, Z Kti e Oscar Bigode -,
surgido atravs de K Kti, que queria juntar compositores de diversas escolas para gravar6.
A Voz do Morro lanou dois discos em 1965, Roda de samba e Roda de samba, vol.
II, em que surgiu Recado, composio de Paulinho da Viola, cuja segunda parte foi
acrescida por Casquinha. Um terceiro disco ainda foi gravado pelo grupo no ano seguinte, o
mesmo de Na madrugada, parceria de Paulinho da Viola e lton Medeiros. De Paulinho da
Viola, entre outras, estavam: Arvoredo, Momento de fraqueza e Catorze anos.
Catorze anos (Na madrugada, 1966) um marco na obra de Paulinho da Viola. Ela
sintetiza a sua trajetria como cancionista e revela a sua conscincia frente s dificuldades da
6 Nova Histria da MPB. 2 ed. So Paulo, Abril, 1976. Informa sobre o incio de carreira de Paulinho da Viola.
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poca, j que o samba no desfrutava do prestgio de antigamente e a modernizao da cano
brasileira depois da bossa nova o fez parecer ultrapassado.
Tinha eu catorze anos de idade Quando meu pai me chamou
Perguntou-me se eu queria
Estudar filosofia, medicina ou engenharia
Tinha eu que ser doutor
Mas a minha aspirao
Era ter um violo
Para me tornar sambista
Ele ento me aconselhou
Sambista no tem valor
Nesta terra de doutor
E, seu doutor, o meu pai tinha razo
Vejo um samba ser vendido
E o sambista esquecido
O seu verdadeiro autor
Eu estou necessitado
Mas meu samba encabulado
Eu no vendo no senhor
A percepo de que o samba vivia um perodo de desprestgio justificava o conselho
paterno de prosseguir com os estudos e no se enveredar pelo ritmo, baseado em experincia
prpria, pois no se via o sambista ser valorizado. Ao contrrio, ele constantemente era alvo
de preconceitos da sociedade.
Paulinho da Viola me disse que, para ele, essa cano tambm um emblema das
limitaes tericas e tcnicas dos msicos da poca, que aprendiam o instrumento e a
percepo meldica atravs do esforo prprio e solitrio, em situaes bastante precrias. O
seu pai, por exemplo, Benedito Csar Ramos de Faria, violonista e acompanhador de choro,
que tocou com Jacob do Bandolim (1918-1969) e outros grandes sambistas, aprendeu a tocar
ouvindo discos na vitrola e tirando o som que apreendia. Essa carncia de uma formao
-
musical tradicional marcou todo o primeiro perodo da cano brasileira, at o surgimento da
bossa nova.
Catorze anos pode ser vista como a dualidade entre a academia e o samba, em que
subjaz a escolha entre elementos do ocidente e elementos africanos; em termos simblicos,
ser doutor significava a adeso aos valores ocidentais, e ser sambista implicava na volta s
origens tnicas do samba como herdeiro cultural da histria dos negros no Brasil.
Na ltima estrofe da letra, a concluso da desvalorizao do sambista Vejo um samba
ser vendido/E o sambista esquecido remete comercializao do samba e ao seu uso pela
indstria cultural. Catorze anos significativa como cano que trouxe as sementes
musicais que floresceram na obra do compositor: a utilizao diferenciada dos intervalos
musicais, a proximidade com o choro, a cadncia meldica irregular e o emprego relevante da
instrumentao.
tor Quan
eu ca ze do--o
nha a de idade
Ti
do-- o
nos
meu
pai
me mou
cha
At o ponto assinalado pela elipse, os intervalos de tom e semitom imprimem um
motivo meldico que acentua o trao rtmico da composio, suspenso pelo trao passional da
descendncia e ascendncia de 4 justa. No verso seguinte, a melodia irregular parte do ponto
-
mais elevado do verso anterior e faz um percurso de descendncia em intervalos de 2 maior e
de 2 menor.
se--eu lo
tou-me que dar---fi so
gun ri tu fi me
Per a Es a di
ci ou
na
Nesse segmento, a melodia acentua os valores passionais, abrangendo as regies mais
elevadas da tessitura. A sua espacializao mostra como o fio meldico privilegia as
ascendncias, sendo as descendncias (at o ponto da linha diagonal) ponto de finalizao do
enunciado. Esse ponto de tenso meldica coincide com a proposio principal da cano: a
seleo dos valores ocidentais e africanos.
No segmento abaixo, o trmino da frase anterior ainda conserva a ascendncia, mas a
finalizao do enunciado acontece prxima do limite da regio grave. Essa frase musical que
acompanha o instante terminativo do enunciado produz uma melodia muito prxima da fala e
marca a opo pela clareza do enunciado em vez da fluidez musical, alis, marca de toda essa
cano. Tatit diz que as tenses de cada contorno ou de seu encadeamento peridico so
configuraes locais mais importantes que as tenses harmnicas e que as tenses locais
distinguem as canes7. Pois bem, as tenses resultam do encadeamento das frases
meldicas e de sua relao com o texto. Catorze anos j mostrava qual o tipo de tenso 7 Luiz Tatit. O cancionista: composio de canes no Brasil. Op. cit., p. 9.
-
meldica que Paulinho da Viola viria a desenvolver, um modelo inspirado nas modulaes
inesperadas e sentimentais do choro.
Coisas do mundo, minha nega (Paulinho da Viola, 1968) a cano mais
representativa do primeiro trabalho fonogrfico solo de Paulinho da Viola. Nela, encontra-se
cristalizado o embrio criativo de Catorze anos, evidenciado pela leveza da apresentao,
em que letra e msica convergem para assegurar o carter sbrio da representao esttica.
