1977 Vila Maria dos Meus Maiores L-PPL - Biblioteca ... Vila Maria dos Meus... · sobre tantas...

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8 9 Í N D I C E Dedicatória 7 Prefácio. 9 Os Novos Caminhos 13 Retrato da Vila . 15 O Marco do Jaurú. 20 Homem de Negócios 23 Ordem Militar de Santiago da Espada 24 A Família. 27 A Reforma 30 Fundação de Vila Maria 30 Fronteiro Indormido 33 As Insígnias 36 Jacobina. 36 Ordem Militar de Avis 41 O Engenho da Estrada Real 41 Economia Latifundiária. 43 Galeria de Arte 54 Baronesa de Vila Maria. 66 Patriarca Austero 83 Símbolo Perene. 87 O Perfil do Líder. 91 Glorificação do Protetor. 92 A Ordem Militar de Cristo 93 O Crepúsculo do Chefe 95 Artilheiro Valoroso 96 Ordem da Rosa, 99 Fenecido Botão 100 Perfil Espiritual. 109 Perlustre dos Três Poderes 114 Missão do Padrinho 122 Bela Amizade. 126 Beneméritos Franciscanos 132 Vila Maria dos Meus Maiores 140 Epopéia Albuquerqueana. 141 Futuro Promissor 142 Bibliográficas. 151 Apreciações 152 Biblioteca Virtual José de Mesquita http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm

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Í N D I C E

Dedicatória 7 Prefácio. 9 Os Novos Caminhos 13 Retrato da Vila . 15 O Marco do Jaurú. 20 Homem de Negócios 23 Ordem Militar de Santiago da Espada 24 A Família. 27 A Reforma 30 Fundação de Vila Maria 30 Fronteiro Indormido 33 As Insígnias 36 Jacobina. 36 Ordem Militar de Avis 41 O Engenho da Estrada Real 41 Economia Latifundiária. 43 Galeria de Arte 54 Baronesa de Vila Maria. 66 Patriarca Austero 83 Símbolo Perene. 87 O Perfil do Líder. 91 Glorificação do Protetor. 92 A Ordem Militar de Cristo 93 O Crepúsculo do Chefe 95 Artilheiro Valoroso 96 Ordem da Rosa, 99 Fenecido Botão 100 Perfil Espiritual. 109 Perlustre dos Três Poderes 114 Missão do Padrinho 122 Bela Amizade. 126 Beneméritos Franciscanos 132 Vila Maria dos Meus Maiores 140 Epopéia Albuquerqueana. 141 Futuro Promissor 142 Bibliográficas. 151 Apreciações 152

Biblioteca Virtual José de Mesquita http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm

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PREFACIO

Pedira ao dileto confrade Antônio Lopes Lins, cearense muito ligado à Cáceres e que é hoje elemento de escol nos meios políticos e intelectuais de Mato Grosso, que me fizesse o prefácio desta modesta obra. Comprometera-se a fazê-lo registrando as passagens mais interessantes da vida do autor que, no entanto, melhor refletindo, optou pela mensagem que aqui consigna.

O bi-centenário que vamos celebrar foi por mim sonhado e vivido há muitos anos. Ao sussurro paterno dos 150 anos despertava-se em mim a visão do bi-centenário. Tantas cousas estudei, pesquisei, imaginei e busquei. Nem tudo saiu como me propusera. Debruçado sobre tantas vidas passadas, admirei os ancestrais e os amei com amor e respeito mais profundos. Muitas vezes parei para orar e para chorar diante dos seus serviços e do seu amor.

Não somente os antepassados dos Pereira Leite estiveram no dia da fundação de Vila Maria; muitos outros ali estiveram e nós confiamos na juventude e na mocidade cacerense para que aprofundem os seus estudos e nos possam dar, igualmente, a história de tantas vidas generosas que enriquecem e embelezam a rica e bela vida de nossa dileta Cáceres.

O autor

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Os novos caminhos do mar, abertos pelas importantes descobertas marítimas dos séculos XV e XVI, obrigaram os navegadores da época e em particular os Portugueses e os Espanhóis a cuidar da efetiva ocupação da terra,do seu desbravamento e da sua colonização.

Incursões eram feitas em todos os sentidos e a partir do litoral eram aprofundadas com maior intensidade e vigor.

O Brasil não fugiu à regra desde que foi descoberto no ano de 1500 por Pedro Álvares Cabral. O reino português envidou todos os esforços no sentido de colonizar a rica região descoberta e a partir de Martim Afonso de Souza em 1532 o processo colonizador recebeu novo impulso. Outros povos vigiavam o litoral tentando ocupar a terra descoberta e a vigia se tornou mais premente, pois que a faixa litorânea era por demais extensa.

Já no século XVI a exploração interiorana produzia excelentes resultados, obrigando a colonizadora a ir sempre para frente para lograr novas e valiosas conquistas para o reino. Vez por outra chocavam-se os Portugueses com os Espanhóis na porfia gloriosa da conquista e da colonização.

Na região de Mato Grosso assinalados foram os choques, mas os Portugueses levaram a melhor na luta árdua que se travou durante quase dois séculos.

A descoberta das ricas minas do Cuiabá foi ponto de partida para profundas modificações na política de colonização no conselho ultramarino do reino português. O mundo de então foi assombrado pela riqueza e pela porção de ouro que se extraiu da mais produtiva mina de então. Para ela acorreram os mineradores mais destemidos e o seu trabalho possibilitou a consolidação rápida do arraial, a sua institucionalização e erecção em Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, em 10 de janeiro de 1727, perante D. Rodrigo César de

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Menezes, governador da Capitania de S. Paulo, que fora desmembrada da Capitania das Minas Gerais, tornando-se autônoma com o áureo achado das minas do Cuiabá. Prosperou o arraial tão rapidamente pela abundância do ouro e pela severa fiscalização do quinto, de tal modo que o reino português, que discutia com a Espanha as Bases de um próximo Tratado de limites, decidiu criar a Capitania de Mato Grosso pela Carta Régia de 9 de maio de 1748.

Da fundação de Cuiabá em 8 de abril de 1719 pelo Bandeirante Pascoal Moreira Cabral, à elevação da capitania, nem trinta anos eram decorridos, circunstância que comprova a importância das minas do Cuiabá no esforço colonizador português, nestes longes da colônia que enriquecia e engrandecia o reino.

Antônio Rolim de Moura Tavares, destacado primeiro governador Geral e Capitão General da Nova capitania, obedecendo ordens do reino, segue de imediato o seu destino, buscando local na região guaporeana para a sede da Capitania. Pareceu-lhe melhor a Vista Alegre, logo transformada, em 19.3.1752, em Vila Bela da Santíssima Trindade e ali instalou o seu governo e tomou as primeiras medidas administrativas. Como é óbvio, por terra e por água, procurou consolidar e ampliar a ligação com as minas do Cuiabá, o que deu origem a estabelecer, a meio caminho e à margem do Paraguai, o registro fiscal para impedir a evasão e facilitar a cobrança do quinto devido ao erário. Após 1772, juntava-se ao registro o posto militar para defesa da fronteira. Pouco além e já no caminho para Cuiabá, desde 1769, meu tetravô, o português Leonardo Soares de Souza, que viera para as Minas acompanhado de seu Pai, Jerônimo Soares de Souza, estabelecia-se nas flexas e fundava Jacobina, de onde foi convocado para subscrever, em 6.10. de 1778, a ata de fundação de Vila Maria do Paraguai, à margem esquerda do mesmo Rio e que iria assumir as funções até então exercidas pelo registro e posto supra citado. Começava a florescer a Vila que Luís de Albuquerque sonhara coroando as muitas outras como Ínsula, no Araguaia, Coimbra no fecho dos Morros, no Rio Paraguai, Príncipe da Beira, no Guaporé, Viseu, quase em frente à barra do Crumbiara, a meia distância entre o Forte e Vila Bela, e Albuquerque, também no Rio Paraguai, hoje Corumbá, vilas que ele implantara com o escopo de defender a Capitania e de consolidar as suas linhas fronteiriças.

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RETRATO DA VILA

Em setembro de 1827, HÉRCULES FLORENCE, que integrava a missão do Barão de Langsdorff, que de 1825 a 1829 percorreu detidamente as províncias de São Paulo, Mato Grosso e Pará, assim retratava Vila Maria no seu “VIAGEM FLUVIAL DO TIETÉ AO AMAZONAS”, págs. 137 a 139.

... “Ao romper do dia (6.9.1827), chegávamos a Vila Maria assente à margem esquerda do Paraguai.

Do mesmo modo que os outros povoados de Mato Grosso, não merece este a qualificação de Vila. Um renque de casas em mau estado, de cada lado de uma grande praça, uma igrejinha sob a invocação de São Luiz de França, muros de separação por trás das casas, eis tudo. Mas o grande rio aí está cercando a O. a praça e a povoação, e ao qual se desce por uma barranca em curva reentrante. Do outro lado estende-se uma praia de areia fina orlada de lindo e verdejante matagal, cortado pelo caminho que vai ter a Mato Grosso.

Além disto quanto prazer em ver o Paraguai, rio sempre calmo e majestoso até escoar-se no mar! Também, depois de tomado algum descanso na casa chamado do governo e que nos deram por ser a melhor da localidade, entrei numa piroga quando a hora começava

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a refrescar, e voguei águas acima, atraído não só pela sombra que já se estendia por sobre o rio, como pelos encantos da corrente que sai silenciosa de entre cheias de belas e altanadas árvores. Em breve vi à minha direita furos que levavam a enseadas, que banham a povoação pelo lado setentrional. Penetrei neles e vaguei num labirinto de canais, ínsuas e árvores, a surgirem de dentro d’água. É uma floresta inundada, onde reinam o frescor e a escuridão, e as águas são fundas e piscosas. Num passeio desses respira o peito com expansão, pois a alma sente-se calma como a paisagem que a cerca e infunde-lhe benéficas impressões.

A custo obrigou-me a noite a deixar esses lugares, onde o ar, a água e a floresta concorriam para a serenidade e paz de espírito. Minha piroga, que nenhuma corrente impelia, cedia ao movimento da pá que com mão lerda eu manejava em direção ao povoado. Nas trevas da noite, as árvores inundadas semelhavam grandes navios ancorados. O céu enchia-se de estrelas, e um ou outro planeta brilhava já com vivacidade entre as franças da floresta, deitando bruxoleante esteira sobre as águas.

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Cortei a larga baía e, entrando no rio, entreguei-me à correnteza que me levou à barranca, donde, em dois pulos, alcancei a casa.

De manhã, ao raiar do dia, o tambor da praça, que aliás não tem guarnição, tocou, metido em umas calças, à nossa porta a alvorada. O que me causou admiração, foi que, tendo ouvido tambores de tropa francesa e sarda, no mar e em terra, não me recordo ter apreciado execução melhor nem mais variada.

Seis ou sete homens brancos, trezentos Caburés descendentes de índios aldeados no tempo de D. Maria I, mulatos e negros, eis toda a população da Vila. Muitos homens e mulheres andam nus da cintura para cima.

Vila Maria, sita à margem do Paraguai e no caminho de Cuiabá, a Vila Bela, está destinada a tornar-se num ponto importante para o comércio, logo que cessem os óbices da campanha política moderna.

Em 1º de maio de 1977, escreve-me o Arq. Carlos Francisco Moura: “... Estive em Cáceres, que achei uma cidade interessantíssima. De passagem, vi o Engenho da Estrada Real e sua monumental Roda D’água. Infelizmente, por ir de ônibus, não me foi possível tirar fotografias.

No Rio, estive com o Dr. Edgard Jacinto, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e falei-lhe no Engenho. Ele achou que deveria ser tombado. Disse-lhe que o Sr. estava tratando disso, e dei-I he seu endereço. Quando ele for a Cuiabá deverá procurá-lo.

Conforme lhe havia prometido, estou remetendo anexo à presente foto da gravura do século XVIII da praça principal de Cáceres. Saiu publicada no meu livrinho As Artes Plásticas em Mato Grosso nos Séculos XVIII e XIX.

É documento iconográfico valiosíssimo do Século XVIII, pertencente ao Arquivo da Casa da Ínsua, em Portugal (portanto, é do período albuquerquino, sem nenhuma dúvida).

Por cima do desenho está manuscrito o título - “Villa Maria do Paraguai”. Representa uma perspectiva da praça principal da vila, tirada do rio. Em primeiro plano aparece uma embarcação com vários remeiros e soldados. Na popa arvora uma bandeira, e há uma câmara onde se vêem duas pessoas dentro. Na margem do Rio há vários índios e índias (estas vestidas de camisolão e eles com calções), alguns brancos. Na grande praça há dois renques de casas térreas,

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um à direita e um à esquerda. Ao fundo da praça há igreja, e próximo a ela um grande mastro com bandeira.

A praça é sem dúvida a praça principal da vila, tal qual eu a

vi na semana passada, e a grande igreja hoje existente está no mesmo lugar da pequena igreja que aparece na pintura.

Aliás, retifico o que disse acima — trata-se de uma pintura (possivelmente a aquarela), e não gravura, no sentido técnico desse termo. Só disponho de uma reprodução em preto e branco dessa perspectiva.

Estou remetendo uma foto da pintura completa. Como ela é pouco nítida, remeto também um detalhe mais nítido em que aparece a margem e várias pessoas, e a igrejinha ao fundo.

Sou de opinião que deve publicar ambas (a pintura completa e o detalhe da praça)”

O parente e amigo Sebastião Frederico Teixeira, bisneto de Luís Benedito Pereira Leite e que muito me tem ajudaria na elaboração da trilogia cacerense, obteve na seção de iconografia da Biblioteca Nacional uma interessante planta da cidade de Cáceres quando esta contava 100 anos da sua fundação, documento que inserimos neste trabalho para o estudo comparativo do seu progresso e do seu desenvolvimento.

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Planta de Cáceres em 1876 Seção de iconografia da Biblioteca Nacional — Rio

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O MARCO DO JAURU

Rica peça arquitetônica, lavrada em mármore e secionada em duas partes, cada uma a cargo das coroas portuguesa e espanhola, foi implantado à Margem do Jaurú em 1754 pelo então Capitão General e 10 Governador da Capitania de Mato Grosso, D. Antônio Rolim de Moura Tavares; é o mais belo monumento que nos ficou da era colonial, hoje respeitosa e orgulhosamente erguido na praça principal de Cáceres.

Hércules Florence, no seu interessante trabalho “Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas”, tradução do Visconde de Taunay, Edições Melhoramentos, págs. 139 a 144, assim o surpreende e descreve:

10 de Setembro de 1827, antes do dia estávamos de pé, à espera da canoa que da barranca do rio devia levar-nos à embocadura do Jaurú, onde íamos ver a pirâmide do Paraguai” célebre no país e conhecida de alguns geógrafos.

11 de Setembro de 1827, partindo às duas horas da madrugada, às nove da manhã chegamos ao rio Jaurú, à direita. Em vão procuramos a princípio enxergar a pirâmide que vínhamos ver: descobrimo-la afinal à direita da embocadura, por trás de árvores que a ocultam das vistas.

É a pirâmide quadrangular e tem 15 e meio pés de alto, incluindo o pedestal e a cruz de pedra que a coroa.

No lado N. 54º O., estão gravadas as armas de Espanha sob as quais se lê esta inscrição:

SVB FERDINANDO VI

HISPANIAE REGE

CATHOLICO A coroa está quebrada; só restam os florões. No lado S. 54º E., estão as armas de Portugal e esta inscrição

SVB IOANNE V

LVSIT ANORVM REGE

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FIDELÍSSIMO Falta de todo a coroa. Lê-se no lado N. 36º E.:

EX PACTIS FINIVM RE

DVNDORVM CONVENTIS

MADRITI IDIB IANVAR

M.DCCL Enfim no quarto lado:

IVSTITIA ET PAX

OSCVLATAE SVNT.

As duas coroas das armas de Espanha e Portugal estão

mutiladas, pelo tempo ou pelos homens; Na minha infância vi os sinais da realeza destruídos pelos revolucionários de 92. Inclino-me a crer que o mesmo sentimento impeliu os americanos a apagarem o assinalamento da antiga servidão.

A pirâmide compreende o pedestal, é de alto a baixo separada em duas metades, ambas de uma só pedra. A junção forma, nos lados N. 36º E. e S. 36º O., duas linhas que marcam a direção de um raio de mais de léguas de limites. Dizem que uma metade foi feita em Lisboa e outra em Cadiz.

Hércules Florence. Em 13 de janeiro de 1950, celebrava-se em Cuiabá o

Bicentenário do Tratado de Madrid. Na Catedral Metropolitana, perante o Governador do Estado, Dr. Arnaldo Estevão de Figueiredo, altas autoridades, inclusive o Dr. Plínio Travassos, Procurador Geral da República, em missão especial do Supremo Tribunal Federal para dirimir o grave problema de dualidade da Presidência do Egrégio Tribunal da Justiça do Estado, D. Aquino Correa, o grande e imortal arcebispo de Cuiabá proferia formosa oração gratulatória, enfatizando a certa altura:

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“Por último, Senhores, o que justifica plenamente esta liturgia sacra de ação de graças, é o espírito que presidiu à elaboração desse tratado, do qual, com a sua ímpar autoridade, escreveu o Barão do Rio Branco, que deixa no ânimo de quem o estuda, “a mais viva e grata impressão da boa fé, lealdade e grandeza de vistas, que, inspiram esse ajuste de antigas e mesquinhas querelas, consultando-se unicamente os princípios superiores da razão e da justiça e as conveniências da paz e da civilização da América”.

Deste nobre ideal luminoso de justiça e paz internacional, temos a ventura, os matogrossenses, de possuir o mais expressivo e solene monumento, para o qual hoje, nesta festiva data jubilar, voltam-se espontaneamente as nossas almas, numa romaria evocativa e poética, através de dois séculos. É o Marco do Jaurú!

Marco do Jaurú! Rico padrão de pedra-mármore, encimado pela Cruz! Primeira baliza do nosso Estado Natal, que os comissários do Capitão General Gomes Freire de Andrade e do Marquês do Vai de Lírios, executores do tratado, levantaram em meio a florestas virgens, poucos quilômetros à jusante da foz, onde o selvático rio Jaurú aflui nas majestosas e históricas águas do Paraguai!

Marco do Jaurú! Velha pirâmide, minúscula e solitária, que ao longo de tantos anos, no silêncio sagrado e imenso daquelas regiões ainda bravias, assinalaste, numa orla selvagem da terra matogrossense a fronteira das duas gloriosas nações, que pareciam então partilhar entre si o domínio do mundo!

Marco do Jaurú! Com que emoção e encantamento, nós te saudamos hoje, mesmo ao longe, por entre as flores desse jardim, ao sol da praça principal de Cáceres, aonde foste transladado, e relemos as tuas vetustas inscrições, na solenidade e elegância dos seus dizeres latinos, bem dignos do mármore clássico, em que foram gravados: ex pactis finium regundorum conventis!

Marco do Jaurú! Tu perpetuaste, para sempre nos relevos artísticos das tuas quatro páginas, os nomes das duas augustas realezas, que foram as altas partes contratantes de Madrid, a majestade fidelíssima de D. João V de Portugal e a majestade católica de D. Fernando VI de Espanha; mas nos lembras também, no teu sugestivo silêncio, todos quantos colaboraram no memorável pacto, que ora festejamos, e sobre os quais paira, excelsa e inconfundível,

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como alma que foi dessas negociações políticas, honrando sobremaneira a nossa Pátria e a nossa gente, a figura de Alexandre de Gusmão, o grande diplomata brasileiro.”

Plínio Travassos, ao sair do templo, tomou-se pelo braço, profundamente entusiasmado com a inteligência do orador e a formosura da sua oração. D. Aquino, delicada e inteligentemente, apelara para a paz no poder judiciário matogrossense ao realçar e explicar o texto latino Justitia et pax osculatae sunt, inscrito no histórico marco do Jaurú, ponto de realce daquelas comemorações bicentenárias.