Essa maneira contida de exprimir sentimentos se tornou um dos principais atributos da sua
obra musical.
Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mos a mesma viola
Onde gravei o teu nome
Venho do samba h tempo, nega
Vim parando por a
Primeiro achei Z Fuleiro
Que me falou de doena
Que a sorte nunca lhe chega
Est sem amor e sem dinheiro
Perguntou se eu no dispunha
De algum que pudesse dar
Puxei ento da viola
Cantei um samba pra ele
Foi um samba sincopado
Que zombou do seu azar
Hoje eu vim minha nega
Andar contigo no espao
Tentar fazer em teus braos
Um samba puro de amor
Sem melodia ou palavra
Pra no perder o valor
Depois encontrei seu Bento, nega
Que bebeu noite inteira
Estirou-se na calada
Sem ter vontade qualquer
-
Esqueceu do compromisso
Que assumiu com a mulher
No chegar de madrugada
E no beber mais cachaa
Ela fez at promessa
Pagou e se arrependeu
Cantei um samba pra ele
Que sorriu e adormeceu
Hoje eu vim minha nega
Querendo aquele sorriso
Que tu entregas pro cu
Quando eu te aperto em meus braos
Guarda bem minha viola
Meu amor e meu cansao
Por fim eu achei um corpo, nega
Iluminado ao redor
Disseram que foi bobagem
Um queria ser melhor
No foi amor nem dinheiro
A causa da discusso
Foi apenas um pandeiro
Que depois ficou no cho
No tirei minha viola
Parei, olhei, vim membora Ningum compreenderia
Um samba naquela hora
Hoje eu vim minha nega
Sem saber nada da vida
Querendo apreender contigo
A forma de se viver
As coisas esto no mundo
S que eu preciso aprender
Os enunciados so construdos atravs do uso de palavras e expresses comuns,
encontradas na fala de populares em situaes corriqueiras, mas selecionadas de forma
significativa. A simplicidade lingustica determinada pelo uso de uma gramtica usual, em
que a sintaxe obedece geralmente ordem direta, ainda que elaborada. Essa leveza na
construo lingustica, distante do prosaico e do vulgar, busca iluminar o dado essencial na
-
comunicao. O que faz com que essas palavras despojadas possam ser reconhecidas pelo
ouvinte como algo especial o arranjo e o modo como elas se apresentam na melodia.
No aspecto musical, verifica-se a preferncia pelo uso das frequncias mdias e
graves. Os saltos sonoros no valorizam os picos de agudo enquanto exibio do esforo
voclico pela busca de tenso nas tessituras elevadas, mas pelo paralelo que traam em
relao s regies mais graves da tessitura. A valorizao dos saltos sonoros se d pela
constante nuance entre a ascendncia e a descendncia das notas. Em Paulinho da Viola, as
ascendncias e descendncias so elaboradas de modo sutil, sugerindo que as distncias quase
inexistem, por isso o canto contorna as regies altas e baixas sem grande disparidade no
relevo fnico das distncias sonoras.
A melodia inscrita com moderao, tal qual a informao lingustica, sem
sobressaltos, fluindo nota aps nota. Paulinho da Viola mestre na arte de burlar a acentuao
meldica convencional, ora ascendendo quando se espera uma descendncia, ora mantendo a
curva meldica quando o usual seria estabiliz-la na descendncia.
A entonao perfeita faz tudo parecer simples e fcil. Porm, ao aguar-se o ouvido,
v-se que a melodia toda cheia de pormenores e que a tessitura do seu canto se constri pela
acentuao seletiva das palavras na melodia. o caso do primeiro verso meldico de Coisas
do mundo, minha nega, em que substituda a nota previsvel (D) pela nota (C#), criando
uma tenso meldica ao desfazer a previsibilidade inicial da frase:
Ho- je eu vim mi- nha ne-ga F# A B C# B B-------(uma oitava abaixo)
ascendente descendente
-
A empostao vocal e a interpretao de Paulinho da Viola corroboram ainda mais a
configurao sbria dessa cano. Entretanto, sobriedade no deve ser confundida com inao
ou ausncia de atribulaes na alma da cano. Os traumas existem e so indispensveis
enquanto matria necessria razo de ser da cano. O enunciado existe a partir da ruptura
ou disforia entre sujeito e objeto, em que a dimenso temporal passa a fazer sentido enquanto
representao da busca pelo sujeito da unidade com o objeto. Os enunciados relatam a busca,
a ruptura e o encontro que acontecem sucessivamente. O eu lrico, espcie de enunciador,
v esse caminho segundo a sua perspectiva particular. o seu sentimento que transborda na
cano, observando os acontecimentos e os descrevendo como coisas do mundo, dos homens
e da vida.
Nesse sentido, as canes tm um processo similar comum, que o da suspenso do
tempo real pela sugesto de um tempo onrico. Atravs das modulaes lingustico-meldicas
da cano, o cancionista intenta fazer com que o ouvinte se insira num tempo irreal, limitado
e efmero, mas fantstico, porque as experincias ali expressas tm o poder de lhe parecerem
familiares. Assim, o cancionista articula as suas experincias e as vicissitudes do cotidiano,
seduzindo e emocionando pela capacidade sugestiva. essa qumica que torna possvel a
transformao de acontecimentos comuns em cenas belssimas.
Coisa nomeia em geral algo para o qual no se encontra uma denominao mais
apropriada, que no tem nome ou que no se sabe precisar. Mundo, numa outra dimenso,
reitera o carter vago reinante no ttulo. Coisas do mundo um caminho desconhecido,
indeterminado. Coisa dialoga com fatos concretos em oposio a mundo, fincado no
referencial abstrato. Mas essa singela oposio quase anulada pela reiterao dos traos de
significado que a expresso evoca. Ambos os termos reforam um nico sentido: o do
cotidiano, feito de alegrias e tristezas, sobretudo de incertezas e de definies indefinidas.
-
Por essa razo, Coisas do mundo contempla o que est fora do enunciador, no
horizonte dos seus olhos e da sua imaginao. O dado que lhe intrnseco vem sugerido por
minha nega, que est dentro do corao do enunciador, em oposio aos acontecimentos
externos chamados de coisas do mundo. Minha nega, que tambm minha amada, aponta
para o componente racial na anlise, embora no seja dos mais sugestivos. Quando
proclamado com carinho, como o caso, nega indica carinho para com a mulher querida.
Entretanto, minha nega, referindo-se percepo interna do enunciador, cria um
paradoxo, uma vez que esse elemento interno existe em razo do externo. Minha nega est
no mundo, faz parte das Coisas do mundo com as consequncias que essa realidade
imprime. A sntese final, se que possvel e mesmo desejada, s se d aps a cano, ou
melhor, talvez se inicie aps a sua audio.
As sete estrofes que compem a cano esto dividas em dois tipos: as primeiras se
agrupam em quatro estrofes e as demais em trs. Aquelas se destacam pela musicalidade,
estas pela enunciao. A estrofe que inicia a cano est estruturada por um grupo de seis
versos que funcionam como refro meldico em toda a cano:
Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mos a mesma viola
Onde gravei o teu nome
So versos hexasslabos e heptasslabos, estes majoritrios. Devido sua estrutura
meldica de fcil memorizao, a redondilha maior uma das mtricas mais simples e mais
utilizadas na lngua portuguesa. Esse refro meldico entrecorta os instantes em que a
enumerao dos acontecimentos justifica a ida do enunciador ao encontro da amada,
funcionando como momento de repouso na cano.
-
H um equilbrio entre os sons consonantais e voclicos. A nica recorrncia
significativa de um determinado fonema consonantal ocorre com o /s/, situado entre o fim do
segundo e o incio do quinto versos, funcionando como mecanismo de acelerao em relao
desacelerao meldica inicial da estrofe. Essa tenso, que pressupe a existncia de uma
linha demarcatria entre acelerao e desacelerao, de grande valia para o estabelecimento
de mltiplas relaes entre melodia e letra.8
Se se comparar a sua pouca utilizao nos demais enunciados das outras estrofes-
refro, a recorrncia da sibilante /s/ produz uma reverberao que evoca movimento. Quanto
s vogais (tonas e tnicas), as mais expressivas so os fonemas /a/ e /o/, que fazem um
movimento de abertura e fechamento da massa sonora.
Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mos a mesma viola
Onde gravei o teu nome
Essa sobriedade na utilizao de consoantes e vogais, de som aberto e som fechado,
reforada pela interpretao de Paulinho da Viola. A voz pausada, entoada de modo quase
falante, assegura aos sintagmas um valor especial que ultrapassa o significado comum do
cotidiano. O canto transforma a palavra, estende o seu som e a sua capacidade sugestiva,
recria significaes a partir da reelaborao criativa entre emisso e pausa, acentuao e
suavidade e, acima de tudo, reclama para si a ateno que numa situao casual se centraria
no contedo carregado pelo significante.9
8 Cf. Luiz Tatit. A construo do sentido na cano popular. In Musicando a semitica. So Paulo,
Annablume, 1998, p. 87-98. 9 Cf. Paul Valry. Poesia e pensamento abstrato. In Variedades. So Paulo, Iluminuras, 1991, p. 201-18.
-
Isso s acontece em razo do entendimento profundo que o intrprete tem daquilo que
canta, do som das palavras, do seu efeito na cano e tambm da qualidade do seu timbre de
voz - um dado fundamental nas interpretaes de Paulinho da Viola. A voz, que transforma o
simples em mgico, j se mostra depurada e praticamente pronta desde o seu primeiro
trabalho solo.
Os momentos de repouso nas estrofes-refro podem ser constatados pelo
abrandamento da melodia, auxiliada pelo corpo harmnico da base orquestral. a
continuidade sonora auxiliando a continuidade emotiva. As estrofes transcorrem quase sem
interrupo, as unidades sonoras se aglutinam sem elementos entrecortantes que se
sobressaiam e os acordes, encadeados harmonicamente sem dissonncias funcionais, no
interferem pontualmente no tnue pulso meldico. Esses momentos traduzem o grau de
proximidade entre o enunciador e a amada:
Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mos a mesma viola
Onde gravei o teu nome
Hoje eu vim minha nega
Andar contigo no espao
Tentar fazer em teus braos
Um samba puro de amor
Sem melodia ou palavra
Pra no perder o valor
Hoje eu vim minha nega
Querendo aquele sorriso
Que tu entregas pro cu
Quando eu te aperto em meus braos
Guarda bem minha viola
Meu amor e meu cansao
Hoje eu vim minha nega
Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo
-
A forma de se viver
As coisas esto no mundo
S que eu preciso aprender
Essas estrofes-refro so as partes mais meldicas em toda a cano, em que a melodia
flui impondo s palavras o seu ritmo e compasso. Da a base harmnica estar estruturada em
torno da variao dos graus da escala do acorde fundamental de (D): D, B7, Em7 e A7.
Embora a harmonia transite por acordes de outras tonalidades, usados como passagem ou
preparao, D#7, E7/9, F#7 e G#7, a trajetria meldica permanece na tonalidade de r maior.