HOMEM DE NEGOCIOS O HOMEM

Leonardo Soares de Souza, natural de Portugal, filho de Jerônimo Soares de Souza, estabelece-se nas minas de Cuiabá por volta de 1769, donde transferiu a sua residência, como consta de uma justificação procedida em 1782, para as Minas de Mato Grosso, fundando uma fazenda de criação na paragem Servo ou Flechas. Fora mal sucedido nos negócios e nisso a razão de sua mudança brusca de residência.

Em 1772, requer as terras conhecidas por Jacobina, distante 40 Km aproximadamente de Vila Maria, S. Luiz de Cáceres, e hoje Cáceres simplesmente e o faz do próprio punho e com o teor seguinte: Ilmo. e Exmo. Sr. Capitão da Sesmaria Villa Bella

“Diz o Ilmo. Sr. Leonardo Soares de Souza que V. Excia. foi servido conceder-lhe licença para o suplicante usar de seu engenho de cana situado na paragem chamada Jacobina, junto a um Ribeirão que deságua para os Pantanais do Paraguai no que tem algumas restingas de matos cultiváveis e para o estabelecimento do mesmo engenho deseja o suplicante que V. Excia. lhe recomende meia légua de terras nos ditos matos que forem cultiváveis ressalvando os pantanais e alagadiços que entre eles tem; principiando-se a medir desde o mesmo engenho um quarto para cima dele e outro para baixo pelo mesmo Ribeirão.

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Aguarda que V. Excia. lhe faça mercê conceder a sesmaria que requer.

E.R.M. Datado em 28 de outubro de 1772.. O pedido de concessão da sesmaria Jacobina, formulado

pelo Alferes Leonardo Soares de Souza, obteve deferimento consoante o documento a seguir transcrito:

“Ilmo. e Exmo. Sr. O Ilmo. e Exmo. Sr. Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e

Cáceres nos ordenou em uma Carta de Ofício dos 10 de outubro do ano passado que depois de feitos os exames necessários informássemos ao mesmo Sr. a respeito do requerimento junto do Alferes Leonardo Soares de Souza em que pede meia légua de terras lavradias na paragem denominada Jacobina junto a um Ribeirão que deságua nos pantanais do Paraguai em obediência do que fizemos todas aquelas diligências que nos pareceram necessárias e achamos que os referidos matos estão devolutos e nos termos de obter a graça implorada.

É o que podemos informar a V. Excia. que mandará o que for servido por muitos e felizes anos, como tanto desejamos.

Cuiabá, em começo dos 9 de abril de 1790. Ilmo. e Exmo. Sr. João de Albuquerque de Meio Pereira e

Cáceres. Do Juiz Presidente e mais oficiais da comarca. José Paes Falcão das Neves João Sá Guimarães Francisco Xavier da Silva Pereira João Martins Macedo.”

ORDEM MILITAR DE SANTIAGO DA ESPADA

A Chancelaria Portuguesa fez editar em 1968 o compêndio

de todas as ordens portuguesas, fixando a história de cada uma delas, as suas origens e o papel desempenhado no seu tempo. Nele se lê que, em 1170, Fernando II de Leão fundou a Ordem de Santiago, também chamada de Cáceres, sua sede originária, ou de Uclés, em Castela, para onde aquela se transferiu.

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Pouco depois a Ordem entrava em Portugal, possivelmente ainda no reinado de D. Afonso Henrique ou, ao certo, no de D. Sancho I. O seu primeiro assento no nosso país foi no Mosteiro de Santos, em Lisboa, onde freires se conservaram até ao reinado de D. Afonso 11. Nesse tempo mudaram-se para Alcácer do Sal; daqui, reinando D. Sancho II, se transferiram para Mértola. Data de 1482 o seu estabelecimento definitivo no Convento de Pai meia.

A Ordem de Santiago teve uma ação preponderante nas lutas da reconquista, em especial no do Algarve, e na questão dinástica entre D. Sancho II e seu irmão D. Afonso, em que tomou declaradamente o partido do conde de Bolonha. Os primeiros cavaleiros que vieram ao nosso país cá deixaram a boa semente da sua Ordem. Cá também os espatários vieram acrescidos, com a sua piedade e intrepidez, o seu prestígio e poder.

Os freires de Portugal tinham como chefe imediato um comendador-mor. As primeiras diligências de que há notícias para que àqueles fosse concedido o direito de terem um mestre exclusivamente seu, data dos fins do século XIII, já no reinado de D. Dinis. A circunstância de esta concessão da Cúria Pontifica ter sido obtida sem dúvida contra a vontade dos Castelhanos e quando em Roma ainda se não tinha chegado à composição do clero com D. Dinis dá especial valor ao êxito das nossas diligências. A divisão da Ordem foi decretada numa bula do franciscano Nicolau IV de 17 de setembro de 1288 e renovada em 1290. Mas o mestre-geral impugnou esta decisão e a demanda arrastou-se durante os pontificados de Bonifácio VIII, Clemente V e João XXII.

Finalmente, em 1440 foi definitivamente estabelecida a independência absoluta da ordem portuguesa e em 1452 Nicolau V declarou extensivos à Ordem de Santiago de Portugal todos os privilégios, isenções e prerrogativas concedidos à de Castela.

O primeiro mestre eleito depois da separação da Ordem foi D. João Fernandes. Com a união dos mestrados à Coroa, no reinado de D. João 111, passou a Ordem a ser governada pelo próprio rei. A seguir à dignidade de mestre vinha a de prior-mor. O prior-mor de Palmela (como veio a chamar-se depois da mudança para esta vila) desfrutava de uma das mais autorizadas dignidades do reino, tendo-lhe sido concedida pelo Papa Leão X uma jurisdição quase episcopal,

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limitada, embora, ao Convento daquela vila. A Carta de Lei de 19 de Junho de 1789 determinava que “em

regra, do despacho em benefício de pessoa que sirva na magistratura até o lugar de desembargador dos agravos da Casa da Suplicação, inclusive, será o hábito de Santiago. Além dos magistrados, seriam premiados com esta Ordem outros serviços que parecessem dignos dela, segundo a qualidade e importância das pessoas, dos empregos e dos, serviços.

Por alvará de 31 de Outubro de 1862 era de novo reformada a Ordem de Sant’lago da Espada, que passaria a intitular-se “A antiga, nobilíssima e esclarecida Ordem de Sant’lago do mérito científico, literário e artístico”, e se destinava unicamente a galardoar o assinalado merecimento pessoal e relevantes serviços prestados às ciências, às letras e às boas artes, tanto no ensino público como em obras escritas e obras artísticas. O legislador entendeu conveniente e parece que com bem fundadas razões explicar as novas finalidades que passavam a ser atribuídas à concessão da Ordem de Sant’lago. Lê-se no relatório do alvará: “Reformada em 1789, a Carta de Lei de 19 de junho designou-a para recompensar os serviços relevantes do mérito civil. Restringindo-se hoje por especial e exclusiva aplicação a remunerar os serviços científicos, literários e artísticos, as obras do engenho, a eloqüência e as vigílias da erudição no magistério, primores do cinzel e da palheta, e todas as manifestações da arte em que sobressaírem talentos distintos, ninguém dirá que, por se acomodar às circunstâncias atuais, ela se aparte do seu verdadeiro espírito. Obreiros de uma missão de conquista e liberdade são também aqueles que nas fadigas do estudo e nas meditações da ciência trabalham incansáveis, procurando alargar os domínios intelectuais da Pátria, e granjear-lhe as simpatias e o respeito da Europa. Os seus graus e dignidades seriam: grão-mestre (sempre o soberano); oficiais-mores (comendador-mor, que era sempre o príncipe .herdeiro presuntivo do reino; chanceler e alferes) grã-cruzes; comendadores; oficiais e cavaleiros (todos em número limitado).

O Governo Provisório da República extinguiu, em 15 de Outubro de 1910, as antigas ordens nobiliárquicas, com exceção da Torre e a Espada, mas, algum tempo depois, o Decreto n. 5.030, de 1 de Dezembro de 1918, restabelecia, entre outras, a Ordem de

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Sant’lago da Espada, destinada a premiar, em nacionais ou estrangeiros, o mérito científico, literário ou artístico. O Regulamento das Ordens Militares Portuguesas de 8 de Novembro de 1919 preceituava que a Ordem de Sant’lago da Espada era destinada a premiar os indivíduos da classe civil e militar, nacionais e estrangeiros, que se distinguissem por assinalado merecimento pessoal e relevantes serviços prestados às ciências, às letras e às artes, tanto em ensino público como em obras escritas e obras artísticas, e os estabelecimentos de ensino ou corporações científicas que se assinalassem por notáveis e relevantes serviços, sendo os seus diversos graus conferidos em harmonia com o valor dos trabalhos e a categoria social do agraciado.

Na Capitania de Mato Grosso, Leonardo Soares de Souza, que, em 1772, requeria a concessão das terras de Jacobina e seis anos mais tarde subscrevia, em destaque, ata oficial de fundação de Vila Maria, figura entre raros dignitários da Ordem Militar de Sant’lago e já vergado ao peso dos anos recebeu da mercê Imperial outra distinção, aliás a derradeira que seria a sua reforma no posto de Coronel.

A FAMÍLIA

Casou-se Leonardo Soares de Souza com Ana Maria da Silva, filha de José Gomes da Silva, natural de Aveiro e D. Rita de Campos Maciel. Desse consórcio originou-se Maria Josefa de Jesus Leite, única filha do casal e que se consorciou com o Coronel de Milícias, João Pereira Leite, no ano de 1813, sendo o casamento precedido de interessante carta endereçada por Leonardo Soares de Souza em 1812 ao Cap. General João Carlos Augusto D’Oyenhausen de Gravenberg, oitavo Governador da Capitania e vazada nos seguintes termos: Ilmo. e Exmo. Sr.

“Tenho em vistas a minha avançada idade e pouca saúde que no presente desfruto e desejando antes que morra deixar arrumada a minha casa, tenho assentado ao tempo dar a minha filha e criado, e afilhada de V. Excia., e para isto tenho eleito ao Capitão João Pereira Leite, Comandante de Vila Maria por me persuadir acho todos os requisitos impecáveis para a conservação desta grande casa e tenho

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contratado com ele neste respeito acho conforme com a vontade de que levo muito em gosto assim como minha mulher e menina, provem apurar de que tudo esteja nos termos de se efetuar, não o farei certamente sem primeiro consultar a Exma. pessoa de V. Excia., pedindo primeiramente a licença para poder fazer se V. Excia. o aprovar, e em segundo lugar, fazer ver a V. Excia. que sendo-lhe um homem militar por modo algum me faz conta que ele fique no atual serviço com que presentemente existe, maiormente (1) estando com tempo vencido de poder pedir a S.AM. a sua competente reforma, por haver servido efetivamente vinte e cinco anos e serviço vivo; nestes termos pois vou implorar o patrocínio respeitável e alto poder, favorecendo-me nesta tão justa empresa em que tanto interessa a minha casa, e que tão bem da mesma forma não deixará de interessar a Fazenda de S.A.M. conservando-se ela como em desejo para o futuro.

Tenho toda a certeza de que olhando V. Excia. com reflexo amor este meu grande zelo e a grande necessidade que tenho de assim o fazer não deixará de me ajudar pondo a Real, a presença de S.AM., o que me parecem lhe dar razão e justiça, conservando entretanto por algum legítimo título essa que faça força, o emprego em que está o referido Capitão, afim de assim se poder cuidar em tudo mais a tarefa que é preciso.

Desejarei saber tudo mesmo da generosa bondade de V. Excia. fazei-me a honra de uma procuração em que faça de Padrinho para seu recebimento, isto é, caso V. Excia. não tenha intenção de vir passar as águas em Cuiabá, pois a não ser assim eu esperarei com grande gosto ter tal ocasião em que V. Excia. pessoalmente me honre.

Deus Guarde V. Excia. por muitos anos. Jacobina, 5 de outubro de 1812

Ilmo. Exmo. Sr. JOAO CARLOS AUGUSTO DE OYENHAUSEN

De V. Excia, O mais humilde Súdito a) Leonardo Soares de Souza. O contrato de casamento de Maria Josefa deu a Leonardo

relativa tranqüilidade, porque, até então, se encontrava profundamente --------- (1) Devia ser: Mormente.

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preocupado em deixá-la órfã, em tenra idade, a ponto de em fins de 1811 encaminhar à corte a petição seguinte:

“Diz o Capitão Leonardo Soares de Souza, Cavalheiro da Ordem de S. Tiago, morador no seu Engenho da Jacobina, distrito da Villa de Cuiabá, Capitania de Mato Grosso, que sendo senhor, e possuidor de um dos melhores estabelecimentos daquela Capitania, cuja situação, e subsistência é muito necessária e vantajosa tanto a Real Fazenda como ao público por se achar no meio da estrada Real, que vai da Villa de Cuiabá à Capital, como o suplicante mostra legalmente a V.A.R., pela justificação que com este apresente, e por que se acha em uma idade muito avançada, carregado de moléstias, incapaz da administração da sua mulher D. Ana Maria da Silva, cuja capacidade tem igualmente provado, e teme a mente que pode ser funesta à sua mesma Casa por ter uma única filha a quem pretende assegurar a sua subsistência; e por isso que o suplicante roga a V.A.R, em atenção ao que relata, e ao mais que provado tem, V.A.R. lhe conceda a especial graça de nomear Tutora de sua filha Maria Josefa, a sua mãe, mulher do suplicante D. Ana Maria da Silva, continuando esta na Administração da sua própria casa, uma vez que sobreviva ao suplicante.

Pede a V.A.R. seja servi-lo havê-lo assim por bem, não só em atenção ao que expende, como ao que prova pela justificação que oferece.

Espera receber mercê. Como procurador José de Artiaga Soutto Maior.

Recebi os documentos constantes deste requerimento como Procurador. Rio, 30 de agosto de 1812. aa) João de Artiaga Soutto Maior.

O Despacho exarado na petição retro transcrita foi vazado

no seguinte teor: “Pede o Suplicante marido, nomear em meio de testamento para tutora de seus filhos a sua própria mulher se lhe parecer e depois (ilegível)

Distribuído em mesa 16 de março de 1812. Rubrica ilegível, (documentação arquivada no Passo Real no dia 30/8/1812, por João

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de Artiaga de Soutto Maior e o seu original acha-se arquivado na Seção de Documentação História — Cx. n. 106, doc. 62, — do arquivo Nacional).

A REFORMA

Leonardo Soares de Souza foi reformado como Coronel e a patente respectiva de 4 de julho de 1813, assinada pelo Príncipe Regente D. João, do seguinte teor: “D. João, por graça de Deus, Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves etc. tendo posto na Minha Real Presença o Governador e Capo General da Capitania de Mato Grosso os distintos serviços que aí tem prestado Leonardo Soares de Souza Capitão de Milícias da mesma Capitânia, com dispêndio da sua fazenda ao que atendendo, e aos muitos anos que serve, e a sua avançada idade, ou serviço por graças especial que não servirá de exemplos de o Reformar, como por esta o reformo, o posto de Coronel das mesmas Milícias.

FUNDAÇAO DE VILA MARIA

O Engenho de Leonardo Soares de Souza já produzia os primeiros frutos e, ao seu lado, também florescia o povoado de Vila Maria; contudo, era mister erigi-lo, oficialmente, em Vila e o fato não passou despercebido à clarividência de um estadista do porte de Luiz de Albuquerque Meio Pereira e Cáceres, quarto capitão general de Mato Grosso, que ali despachou o seu lugar tenente, Antônio Pinto do Rego e Carvalho, tenente de Dragões, que convocou para o ato as personalidades mais eminentes da Vila, fazendo lavrar a ata do teor seguinte: “Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1778, aos seis dias do mês de outubro do dito ano, neste distrito do rio Paraguai e margem oriental dele, no lugar onde presentemente se dirige a estrada que se seguia a Cuiabá desde Vila Bela, sendo presente tenente de dragões Antonio Pinto do Rego e Carvalho, por ele foi dito que tinha passado este lugar por ordem do Ilmo. Snr. Luiz de Albuquerque de Meio Pereira e Cáceres, governador e capitão general desta capitania de Mato Grosso, para com efeito fundar, erigir e consolidar uma povoação civilizada, aonde se congregasse todo o maior número de moradores possíveis, compreendidos todos os

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casais de índios castelhanos proximamente desertados para estes domínios portugueses da província de Chiquitos, que fazem o número de 78 indivíduos de ambos os sexos, a que juntando todo o número das pessoas congregadas para o dito fim o total de 161 indivíduos de ambos sexos; cuja povoação, segundo as ordens do dito governador, se denominará de hoje em diante, em obséquio do real nome de Sua Majestade — Vila Maria do Paraguai, esperando-se que de semelhante estabelecimento haja de resultar grande utilidade ao real serviço e comodidade pública: e porque suposto o plano do terreno para a dita vila se acha com alguma disposição para continuar a fundar-sé com regularidade: contudo como alguns dos alinhamentos não estão conformes ao projeto da boa polícia, como deveria ser, determinou ele dito tenente a todos os moradores em nome de S. Excia. que, deixando de fazer mais algum benefício a várias cabanas existentes só nelas assistissem enquanto fabricavam casas em novo arruamento que lhes fica prescrito, e balizado por ele tenente com marcos sólidos de pau de lei; sendo obrigados a não excederem e nem diminuírem a dita construção na altura de 14 palmos de pé direito na frente de todas as casas que se levantarem e 24 palmos de altura no cume: outrossim determinou que precisamente chamaria para regular os ditos pés direitos ao carpinteiro João Martins Dias, e na falta deste outro, algum inteligente no ofício, a fim de conservar sem discrepância, segundo o risco, a largura de 600 palmos de ruas que estão assinadas por ele dito tenente: cujas atualmente demarcadas e abalizadas terão os seguir:1tes nomes, a saber: a primeira contando do norte rua d’Albuquerque, a imediata para o sul rua de Meio, as quais ambas vão desembocar na praça e cada uma delas faz face a mesma do norte e do sul; assim como também as travessas de 30 palmos, que dividem os quartéis das ditas ruas e se denominarão estas travessas, a primeira contando do poente para o nascente, travessa do Pinto, e a que se segue contando para o nascente: Travessa do Rego e no alto da praça da mesma banda do nascente, cuja frente fica riscada entre ruas e travessas, com 360 palmos, cujo número tem também as mais quadras poderão os moradores erigir a sua igreja por ficar a porta principal dela para o poente, como o determinarão os rituais; e o mais terreno desta frente da praça por agora se não ocuparia em casas, deixando-o livre para as do conselho e cadeia, quando se

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deverem fabricar. Cada morada dos ditos povoadores não terá mais do que 100 palmos de comprimento para quintal, que lhes ficam determinados para o centro de cada um dos quartéis. O que tudo assim executado pelo dito tenente de dragões na presença de todos os moradores, mandou a mim Domingos Ferreira da Costa, fiel deste registro, que servindo de escrivão fizesse este termo para constar do referido o qual assinou com as testemunhas seguintes,: Leonardo Soares de Souza, homem de negócio; Ignácio de Almeida Lara; João Marques d’Avila; Ignácio José Pinto, soldado dragão; e Antonio Pereira de Matos; Antonio da Costa Rodrigues Braga; José Francisco; Agostinho Fernandes; Antonio Xavier de Moura; Antonio Teixeira Coelho. E eu, Domingos Ferreira da Costa, fiel deste registro, que o escrevi. — O Tenente de Dragões comandante Antonio Pinto do Rego e Carvalho; Leonardo Soares de Souza; Ignácio de Almeida Lara; João Marques d’Ávila; Ignácio José Pinto; Manoel Gonçalo Ferreira; Antonio Pereira de Matos; José Francisco; Antonio da Costa Rodrigues Braga; Agostinho Fernandes; Antonio Xavier de Moura; Antonio Teixeira Coelho; Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres”.