Esses acordes modulam o engate e desengate sonoro sem configurar uma nova tonalidade.
mi
vim nha
po
je eu
Ho sso
Como venho
nega quan
do
D B5+/7 E7/9 A7 D
-
la
mor
vras
Na boca as mes so
mas No peito o mes
pa mo
re-
B7 Em7 A7 D
vio
la On
mos mes de
Nas a ma gra teu no
vei teu
me O
(2)
O
(1)
nome
B7 Em7 A7 D
Avulta, nessas curvas meldicas, a musicalidade expressiva no uso das palavras. No
primeiro quadro, o segundo verso o desenho invertido do primeiro. Nele, ocorre um salto de
13 semitons entre a slaba quan(do) e a slaba (po)sso. Tem-se ali um ponto de tenso, face
-
modalizao da voz na alta frequncia, mas a tenso inicial que vinha progredindo desde o
final da orao anterior se desfaz pelo repouso na regio mais grave da tessitura: quan(do).
Essa ascendncia de mais de uma oitava de tom e as demais pequenas ascendncias
valorizam a extenso voclica, fazendo perdurar a sensao de continuidade emotiva que o
ouvinte capta. A continuidade voclica sensibiliza no ouvinte os valores emotivos, ainda mais
que esses valores so suscitados pela peculiaridade das palavras cantadas.
A audio inicial da cano faz prevalecer a sensao de que os saltos intervalares so
menores e de que se trata de uma quantidade menor de notas utilizadas na melodia. Essa
variao nos segmentos menores da melodia mais um fator de expressividade na cano. Por
isso, os maiores saltos de intervalo ocorrem no trmino das frases e os instantes asseverativos
se do na descendncia, tal qual na fala, dificultando a previsibilidade sonora inicial, por criar
tenso em locais onde normalmente ela j se desfez.
Os constantes saltos de semitom tm justamente a funo de evitar o contorno das
clulas rtmicas que o ritmo sustenta, considerando que se trata de um samba, gnero que se
caracteriza pela capacidade estilstica de formar motivos rtmicos, devido pulsao oriunda
do emprego majoritrio de instrumentos de percusso.
No terceiro e ltimo diagrama, o ltimo verso da estrofe, Nas mos a mesma
viola/Onde gravei o teu nome, tem desenho meldico que difere da primeira entonao, o
que prolonga a durao e o estado emotivo presente no sexteto, impedindo a velocidade
exigida para a instaurao e repetio de motivos. Na primeira apresentao, o verso, aps
algumas curvas, repousa no mesmo semitom em que o refro iniciado (F#), uma regio
intermediria se se considerar os 18 semitons utilizados na tessitura meldica, mas com uma
ascendncia de quatro semitons da tnica (D) do acorde a partir do qual a harmonia se baseia.
Essa ascendncia se torna descendncia quando o verso repetido e finalizado na nota
fundamental da tonalidade. A ascendncia da primeira entonao acompanhada de uma
-
breve tenso harmnico-meldica que se esvai na segunda vez em que o verso cantado,
alm de finalizar a configurao meldica da estrofe, reafirmando, na esfera musical, o
contedo lingustico da enunciao.
Diferentemente das estrofes-refro, nas demais, que chamo enumerativas por
descreverem o cotidiano, o prolongamento sonoro das vogais substitudo pela percusso das
consoantes. O perfil meldico apresenta diferenas e algumas vezes acontece da mesma frase
musical acomodar frases lingusticas de diferentes mtricas. como se a melodia corresse
atrs das palavras, estendendo-se ou se encurtando para abarcar o lxico.
As trs estrofes enumerativas representam a letra em oposio msica que as
estrofes-refro representam. Essa dualidade, presente desde o ttulo da cano, muito
instigante, j que as estrofes essencialmente meldicas so as mais intelectuais, fazendo
convergir no interior da cano as contradies esparsas individualmente. Em contrapartida,
nas estrofes-refro h um nvel maior de elaborao do discurso, quer pela seleo, quer pelo
arranjo das palavras. por meio delas que se chega s mais belas imagens da cano:
Hoje eu vim minha nega Andar contigo no espao
Tentar fazer em teus braos
Um samba puro de amor
Sem melodia ou palavra
Pra no perder o valor
As trs estrofes enumerativas so formadas por doze versos cada. Enquanto nas
estrofes-refro o esquema rtmico mais delineado devido marcao regular, nas
enumerativas h maior variedade na pulsao meldica devido maior proximidade com a
fala. O primeiro verso da estrofe, Venho do samba h tempo nega, insere alguns
pormenores no percurso meldico e as inclinaes da voz beiram a narrativa oral.
-
Cada uma das estrofes enumerativas praticamente repete os mesmos procedimentos
meldicos e lingusticos de estruturao. A primeira estrofe se repete na segunda e na terceira,
mas com o acmulo de traos significativos. A primeira estrofe pinta uma cena do enfermo
reclamo, a reiterao na segunda se d com o alcolatra inveterado, e na terceira pelo
homicdio banal. So trs moribundos desesperanados que vivem uma realidade trgica,
irremedivel e ao mesmo tempo tola, porque focada em um nico dos inmeros aspectos que
compem as Coisas do mundo: doena, bebida e violncia.