Mui judicioso o comentário que, a respeito, formula Estevão de Mendonça, em Datas Matogrossenses, 11, págs. 200/201 : “1778 — É fundada à margem esquerda do rio Paraguai a povoação de Vila Maria aos 1603’30” de latitude e 14º34’30” de long. Occ. do Rio de Janeiro. Foi elevada a cidade por lei provincial de 1874 com a denominação de São Luiz de Cáceres, em homenagem a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira de Cáceres, seu fundador.

Como Albuquerque (hoje Corumbá), Casalvasco e Corixa, também a ocupação de Vila Maria teve por fim a segurança e amparo da fronteira, na conformidade da política portuguesa em face do tratado de 1761. E evidente que para semelhante obra diplomática tornava-se indispensável o concurso inteligente de um delegado da coroa na região ocidental do Brasil. Essa delegação recaiu por escolha do severo Pombal, na pessoa de Luiz de Albuquerque, cuja ação em Mato Grosso foi extraordinariamente eficaz.”

D. Aquino Correa, consagrado orador e poeta, cantou, como ninguém, a beleza, a riqueza e a opulência de Mato Grosso,

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Grosso, principalmente nas páginas memoráveis de Terra Natal. Celebrou a flora, a fauna, o homem, com seus feitos e a história da terra. Ninguém o fez com mais inteligência,mais sensibilidade e mais habilidade. A fundação de Vila Maria mereceu do insigne príncipe da Igreja e das letras pátrias, versos admiráveis quais os consignados em:

CACERES

Essa que aí vês, à flor da bruta praia, Vila Maria apelidada outrora, Foi a primeira, que a onda paraguaia Beijou neste áureo tálamo de Flora. Em suas matas virgens, Pluto mora, No tapete aromal da verde praia, E além, na aberta do seu campo afora, O belo gado inúmero se espraia. Hoje o seu nome rememora ao mundo O grande, que a fundou, gênio fecundo, Novo Hércules de feitos opulentos. E o amplo rio, a cismar a sós consigo, Como um fragmento de poema antigo, Cáceres! Cáceres! murmura aos ventos.

FRONTEIRO INDORMIDO

No derradeiro Quartel do Século XVIII, dois jovens portugueses, na sede principal da colônia, se dispõem a prestar ser: viço militar de lei. Irresistível é a vocação miliciana dos Pereira Leite. Aqueles dois moços, João e Antônio, ingressam, decididamente, na Milícia Colonial, sendo Antônio Pereira Leite destacado para a capitania de São Paulo, onde se fixa em definitivo, prestando os mais relevantes serviços à corporação, deixando prole, cuja genealogia foi estudada por Aureliano Leite, Presidente do Instituto Histórico de São Paulo. A João Pereira Leite, coube em sorte, encargo mais difícil, pesado e distante: foi designado para servir na recém-fundada capitania de

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Mato Grosso, na qual se desenrolou toda a sua vida militar, afanosa e gloriosa até culminar no último posto da Hierarquia Miliciana, vindo a reformar-se como Coronel, já após os acontecimentos que determinaram a independência no Brasil.

João Pereira Leite transforma-se, desde logo, em sentinela da fronteira, deslocando-se de Vila Bela à Vila Maria e desta às minas do Cuiabá e vice e versa, num desdobramento rude, eternamente através de agrestes e perigosos caminhos, sujeito às intempéries e às variações da natureza caprichosa nem sempre favorável.

Os fatos e os acontecimentos marcantes da sua vida foram apontados e descritos, com maestria insuperável, pela pena admirável de José de Mesquita, cuja autoridade incontestável se deve ao critério que colocou nas suas pacientes, longas e meditadas pesquisas nos mais diferentes arquivos; na comunicação que lhe fez, durante muitas décadas, o seu venerando e querido sogro, João Carlos Pereira Leite, segundo (II), que foi, deputado Federal em Mato Grosso, Desembargador do Egrégio Tribunal de Justiça do mesmo Estado e Secretário do Governo Lauro Muller em Santa Catarina; e, ainda, pela admiração profunda que sempre manifestou pela família Pereira Leite na qual buscou as esposas de duas núpcias: Ana Jacinta e Laura, que deixou viúva em 22/06/1961.

A genealogia dos Pereira Leite consta às fls. 92 e seguintes da fabulosa revista do Instituto Histórico de Mato Grosso, que Mesquita ilustrou como ninguém, Ano VIII, 1926, n. XV. È roteiro obrigatório para quem pretenda rememorar as figuras marcantes e os fatos assinalados no apogeu da era colonial até os primórdios e floresci mento da era imperial do Brasil.

Escreve José de Mesquita: “A Baroneza de Vila Maria pertencia como vimos, à família Pereira Leite, oriunda de João Pereira Leite, português, filho de José Leite Pereira, nascido na freguesia de S. Maria do Outeiro, Arcebispado de Braga,que veio para o Brasil nos fins do século XVIII, tendo entrado para a milícia como soldado raso a 23 de outubro de 1788, no 1° Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro, galgando todos os postos até Coronel efectivo da mesma milícia.

A 10 de maio de 1796, foi despachado Porta-Bandeira para servi r nesta então Capitania, onde permaneceu até a sua morte a 6 de setembro de 1833, constituindo a sua fé de ofício o mais honroso

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documento que pudesse legar aos seus pósteros. Foi Pereira Leite um dos mais notáveis de seu tempo,

gozando de grande prestígio pessoal junto aos magnatas, sendo da privança do Cap. General João Carlos de Oyenhausen, com quem freqüentemente se carteava e que o distinguia com especial estima.

A sua carreira militar atesta exuberantemente o seu merecimento pessoal e, ao mesmo tempo, a valia em que era tido perante os poderes públicos, num período de incertezas e alternativas, coincidindo o desdobramento de sua atividade na milícia como uma das fases mais importantes de nossa história política.

Assim é que em 1810 em pleno regime colonial o encontramos alferes de Dragões, promovido, a 13 de novembro desse ano, a Capitão de Pedestres da Capitania de Mato Grosso, logo 3 anos após, por patente de 24 de julho de 1813, é promovido a Sargento-mor, sob proposta do Governador João Carlos, é nomeado Comandante do Corpo de Caçadores Reais do Paraguai e, em 1818, promovido a Ten. Cel., graduado da infantaria de Milícias, confirmado por patente de 5 de julho de 1825.

Trouxe-lhe o ano imediato a promoção a Tent. Cel. efetivo, com graduação de Coronel (8 de agosto de 1826), posto em que foi efetivado por patente de 17 de julho de 1828.

Pedindo a sua reforma, alegando ser já avançado em idade e doente, foi lhe concedida por Dec. de 17 de março de 1830, confirmado pela patente de 3 de outubro de 1832, que traz a assinatura dos membros da Regência trina, Lima e Silva, Costa Carvalho e Braulino Muniz.

Fora da carreira das armas não menores nem menos expressivas foram as honras que culminaram em sua pessoa, pois tendo tomado o hábito de cavaleiro da Ordem de S. Bento d’Avis, em 1825, por Dec. Imperial de 17 de dezembro de 1828, que traz a referenda de José Clemente Pereira, o Monarca “tendo em consideração os relevantes serviços do Coronel de Milícias, João Pereira Leite, Comandante do Distrito de Vila Maria, em que tem mostrado singular patriotismo, e querendo por isso distingui-lo e honrá-lo “ o nomeou Comendador dessa Ordem honorífica.

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Como se fossem poucas as distinções com que o vinha cumulando a munificência governamental, nesse mesmo ano de 1828, o primeiro Imperador lhe fez mercê de o tomar no foro de Fidalgo Cavaleiro da Imperial Casa, por alvará de 20 de outubro.

INSIGNIAS DA ORDEM DE SAO BENTO DE AVIZ, conferidas, em 1828, ao Cel. João Pereira Leite, pelo Governo Imperial, e pertencentes à Senhorinha ESTER ESTEVES, sua descendente, residente em Corumbá-MT, em 1975 e falecida em 13 de maio de 1977.

JACOBINA

1827 - 02 de setembro - Novo aspecto do País: é uma planície cortada de montanhas alongadas e paralelas umas às outras. Se ela fosse inundada formaria um arquipélago lírico.

Depois de andarmos três léguas no meio dessas montanhas por estrada plana como um caminho “de ferro e sempre no

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sentido de seu comprimento chegamos à base de uma delas, chamada CRIMINOSA, por ser de difícil acesso, e com caminho tão mau que, ainda a pé, há risco de quebrar as pernas entre grandes penhascos cortantes.

Antes de empreendermos a subida, paramos junto a um córrego chamado Guacurizal, porque passa por uma floresta dessas palmeiras. Matamos um jacaré. Eu não esperava encontrar esse anfíbio perto de um córrego que não tinha quase água. O pouco que corre é salobre, mas muito perto há outro de água doce.

Depois de subirmos ao alto da Criminosa, fizemos ainda légua e meia por declive suave e chegamos à Jacobina, alvo de nossos maiores desejos, não só por causa das comodidades Que esperávamos encontrar e que se prodigalizavam segundo diziam, a todas as classes de viajantes, como também pela sua importância, cada vez mais exaltada neste caminho, à medida que as distâncias se iam encurtando.

O aspecto da fazenda desmentiria essas informações, quanto à segunda parte, comparada com estabelecimentos desse gênero em outras províncias do Brasil, mas a Jacobina era a mais rica fazenda da província e por conseqüência não tínhamos razão de achar que nada fosse exagerado.

Atravessando um grande pátio, fomos parar diante de uma casa de sobrado, à espera, conforme a regra brasileira, que nos viessem convidar para pormos pé em terra. Apressaram-se em nos dirigir esse convite e nos fazer subir ao alpendre do sobrado, onde o tenente-coronel nos recebeu como hóspedes, título bastante de recomendação. Depois de trocarmos algumas palavras de polidez, tomamos assento entre outros comensais, alguns dos quais eram nossos conhecidos de Cuiabá.

O alpendre é uma grande e comprida varanda ao longo da fachada da casa. O lado que deita para o pátio é aberto e simplesmente guarnecido de parapeito. Dois esteios de madeira sustentam nesta parte o telhado. .

Uma mesa de 20 pés de comprido, cercada de bancos pesados e maciços, achava-se no meio do alpendre; ficava, porém, muito espaço ao redor dela.

Aí se pôs a jantar, ao qual não assistiu a família do tenente-coronel.

Gozávamos ao mesmo tempo da vista do céu e do campo.

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Depois da refeição, retirou-se o tenente-coronel, e o vigário, tio da mulher dele, levou-nos para o primeiro pavimento, onde entramos num grande edifício, cujas portas abriam para o terreiro (pátio da frente). Mais de cem pessoas entre escravos e gente forra, na maior parte do sexo feminino, aí se achavam em movimento, e cada qual ocupado com sua tarefa. O vigário apresentou-nos ao chefe dessa grande oficina, que dirigia tudo; tudo vigiava, obras, engenhos, plantações, gado, escravos, agregados, enfim a fazenda inteira, sem esquecer o tenente-coronel e sua família. Esse chefe, atlético no corpo e no espírito, era a sogra do tenente-coronel e irmã do nosso vigário, matrona de cinco pés e oito polegadas e de corpo proporcionado à altura. Sua cara de queixo tríplice parecia confundir-se com o largo pescoço, cercados de muitas voltas de colares de contas grossas de ouro. Sua voz de estentor dominava quase incessantemente todos os ruídos, não direi o vozear dos que trabalhavam, pois todos estavam em silêncio ou falavam baixinho, mas os estrondos das máquinas, da água que as movia, das grandes caldeiras onde fervia a garapa, etc. O que havia, porém, de notável, era essa mulher, tão corpulenta e que mostrava ter cinqüenta anos, andava e mexia-se com a agilidade de uma garrida mocetona. Sua fisionomia, seu olhar e boca exprimiam simultaneamente a energia, a franqueza e a bondade. Todos os escravos e agregados a estimavam tanto quanto a temiam, sendo com efeito a mãe de toda a redondeza, principalmente pelos cuidados com que tratava os enfermos e pelos socorros que com pródiga mão distribuía aos necessitados.

“Não quero que meu genro se ocupe da lavoura, disse-nos D. Ana; isto é bom para mim que nasci no meio dos trabalhos do campo”. E com efeito João Pereira Leite, cujo porte baixo e ar fanadinho, apesar de ser assaz robusto, contrastavam com os de sua sogra, tão devotada à sua felicidade, não pensava senão em fazer figura e viver à fidalga de suas rendas.

E saudoso tempo, esse bom tempo colonial (saudoso para alguns retrógrados, felizmente já raros e que desapareceram em brevE:) , em que os portugueses da Europa achavam ricas herdeiras com quem casarem só pelo fato de serem brancos. O tal nosso tenente-coronel não tinha só esta qual idade: quando chegara a província, vindo pelo Amazonas, Tapajós, etc., era tenente de 1ª linha e, como se sabe, na antiga monarquia, esse posto não se dava a todos.

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A Jacobina era a mais rica fazenda da província, com território de quatro léguas em quadra, das quais dois quartos, quando muito, cultivados: o resto, de florestas virgens, lezírias e pastarias. A parte oriental é montanhosa: um ribeirão piscoso a corta de E. para O. e vai lançar-se no Paraguai, que dista umas quatro léguas. A fazenda é ainda abastecida de águas por diversos córregos que vão ter no ribeirão ou ao Paraguai.

Duzentos escravos de trabalho dos dois sexos e sessenta crianças formavam toda a escravatura desse estabelecimento; mas havia quase igual número de gente forra entre agregados, crioulos, mulatos e índios, que trabalhavam mais ou menos para si, ou pagos pelo proprietário.

Além da Jacobina, possuía João Pereira Leite ainda dezoito sesmarias, das quais a menor de três léguas em quadra, mas incultas e só em seis ou sete delas, chamadas fazendas, havia um rancho miserável, o feitor com sua família, alguns camaradas e gados.

A posse de tantas sesmarias fazia com que o tenente-coronel dissesse que tinha tantas terras quantas o rei de Portugal. Vê-se que ele pouco sabia de geografia.

Gado imenso cobria as ricas pastagens da Jacobina e outras fazendas. O dono avaliava seu número em 60.000 reses: a maior parte, porém, tornara-se selvática.

Eram todos da terra, os cavalos e uns duzentos a trezentos mais ou menos. Vi cinco jumentinhos de raça miúda, que as fazendas possuem para a produção das bestas, muitos cabritos, e alguns carneiros importados de pouco e que não serviam senão para dar um bocado de lã e para regaló do tenente-coronel sozinho, pois sua família e mais gente, como aliás todos os habitantes de Cuiabá e há pouco o geral dos brasileiros, tinham horror ao leite e carne de carneiro.

Uma tropa de um cento de burros de carga era quanto bastava para transportar os produtos da fazenda, ou para Cuiabá, Poconé, Diamantino ou Vila Bela de Mato Grosso. Grande parte era exportada pelas tropas que vinham de fora buscá-los na fazenda.

A província possui o mais belo caminho do mundo, o Paraguai: poderia ter excelentes estradas de rodagem, mas ali estão ainda no século da barbaria.

O principal gênero de cultura era o da cana de açúcar, da

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qual se extraía também aguardente. Seguiam depois a mandioca, feijão, milho, etc., e o café para o consumo somente local. O cacau dá maravilhosamente, mas só se viam raros pés, sendo o pouco que se consumia na província proveniente do Pará e Rio de Janeiro.

Eram os meios de transporte tão pouco proporcionados à produção da Jacobina, que no ano anterior D. Ana mandara seis grandes canoas cheias de víveres à Nova Coimbra no Paraguai para sustento gratuito da guarnição. “Não sabia que destino dar aos mantimentos, disse-nos ela, e preferi a perdê-los presentear o governo”. E entretanto a Jacobina demora duas léguas do Paraguai, o rio mais navegável do mundo! Disse-nos o vigário que a Criminosa havia uma abundante mina de cobre, e mostrou-nos uma barra muito pura desse metal tirado no lugar.

Estão os campos cheios de salitre. A Habitação ficava agradavelmente colocada. Além da

morada de João Pereira leite e das oficinas adjacentes, à direita, trinta ou quarenta casas cobertas de telhas cercavam um vasto pátio retangular, mais para o comprido. No meio erguia-se uma igrejinha com o seu campanário. Grandes armazéns, quatro engenhos de açúcar, dois tocados a água e dois por bois, uma olaria, uma máquina de socar milho, ranchos, tudo isso dava ao estabelecimento as aparências de uma aldeia.

Pelo meio da habitação passa um córrego piscoso; jardins e pomares a embelezam, vasto açude perto, belas matas e montanhas ao longe tornam a paisagem sobremaneira pitoresca.

1827 — 5 de setembro. — “As 11 horas da noite partimos com efeito para Vila Maria. Cheios de obséquios da parte do tenente-coronel e de sua sogra, levamos uma lembrança repassada de gratidão. Para a viagem, mandou D. Ana carregar nossos animais de mantimentos de excelentes qualidades.”

Hércules Florence afeiçoou-se de tal sorte à família Pereira leite que poucos dias após, ou seja no dia 22 ainda de setembro de 1827 retornou a Jacobina com o fim especial de participar do batizado de Leonardo, sétimo filho do coronel com apenas quarenta e cinco dias de nascido, eis viera a luz do mundo no passado 7 de agosto.

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ORDEM MILITAR DE AVIS

Teve os seus primeiros estatutos datados de Coimbra em 13 de agosto de 1162, e é uma das mais antigas ordens honoríficas portuguesas. Sempre destinada a galardoar feitos militares, foi criada com o escopo de premiar os que valorosamente haviam pugnado pela defesa do solo pátrio e em especial pela libertação da capital do Reino. Transferida a sua sede para Évora, fixou-se depois em Avis.

Manteve-se durante mais de sete séculos a tradição deixada pelo primeiro rei de Portugal, e se a evolução dos costumes lhe fez perder o caráter primitivo, que se não coadunava com o espírito da moderna civilização, conserva entretanto a Ordem de S. Bento de Avis a sua feição essencial de constituir um honroso distintivo para os oficiais militares que souberam distinguir-se por brilhantes feitos de armas ou, ao menos, pela constante e nunca desmentida dedicação pelo serviço e pela disciplina. ‘

Reformada pelo alvará de 13 de agosto de 1894, passou a denominar-se Real Ordem Militar de S. Bento de Avis. Extinta em 1910, foi a ordem de Avis restabelecida pelo Decreto n. 3.384, de 25 de setembro de 1917, passando a intitular-se Ordem Militar de Avis. No preâmbulo do decreto são enaltecidos os prestigiosos antecedentes dessa Ordem, uma das que mais diretamente se inspiravam “Nas tradições e grandezas do passado nacional li. O Decreto n. 5.030, de 01 de dezembro de 1918, remodelou a Ordem de Avis.

O Coronel de Milícia João Pereira leite mereceu do Governo Imperial o reconhecimento do seu valor militar em Vila Maria ao receber a sua inscrição como comendador da Ordem de Avis, através do honroso título.

O ENGENHO DA ESTRADA REAL

VIRGILIO CORREA FILHO, na sua valiosa contribuição para a História de Mato Grosso, intitulada “Pantanais Matogrossenses” , págs. 66 a 70, estuda com muita precisão a vida e o desenvolvimento da Jacobina. Diz o abalizado Historiador na sua admirável monografia:

“Entre Cuiabá e Vila-Maria (Cáceres, atual), não seria

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menos intensa a infiltração forasteira, acaudilhada por afoitos pioneiros.

Dos portugueses André Alves da Cunha, José Gomes da Silva, Leonardo Soares de Souza, João Pereira Leite, derivaria fecunda prole, de cujos esforços resultou a fundação de afamados estabelecimentos agro-pastoris pelo Vale do Paraguai.

Do primeiro, (140) era filho, além de outros, o padre Manuel Alves da Cunha, a cujo respeito Hercules Florence, (141) recolheu a fama de ser um dos homens mais instruídos da província, da qual fora presidente, eleito pelo governo provisório, por ocasião da Independência.

Apesar de alçado pelos conterrâneos a postos de relevo, jamais deixou totalmente a sua propriedade rural, no caminho de Poconé a Cáceres.

Leonardo acampa em Jacobina, onde funda sítio, que teve sua época de nomeada, por mais de meio século. Casado com Ana Maria, e portanto genro de José Gomes da Silva, a sua filha única, Maria Josefa de Jesus, recebeu por marido o sargento-mar João Pereira Leite, natural de Braga.

Os seus afazeres militares não lhe permitiam permanência ininterrupta em Jacobina, que Ana Maria se orgulhava de dirigir, conforme os ensinamentos do fundador, que a deixou viúva.

“Não quero que meu genro se ocupe da lavoura, teria confidenciado a Florence, isto é bom para mim, que nasci no meio dos trabalhos do campo”.

Na opinião do sagaz viajante, era a mais rica fazenda da província, tanto em área como em produção.

Pelos seus campos sem fim, avaliava-se que pastassem mais de 60.000 reses.

Para o custeio de tão numeroso rebanho, Jacobina dispunha, em 1825, de duzentos escravos dos dois sexos e sessenta crianças, cuja energia se aplicava igualmente nas roças, que abrangiam canaviais, plantações de mandioca, feijão, cereais e café, para abastecimento dos núcleos circunjacentes.

Por vezes, sobejava de tal maneira a colheita que se fazia mister enviar a Coimbra, embora sem vantagem pecuniária, como registrou Florence ter ocorrido no ano anterior, quando Ana Maria despachara seis grandes canoas acoguladas de víveres para o Forte, destinados ao sustento gratuito da guarnição.

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“Não sabia que destino dar aos mantimentos”, ouviu-lhe a declaração o forasteiro espantado, e “preferi a perdê-las presentear o governo”.

Era Jacobina por muitos aspectos o modelo das fazendas dos pantanais, embora boa porção das suas terras da serra de que tomou o nome. (143).

ECONOMIA LATIFUNDIARIA

O regime de trabalho adotado em Jacobina, como nas demais fazendas, que lhe imitaram o exemplo, resultava das próprias condições geográficas e sociais causadas pela imensidão territorial de escassa densidade demográfica.

Em contraste com as sesmarias da região serrana, consideradas de lavoura, onde não costumavam ultrapassar de uma légua quadrada, e comumente abrangiam apenas área compreendida entre 1.000 a 3.000 hectares, pela estimativa moderna, a vastidão dos pantanais, com grande parte submersa durante os meses das cheias, exigia correspondente zona de terreno inacessível às inundações, que abrigasse o gado egresso das baixadas.

Generalizou-se como unidade territorial nessas paragens a sesmaria de uma légua de frente por três de fundo, ou equivalente a 13.068 hectares.

Raramente, porém, cada proprietário rural contentar-se-ia com uma única, indício de insignificantes haveres.

Adquirida, mediante concessão do governador, a primeira sesmaria que servisse de núcleo, em torno dela seriam requeridas as terras contíguas, até que perfizessem conjunto grandioso como o de Jacobina, cujo proprietário se vangloriava de possuir “tantas terras quantas o rei de Portugal”. (144).

Ademais, os limites mencionados abrangiam habitualmente superfície muitas vezes maior que a devida quando não se processasse a medição de acordo com os dispositivos legais.

A facilidade na aquisição por título gratuito de Glebas Imensas cujas divisas os vizinhos longínquos respeitavam, por não lhes minguar terreno bruto, à disposição de quem o pretendesse fecundar pelo trabalho, o transbordamento periódico dos rios, que tornavam por alguns meses inabitável faixa larga das várzeas submersas, explicam mais do que a ambição de domínio ilimitado, a formação de latifúndios, afeiçoada às peculiaridades regionais.

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Equivaliam, sem dúvida, a prova de força e poderio dos seus mantenedores.

No ermo, vigiados pelo selvícola bravio, (145) não havia lugar para os fracos e os solitários, ainda que destemidos.

Multíplices perigos abreviavam-lhes a existência, cuja conservação exigia a composição de forças coordenadas pela solidariedade humana.

Somente aos condutores de homens que evidenciassem capacidade incontrastável de agremiá-los e dirigir, seria dado povoar o deserto, com o centro de interesse assinalado pelo seu próprio estabelecimento agropastoril.

Deviam possuir e exercitar altas qualidades de comando, cuja carência lhes seria fatal.

Daí se causou a espontânea formação senhoril, que repetia em um recanto do Brasil imperial aspectos anacrônicos de feudalismo.

Assim, Jacobina, bem que relativamente mais próxima da Capital do que outra qualquer propriedade semelhante, diligenciava enquadrar-se no regime de economia confinada, imposta pelas circunstâncias de núcleo povoado r, cujo governo particular por vezes dispensava, quando não rechaçava, a assistência oficial.

Os paióis, acogulados de produtos agrícolas, atendiam as solicitações dos consumidores, não raro longínquos.

As moendas de cana, torneadas de jatobá, ou análoga madeira de Lei, pelos seus carapinas, competiam com a maquinaria simples, em que se enformava a rapadura, o açúcar de barro, ou alambicava a aguardente:

O algodão arbóreo, rim-de-boi, Gossypium brasiliensis, fornecia matéria-prima aos teares manobrados por hábeis escravos, que teciam os panos destinados ao uso geral.

Seleiros e forjadores cuidavam dos seus ofícios não raro acumulados em um só operador, como igualmente alfaiates e carpinteiros.

Era um povoado que dispensava artigos de importação, além do mínimo indispensável, constituído principalmente por sal, ferramentas, bebidas e tecidos finos adquiridos com diminuta parcela proveniente da exportação de gêneros alimentícios e de gado em pé.

O saldo anual concorria para acrescer o prestígio do

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proprietário, que podia ufanar-se de governar o seu domínio à maneira dos barões feudais, com a mesma supremacia na vizinhança e pompas em cerimônias comprobatórias da sua opulência.

As festanças do Espírito-Santo, em particular, maravilhavam a assistência, pelo esplendor, comparável ao de Vila Maria, quando não lhe levassem vantagem.

Por vários dias, alternavam-se os atos sagrados com os profanos, “havendo missa cantada, corridas de cavalos, touros, as quais concorria grande multidão de povo”, consoante relembrou J. de Mesquita, ao desdobrar a genealogia de sua gente. ( 147).

Em outras oportunidades estadeava-se-lhe a influência política, rompente de episódios análogos ao da proteção concedida ao Dr. Sabino Vieira (148) ou da defesa do distrito contra o contágio da varíola, que se alastrou pela capital e circunjacências, após o regresso das forças expedicionárias de Corumbá, onde adquiriram o germe morboso. (149).

De Jacobina irradiaria a gente aventureira, que tomou conta dos pantanais, entre o Taquari, o Paraguai e o Negro, onde se afazendou (150) o genro de João Pereira Leite, de nome Joaquim José Gomes da Silva” “Menino Diabo”, em moço, e barão de Vila Maria, por decreto de 21 de junho de 1862.

Ao longe, o neto de André Alves, José Alves Ribeiro, ou Juca da Costa, marido da viúva de João Pereira Leite, Maria Josefa de Jesus, por evitar malignas conseqüências da sua participação na Rusga de 1834, preferiu exilar-se voluntariamente no Vale do Taboco, onde se apossou de área, cuja legitimação abrangeria 244.023 hectares.

Na mesma região estabelecer-se-iam os descendentes de Estêvão Alves Correa, lavrador em Quitanda, nas imediações de Rosário-Oeste, aos quais já não agradaria a labuta naqueles rincões sobranceiros às enchentes, preteridos pelos pantanais do Aquidauana e Miranda.

Resolução igual encaminhou para as margens do São Lourenço, no trecho em que lhe foi o título arrebatado pelo Rio Cuiabá, (151) e do Piquiri, o Major Metelo, possivelmente desviado de anteriores atividades mercantis.

A estrada boiadeira pela qual enviava o seu gado aos compradores Uberabenses estendia-se para Leste, sem lhe transpor os limites da propriedade, até alcançar as escarpas do planalto,

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e prosseguia em rumo do Taboado na travessia do Paranaíba.

Despejavam-se de Cuiabá, como de Vi Ia Bela, onde se fixou o primeiro Estêvão Alves Correa, oriundo de Portugal, os indivíduos destemidos, a quem os pantanais proporcionavam ensejo de aplicação eficaz de suas energias.

André A. da Cunha, antes de falecer a 2 de agosto de 1973, casou duas de suas filhas com os portugueses Manuel Antônio Nunes da Cunha e Francisco da Costa Ribeiro, cujos descendentes se afazendaram nos pantanais entre os rios Paraguai e Cuiabá.

Hércules Florence nasceu em Nice, a 29 de fevereiro de 1804. Achava-se no Rio de Janeiro, quando o Cônsul Langsdorff o convidou para acompanhar a comissão que organizara, por conta do governo russo, para explorar os sertões brasileiros. Seguiu as pegadas bandeirantes até Cuiabá, conheceu Cáceres e continuou pelo Rio Arinos e Tapajós, em rumo de Belém. Desenhista hábil e escritor consciencioso, a narrativa do que observou meticulosamente mereceu tradução do Visconde de Taunay, que a estampou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o titulo de: Esboço da viagem feita pelo Sr. de Langsdorff no interior do Brasil, desde setembro de 1825 até março de 1829”. Em 1941, o Dr. Guilherme e o professor Paulo Florence, dignos filhos do artista, promoveram reedição da sua obra, que saiu a lume com o título de Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas, com i lustrações do próprio autor, proporcionadas pelos desenhos em que ia esboçando aspectos interessantes do caminho percorrido. (142) H. Florence — Viagem.

Registrou Ricardo Franco em seu Diário de Reconhecimento do Paraguai: “Em 16 de outubro de 1786, saímos de Jacobina, roça do dito Leonardo, légua e meia andamos de leste e outra légua e meia a quase norte, atravessando por formados Vales a dita serra até sairmos por uma bocaina no fim dela; tem esta serra seis léguas e é altíssima, é a mesma que acompanhando o Paraguai desde as suas cabeceiras pelo lado do Nascente vai terminar no morro Escalvado com mais de 60 léguas de extensão de Norte a Sul, formando uma formosa Cordilheira denominada serras do Paraguai. Enfim, tendo cortado esta serrania e saído no campo com mais légua

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e meia e cinco do caminho total fomos pousar em Vila Maria”.

É a comparação que H. Florence ouviu e registrou. Decorrido mais de meio século, coube a vez a F.A. Pimenta Bueno, a quem o governo imperial incumbiu de missões técnicas em Mato Grosso, de renovar informações estonteantes acerca de Jacobina em cuja direção e posse então se achava o segundo filho de João Pereira Leite.

Em sua Memória Justificativa consignaria o engenheiro militar, por volta de 1880: “Dentre os criadores da província, os mais importantes são: 1º o Sr. João Carlos Pereira Leite, dono de uma área de 240 léguas quadradas e 600.000 cabeças de gado, na maior parte alçado, por falta de cavalos”. O 2º é o Sr. Major Metelo, cuja fazenda se estende das margens do São Lourenço até o Piquiri e possui também alguns milhares de cabeças de gado.

Somente no crepúsculo do Império alcançou-se a pacificação definitiva dos bororos, que tinham recentemente destruído a residência do fazendeiro Figueiredo, nas imediações do Ichuzinho e exterminado a sua família, enquanto ele mourejava na roça com os trabalhadores. .

As peças metálicas só foram introduzi das, quando em meio século conforme declarou A. Leveger, Presidente da Província em seu relatório de 13 de janeiro de 1852: “Ha pouco tempo que apenas dois ou três engenhos principiaram a fazer uso de moendas de ferro”.

José de Mesquita, em Nobiliário Matogrossense, menciona a descendência de André Alves da Cunha, José Gomes da Silva, Leonardo Soares de Souza, João Pereira Leite, e proporciona valiosas informações, de que se utiliza copiosamente este resumo.

O Dr. Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, derrotado na revolução baiana que chefiou, foi condenado por sentença de 2 de junho de 1838, à prisão, comutada por degredo no Forte do Príncipe da Beira. A caminho de Vila Bela, adoeceu na vizinhança de Jacobina, onde encontrou cordial hospitalidade e proteção. Oculto por algum tempo, é informação registrada nas datas Matogrossenses de Estêvão de Mendonça, as autoridades não querendo, ou mesmo não podendo abrir luta com o major João Carlos, de bom ou mau grado

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fizeram vista grossa sobre o caso e em Jacobina continuou a permanecer o Dr. Sabino, exercendo com muita competência a sua profissão de médico, constantemente consultado por enfermos de toda a província”.

Datas — 1º vol., pág. 293. (149) — Como é sabido, a retomada de Corumbá, a 13 de

junho de 1867, enlutou—se com o contágio de varíola que as forças expedicionárias vitoriosas levaram de regresso, para Cuiabá, donde irradiou para circunvizinhança. Ciente da aproximação da epidemia horrível, João Carlos barrou a passagem na estrada, pela qual não mais transitou viajante algum de Cuiabá. E assim livra Cáceres da terrível calamidade.

(150) — A Fazenda Firme legitimidada a 27 de junho de 1899 acusou a área de 176.853 hectares.

(151) — Ver, na Revista Brasileira de Geografia, ano IV n. I — 1942, o artigo: Cuiabá, afluente do Paraguai.

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GALERIA DE ARTE

Pendiam das coloniais paredes do antigo solar de Jacobina, à

margem da estrada que ligava as minas do Cuiabá a Vila Bela, sede da Capitania de Mato Grosso, artísticas telas, retratando as figuras dos mais eminentes moradores daquele engenho, que, ao seu tempo, foi o mais importante estabelecimento rural dos lindes fronteiriços.

Infelizmente, a história não registrou o nome dos seus autores, porquanto as telas não foram assinadas. Leonardo Soares de Souza, com ares de Sr. feudal, aparece com as vestes da Ordem de Santiago, da qual era Comendador, num fundo escuro, tão a gosto da época, quase sem destaque para a sua efígie. O Major João Carlos Pereira Leite, neto do primeiro, pela linhagem materna, aparece já grisalho, sentado numa poltrona, braço direito apoiado sobre a mesa, tendo na mão carta endereçada à sua genitora Maria Josefa de Jesus Leite. Pedro Nolasco Pereira Leite aparece na terceira tela, num inStante de sua mocidade esplendorosa, prestes a conquistar a láurea de primeiro matogrossense a doutorar-se em medicina pela faculdade do Rio de Janeiro. João Pereira Leite, Cel. de Milícias, Comandante do Destacamento Militar de Vila Maria, por dilatados anos, aparece imponente na quarta tela, com o seu uniforme de gala, ostentando a condecoração da Ordem de Avis. É bem uma figura da era napoleônica e foi a única das quatro telas que conseguiu vencer a ação implacável das travessuras infantis e dos tempos.

Coube-me em sorte encontrar um pintor de rara sensibilidade que não somente retocou a tela de João Pereira Leite como fez novas para os outros três antepassados mencionados, e é bom que eu registre para a história o seu nome e o seu currículo. Trata-se de VICTOR HUGO ZAMORA, filho do diplomata equatoriano Ovidio Zamora e da destacada dama da sociedade Peruana Maura Bradwait; nasceu em 24 de setembro de 1940, teve seus primeiros estudos na República do Equador donde, depois de cursar dois anos de Seminário, viajou para a República da Argentina onde se graduou em Belas Artes e Jornalismo.

Após sua graduação, dirigiu-se a vários paises latinos americanos recopilando dados e temas de informações folclóricas, tanto para suas pinturas como para seus artigos relacionados

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LEONARDO SOARES DE SOUZA Co-fundador de Vila Maria, Atual Cáceres.

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JOÃO PEREIRA LEITE

Coronel de Milícias da Ordem de Cristo e de Avis

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PEDRO NOLASCO PEREIRA LEITE

Doutor em medicina

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JOÃO CARLOS PEREIRA LEITE

Grande propuguinador do desenvolvimento de Vila Maria

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com arte, e radicou-se na república da Venezuela, onde permaneceu pelo tempo de dez anos. Após apresentar várias exposições em Caracas, saiu pela segunda vez a visitar todos os paises sul-americanos, aproveitando nesta ocasião para apresentar exposições de arte nos paises de sua predileção, entre os quais está o Brasil.

Entre as destacadas personalidades que foram retratadas pelo artista estão o ex-Presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, o nosso atual Presidente Ernesto Geisel, o mundialmente conhecido escritor brasileiro Jorge Amado e outras personalidades de destaque internacional.

Após apresentar várias exposições em distintas cidades do Brasil, fascinado pelas belezas Matogrossenses que são fontes de inspiração para suas obras, resolveu fixar residência na terra de Rondon.

Vitor Hugo sentiu-se feliz quando deu os últimos retoques na tela relativa ao meu trisavô João Pereira Leite. Eu o realizei conforme desejei, disse-me o artista, que fez reprodução idêntica da tela do meu tio bisavô Pedro Nolasco Pereira Leite, com base na fotografia da tela primitiva tirada, faz alguns anos, pelo meu mano José Venâncio. O Major João Carlos Pereira Leite e Leonardo Soares de Souza, que subscreveu a ata de fundação de Cáceres, foram reproduzidos de modo diferente do original, pois somente os seus bustos apareceram nas novas telas. Também a tia bisavó Maria da Glória Pereira Leite, mais tarde Baronesa de Vila Maria, mereceu bela reprodução de Victor Hugo, de uma das fotos que me foram ofertadas pela gentileza do parente e amigo, Nheco Gomes da Silva, abastado fazendeiro no pantanal corumbaense.

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Luís-Philippe Pereira Leite e

Vitor Hugo Zamorra

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Pedro Nolasco Pereira Leite

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Baronesa de Vila Maria

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Major João Carlos Pereira Leite

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Cel. João Pereira Leite

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Leonardo Soares de Souza

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BARONESA DE VILA MARIA

O BARAO DE VILA MARIA

Escrevendo sobre os primórdios de Vila Maria, não é possível esquecer o segundo titular matogrossense na ordem cronológica da criação dos respectivos baronatos. Realmente, por decreto de 21 de junho de 1862, o governo imperial houve por bem outorgar a Joaquim Gomes da Silva, fazendeiro e lavrador em Albuquerque, província de Mato Grosso, o título nobiliárquico de Barão de Vila Maria.

José de Mesquita, que é o roteiro e mestre nosso na elaboração deste modesto trabalho, acentua, de par com o Arquivo Nobiliárquico brasileiro, de Vasconcelos, que o brasão d’armas do Barão de Vila Maria é o mais característico e original pela feição regionalista que o reveste e assim descrito na mencionada obra, à pág. 540:

“Em campo de ouro, um índio ao natural cortando a cana de açúcar com podão de azul, em um canavial de verde. Campanha azul carregada de piraputanga (peixe) de prata, com barbatanas e cauda de goles. Divisa: “Forum extendere factis hoc virtutis opus”.

Comenta, judiciosamente, José de Mesquita que, no armorial da nobreza brasileira certo nem sempre se ostentaria com tanto acerto e expressão o simbolismo vivo do trabalho agrícola casado a imagens da terra-mãe, pois o Barão de Vila Maria não fez daquelas figuras insculpidas no seu brasão meras idealizações destinadas a atrair a atenção e sim demonstrou, com rude sinceridade, que fora no amanho do solo, na faina nobilitante do trabalho que se solidificara a sua fortuna e se alicerçara o seu prestígio.

Prossegue José de Mesquita na sua monumental genealogia, que filho legitimado do P. Joaquim José Gomes da Silva, (24) Carta de confirmação de legitimação do extinto Tribunal do Desembargo do Paço, de janeiro de 1823, personalidade de destaque nos dias agitados que precederam e se seguiram à Rusga, teve o depois Barão de Vila Maria por mãe Rosa Thereza Inocência do Nascimento, e uma única irmã de nome Augusta Amália Carolina do Nascimento.