Mas, apesar do aparente descompromisso do enunciador para com essas realidades,
no se trata meramente de descrio. Mesmo enquanto passante, o enunciador mantm o seu
carter reflexivo. Sobre o primeiro moribundo - no nico trecho da cano que no finaliza na
tnica (D) e sim em F#m7 - ele diz:
Cantei um samba pra ele Foi um samba sincopado
Que zombou do seu azar
Na segunda estrofe, o procedimento mais ou menos repetido, mantendo-se a ironia
como trao dominante:
Cantei um samba pra ele Que sorriu e adormeceu
Na terceira, frente ao moribundo morto, ele se cala e nada entoa. A morte silencia a
ironia por ser a ironia suprema, superior a todas as demais. O silncio da morte traz tambm o
silncio do enunciador, consciente da impotncia da msica frente inexorabilidade da morte:
-
No tirei minha viola Parei, olhei, vim membora Ningum compreenderia
Um samba naquela hora
Os versos finais da estrofe encerram um significado particular na cano. A mesma
ideia reiterada nessas trs estrofes, sendo que os versos culminam com a morte. Esse fim
simblico tambm o apndice para a retomada da linha meldica da cano. Fundamentais,
esses versos retratam a morte mas trazem o enunciador vida e sua meditao:
Hoje eu vim minha nega Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo
A forma de se viver
As coisas esto no mundo
S que eu preciso aprender
Se, na primeira estrofe-refro, o enunciador falava de contradies e remorso com
palavras presas boca, na segunda ele avana para um estado potico. Na terceira, repousa
sobre uma realidade vista como benfica. Nesta ltima, ele ascende ao plano das ideias, pura
reflexo sobre o viver, focalizando o amor pela mulher, sentimento que deve gui-lo nas
descobertas do desconhecido, das Coisas do mundo. Isso comea a se desenhar sob a forma
de uma familiaridade mediada pelas experincias vividas e sobretudo pelo sentimento
amoroso que guia o enunciador, humilde e incerto, mas j no to frgil. Aspectos
aparentemente antagnicos - msica/letra, emoo/pensamento, movimento/repouso - tm um
tratamento to peculiar quanto coeso na atmosfera potica dessa cano.
Abaixo, tm-se os diagramas dos segmentos meldicos da primeira das estrofes
enumerativas.
-
sam
Venho do por
tem Vim parando
ba h Primeiro achei Z
po nega a leiro
Fu
B7 Em7 A7 D B7 Em7
nunca
Que a sorte
chega Est sem a
lhe mor sem dinheiro
Que me falou de
ena
do e
A7 F#m7 B7 Em7 F#7 Bm
-
Puxei ento da o
no dispu vi
nha pu dar la
Perguntou se eu De algum que de
sse
E7 Em7 A7 Em7
zar
pa Que zombou do seu
e Foi um samba sin a
co do
Cantei um samba
pra le
A7 F#m G#7 C#7 F#m7
Exceto no primeiro verso, em que h inflexes ascendentes e descendentes por quase
todo o segmento meldico, nos demais, as frases se acomodam num nico semitom, fazendo
curvas nas notas finais. A finalizao do verso meldico na ascendente se deve sua
continuao no verso seguinte, o que se repete mesmo no final do ltimo verso meldico,
Que zombou do seu azar, em que a melodia ascende ao penltimo semitom (C#), ligando-se
-
melodicamente estrofe-refro. Esse verso e aquele que o antecede, Foi um samba
sincopado, so os instantes de maior tenso harmnica na estrofe, em que a harmonia (G#7)
delineia o sentido das palavras e deixa a melodia suspensa.
A inscrio de versos meldicos em praticamente um nico semitom revela instantes
de grande proximidade com a fala: Primeiro achei Z Fuleiro, Que me falou de doena, e
Cantei um samba pra ele. Mas, em todos eles, Paulinho da Viola flexiona melodicamente as
slabas finais, alternando entre a opo pelo enunciado e a opo pela msica - procedimento
que burla a obviedade meldica, impedindo a sua identificao prvia, alm de permitir o
escorrer comedido da emisso de cada slaba nas suas devidas notas. Esse equilbrio tambm
se fundamenta por meio da durao da nota e do respectivo tempo de durao da slaba
(palavra) no semitom.
Como j foi dito, a elevao da zona de articulao para as frequncias elevadas cria
uma tenso sonora, por ampliar a durao dos sons voclicos, em contraposio percusso
dos sons consonantais. Ao utilizar esse procedimento, paralelo manuteno do semitom, a
melodia termina por sublinhar pequenas clulas rtmicas face a essa constante repetio.
Embora esse dado no se configure por completo, transformando-se em apelo somtico para o
ouvinte, as estrofes enumerativas evidenciam na marcao rtmica uma acentuao que no se
verifica nas estrofes-refro.
Essa disposio harmnica configura um tema meldico, espcie de Leitmotiv, que
cria expectativa e interesse no ouvinte. As irregularidades na notao meldica de Coisas do
mundo, minha nega vm do choro, dos seus fundamentos de improvisao e do amplo
desenho meldico das suas peas musicais. A revigorao desse topos meldico na msica de
Paulinho da Viola permite falar no caminho de volta, ao retomar, pela arte musical, o
percurso cultural da raa negra no Brasil.
-
Os versos meldicos efetuam um procedimento de descendncia e ascendncia
anlogo ao que acontece no interior de cada verso. O primeiro verso meldico se inicia no
semitom (A), o segundo desce um tom inteiro (G), mas o terceiro no prossegue nessa
regularidade, descendo apenas um semitom (F#). O quarto verso desce um tom inteiro (E), j
o quinto ascende cinco semitons (A) em relao ao incio do ltimo. No sexto verso, a
descendncia de dois semitons (G), no stimo ela de cinco semitons (D); j o oitavo verso
permanece no mesmo semitom anterior. No nono verso tem-se novamente uma ascendncia
de cinco semitons (G) e no dcimo mantida a mesma altura. No dcimo primeiro verso, a
ascendncia de dois semitons, a mesma distncia do dcimo segundo e ltimo verso.
Esse ziguezague meldico convida o ouvinte a ouvir a cano repetidas vezes. O
enunciado at pode ser apreendido na primeira audio, mas o percurso meldico no se fixa
numa nica fruio, dificuldade que se assemelha ao desconhecimento das Coisas do
mundo.
Sinal fechado, cano vencedora do V Festival de MPB da TV Record em 1969 e
que foi gravada no compacto duplo Paulinho da Viola junto com Foi um rio que passou em
minha vida, alcanou grande projeo na crtica da poca, embora tenha sido vaiada durante
as apresentaes do festival devido linguagem musical do dilogo. Da controvrsia, resultou
uma entrevista do compositor ao Correio da Manh, do Rio de Janeiro, em 24 de janeiro de
1970: Sinal fechado uma experincia nova que eu fiz. Mas a msica no tem nada de
novo. No existe esse negcio que falam, de que ela abre caminhos (...). uma consequncia
do contato que tive com msicos mais recentes - Caetano, Gil, Chico e Edu - e com as
diversas correntes da msica brasileira, desde 1964(...). O que fiz de novo foi utilizar o que
Villa-Lobos fez h muito tempo - a inverso de certos acordes, deixando a prima do violo
solta. 10
10
Nova histria da MPB. Op. cit., contracapa.
-
Ol, como vai Eu vou indo e voc tudo bem
Tudo bem eu vou indo
Correndo pegar meu lugar 1 perodo
No futuro e voc
Tudo bem eu vou indo
Em busca de um sono tranquilo
Quem sabe
Quanto tempo, pois quanto tempo
Me perdoe a pressa
a alma dos nossos negcios
Pois no tem de que
Eu tambm s ando a cem
Quando que voc telefona 2 perodo
Precisamos nos ver por a
Pra semana talvez nos vejamos
Quem sabe
Quanto tempo pois
Quanto tempo
Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu tambm tenho algo a dizer
Mas me foge lembrana
Por favor telefone eu preciso saber
Alguma coisa rapidamente
Pra semana o sinal
Eu procuro a voc vai abrir
Vai abrir
Prometo no esqueo
Por favor no esquea, no esquea, no esquea
Adeus
A letra pode ser entendida como um dilogo num encontro casual no trnsito de uma
grande cidade, mas a melodia e a harmonia so complexas em termos de cano popular. O
efeito de estranhamento na msica provocado pelos acordes com segunda menor e pelos
constantes deslocamentos ascendentes, que imprimem uma configurao inusitada na cano.
harmonia cabe glosar e distribuir a tenso entre os segmentos do canto e da melodia,
realizao que um acompanhamento simples no alcanaria com a mesma intensidade.
Sinal fechado tem uma letra equivalente a um belo poema, cujo ritmo das frases
produz um paralelo interessante entre forma e contedo. Utilizando o verso livre, o ritmo
-
impulsionado pela melodia das palavras, pela vibrao das consoantes e pela harmonia sonora
das vogais. A concatenao das oraes estabelece dois perodos, o primeiro compreende os
nove versos iniciais que retratam o encontro dos dois personagens, e o segundo os versos
restantes que narram a despedida. No primeiro perodo, os versos tm uma cadncia menos
acelerada, motivada pelo encontro e pela possibilidade da troca de emoo ou pela tentativa
de faz-lo. No segundo perodo, a fugacidade do encontro e a inevitvel partida fazem com
que a cadncia seja acelerada, aumentando a tenso gerada no primeiro perodo, decorrncia
da iminncia da abertura do sinal e do rompimento do dilogo.
Em todo o poema, as palavras escolhidas so as mesmas usadas com regularidade no
cotidiano, exceto algumas construes que, embora usando palavras comuns, so especficas
no contexto: correndo pegar meu lugar no futuro, em busca de um sono tranquilo, mas
eu sumi na poeira das ruas e eu preciso saber alguma coisa rapidamente, que se destacam
enquanto smbolos no texto justamente por apontarem para algo que no ocorre na cano -
velocidade. Por certo no se trata de algum querendo dar um cochilo, que mais parece aluso
morte, nem faz sentido, no contexto do trnsito, correr para o futuro ou dizer que se esvaiu
na poeira das ruas, muito menos querer saber alguma coisa rapidamente.
Pode-se interpretar a cano como um dilogo entre dois motoristas parados no
semforo de uma grande cidade, aludindo represso poltica e institucionalizao da
violncia nos tempos da ditadura. Os versos seriam ento a mimetizao da impossibilidade
do dilogo e do que ele representa numa sociedade democrtica. Mas como pensar, nessa
leitura, no significado dos versos destacados, visto que eles se deslocam do tom coloquial da
conversa? Em busca de um sono tranquilo e os demais versos destacados fazem-me crer na
existncia de uma outra voz. esse outro personagem, espcie de alterego do compositor, o
responsvel pelos deslocamentos de significado na conversa, a ele atribuo algumas das falas
-
que aparentemente so dos dois motoristas. essa apropriao arbitrria da fala que produz
um sentido inteiramente novo na leitura dos versos:
Interlocutor 1: - Ol, como vai?
Interlocutor 2: - Eu vou indo.
Alter-ego: e voc tudo bem? Interlocutor 1: Tudo bem eu vou indo!
Alter-ego: Correndo pegar meu lugar no futuro e voc?
Interlocutor 2: Tudo bem!
Alter-ego: eu vou indo em busca de um sono tranquilo, quem sabe? Interlocutor 1: Quanto tempo!