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Perdendo o pai ainda jovem, em 1839, entrou com sua irmã,

na posse do pequeno espólio constituído de alguns escravos, móveis, livros e 305$ de “diárias de ser Deputado provincial” que a Fazenda ficara devendo ao seu pai.

É o que consta do pequeno inventário mandado proceder em 12 de Março desse ano, pelo juiz de órfãos e ausentes, Joaquim Mendes Malheiros, no qual figura como Curador aos menores Fernando de Barros Figueiredo. Nesse mesmo ano Gomes requeria no juízo eclesiástico dispensa de impedimentos a fim de casar com sua prima pela parte materna, Benedicta Justina Fausta de Campos, de quem logo se enviuvava, pois a mesma faleceu, a 6 de agosto de 1846, em Poconé, deixando um filho de 5 anos de nome Firmino.

Entregou-se o jovem Gomes à vida de negócios, e viajando constantemente para Cáceres a serviço de sua profissão, tinha ocasião de fazer demoradas escalas no famoso sítio da Jacobina, então de propriedade de sua prima, Dª Maria Josepha de Jesus Leite, viúva do Coronel João Pereira Leite e filhado Coronel de milícias Leonardo Soares de Souza, que fora casado com D. Anna Maria da Silva, irmã do P. Gomes.

Com pouco tempo as relações de parentesco e as continuadas paradas no sítio estabeleceram uma recíproca inclinação entre o moço e sua prima em segundo grau, Maria da Glória Pereira Leite, ainda muito criança nesse tempo, pois nascida a 22 de abri I de 1831, teria, então por volta de 1844 ou 45, pouco mais de 13 anos.

O romance desse enlace, que a tradição oral conserva em ambos os ramos da família, valeria contado numa forma graciosa de novela daqueles tempos ainda aromados de um perfume das eras medievais da cavalaria.A família Pereira Leite,de nobre linhagem, cujos membros tinham honras de fidalgos da casa imperial, não sorria a perspectiva daquela união e daí a oposição, velada de começo, e, após tenaz e franca, oposta pela mãe e irmãos de Maria da Glória, aos desejos do “Minino Diabo” como, pelas suas aventuras, era chamado Joaquim José Gomes da. Silva.

Tomou a impugnação caráter tão sério ante a insistência do pertinaz enamorado, que não tardou se lhe opusessem os parentes de Maria da Glória a passagem pelo terreiro da Jacobina..

O amor, porém, vence tudo e contornadas as dificuldades

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por um truque engenhoso que aos jovens se deparou como única saída ao caso, a 29 de janeiro de 1847 se aliavam pelos laços conjugais nesta cidade (25) “Em a mesma data requeriam os nubentes Joaquim José Gomes da Silva, viúvo, e Maria da Glória Pereira Leite, filha do finado Coronel Pereira Leite dispensa do impedimento por parentesco afim de se casarem.

Gomes, dotado de extraordinária atividade, daqui seguiu para a zona sul onde, com esforço e inteligência fora do comum, fundou a sua fazenda do “Firme”, tradicional propriedade que, dominando a solidão dos pantanais, vale ainda hoje em poder dos seus descendentes o mais nobre atestado de sua capacidade e tino administrativo. Acerca desta fazenda, fundada em 1847, convido o leitor a ler o interessante estudo “A Pecuária nos pântanos de Mato Grosso”, da lavra do Dr. Barros Maciel, que contém ligeiro histórico do “Firme” e do papel que representou o seu fundador na fase da guerra contra o Paraguai, vendo os seus campos tomados pelo invasor a fim de suprir-se de gado e donde “arrostando todos os obstáculos naturais, vencendo pântanos, vadeando rios, e desafiando imensos sertões e a inclemência do tempo, foi levar à Corte, em 1865, a notícia da invasão de Mato Grosso, pelas tropas de Solano Lopes”.

Faleceu o Barão de Vila Maria em Montevidéu, a bordo do transporte “Madeira”, que o conduzia de regresso a Mato Grosso, a 4 de abril de 1876.

Era político militante, filiado ao partido Conservador, e ocupou vários cargos de destaque na administração provincial.

Maria da Glória Pereira Leite, Baronesa de Vila Maria, nascida na Jacobina do casal João Pereira Leite e Maria Josepha de Jesus Leite, veio a falecer na cidade de Corumbá em 22/09/1903 e os seus restos mortais se encontram no cemitério local.

A Sra. Maria Mercedes Gomes da Silva Figueiredo teve a nímia gentileza de me ofertar .foto de bela imagem da N. S. das Dores, que pertenceu à Baronesa de Vila Maria, acompanhada dos seguintes dizeres: “Esta bela pintura a óleo de Nossa Senhora das Dores pertenceu à Baronesa de Vila Maria, foi-lhe doada por Frei Mariano, da ordem dos Franciscanos e um dos heróis da guerra do Paraguai. Ele era venerado numa das salas da Fazenda Firme, a primeira estância da imensa zona pantaneira a qual pertencia ao Barão de Vila Maria, esposo da já referida Baronesa.

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Após o falecimento de ambos ficou a estância para o filho do casal, Joaquim Eugênio Gomes da Silva (Nheco) e sua esposa, Da. Maria das Mercês Gomes da Silva.

Este quadro ou melhor tela os acompanhou por toda vida, somente após o falecimento da minha avó, nora da Baronesa, ele me foi entregue nos seguintes termos: Sua avó recomendou que após a sua morte ele deveria ser seu. Fiquei bastante emocionada e o recebi com toda devoção e carinho. Foi-me grande honra ser distinguida com esta imemorável relíquia dos meus antepassados, pois sou bisneta da Baronesa de Vila Maria. Sou Corumbaense, resido em Corumbá, casei-me com um rapaz Cuiabano, Armindo Pinto de Figueiredo (médico).

Ass. MARIA MERCEDES GOMES DA SILVA FIGUEIREDO.

O Nheco Gomes da Silva, conceituado criador da Nhecolândia, também descendente dos Barões de Vila Maria, também ofereceu-nos interessantes subsídios, afirmando:

“O Barão de Vila Maria (José Joaquim Gomes da Silva)

descendia dos Pereira Leite, de Cáceres. Era bastardo, pois seu pai era o padre Gomes, irmão de D. Ana Maria que por sua vez, era filha de José Gomes da Silva.

Os Pereira Leite não apoiavam o namoro da filha de Nhanhá da Jacobina, Maria da Glória. com o primo pobre José Joaquim, que mais tarde vêm ser os Barões de Vila Maria.

O Barão de Vila Maria tinha o apelido de Menino Diabo por ter urinado no cálice do vinho do padre, quando sacristão, e bebido o vinho.

Contava vovó Xêxê, que a Maria da Glória, de combinação com José Joaquim, fazendo corda dos lençóis, desceu o sobrado. galgou a garupa do matungo que o noivo cavalgava e sumiram na escuridão.

Foi um escândalo. O Major João Carlos, homem austero, caudilho da época,

com pompa de nobreza, não admitia tamanha ofensa para a família. Mandou uma escolta para capturar a irmã e liquidar com o

atrevido. Porém quando esta os alcançou em Poconé, já encontrou os

noivos casados. José Joaquim Gomes da Silva se estabeleceu em Corumbá.

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Com bastante trabalho e tino comercial, logo se faz dono de grandes propriedades rurais.

Na época da guerra do Paraguai ele possuía as Fazendas Palmeiras, Firme, Barranco Branco e Piraputanga, tendo sido o primeiro concessionário das minas do Urucum.

Com a invasão dos paraguaios, comandados por Vicente Barrios, Corumbá foi tomada, saqueada e os que não conseguiram sair, foram presos e levados para Assunção.

O Barão de Vila Maria é quem, após uma viagem de 3 a 4 meses, levou à corte a notícia que a província havia sido ocupada.

A capa duma Revista da Semana, da época, estampava o Barão montado numa égua, levando a triste notícia da invasão Paraguaia.

Suas fazendas foram ocupadas. Ele perdeu tudo com a guerra. Da fazenda Firme um vapor paraguaio chamado Japorá

transportou todo o gado que pôde para o Paraguai. Dos filhos do Barão de Vila Maria sobressaiu o Joaquim

Eugênio Gomes da Silva, que tinha o apelido de Nheco. Este é o meu avô paterno.

Com a guerra do Paraguai o Barão perdeu tudo e morreu muito moço.

O Nheco, meu avô. é que desbravou novamente, fundou e povoou a Nhecolândia.

Dos filhos do Nheco o que mais se salientou por espírito público, filantropismo, patriotismo, coragem física e cívica, foi o meu pai, Paulino Gomes da Silva.

CASO DO NANICO

Nanico era o apelido de um capataz do Barão que ficando

revoltado em ver a Fazenda Firme ocupada por paraguaios provocou, entre eles, numa noite escura, um entrevero.

Ele conseguiu entrar na casa onde se alojavam os paraguaios. Foi vagueando e saltando e gritando, em guarani, xingamentos que enfureciam os inimigos.

O pânico foi criado. Estes foram se esfaqueando até que verificaram que brigavam entre eles, pois Nanico já bem mutilado

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conseguiu sair da casa, alcançar o cavalo e os dois companheiros que não quiseram participar do entrevero.

Estes levaram Nanico para o acampamento dos foragidos da Fazenda Firme, que ficava do lado de Coxim.

Anos após, Nanico perambulava pelas ruas de Corumbá como um desiludido, bêbado, sem lar, e quando o interpelavam porque andava assim, se tinha sido da confiança do Barão, por que não procurava outro patrão? Levantando o olhar cansado, como para recordar, respondia: Sim, patrão era aquele, o que sobra por aí são uma éguas.

Muitos anos mais tarde perguntaram a D. Geraldo, um paraguaio velho, em Corumbá, se ele sabia a história do Nanico.

Sim, yo si, pero Nanico não era um hombre, era o diabo. Seria interessante salientar as qualidades másculas e

positivas desses varões para mostrar às novas gerações que o caminho certo é a luta, a dedicação e o amor ao próximo.

Não é com revolta e inativo que se consegue o que se deseja. Para se conseguir é bom lembrar a máxima positivista de

Augusto Conte: “O Amor por princípio, a ordem por base progresso por fim.”.

A proverbial gentileza do Nheco, fiquei devendo algumas fotos de grupos nos quais aparece a Baronesa, fotos que me valeram reproduzi-Ias em tela, g(aças ao pincel do artista Peruano Vitor Hugo Zamora,que lhes pôs leve sorriso nos lábios, pois que a achou muito sizuda nas fotos que lhe serviram de modelo. Também alguns destaques de figuras ilustres da linhagem dos Barões de Vila Maria, figuras mais recentes que enobrecem os seus antepassados. Assim é que o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro de 07/10/1956, sob o título “Centenário de um Pioneiro”, escrevia:

Quando, faz um século nasceu Joaquim Eugênio Gomes da Silva. Corumbá estava apenas pressentindo o surto que iria dar-lhe fama, depois das cruciantes provações, a que se viu submetida a sua população. A situação privilegiada, que lhe confere o Paraguai, ao abrir-se pelos afluentes, em ampla rede fluvial, alongada por distantes rincões, escassamente lhe aproveitava, à mingua de tráfego, impedido à jusante do Fecho dos Morros. Apenas transitavam, pela “excelente via de comunicação,

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os batelões que transportavam mercadorias e pessoal para o Forte de Coimbra, ou regressavam a Cuiabá, quando não infletiam para Cáceres. Mas em 1833 o Water-Witon sob o comando do capitão Th. Jefferson Page, conseguiu licença do governo paraguaio para ultrapassar a faixa fronteiriça, pois que se achava incumbido de empreender observações hidrográficas nos tributários platinos.

Para completar os resultados colhidos até a povoação que ainda trazia o nome do seu fundador — Albuquerque — voltaria em 1859, com menores navios, Alpha, que o levou a Cuiabá e Argentina. Nesse interregno, de pouco mais de um qüinqüênio, ocorrências memoráveis relacionaram-se com o desenvolvimento futuro da região.

Primeiramente, decreto de 11 de abril de 1853 criou a Mesa de Rendas, como auspicioso ensaio de providências mais eficazes, que não tardariam a mostrar o empenho do Império em atender àquela região fronteiriça.

Era prematura, todavia, a iniciativa de fiscalização de inexistente comércio estrangeiro. Ao revés, emborrascavam-se os horizontes ao Sul, onde a desastrada missão confiada a Pedro Ferreira necessitava do reforço em Mato Grosso. Como lhe fosse recomendado prestasse o auxílio que se fizesse necessário, o Presidente da Província, Augusto Leverger, não titubeou em mudar temporariamente a sede governativa, pois que era Presidente da Província, para o Forte de Coimbra, onde se alojou em uma pequena sala que servia ao mesmo tempo de secretaria, sala de ordens e dois aposentos, o maior do qual tem vinte palmos em quadra. Distanciado de Cuiabá, por dez dias de descida, em canoa escoteira, que, de arrepio, consumiria o dobro de tempo, assinalou que não posso receber da Capital, em prazo menor de 30 a 40 dias, resposta a qualquer ofício meu.

Aí. penou, como se estivesse em campanha, por meses martirizantes, conforme explicou, a 2 de janeiro de 1856, ao receber pedido de informações do ministro Nabuco de Araújo.

“Há quase um ano que estou forte, com um punhado de militares, sempre dispostos a marchar de um dia para outro para este ou aquele ponto”. Embora se amainasse a ameaça de luta, ainda Leverger permaneceria no reduto incômodo até novembro, quando regressou a Cuiabá.

Já lhe tinha, então, chegado ao conhecimento a notícia

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do Tratado de 6 de Abril, que franqueou o Paraguai aos navios brasileiros. Mercê da permissão obtida, o vapor de guerra Maracanã sulcou a extensa via fluvial até Cuiabá, acompanhado pelo mercante Corça. Zarpou da Guanabara a 28 de outubro, mas somente a 24 seguinte alcançou Assunção. Em marcha morosa, à falta de práticos do rio e paradas necessárias para fazer e tomar lenha, escoaram-se meses cansativos de avanço pelo rio, em que os navios brasileiros estreavam a navegação. Afinal, fundou Maracanã em Melgaço e, aproveitando o repiquete, atingiu o porto de Cuiabá, a 7 de março, precedido pelo Corça, de menor caIado, que a 20 de fevereiro inaugurou a extensa linha navegável, distendida do Rio de Janeiro à Capital de Mato Grosso. Para que, porém, se tornassem efetivos os dispositivos ajustados entre os plenipotenciários, fez-se mister o complemento interpretativo, de 12 de fevereiro de 1858, que possibilitou o trânsito de embarcações brasileiras pelo rio no trecho sob jurisdição lopesina.

Corumbá começou por essa época a prosperar, atraindo negociantes estrangeiros, que lobrigaram as vantagens decorrentes da abertura de porto à navegação.

De minguada duração, entretanto, manteve-se-lhe o florescimento, que a invasão desencadeada por Solano Lopes refreou. A ocupação militar deportou-lhe, como presa de guerra, a população válida, que não conseguira atropeladamente retirar-se para Cuiabá, e confiscou-lhe todos os haveres.

Entre os prejudicados, incluiu-se Joaquim José Gomes da Silva, a quem decreto de 21 de junho de 1862 concedera o título de “Barão de Vila Maria”. O seu brasão ostentava em campo de oiro um índio ao natural cortando a cana de açúcar com um podão de azul, em um canavial de verde, consoante assinalou J. de Mesquita. Assim demonstraria o seu apego à vida rural, que forcejou por nobilitar em Corumbá, ao estabelecer-se no pantanal próximo.

Enganara-se de princípio, ao julgar sobranceiro às inundações o local escolhido, donde enchente maior do que as observadas anteriormente o impeliu para o interior, cerca de quatro léguas da margem esquerda do Paraguai, no local que designou pelo expressivo título de “Firme”.

Não tardou, resoluto, em montar o seu estabelecimento pastoril que prosperava, quando sobreveio a catástrofe, em que

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Maria da Glória Pereira Leite

Baronesa de Vila Maria

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soçobrou. Nessa ocasião, recordaria J. de Barros Maciel, “arrostando todos os obstáculos naturais, vencendo pântanos, vadeando rios, e desafiando imensos sertões e a inclemência do tempo, foi levar à Corte, em 1865, a notícia da invasão de Mato Grosso pelas tropas de Solano Lopes”.

Não mais reconstruiria a sua fazenda assolada pelos vaqueiros da usurpação, que lhe danificaram as benfeitorias, depois de se locupletarem com os resultados colhidos facilmente pelo preparo de carne seca, sebo, couro, e gado em pé, enviado para Assunção.

Antes que pudesse revê-Ia, sucumbiu, “a bordo do transporte Madeira, que o conduzia de regresso a Mato Grosso, a 4 de Abril de 1876”.

Competiria a um dos filhos, Joaquim Gomes da Silva, Nheco de apelido, nascido a 22 de Setembro de 56, em Cáceres, retomar a iniciativa arruinada pela guerra.

Esposando, em 1879, D.Maria das Mercês, filha do casal Francisco Leite de Barros e D. Antônio de Arruda, apressou-se em reivindicar a propriedade rural, que lhe coubera por herança.

Destemeroso, arriscou-se aos perigos de toda a laia, que avultavam naquelas brenhas, cujo abandono por mais de uma década fortaleceu o domínio das onças, cujo atrevimento perseguia a criação até nos currais e chiqueiros. Com o regresso do último contingente de Lopes, despovoara-se o “Firme”, cujo gado fora dizimado implacavelmente. O primitivo sítio entaperara, sufocado pela vegetação. Nenhum indício mais havia de criação mansa.

Não obstante, Nheco decidiu afazendar-se naquela gleba, que se ligava a Corumbá por meio de via mista de comunicação. Dá-se ao porto do Conde, se as águas amantavam as baixadas, ou ao da Manga, à margem esquerda do rio Paraguai, quando o terreno, já liberto da inundação, permitisse o trânsito seguiam os viajantes, a cavalo ou em carro de bois. Acomodavam-se, com a sua bagagem, em canoa, mais ligeira, ou batelão de maior porte, ou chalana, para os três dias de marcha morosa, de arrepio à corrente. Por acaso, poderiam tomar algum navio dos que faziam a linha para Montevidéu, se passasse na ocasião. Comumente, porém, recorriam à zinga e ao remo, destramente manejados por hábeis canoeiros, que os transportavam até a cidade onde entregavam as mercadorias,

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em suas viagens de fins comerciais.

Para o couro de boi, a cotação era de duzentos réis cada quilo, a arroba de carne seca, de dois mil e quinhentos a três mil réis, e a dúzia de queijos, seis mil réis, e os outros artigos, em escala correspondente. Por fim, a remessa não seria suficiente para pagar as encomendas relacionadas pelo fazendeiro, que necessitava de tecidos, roupas feitas, e artigos de armarinho. A confiança no futuro, porém, não só lhe mantinha o entusiasmo como ainda a comunicava aos conterrâneos, que procurava

atrair para a sua vizinhança. Um dos primeiros, porém Francisco Gomes da Silva, baqueou em plena luta desbravadora. Alcançado pelo bote de cobra temível, contra cuja peçonha não havia ainda soro anti-ofídico, pereceu em breves horas, causando geral desânimo. Nesse lance lutuoso, que ameaçou de malogro o empreendimento, sobressaiu a energia de Da. Maria das Mercês, capaz de incutir em todos, a começar do marido aflito, a firmeza das suas esperanças em melhores dias futuros. E assim perseveraram, através de contratempos de várias espécies, até transformarem as terras brutas, domadas pertinazmente, em paragens aprazíveis, que maravilham os turistas modernos. Com o auxílio estimulante da esposa, inspiradora das suas mais abnegadas decisões, Nheco pôs em prática singular sistema de política rural, que lhe aconselhava a intuição.

Uma vez verificada a excelência das pastagens criadoras, servidas de abundantes aguadas, a que não rareavam as lagoas denominadas salinas, decidiu repartir com os amigos e parentes as vantagens oferecidas pela região que desbravara, entre o Paraguai, o Taquari, e o rio Negro. Já se considerava triunfante, quando, de passagem por Laranjeiras, no município de Cáceres, a caminho de Cuiabá, onde pretendia internar os seus filhos Mário, Paulino e Eugênio, no Ateneu Cuiabano, de nível secundário, instou com José de Barros e seu irmão Gabriel Patrício de Barros, para se aproveitarem dos benefícios prometidos pelos pantanais contíguos ao Firme. Ajudá-los-ia no transporte, que não lhes seria demasiado oneroso.

O crédito que merecia a palavra do hóspede e a força persuasiva de sua propaganda evidenciaram-se nesse episódio, relembrado por quem, depois de volvido meio século, não teve motivo de arrependimento da transplantação.

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Fixou-se em Laranjeiras, onde, por trabalhoso setênio, construíra casas, cobertas de capim, montara currais, abrira roças, para a manutenção do pessoal necessário a cuidar do gado. O número de reses a ambos pertencentes já passava de mi I, quando empreenderam, seduzidos pelo que ouviram, abandonar a sua posse com as benfeitorias para imitar exemplo de outro irmão, João Batista de Barros, que os precedera, enraizando-se em São Francisco por onde passariam. No dia 13 de outubro de 1894, iniciaram o êxodo, ao conduzirem a primeira partida, de cerca de 900 cabeças, que atravessaram o São Lourenço, o Taquari e ao fim de 34 dias, terminaram a marcha em campos do “Firme”.

A confiança nos oferecimentos de Nheco bastou para que trocassem a experiência adquirida em Cáceres pela aventura de mudança para distantes paragens, que lhes eram desconhecidas. Também a seu convite, trasladaram-se de “Passagem Velha”, de Livramento, os parentes Vicente Alexandre de Campos, com sua família, e também Antônio José Mendes, José de Souza Mendes. De outra feita, conforme narrativa de Eugênio Gomes da Silva, nas recordações evocativas dos tempos da sua mocidade, chegaram Manuel Gomes da Silva e seu irmão José Mariano da Costa, experientes na labuta pastoril, de que se incumbira o primeiro, como administrador da imensa fazenda de J. M. Metelo, dilatada do São Lourenço do Pequiri, por 684.705 hectares.

Ao adquiri-la, a “Companhia Produtos Cibils” mostrou-se mais interessada em servir-se do gado existente como simples matéria-prima para a sua indústria de extrato de carne, montada no município de Cáceres, do que em aumentar o rebanho bovino. Fechava-se numeroso rodeio em qualquer largo, e, sem apartação, todas as reses seguiam para o curral, a caminho do abatedouro. Manuel Gomes, ao contrário, cultivava, com esmero, a sua vocação de criador, e não podia conformar-se com a devastação impiedosa dos rebanhos de que se orgulhava, como se fossem seus próprios. Transferiu-se, então, para a zona, em que Nheco se esforçava por agremiar a sua parentela e amigos prediletos. Ao contrário dos latifundiários, que não consentiam a aproximação de estranhos à sua propriedade, de cuja imensidão se gabavam como J. C. Pereira Leite de Cáceres cuja fazenda, segundo assinalou F. A. Pimenta Bueno, em 1880, abrangia “área de 240 léguas quadradas e 600.000 cabeças de

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gado, na maior parte alçado, por falta de cavalos”, incentivou Nheco a formação de estabelecimentos pastoris nas vizinhanças do seu, do qual cederia mais de um quinhão, além de indicar glebas ainda devolutas, que os interessados poderiam adquirir por quantias diminutas. Possuía quanto lhe bastava, ao legalizar, a 27.7.1899, a sua propriedade rural cuja medição acusara 176.853 hectares, e não pretendia açambarcar o pantanal de sua querência. Queria, ao contrário, vê-lo repartido e utilizado pelos amigos, a quem se esforçava por transmitir os próprios anseios de engrandecimento daquelas paragens, cujo florescimento concretiza na atualidade o acerto de suas diretrizes.

Ao sucumbir, em 1909, podia ufanar-se de ter fecundado, com o trabalho produtivo, a região que encontrara em condições bravias, à margem da vida civilizada.

Certo, não lhe faltaram colaboradores, do naipe de Mário Gomes da Silva, sem filho e sucessor, que, até baquear em 1914, revelou-se o maior auxiliar de Nheco, tanto pela formidável capacidade de trabalho e espírito coordenador como pela honestidade e pela retidão em suas atitudes sempre francas e sinceras, como registrou C. Vandoni de Barros no informativo opúsculo: Nhecolândia; de José de Barros Maciel, seu genro, defensor ardoroso de Nhecolândia, e um dos principais pioneiros do seu progresso atual.

Por sugestão sua, indicativa de preito de reconhecimento, começou a propagar-se a denominação de “Nhecolândia”, para designar a região, de cujo desbravamento e ocupação eficaz foi, sem dúvida, Nheco o mais operoso agente. A ressonância que lhe apoiou a proposta, manifestou-se na toponímia estadual, que designou por “Nhecolândia” um dos distritos do município de Corumbá. É um dos mais prósperos de Mato Grosso, que abrange não somente a área primitiva da fazenda “Firme”, atualmente subdividida entre os herdeiros, como as aquisições contíguas, pelo Taquari acima, conforme aconselhava o abnegado pioneiro, a quem se aliaram dezenas de conterrâneos. Convictos das vantagens da união fundaram, em 1928, o “Centro de Criadores da Nhecolândia”, de que foi J. Barros Maciel o primeiro Presidente e um dos seus mais fervorosos paladinos.

Antes de sucumbir, a 14 de junho de 1932, participaria de todas as campanhas beneficiadoras da vida rural, a que se afeiçoou de

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tal maneira que em uma das cláusulas testamentárias assinalou o seu apego à terra.

Entre outras recomendações, “declarou a sua vontade de que suas propriedades rurais ficassem inalienáveis, para que os seus descendentes e herdeiros mantivessem sempre vivo e acentuado amor por essa região privilegiada do Estado, desbravada pelas seus sogros com esforços sobre-humanos, devotamento, fé e confiança no futuro, além de notável resistência contra adversidades e sacrifícios”.

A lição do desbravador frutificou. Além do amor ao trabalho produtivo e perseverança em praticá-la, ainda nas quadras adversas que não faltam em geral, a nenhum empreendimento, conseguiu Nheco transmitir à sua descendência, direta ou não, o apego à vida rural. E assim, as gerações pósteras completaram-lhe as conquistas pacificas, e transformaram ampla área bravia, em que se refugiavam onças devoradoras da bezerrada, em aprazível região, mosqueada de residências, indicativas de opulentos haveres de seus proprietários, em geral aparentados entre si. Automóveis trafegam de uma a outra, na época da estiagem, ao passo que maiores distâncias são percorridas por aviões aos quais se deparam, a espaços, apropriados campos de pouso.

Inequívoca, a influência na economia de Corumbá, como igualmente em sua vida social e cultural, que exerce a Nhecolândia, mercê dos esforços progressistas dos seus moradores, fiéis à prossecução dos anseias criadores do operoso pioneiro. a) VIRGILIO CORREA FILHO”.

Infelizmente, ainda não se fez a atualização da genealogia dos Barões de Vila Maria, mas é de se esperar que logo possa ela ser realizada. Até lá, deve-se contentar com destaque dos seus personagens como aqueloutro que se vê da revista Unasco — Março de 1967, pág. 9, sob o título “Cooperativista do Mês”, e sub título “PAULINO GOMES DA SILVA — Exemplo de abnegação e trabalho”:

Homenageamos neste mês a Paulino Gomes da Silva, um pioneiro do Estado, que se deslocou para o pantanal matogrossense. Habituado ao rigor do trabalho, enfrentou a região hostil e bravia, pregando a união de todos os que trabalhavam no campo. Sentiu, a principio, a indiferença e a incompreensão do ambiente demasiado conservador que via, nas suas idéias cooperativistas, a ação de um visionário. Todavia, contra a vontade de muitos, e com o auxílio

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de seu filho Nheco Gomes da Silva, fundou em 8 de outubro de 1946 a Sociedade Cooperativa Agro-Pecuária de Corumbá Ltda. Alguns anos depois, foi ela destruída por um incêndio. O seu ânimo, porém, não se arrefeceu, encorajando aos companheiros quase desesperançados. E cuidou da reorganização da sociedade, de sorte a tornar a vir a ser, em nossos dias, uma cooperativa forte e consolidada.

Paulino Gomes da Silva passou a ter, por isso, além de expressão econômica, conceito social e político. E, falecido em 1952, com 71 anos de idade, deixou esse exemplo construtivo do quanto pode a tenacidade de um homem associado à cooperação de companheiros que souberam encontrar, no Cooperativismo, o caminho da redenção econômica e da compreensão social”.

PATRIARCA AUSTERO

“Sobe a morada celeste D’esse espaço corta os véus, E pede ao Deus das tormentas Que afaste as máguas cruentas Que impressas deixas aos teus” (Do jazigo da família)

O SR. FEUDAL

Fazendo a Biografia dos Pereiras Leites, José de Mesquita nos lega magistral história dos fatos e acontecimentos envolvendo os personagens mais eminentes de. Mato Grosso, desde a fase da mineração e da preia ao índio até a deflagração do movimento republicano, precedido da progressiva legislação visando a libertação do escravo e a consagração do trabalho livre. Vale transcrita a lição do magnífico historiador e homem de letra: “Na pessoa do segundo filho do Coronel João Pereira Leite se caracterizou o tipo do grande senhor rural que Oliveira Vianna, nos seus curiosos estudos de sociologia brasileira, com tamanha acuidade de visão focalizou recentemente.

Tudo convergia, de resto, a emprestar ao Major João Carlos essa feição peculiar àquelas fases de formação histórica nos paises onde se opera a lenta sedimentação das raças e a grã dativa evolução

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dos costumes: filho de opulenta família, proprietário de enormes glebas de terra, servido por numerosa escravaria, em zona pouco povoada e distante da Capital, por certo não fossem as qualidades naturais de energia que lhe vincavam o temperamento, imprimindo-lhe esses traços de mando e autoritarismo, difícil lhe fora manter, como manteve, solidificando-o, o renome dos seus e o ascendente familiar a que se não constatava nenhum outro desde os confins de Vila Bela até Poconé.

No estudo que um dia se fizer desse estágio social intermediário entre o período inicial da mineração e da preia ao índio e o atual, do trabalho livre, fase de transição caracterizada pela constituição das grandes propriedades, engenhos e fazendas, que o braço negro fazia prosperar, o vulto do Major João Carlos servirá de índice curioso, espécimen representativo através do qual o historiador penetrará a íntima psiquê dos homens dessa época.

Espécie de senhor feudal que, na vastidão de seus domínios, quase ultrapassantes das próprias raízes da Província, tinha o direito insofismável de braço e cutelo; diga-se, todavia, em honra de sua memória, jamais exercitou a sua atividade contra os interesses coletivos, antes a fez sentir sempre em beneficio à terra do seu berço e dos seus filhos.

Político militante, era o esteio do partido conservador em toda essa região que da Jacobina irradiava por Vila Maria a Descalvado, Jaurú, Cambará e as várias sesmarias que compunham a propriedade dos Pereiras Leites e que só com a morte de D. Maria Josepha, ocorrida em 3 de novembro de 1888 e dele que se dera a 3 de outubro de 1880, se desmembrou e começou a perder a sua antiga importância.

Disse Estêvão de Mendonça que a sua individualidade conserva ainda o aspecto impenetrável de um enigma, (datas II 196) querendo, talvez, aludir à sua íntima estrutura moral, dificilmente apreciável para nós que, distanciados no tempo e no espaço, jamais conseguiremos reconstruir ao vivo o cenário em que ele agiu numa preponderante atuação sobre os seus contemporâneos.

Pode-se-lhe esgarçar, porém, um ou outro curioso traço psicológico, por entre as tradições orais que a família mantém e se não traçar-lhe nitidamente o perfil, ao menos, num esfumado,

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deixar-lhe esboça da a personalidade interessante e típica. Foi-lhe berço o sítio histórico dos seus ancestrais, onde veio

à luz no dia 4 de novembro de 1816, sendo batizado na Capela de Jacobina pelo então P. Manoel Alves da Cunha, recebendo por Padrinho o Capitão General João Carlos, cujo nome se lhe deu em razão da muita amizade entre o mesmo e o seu pai João Pereira Leite.

Quando o Cel. João Pereira Leite se casou já era homem de idade provecta e falecendo, em 1833, deixou a prole numerosa ainda carecedora de cuidados, com a sua educação por ultimar.

João Carlos, o segundo filho, mas a quem de fato competia o morgadio, seja pela predileção a seu respeito manifestada pela viúva D. Maria Josepha, pouco mais de 16 anos tinha quando se orfanou de pai e ainda assim, foi o braço direito de sua mãe na áspera tarefa que lhe ficara de criar e manter os dez filhos de João Pereira Leite.

Muito jovem e algo inexperiente, pois em vida da sogra (vivia ainda em 1837, pois foi madrinha de Generoso, filho de D. Maria em segundas núpcias) e do marido jamais se envolvera na gestão da fazenda e mesmo da casa, grandes deveriam ter sido os óbices a vencer por parte da pobre senhora até se transformar na corajosa matrona que, ao que rezam os recontos de testemunhas presenciais, percorria todo o sítio, chapéu largo à cabeça, chicote em punho, dirigindo os serviços com a sua presença, animando-os com a sua voz estentórica e fazendo sentir, quando mister, o corretivo enérgico.

Para que, porém, da delicada filha de Leonardo Soares, surgisse a “Nhanhá” da Jacobina, ríspida, autoritária, imperiosa, que só no amor dos filhos ameigava, muito contribuiu a constante atuação do seu imediato auxiliar, do seu amigo de confiança, o filho de João Carlos.

O malogro de um casamento irrefletido, cujas conseqüências breve se fizeram ver, a blindaria do aço da experiência contra as seduções que, na sua idade e com a sua riqueza, coalham o caminho da vida.

O segundo esposo de D. Maria foi José Alves Ribeiro, já referido no Título I, deste ensaio, a quem se refere Taunay, no seu “A

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Cidade de Mato Grosso”, como parte nos fatos de 1837, de que resultou a morte de Poupinho Caldas.

Obrigado a buscar outras paragens onde melhor pudesse viver, deixou Ribeiro a sua esposa, com um filho recém-nascido, Generoso, acarretando esse fato não pequeno desgosto à família.

Outros acontecimentos vieram a perturbar a placidez da “Jacobina”, mas já encontraram retemperada a energia de Maria Josepha, servida pela de seus filhos, já maiores, entre os quais João Carlos sempre exerceu inconteste hegemonia.

Tais fatos, semelhantes circunstâncias com que topara justamente nessa fase de cristalização mental em que o espírito se plasma à mercê do ambiente que o envolve, deveriam ter contribuído e muito para imprimir ao espírito de João Carlos essa máscara aparente, misto de reserva e severidade, que o caracterizou o resto da existência.

Não tiveram, porém, o efeito de o tornar um misantropo ou um insaciável, pois o seu trato foi sempre atencioso e delicado, mas o puseram de sobreaviso contra possíveis acontecimentos e precavido, diante dos estranhos, na luta contra os seus adversários e de sua gente, na emergência de futuros golpes.

Caldeado, desta arte, pelas adversidades que rodearam no período róseo das ilusões mais belas, o Major João Carlos passou a desconfiar dos homens, mas não a odiar a humanidade, como soem, numa estúpida generalização, agir os tímidos Alcestesque a pena de Moliêre imortalizou.

A sua filantropia se derramou, ao invés, em pródigos atos de benefício, muitos dos quais inesquecíveis na memória popular, concretizados em melhoramentos com que dotou Vila Maria, hoje cidade de S. Luís, onde o seu nome respeitado até o presente, a despeito de todas as convulsões partidárias que têm agitado aquele velho burgo, se ostenta ligado à grande Praça central da cidade.

Foi o construtor do Cemitério S. João Batista, feito a suas expensas e doado ao Município e em mais de uma oportunidade aflitiva para a Província o seu coração boníssimo se derramou em inequívocas provas de humanitarismo.

Assim foi quando, desencadeado o tufão da guerra contra o Paraguai, cujos desastrosos efeitos logo se fizeram sentir nesta Província, e, ainda, ao irromper, pouco depois, a calamitosa epidemia das “bexigas”, graças à sua energia e habilidade, evitou que

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penetrasse em Cáceres, que assim se viu poupada dos estragos ocasionados pelo terrível morbo em Cuiabá, Diamantino e outras localidades flageladas.

Nem regateou o Major João Carlos a sua atividade de patriota quando da invasão de Mato Grosso pelas forças de Lopes, sendo o homem de confiança de Couto de Magalhães, não obstante pertencerem a políticas opostas e extremadas.

O contributo valioso que prestou nessa ocasião ao País mereceu-lhe do Governo Imperial a nomeação de Cavaleiro da Ordem de Cristo, em carta imperial de 22 de junho de 1868, assinaladora dos “serviços militares prestados em relação à guerra com o Paraguai, na Província de Mato Grosso” e a medalha de campanha conferida pelo Título de 2 de junho de 1861 “ao Sr. João Carlos Pereira Leite, Fidalgo cavaleiro da casa Imperial, (Por alvará de 2 de setembro de 1864, fez o Imperador mercê de o tornar no foro de Fidalgo Cavaleiro de sua Imperial Casa, por ser este o foro de que gostava seu falecido pai) que, na qualidade de Major de Comissão, fez parte das forças que de Vi Ia Maria marcharam para operar contra Corumbá. .

De par com esses rasgos de solidariedade humana e altruísmo, transparecia-lhe, entretanto, na energia indomável, nos impulsos de paixão partidária, às vezes, levados ao excesso, no seu próprio viver particular, esse ar de originalidade que o fazia algo de estranho perante o juízo dos seus temporâneos, como se um intransponível abismo o isolasse, na altivez desmedida do seu orgulho, do meio e da sociedade em que vivia” (Rev. do Instituto Histórico de Mato Grosso, Cit. págs. 96-100) .

SIMBOLO PERENE

O fim do século XV foi assinalado por importantíssimas descobertas marítimas, cabendo a glória delas aos portugueses e espanhóis, sobretudo os portugueses que foram os primeiros que as iniciaram e com o seu exemplo impulsionaram as navegações dos outros povos.

Natural que surgissem disputas fronteiriças entre os povos lideres das descobertas e a autoridade espiritual e supra terrena da Igreja se fez sentir como árbitro nas demandas fronteiriças,

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através de bulas papais, as quais procuravam, quando possível, definir o direito dos povos soberanos que demandam, até que os próprios estados soberanos decidiram defini-Ias e devolvê-las através de tratados bilaterais, notáveis documentos registrados pela História durante muitos séculos.

Destacado instrumento definidor de tais direitos foi, sem dúvida, o Tratado de Tordesilhas, celebrado na cidade espanhola do mesmo nome em 7.6.1494 e ratificado na cidade portuguesa de Setúbal em 5.9.1494; estabelecia a divisão do mundo conhecido e a descobrir em hemisférios, por um meridiano distante 370 léguas das ilhas do Cabo Verde, deixando à Espanha tudo o que ficasse a Ocidente e a Portugal o que se contivesse no Oriente.

Durante dois séculos e meio a linha imaginária de Tordesilhas permaneceu vigendo a fronteira entre os povos navegantes e conquistadores, até que Portugal e Espanha, num alto propósito de melhor definir os seus contornos, se dispuseram a celebrar em 13 de janeiro de 1750 o Tratado de Madrid, ponto de partida para outros instrumentos diplomáticos definidores do Direito das Altas Partes contratantes, sempre fruto de meditados estudos dos seus estadistas, convenientemente assessorados pelos seus sábios e técnicos.