Alter-ego: pois quanto tempo... Interlocutor 2: Me perdoe a pressa.
Alter-ego: a alma de...
Interlocutor 1: Os nossos negcios, Alter-ego: Pois no tem de que.
Interlocutor 1: Eu tambm s ando a cem. Quando que voc telefona?
Alter-ego: Precisamos nos ver por a.
Interlocutor 2: Pra semana, prometo...
Alter-ego: talvez nos vejamos, quem sabe? Interlocutor 1: Quanto tempo?!
Alter-ego: pois quanto tempo... Interlocutor 1: Tanta coisa...
Alter-ego: que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas. Interlocutor 2: Eu tambm...
Alter-ego: eu tenho algo a dizer mas me foge lembrana. Interlocutor 1: Por favor telefona...
Alter-ego: eu preciso saber alguma coisa rapidamente. Interlocutor 2: Pra semana?!
Alter-ego: o sinal. Interlocutor 1: Eu procuro a voc.
Alter-ego: vai abrir, vai abrir. Interlocutor 2: Prometo.
Alter-ego: no esqueo, por favor no esquea, no esquea, adeus.
-
Pela disposio das falas, percebe-se que os versos poderiam ser trocados
indefinidamente entre os personagens. Qualquer um deles poderia estar dizendo o que
atribudo fala do outro. A cano, nesse caso, seria uma profuso indistinta de vozes no
poema.
Sob esse prisma, os versos de Sinal fechado representariam no apenas um encontro
no trnsito, mas apenas o relato de uma nica voz que se vale do expediente do dilogo para
se ocultar. Nesse caso, a cano poderia ser tomada como uma sucesso de indagaes
metafsicas, ligadas ao tempo e sua supresso: a morte. Essas impresses so reforadas
com o auxlio da anlise musical.
Ol--
mo vai in
co vou do e c bem
Eu
vo tudo
A espacializao da melodia mostra a simulao das vozes, ainda identificveis; cada
uma se estabelece a partir do mesmo intervalo de 3 menor na descendncia, o que projeta
uma regularidade meldica. No fim do segmento, ao invs de uma descendncia finalizando a
asseverao, ocorre uma ascendncia, compatvel com o carter de interrogao que se fixa
como motivo meldico.
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Essa ascendncia se repete nos prximos segmentos e demonstra, alm da
presentificao do questionamento que se faz a todo instante - mesmo quando se finaliza o
enunciado -, a estratgia meldica de misturar uma frase outra, dificultando a sua
identificao ao mesmo tempo que faz desse procedimento a matria da cano.
Como resultado, os encadeamentos e os graus de tenso aumentam medida que a
harmonia avana. como se a melodia seguisse na horizontal e os pontos nevrlgicos
surgissem do apontamento vertical da harmonia em locais especficos, de acordo com o
sentido e importncia suscitados pela letra. Na parte harmnica, do primeiro verso at o final
do sexto, ocorre a modulao dissonante de um nico acorde (Em9, Em5+/9 e Em5+, exceto
D# ), em que a permanncia da tnica constri um tecido sonoro repetitivo e angustiante pelo
acrscimo do intervalo de nona maior.
indo rren gar gar
bem do meu
do vou Co pe lu
Tu eu
-
bem indo
No futu do vou
ro e c Tu eu
vo
Violo e base de orquestra fixam o ambiente sonoro melanclico na introduo pela
sonoridade cclica da repetio ininterrupta das notas no violo. Na maior parte da cano,
somente o violo utilizado e quando a orquestra preenche o espao sonoro com uma gama
maior de som, a cano atinge nveis ainda maiores de dramaticidade. Violo e orquestra
funcionam como elementos de um cenrio influente, em que a voz de Paulinho de Viola se
movimenta, traando, atravs do motivo meldico ascendente, indagaes existenciais.
A singularidade da construo do espao sonoro, onde as dissonncias impregnam o
tecido meldico, causa um constante deslocamento espacial e as ascendncias indicam a
continuao do fluxo sonoro e o prolongamento no tempo e no espao, alm de aludir ao
medo do homem na busca pelo seu destino, fato que designa a edificao do prprio espao-
temporal.
A harmonia em Sinal fechado se mostra em aberta, pois da interseco entre as
linhas meldicas e a letra da cano tem-se a configurao de um espao que no se restringe
ao cenrio urbano. Espao e tempo em sintonia com o espao e tempo da cano, eis a sua
mola propulsora.
Comprimido (Nervos de Ao, 1973) uma cano em que o equilbrio entre letra e
melodia se traduz por uma perfeita fuso e intercmbio de significados. Aos versos da letra se
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impe uma correspondncia meldica e harmnica muito sugestiva. O componente
lingustico, um poema urbano, trata de um caso banal de desamor. uma cena realista que
foge dos esteretipos ao tratar o tema com espontaneidade, mostrando instantes poticos
atravs de uma descrio apoiada na fala oral. A cano cita Cotidiano (Chico Buarque,
1972), que refora a caracterizao do espao e dos personagens narrados.