A Vila Maria vai caber a honra ímpar de ostentar à margem do Rio Jaurú o mais belo e mais expressivo monumento dedicado àquele tratado que dignifica as partes contratantes e põe em relevo a boa fé na elaboração do imponente instrumento.

Em meio à selva agreste Hércules Florence, escrivão da missão Langsdorff, vai surpreendê-lo em 11.9.1827 e a sua caminhada foi assim reconstituída:

“— 11 de setembro de 1827 - Partindo às 2 horas da madrugada, às 9 da manhã chegamos ao Rio Jaurú, à direita.

Em vão procuramos a princípio enxergar a pirâmide que vínhamos ver: descobrimo-la afinal à direita da embocadura, por traz de árvores que a ocultam das vistas.

Não é possível enxergar com indiferença um monumento qualquer de mármore branco e de arquitetura regular que de repente se nos depara no meio dessas vastas regiões, onde sem partilha reina a natureza.

É a pirâmide quadrangular e tem 15 e meio pés de alto, incluindo o pedestal e a cruz de pedra que a coroa. No lado N.

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54º O. estão gravadas as armas de Espanha, sob as quais se lê esta inscrição:

SVB FERDINANDO VI

HISPANIAE REGE

CATHOLICO

A coroa está quebrada; só restam os florões. No lado S. 54º E. estão as armas de Portugal e esta inscrição:

SVB

IOANNE V LVSITANORVM

REGE FIDELISSIMO

Falta de todo a coroa. Lê-se no lado N. 360 E:

EX PACTIS FINIVM. RE VNDORVM MADRITI

IDIB IANVAR M.DCCL

Enfim no quarto lado:

IVSTITIA ET PAX

OSCVLATAE SVNT.

As duas coroas das armas de Espanha e Portugal estão

mutiladas. Pelo tempo ou pelos homens? Na minha infância vi os sinais da realeza destruídos pelos revolucionários de 92. Inclino-me a crer que o mesmo sentimento impeliu os americanos a apagar o assinalamento da antiga servidão.

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A pirâmide, compreendendo o pedestal, é de alto a baixo separada em duas metades, ambas de uma só pedra. A junção forma, nos lados N. 360 E O., duas linhas que marcam a direção de um raio de mais de 100 léguas de limites. Dizem que uma metade foi feita em Lisboa e outra em Cadiz. Contaram-me que não tendo sido aprovado pelo gabinete de Lisboa o rumo de limitação, o tenente-coronel português desterrou-se para Buenos Aires, e aí acabou seus dias feito mestre-escola.

Como as duas peças da pirâmide não juntaram bem e, para facilidade de transporte da Espanha para Buenos Aires, e pelo Prata daquela cidade até ao lugar marcado, não foram feitas maciças, há sempre no interstício colméias de abelhas. Na fenda introduzimos um facão e de pronto correu delicioso mel que encheu uma cabaça e misturado com farinha deu-nos ótimo regalo.

As 2 horas da tarde, fizemo-nos na volta de Vi Ia Maria.” (VIAGEM DO TIETE AO AMAZONAS - HI:RCULES FLORENCE - Págs. 142 a 144)

Anos mais tarde, o Major João Carlos Pereira Leite trasladaria o imponente monumento do Jaurú para o coração de Vila Maria, erigindo-o na Praça Principal da Cidade, entre a Catedral e o majestoso Rio Paraguai, para testemunhar, perenemente, a inteligência e a amizade simbolizadas no lavor do mármore frio e eterno.

Quando do bicentenário do Tratado de Madrid, o imortal Arcebispo de Cuiabá, Dom Aquino Correa, fúlgida glória da Igreja e da Pátria, proferiu na Sé Catedral magnífica oração gratulatória, perorando:

“Por último, Senhores, o que justifica plenamente esta liturgia sacra de ação de graças, é o espírito que presidiu à elaboração desse tratado, do qual com a sua ímpar autoridade, escreveu o Barão do Rio Branco, que deixa no ânimo de quem o estuda, “A mais viva e grata impressão da boa fé, lealdade e grandeza de vistas, que inspiram esse ajuste amigável de antigas e mesquinhas querelas, consultando-se unicamente os princípios superiores da razão e da justiça e as conveniências da paz e da civilização da América.”

Deste nobre ideal luminoso de justiça e paz internacional, temos a ventura, os matogrossenses, de possuir o mais expressivo e solene monumento, para o qual hoje, nesta festiva da ta jubilar,

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voltam-se espontaneamente as nossas almas, numa romaria evocativa e poética, através de dois séculos. E o marco do Jaurú!

Marco do Jaurú! Rico padrão de pedra mármore, encimado pela Cruz! Primeira baliza do nosso Estado natal que os comissários do Capitão-General Gomes Freire de Andrade e do Marquês do Val de Lírios, executores do tratado, levantaram em meio a florestas virgens, poucos quilômetros a jusante da foz, onde o selvático rio Jaurú aflui nas majestosas e históricas águas do Paraguai!

Marco do Jaurú! Velha pirâmide minúscula e solitária, que ao longo de tantos anos, no silêncio sagrado e imenso daquelas regiões ainda bravias, assinalaste, numa orla selvagem da terra matogrossense, a fronteira das duas gloriosas nações, que pareciam então partilhar entre si o domínio do mundo!

Marco do Jaurú! Com que emoção e encantamento, não te saudamos hoje, mesmo ao longe, por entre as flores desse jardim, ao sol da praça principal de Cáceres, aonde foste transladado, e relemos as tuas vetustas inscrições, na solenidade e elegância dos seus dizeres latinos, bem dignos do mármore clássico, em que foram gravados: ex pactis finium regundorum conventis!

Marco do Jaurú ! Tu perpetuaste para sempre, nos relevos artísticos das tuas quatro páginas, os nomes das duas augustas realezas, que foram as altas partes contratantes de Madri, a majestade fidelíssima de D. João V de Portugal e a majestade católica de D. Fernando VI de Espanha; mas nos lembras também, no teu sugestivo silêncio, todos quantos colaboraram no memorável pacto, que ora festejamos, e sobre os quais paira, excelsa e inconfundível, como alma que foi dessas negociações políticas, honrando sobremaneira a nossa Pátria e a nossa gente, a figura de Alexandre de Gusmão, o grande diplomata brasileiro.”

O PERFIL DO LIDER

Fatores naturais e ambientais, interferem, como é óbvio, na formação da personalidade de João Carlos: a resistência e a pertinácia do avô materno, o espírito de serviço e o senso de responsabilidade

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do Pai; a autoridade materna, mais acentuada após a viuvez. Por outro lado, conta apenas 17 anos quando perde o Pai e

encara a família constituída de dez filhos, todos menores. Considera, ainda, a inaptidão do seu mano, Joaquim, mais velho que ele.

João Carlos, todavia, foi contemplado com raros dotes de inteligência e de coração e não se deixa vencer. Ele é temido pela sua autoridade, mas amado pela justiça das suas decisões.

Ele é o comandante-chefe da política em toda a região e a sua palavra oracular é ouvida e acatada nas assembléias partidárias ao tempo do Império; administrava a Jacobina fazendo-a atingir período de esplendor e fastígio, jamais vivido pelo engenho de Leonardo Soares de Souza e de João Pereira Leite. Todos os agregados respeitam e amam aquele patriarca austero, no qual se transforma com o passar dos tempos.

Num encontro casual no Parque Gráfico Nossa Senhora de Fátima em 13 de maio de 1975, disse-me o engenheiro agrônomo Gabriel Júlio de Mattos Muller, coordenador do PRODEPAN, que, ainda em nossos dias, os moradores do Pantanal Matogrossense, por certo descendentes daquele meio milhar de agregados, falam com admiração e respeito sobre a figura do major João Carlos, reproduzindo, com fidelidade e carinho, marcantes traços da sua personalidade máscula e austera, sem deixar de ser humana e compreensiva.

Pedro Nolasco, seu mano caçula, ainda muito’ menino, despede-se dele no Olho D’Água; João Carlos é todo ternura naquela cena de despedida. Está diante do irmão mais novo que ele educa como se fora o próprio filho, do qual vai separar-se por largo período de tempo. Não sei se reencontraram em vida, mas a figura humana do João Carlos também aqui foi fixada.

GLORIFICAÇAO DO PROTETOR

Na eloqüência do seu estilo de homem de letras, historiador e político, Luis Viana Filho, hoje figura destacada da Academia Brasileira e do Senado da República, fez o perfil do herói da Sabinada e como que nele inscreve o profundo significado da acolhida que, ao revolucionário baiano, emprestou o Major João Carlos Pereira Leite, na Fazenda Jacobina, onde Francisco Sabino

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Álvares da Rocha Vieira viveu os derradeiros dias da sua existência. Esta bela página põe em relevo a paz que o grande inconformado encontrou na Jacobina, tudo proporcionado pelo seu austero protetor e amigo dedicado: “E a 25 de Dezembro − triste Natal! − quase repentinamente, Sabino Vieira faleceu. Morte tão rápida, que nem permitiria que administrassem os Sacramentos ao moribundo. Era o fim. O fim duma vida de sofrimentos e de angústia. Sabino Vieira, o agitado, o irrequieto, o rebelado, o criminoso, ia descansar. Na pequena e humilde capela da fazenda Jacobina, sob a invocação de S. Antônio − santo guerreiro −, abriu-se uma cova rasa para receber os despojos do chefe da república baiana de 1837. Cobriu-a uma campa de madeira, comovente lembrança de um amigo, um desses amigos como os muitos que ele soubera cativar e conquistar. Nela se inscreveu a seguinte dedicatória:

Tributo ao Saber e à Amizade. Aqui dorme o Sono dos Mortos O Dr. F. Sabino A. da R. Vieira. Nascido na Província da Bahia. Fale- ceu aos 25 dias do mês de Dezembro de 1846. Deixando após a sua morte saudosas recordações. Ao meu companheiro e amigo J. C. P. Leite.

A morte dava a Sabino Vieira isso que a vida lhe negara

sempre: “A paz”. (A Sabina - ed. 1938 - pág. 200). João Carlos sabia ser amigo.

A ORDEM MILITAR DE CRISTO

A atual ordem honorífica representa a Ordem de Cavalaria

de Jesus Cristo, instituída em 1319, pela bula Ad ea ex quibus, do Papa João XXII, a pedido do rei D. Dinis.

Essa Ordem sucedeu em Portugal à Ordem do Templo, extinta em 1311, no Concílio de Viena, pelo Papa Clemente V, herdando todos os bens que os templários possuíam no País.

A sua primeira sede foi na Igreja de Santa Maria do Castelo, de Crato Marin, e os primeiros estatutos foram promulgados pelo mestre D. Gil Martins, após confirmação régia em 11 de junho de 1321.

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Os mestres da Ordem eram eleitos pelo capítulo dos freires

dentre os cavaleiros professos. Mas, para suceder ao 70 mestre, D. Lopo Dias de Sousa, foi designado pelo Papa Martinho V o infante D. Henrique (1420), que não era cavaleiro professo por não poder fazer voto de pobreza, como duque de Viseu e senhor de várias terras no reino. Recebeu, pois, o título de “governador e administrador” da Ordem e a sua nomeação foi justificada pela necessidade de dar melhor aplicação do que até aí aos respectivos rendimentos. O infante utilizou os recursos da Ordem no pagamento de grandes despesas acarretados pelas navegações para exploração dos mistérios oceânicos, ligados assim à empresa dos Descobrimentos.

Por esse motivo, a Ordem de Cristo passou a exercer jurisdição espiritual sobre os territórios descobertos, sendo como administradores dela que os reis afetaram os respectivos rendimentos às novas dioceses que, a partir da do Funchal (1514), foram sendo criadas no ultramar português e exerceram o padroado sobre as igrejas aí erguidas.

Ao infante D. Henrique sucedeu, também como governador e administrador, seu sobrinho e filho adotivo D. Fernando. O Filho deste D. Manoel, que exercia as mesmas funções após seu irmão D. Diogo, foi aclamado rei em 1495, continuando a governar a Ordem de Cristo.

Foi no reinado de D. João II que, como ficou dito, os mestrados das ordens militares portuguesas (com exceção do priorato de Crato) foram anexados perpetuamente à Coroa (1551), passando o soberano a intitular-se sempre “governador e perpétuo administrador da Ordem de Cavalaria de N. S. Jesus Cristo.

Continuou a Ordem de Cristo a ser uma ordem religiosa militar, embora com o decurso dos anos se obliterassem os seus fins iniciais, até ao século XVIII. No reinado de D. Maria I, a rainha entabulou negociações com a Cúria Romana para a reforma da Ordem, obtendo do Papa Pio VI o breve Qualqunque a majoribus, de 18 de agosto de 1789, que, confirmando aos soberanos portugueses o grão-mestrado e a perpétua administração das três ordens militares, concede à rainha a faculdade de reformar a. Ordem de Cristo, extinguindo os conventos dela, regulando as suas rendas e aplicando a obras pias as que sobrassem da reforma. Este breve confirmou a

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reforma entretanto operada pela Carta de Lei de 19 de junho de 1789; que abriu o caminho da secularização, e da sua transformação em ordem meramente honorífica.

Como distinção honorifica dispunha dela o pontífice romano, que, pelo fato de se tratar de uma ordem instituída por bula pontifícia, entendia ter o direito de a conceder também. Assim, em Roma, no século XVIII, surgiram numerosos cavaleiros de Cristo criados pelo Papa, embora nos respectivos breves de nomeação se acentuasse: cujus ordinis magnus magister est Rex Lusitaniae.

Contra este uso pontifício reclamaram, mais de uma vez, os reis portugueses, mas sem resultado, provindo daí o fato de continuar hoje em dia a Santa Sé a conceder as mesmas insígnias que no século XVIII pertenciam à Ordem portuguesa embora, a partir de 1905, o Papa Pio X tenha instituído a Ordem Suprema de Cristo, como a mais nobre das ordens pontifícias, reservando-a para condecorar chefes de Estado e altas personalidades.

Em Portugal, a partir da reforma de 1789, o hábito de Cristo (expressão que provinha do uso pelos membros da antiga ordem religiosa de um manto branco onde se destacava a cruz vermelha) passou a ser atribuído para recompensar os serviços prestados nos “maiores postos e cargos políticos, militares e civis”.

Com este caráter se manteve durante o século XIX. Proclamada a República, foi extinta com as restantes ordens, até que o decreto n. 5.030, de 10 de dezembro de 1918, a restabeleceu para premiar serviços relevantes de nacionais e estrangeiros prestados ao País ou à humanidade, tanto militares como civis.

A ordem militar de Cristo, consoante os dados extraídos de publicação oficial de chancelaria portuguesa, datada de 1968, comprova a prestigiosa Ordem remonta à Idade Média. Entre nós, o Major João Carlos Pereira Leite mereceu ter o seu nome escrito entre os comendadores da Ordem de Cristo. Na Capitania de Mato Grosso, raro os que mereceram o galardão.

O CREPÚSCULO DO CHEFE

Estêvão de Mendonça registra com muita propriedade, a

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morte de João Carlos Pereira Leite, em 03 de outubro de 1880 e assim o consigna em data, 11. pág. 196.

“Falece em São Luiz de Cáceres o major João Carlos Pereira Leite.

Nascido no sítio da Jacobina, e filho do Coronel João Pereira Leite, foi fundador da fazenda de criação denominada Descalvados, a mais próspera do município. Era homem de mediana cultura, mas inteligente e empreendedor.

Chefe político de incontestável prestígio, filiado ao partido conservador, prestou à cidade de Cáceres serviços que jamais serão esquecidos, entre os quais deve ser particularizado o de haver impedido, em 1867, a invasão da epidemia da varíola no respectivo distrito.

Atencioso e calmo, dedicado ao sacrifício, deixou um vasto círculo de amigos, ao mesmo tempo que inimigos irreconciliáveis.

Figura de destaque no seio da sociedade matogrossense, a sua individualidade conserva ainda o aspecto impenetrável de um enigma.

Para muitos a memória do Major João Carlos somente desperta recordações afetuosas, ao passo que para outros ainda perduram ódios incontidos. Repousa no cemitério de São João Batista, o único existente em Cáceres, que foi construído à sua custa e por ele oferecido a cidade”.

ARTILHEIRO VALOROSO

A progênie do Cel. João Pereira Leite e de D. Maria Josepha de Jesus Leite foi enriquecida de outro varão ilustre, da mesma estirpe do seu mano, o Major João Carlos, na pessoa de Luiz Benedito, o filho mais longivo dos Pereira Leite. José de Mesquita sobre ele escreve magistral trabalho na revista do Instituto Histórico mencionada, dedicando-lhe as páginas de 109 a 111. Como já afirmei, mais do que ao se referir aos outros, ele colheu informes de fontes fidedignas do seu sogro João Carlos Pereira Leite II, o desembargador. A personalidade de Luiz Benedito é realçada por Mesquita, de modo a colocá-la de par com o Major João Carlos. Efetivamente, diz ele: “Nasceu Luiz Benedito Pereira de Souza Leite, como consta dos assentamentos do Cel. João Pereira Leite, no dia

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21/01/1830, na Jacobina, tendo sido batizado na Capela desse estabelecimento rural pelo Vigário Pe. José da Silva Fraga, a 19 de março do mesmo ano, tendo por padrinhos seu tio, P. Joaquim José Gomes da Silva, representado por seu irmão, alferes João Carlos e sua irmã, Da. Senhorinha Thereza da Silva.

Luiz Benedicto, como o seu irmão João Carlos, desempenhou importante papel na vida política de Mato Grosso, tendo ascendido às mais elevadas posições, gozando sempre merecido prestígio quer na sua terra de nascimento, quer em outras localidades matogrossenses.

Oriundo de uma família tradicional, possuidora de invejável renome e avultados haveres, não o cegava a vaidade nem lhe obscurecia as vistas a ambição, antes fazia da lhaneza do trato e da bondade de maneiras o segredo dessas múltiplas vitórias na vida pública.

Fidalgo cavaleiro da imperial casa (alvará de 30 de junho de 1856), Cavaleiro da Ordem da Rosa (carta imperial de 19 de abril de 1858), coronel honorário do exército brasileiro (carta patente de 15 de janeiro de 1890), chefe prestigioso do partido conservador em Cáceres, tendo substituído o seu irmão João Carlos na direção desse partido, a benemerência do Cel. Luiz Benedicto pôs-se evidente nos dias calamitosos que atravessou a então província de 1864 a 1870, assolada pela guerra e pela varíola, dois terríveis flagelos que tantas vítimas e prejuízos causaram.

Os seus estudos primários foram feitos em Vila Maria, tendo seguido, em 1842, para a Corte, onde, depois de cursar algum tempo um estabelecimento de instrução secundária, se matriculou na Escola Militar, em 1846.

O pendor para a carreira das armas se lhe revelou desde cedo, conseguindo galgar com rapidez os vários postos da milícia, pois, sendo alferes aluno em 1849, foi, por patente de 6 de setembro do mesmo ano, promovido a segundo tenente, para o 30 Batalhão de Artilharia a pé do Exército, por patente de 24 de maio de 1852; promovido a primeiro tenente para o corpo de artilharia de Mato Grosso, e por patente de 17 de dezembro de 1855, promovido a Capitão da 3a. Bateria do 1º Regimento de Artilharia a Cavalo, posto este em que se reformou, em 30 de maio de 1862.

Abandonando a vida ativa do Exército, aos 32 anos, estavam

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reservadas ao Capitão reformado maiores trabalhos no período que se ia abrir com a invasão paraguaia, e nos quais se houve com raro brilho e dedicação.

São de um documento oficial que faz parte do arquivo da família Pereira Leite as seguintes palavras referentes à conduta do Cel. Luiz Benedicto naquela fase agitada da nossa história.