Deixou a marca dos dentes dela no brao Pra depois mostrar pro delegado
Se acaso ela for se queixar da surra que levou 1 modalizao
Por causa de um cime incontrolvel
Ele andava tristonho, guardando um segredo
Chegava e saa, comer no comia
E s bebia, cad a paz 2 modalizao
Tanto que deu pra pensar que poderia
Haver outro amor na vida do nego
Pra desassossego e nada mais
Seu delegado ouviu e dispensou
Ningum pode julgar coisas de amor
O povo ficou intrigado com o acontecido
Cada um dando a sua opinio
Ela acendeu muita vela pediu proteo
O tempo passou
E ningum descobriu
Como foi que ele se transformou
Uma noite
Noite de samba
Noite comum de novela
Ele chegou pedindo um copo dgua Pra tomar um comprimido 3 modalizao
Depois cambaleando foi pro quarto
E se deitou
Era tarde demais
Quando ela percebeu
Que ele se envenenou
Seu delegado ouviu e mandou anotar
Sabendo que h coisas que ele no pode julgar
S ficou intrigado quando ela falou 2 modalizao
Que ele tinha mania
De ouvir sem parar um samba do Chico
Falando de coisas do dia-a-dia
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Chama ateno em Comprimido a sugestividade do arranjo instrumental e o modo
como ele cria uma atmosfera musical propcia ao relato da histria. O arranjo funciona como
uma segunda voz, ou como uma outra narrativa, em nvel musical, que dialoga com o texto
lingustico.
A linearidade meldica se apresenta por trs movimentos harmnicos distintos, que
modalizam o grau de tenso dos versos assinalados. Na primeira modalizao, o
acompanhamento instrumental simula um clima de suspense, intercalando a sonoridade da
tnica (C) duas oitavas abaixo, cuja repetio alude rotina do cotidiano e gravidade do
drama narrado.
O efeito sonoro se amplia quando aparece um agog produzindo frases sonoras que,
contrapondo-se fala do enunciador, aumentam a tenso dos versos e encaminham a
sonoridade ao anticlmax. A dico cautelosa e a voz, quase falada, confere descrio a
frieza tpica dos relatos policiais.
Deixou--a--marca--dos- --bra-
-- den-- ---o
--tes--de- --no--
--la--
-
--pois mos-- --gado
--trar
Pra de-- pro-----dele---
--acasoela
for --xar
se- da que vou
Se-- surra
--quei- le
Por deum
cime
causa in-- l
vel
--contro
-
Pela assimetria dos intervalos nesses segmentos, depreende-se a irregularidade
meldica da cano. A disposio das notas surpreende e a cadncia meldica imprevisvel,
acelerando ou retraindo a velocidade da emisso. Por detrs desse procedimento, encontra-se
a particularidade do canto de Paulinho da Viola - a sncope.
Na segunda modalizao, a sonoridade ganha volume com a percusso e a flauta, que
reinserem a tenso interrompida nos versos finais da primeira modalizao. O alongamento
das vogais alude ao momento passional, impulsionando a melodia e a harmonia para o clmax
que acontece na terceira modalizao.
se
--dava- guardando um gre
--tris
Ele--an-- tonho
do
--bia ca-
--mia E s be d
a
a comer no co
paz
Chegava e sa
-
As vogais se alongam e praticamente todo o enunciado cantado na mesma regio da
tessitura, efeito da disforia dos personagens.
O momento mais simblico da cano acontece na terceira modalizao, quando
caracterizado o espao dos personagens com as palavras samba e novela. A tenso
referida inicialmente pelo cotidiano (repetio da tnica C) encontra a a sua plenitude.
Novela e samba so ndices do espao e da vida narrados, indicando, simultaneamente, o
meio social e a estratgia de fuga realidade de pobreza.
--noite Noite---de mum
samba
Uma
Noite--co
de novela
--dindo um co
Pra tomar um
--gou pe--
comprimido
Ele che--
---po dgua
-
pois cambaleando foi
pro quarto E se
De deitou
tarde de
mais Quando ela perce
Era beu Que ele se en
venenou
Nessa ltima modalizao, o arranjo da cano se vale apenas do tamborim,
intercalado por notas de piano ao fundo. Na ltima frase, uma descendncia de sete semitons
assevera o final do suplcio. Resta o silncio, epifnico, que antecipa o suicdio do
protagonista e simboliza o vazio daquela condio.
Nas canes at aqui analisadas, Paulinho da Viola reinventa e atualiza o samba com
muita criatividade. Em outras, como Guardei minha viola (A dana da solido, 1972), No
pagode do Vav (A dana da solido, 1972) e Argumento (Paulinho da Viola, 1975), ele
faz da recriao do estilo tradicional o ponto de referncia para o dilogo com o presente.
Essas canes mostram a preocupao do cancionista em resgatar a batida tradicional e em
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manter o seu trao de espontaneidade, cujos destaques so a melodia e o refro, espcie de
resumo do motivo meldico e da letra, que funciona em geral como crnica do cotidiano.
assim em Guardei minha viola.
Minha viola vai pro fundo do ba No haver mais iluso
Quero esquecer ela no deixa
Algum que s me fez ingratido
Minha viola
No carnaval
Quero afastar
As mgoas que meu samba no desfaz
Pra facilitar o meu desejo
Guardei meu violo
No toco mais
Minha viola
Guardei minha viola mostra algum desiludido com o amor e que culpa o
instrumento pela lembrana do ser amado, prometendo que com o carnaval a tristeza ir
embora. A simpatia que a cano desperta e os impulsos somticos para a dana esto
concentrados no desempenho da melodia e da harmonia. Pelo conjunto harmnico, as frases
simples adquirem importncia, mas o que predomina o ritmo e no a mensagem lingustica.
Harmonicamente, uma cano simples, que se vale da facilidade do refro para imprimir o
sentido da melodia, sendo que a segunda parte da letra mero desdobramento meldico do
refro. uma cano simples, cuja melodia bem marcada facilita a sua memorizao.
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mas--i s
lu o
ver
vai pro h
No
viola
nha ---fundo
Mi do ba
quecer dei
ro es e Al
Que la no gum
que
xa --s me ti
ingra do
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