“Na quadra calamitosa por que passou esta província por ocasião da cruel e vandálica invasão paraguaia, da tremenda epidemia das bexigas, que a devastou e doutros flagelos que lhe sobrevieram como sejam a inundação, a fome e o serviço de guerra por 5 anos, foi o Ten. Cel. Luiz Benedicto Pereira Leite, comandante do 6º Batalhão de Guardas Nacionais, então destacado, um dos oficiais mais prestigiosos e que mais coadjuvaram a administração desta província, e tendo sido agraciados muitos outros por serviço talvez menos importantes, não foi ele até hoje contemplado. Em ofício n. 56 de 01 de agosto de 1870 que incluso por cópia tenho a honra de levar às mãos de V. Excia. fez esta Presidência presentes a S. Excia. o Sr. Ministro da Guerra os importantes serviços prestados por este distinto oficial, o qual nenhuma solução teve. Como V. Excia. verá do citado ofício contribuiu o Cel. Luiz Benedicto (que é Cavaleiro da Ordem da Rosa há muitos anos, capitão reformado da artilharia do Exército e Fidalgo Cavaleiro da Casa Imperial) com metade dos seus soldados para as urgências do Estado, comandou o seu batalhão em serviço de corpo destacado e o distrito militar de Vila Maria durante todo o tempo da guerra, com grande zelo, probidade e economia dos dinheiros públicos e por sua benéfica influência e estima de que goza naquele distrito facilitava as expedições e o serviço de que era incumbido. Por ocasião da epidemia das bexigas foram premiados muitos que enterraram os mortos, mas não foi premiado o Supte. que salvou os vivos. Ameaçado o distrito de Vila Maria da terrível peste, pela sua proximidade com a fronteira boliviana, onde ela fazia espantosos estragos, e com os distritos de Diamantino e Poconé, onde a mortandade era aos centos, pôde o Ten. Cel. Luiz Benedicto vedar, por suas acertadas e enérgicas providências, que o flagelo ali penetrasse salvando assim centenas de vidas (Off. n. 9 de 23 de fevereiro de 1875, da Presidência da Província ao Ministro do Estado dos Negócios do Império).

Não menos brilhante que a sua curta carreira no Exercito

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é a sua passagem pela Guarda Nacional, instituição que tão relevantes serviços prestou ao país no antigo regime, principalmente durante a guerra com o Paraguai. A sua primeira nomeação para essa corporação data de 8 de janeiro de 1866, tendo sido designado para ocupar o posto de Major em comissão comandante do 60 Batalhão estacionado em Vila Maria, assumindo igualmente a 16 do mesmo mês e ano, o comando do respectivo distrito militar.

O Ofício da Presidência da Província datado de julho de 1870 mandou elogiá-lo pelo patriotismo, préstimo e dedicação que nas mais difíceis conjunturas em que tem estado a Província nunca deixou de com a maior prontidão e boa vontade concorrer com os seus serviços”.

Depois da proclamação da República filiou-se ao partido nacional de que foi um dos chefes, tendo sido eleito Vice Presidente do Estado, exercendo a Presidência de 10 de fevereiro a 10 de abril de 1892 e de 18 a 24 deste mês e ano.

Com a ascenção ao poder dos seus adversários, em virtude da contra revolução de 7 de maio de 1892, retirou-se à vida privada, ficando a sua residência em S. Luiz de Cáceres, onde faleceu em 15 de janeiro de 1910.

ORDEM DA ROSA

A versão oficial sobre a Ordem da Rosa é das mais românticas que se conhece na história das honorificências: a fim de perpetuar a memória do seu faustíssimo consórcio com Da. Amélia de Leuchtenberg e Eischstaedt, por uma instituição útil, que, assinalando essa época feliz, a conservasse com glória na lembrança da posteridade, estabeleceu D. Pedro I, por decreto de 17 de outubro de 1829, mais essa ordem brasileira militar e civil.

É a versão do Visconde de Taunay, referida pelo seu ilustre descendente, Sr. Affonso de E. Taunay: “Ao avistar a Imperatriz Amélia, que desembarcou com um vestido de gaze branca, salpicado de rosas meio abertas, veio-lhe incontinente ao espírito, exagerado e cavalheiroso, a idéia de constituir mais essa Ordem, batizando-a com as qualidades, ou uma das qualidades de que era menos capaz, a Fidelidade”.

As insígnias desta ordem são assim descritas: uma estrela

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la de seis pontas, esmaltadas de branco e marchetadas de ouro, assente sobre uma grinalda de rosas folhadas e em sua cor. No disco central do anverso, em ouro cinzelado, o monograma AP (Amélia e Pedro), circundado pela legenda AMOR E FIDELIDADE. No reverso, a data: 2.8.1828 (data do casamento em Munique) circundada pela legenda PEDRO E AMÉLIA nos mesmos esmaltes.

A coroa imperial decora a insígnia dos Cavaleiros, Comendadores, Grandes Dignitários e Grão-cruzes, honorários e efetivos, sendo que a jóia destes últimos pende de um colar de rosas folhadas em sua cor, intercaladas de escudos de ouro com as iniciais do imperador e sua consorte.

Fitas de bandas rosa-claro com duas orlas de branco. Destinava-se a premiar militares e civis, nacionais e

estrangeiros, que se distinguissem por sua fidelidade à pessoa do imperador e por serviços prestados ao Estado.

Luiz Benedito Pereira Leite, penúltimo filho varão de João Pereira Leite e Maria Josepha de Jesus Leite, foi galardoado com a Ordem da Rosa.

FENECIDO BOTAO

Na linhagem de Luís Benedito Pereira Leite surgiria logo após a sua morte, em 1910, expressivo botão, que logo murcharia. Quando visitei Cáceres pela vez primeira em 12.04.1950, fui ao Cemitério São João Batista para reverenciar a memória dos meus diletos antepassados paternos, que ali têm um lugar na parte superior direita de quem nele penetra. Antiga doação do benemérito tio-bisavô João Carlos Pereira Leite à comunidade, aquele campo santo muito me fala à alma e ao coração e, em meio a tantas tumbas, minha atenção voltou-se para aquela que está sempre coberta de flores e de velas: a de um menino cuja vida a morte cedo ceifou. Seu pai era primo do meu e foi o meu padrinho, aquele que me levou à pia batismal em 25 de fevereiro de 1917, aos ,5 dias de nascido e quase à morte.

A vida edificante desse jovem, sob o título “Uma florzinha de Cáceres” ou “Um exemplo edificante”, foi assim, delicadamente escrita, por Frei Francisco Maria Herail:

“Estava na flor da idade e contava apenas 14 anos. Acabava de prestar brilhantemente exame e já iam principiar as férias,

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quando foi acometido da doença terrível que o levou em poucos dias. Aos 28 de novembro, tinha-se ferido levemente no pé direito

e a ferida parecia tão insignificante que até se descuidou dela. No domingo, 30, apesar de leve dorzinha que sentia no pé

ferido, calçou-se e foi assistir à publicação dos prêmios e teve a alegria de se ver proclamado o primeiro de sua aula com a menção de distinção.

Durante os quatro dias seguintes, com o pé levemente inchado, continuou a ajudar seus pais sem se queixar, quando de repente, na sexta-feira, 4 de dezembro, teve um longo acesso de febre, sem que esse sintoma trouxesse suspeitas sobre a gravidade do mal.

No sábado, tendo repetidas vezes manifestado o desejo de ver o seu professor, foram chamá-lo, e este, chegando logo, entreteve-se muito tempo com seu aluno, em palestra, pensando também que a sua moléstia não tinha gravidade.

Caíram as ilusões quando, ao anoitecer do sábado, o doente teve uma crise terrível, em que a febre, por muito tempo, se manteve acima de quarenta graus.

No Domingo, transcorria o dia com relativa calma para o enfermo, até às 4,30 da tarde, quando lhe sobreveio nova crise e agravada, que fez temer um desenlace imediato.

Outro período de aparente calma registrou-se, em que a despeito de ligeira inquietação, que sofria, se manteve lúcido o seu juízo.

Como não lhe aparecesse melhora e temendo-se nova crise na segunda-feira, ministraram-lhe o Santo Viático, que tantas vezes pedira e ungiram-no.

A crise receada não veio; mas a doença seguia implacável a sua marcha destruidora e a febre que o consumia obrigava a lhe darem repetidos banhos que o acalmavam um pouco.

Enfim, chegou a manhã do dia 8 de dezembro em que ele desejava muito receber a Santa Eucaristia. Infelizmente o seu estado não permitia esse socorro; notava-se, pouco a pouco, que os seus sentidos se extinguiam.

As 9 horas, chamou por todos os membros da sua família e pelo seu professor; abraçou, pela última vez, seus pais e seus irmãos e reconheceu ainda o seu mestre, quando, pouco tempo depois, pôde vir à sua cabeceira.

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Aos seus, fez as suas últimas recomendações e passou para o dedo de sua mãe um anel que há muito tempo usava.

Pouco antes do meio dia, foi tomado de insensibilidade quase completa, apenas a leve e acelerada respiração e o bater do pulso indicavam ainda a vida do enfermo.

Nesse estado viveu até as nove horas da noite quando, sem esforço, como uma aragem que passa, sereno, exalou o último suspiro. SEU AMOR A DEUS

Deus o levava na flor dos anos. Nesse pouco tempo, entretanto, quantos belos exemplos ele não nos deu!

O primeiro amor é o amor de Deus, porque Deus, por sua excelência, tem que ser o primeiro em tudo.

Esse amor que lhe tinham ensinado os seus pais desde os seus mais tenros anos, desenvolveu-se com o tempo e com o conhecimento mais esclarecido da sua religião, para dar flores abundantes, desde o dia em que teve a felicidade de fazer a sua primeira comunhão.

Há apenas sete meses, o dia 17 de maio, quando em Roma se efetuava a canonização da Santa Terezinha do Menino Jesus, chegou-se ele alegre e convicto à sagrada mesa Eucarística.

Daquele dia em diante, nunca deixou passar uma semana sem receber de novo o seu Jesus, e quando, outras vezes, pôde assistir à missa, sempre comungou.

Durante a sua curta doença, quantas vezes não falou ele de Comunhão! Ao seu mestre, que o fora visitar, queixou-se que não lhe tinham deixado fazer a Comunhão, na sexta-feira, a primeira do mês de dezembro, interrompendo assim o costume de comungar todas as primeiras sextas feiras, como fazia, em honra do Coração de Jesus.

Quando lhe falaram em lhe dar o Viático, anuiu logo, com alegria e devoção o recebeu. A seu pai que lhe perguntara se sabia o que acabava de receber, respondeu: “Sim, papai, é Nosso Senhor”,

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e voltando-se para sua mãe, acrescentou: Toma-O mamãe, toma-O também, toma, toma! ...

Não quis, deitado, receber o seu Deus e pediu que o pusessem de joelhos e como lhe dissessem que não era possível, fez esforços para levantar-se um pouco, até que seu pai o ajudou a sentar-se.

Deliciava-se com assistir e ajudar as sagradas funções. Quis logo aprender as rezas da Missa para poder responder

ao Sacerdote e nas bênçãos do Santíssimo Sacramento queria também sempre ajudar.

No mês de Maria, no do Sagrado Coração e depois do mês do Rosário, nunca faltou às cerimônias religiosas e quando não as ajudava permanecia de terço na mão, rezando as Ave-Marias. Orava sempre de olhos baixos ou completamente fechados.

Durante a sua longa agonia, quando já não mais podia falar, ainda repetia várias orações, entre as quais se notava, sobretudo, a Santa Maria, tão apropriada ao seu estado.

.Sugerindo-lhe, o padre completava, e ele depois repetia jaculatórias. As suas últimas palavras inteligíveis foram de orações. SEU AMOR FILIAL

É impossível que quem ame verdadeiramente a Deus não ame também seus pais.

Dimas não podia fazer excepção, e não o fez, porque amava seus pais com entranhado amor. Quantas vezes, durante a sua curta enfermidade, não chamou por seu pai e sua mãe que o assistiam, com todo o desvelo e muitas vezes, com mais carinho ainda, repetia: Paezinho... Mãezinha ...

Ele que durante a sua vida tanto cuidado punha em não desagradar seus pais, não lhes poupou mostras de carinho; muitas vezes tomava e beijava as mãos de seu pai e sua mãe e muitas outras, ajuntando as enfraquecidas mãozinhas trêmulas pela febre que o torturava, pedia-lhes a bênção.

Quando presentiu o epílogo da sua vida, abandonado

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aos poucos que ia sendo das suas forças, chamou-os para os abraços pela última vez.

A sua obediência era exemplar. Bastava uma palavra de seus pais para dispensar o mais atraente divertimento e cumprir as suas determinações.

Antes da sua doença, várias vezes convidado por seu mestre para passeios, apesar de muito desejo que tinha, nunca procurou escapar à vigilância do pai e nunca se queixou por não obter essa licença.

Obedecia solícito e sem signal de mau humor. Se algum trabalho é que dava causa à recusa da licença e à

perda do passeio, ao invés de fazer como muitos, exercia-o com o mesmo cuidado e ardor como se nada lhe tivessem recusado. SEU AMOR AO PROFESSOR

Que um bom filho ame seus pais, e natural. Dimas tinha para com os seus um amor fora do comum; mas ele também dedicava -o que, talvez, é muito raro − um grande amor, um verdadeiro culto ao seu professor.

Faltando-lhe ocupação em casa, corria logo ao Colégio, onde passava algumas horas brincando com os colegas se lá os encontrava ou conversando com os mestres.

Os Domingos ou dias de festas, quando podia, passava-os no Colégio.

Esse amor mais se revelou na sua doença. De cama, no segundo dia, sentindo a falta do seu mestre

junto dele, perguntou ao seu irmão: “Luiz, você não falou ao Padre Francisco que eu estava doente? − Falei, respondeu o irmão, e ele insistiu: − “Ora Luiz, você não falou, senão ele já teria vindo”.

De outra feita, ouvindo seu pai dizer à sua mãe que o lugar deles deveria ser junto do enfermo, acrescentou − “o do professor também” − Tanto desejo de ver o mestre mostrou, até queixando-se, que foram chamá-lo.

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Dimas, então, alegre, conversou muito tempo com o

professor que acudira ao chamado. Quase não parecia doente e esta aparência levou o professor

a supor que a doença não traria graves conseqüências. Depois quantas vezes, durante os três últimos dias não falou

do seu mestre, chamando-o repetidas vezes. O mestre sempre que podia, visitava-o com grande

contentamento para o doente, que o queria sempre ao seu lado, com seus pais.

No último dia, sentindo aproximar-se o fim, chamou seu pai e sua mãe, acrescentando − “e o professor também deve estar aqui” −, como se se queixasse por não o terem chamado.

Este veio pouco depois e na cabeceira do seu aluno, assistiu triste e impotente aos progressos da doença que lho roubou.

Uma das últimas palavras do doente foi, ainda, para o seu mestre. Como estivesse segurando o terço que o padre trazia à cintura, seu pai lhe perguntou:

“Para quem o queres dar? E ele, em voz já apenas perceptível, respondeu: Para o padre Francisco ...” Algumas horas depois, entregava a Deus a sua alma,

deixando o seu professor triste por sua morte; mas feliz pelo heroísmo do aluno e cheio de esperança, porque se o aluno o amara tanto durante a sua vida, não haveria de esquecê-lo lá no céu, onde iria gozar d’uma certa participação do Poder de Deus. SEU AMOR AO TRABALHO

Amando a Deus, a seus pais e ao seu mestre, deveria também naturalmente ter amor ao trabalho, que é a regra comum da humanidade pecadora. Isso também não lhe faltou.

Amava tanto ao trabalho que chegando à escola uns meses depois dos seus condissípulos, não tardou a alcançá-los, o que depois

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da sua aplicação, deve ser atribuído à sua assiduidade, pois nunca perdia uma aula. A sua escrita era bem apurada, suas tarefas limpas e sua carteira asseda.

Mas não era só durante as aulas que o seu amor ao trabalho se revelava.

Quantas vezes se ofereceu ao mestre para varrer a sala ou para o ajudar em outros pequenos serviços. Nunca este lhe pediu uma cousa que ele não o fizesse logo.

O seu trabalho era constante. Enquanto muitos outros alunos brincavam depois da aula,

ele quase sempre ia logo para casa auxiliar seus pais. Todos que o viram na sua enfermidade puderam notar um

fato bem raro em outros da sua idade − as mãos calosas que indicavam que sabia fazer trabalhos; a sua inteligência, também se ocupava de serviços humildes, pesados, porém necessários. SUA PACIENCIA

Aceitar a morte com paciência e amor, na flor dos anos, quando se tem pais estremecidos, amigos dedicados, confiança e a simpatia de todos, parece uma cousa muito difícil. O nosso doente, entretanto, conformava-se com tudo. Entregara-se às mãos de Deus e confiante aceitava qualquer cousa que lhe aprouvesse mandar.

Sofria dores acerbas, sua cabeça ardia em fogo, porém nunca uma impaciência, nunca uma queixa escapava dos seus lábios; aceitava tudo quanto lhe davam e se às vezes hesitava um pouco a sua hesitação era passageira.

Ao Sacerdote que lhe sugeria oferecer a Deus a sua vida, para da mão Dele aceitar o que Ele quisesse, respondia que sim e repetia sem hesitação o ato de oferecimento que este lhe ditava.

Mas de onde lhe poderia vir essa paciência e essa resignação?

Seria ele acaso um fraco? Muito pelo contrário, a educação paterna e a religião lhe tinham fortalecido o caráter.

Seu professor lhe confeccionara uma caderneta na qual

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deveria anotar, todos os dias, as suas diversas vitórias, e não havia um dia em que não registrasse vários atos de paciência.

Enquanto outros meninos brigavam por qualquer motivo ou mesmo sem motivo, ele nunca o fazia, preferindo suportar com paciência as injúrias a se vingar, o que lhe seria fácil em se tomando em consideração que não lhe faltavam forças.

Os outros poderiam chamar de fraqueza, era pelo contrário, um grande exemplo de força moral. CONCLUSAO

A glória dos filhos redunda na de seus pais. Como é que o nosso jovem chegou ao ponto em que o

vimos? Será que Deus, de repente, o fez assim? Não, Deus não faz desses milagres; quase sempre se morre

como se viveu. Tudo o que vimos era o resultado de uma educação

pertinente, desvelada e que infelizmente se torna cada vez mais rara. Com que esmero cuidaram seus pais da sua educação! Não

lhe deram essa liberdade ampla que vai se fazendo moda e da qual os filhos, sem inteligência suficiente para dela usar bem, passam a abusar.

Salvo algumas festas em família, não freqüentava outras. Não o viam nessas festas ruidosas do mundo em que a virtude encontra tantos perigos; não o viam nas representações perigosas como as do Cinema; não o viam vagar pelas ruas em companhias duvidosas. Só o achavam em dois lugares − em casa, junto dos seus pais ou na escola com os seus professores.

Esse caráter foi o resultado da acurada educação paterna, educação aperfeiçoada depois na aula, uma aula religiosa e cristã onde a sua alma aprendeu a conhecer e a robustecer a sua força pelo contacto com Deus, que só pode dar fortaleza e virtude.

Por isso durante a sua longa agonia, mesmo nas crises

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mais terríveis, nunca se lhe ouviu uma palavra, não digo inconveniente, mas até menos elevada.

Não tinha ele medo da morte, porque a Religião lhe ensinara onde iria e a sua consciência lhe dizia que estava pronto para partir.

Oh! como bem a propósito o deitaram no meio de rosas, coberto de rosas!

Não era pois ele também uma rosa? Rosa ele era e durou o que duram as rosas: o espaço de uma

manhã. Desabrochou na primavera da vida e murchou aos primeiros

sopros do estio. Mas como as rosas deixam atrás de si o seu perfume, que

nos penetra e nos embalsama, ele nos deixa o modelo da sua vida e de sua morte, para nos servir de exemplo.

É bem o caso de dizer as palavras do Espírito Santo ao homem justo: Consummatus in brevi, implovit tempora multa, expressão que o pai sem a conhecer de certo traduzia bem quando dizia:

Deus o levou. Consola-nos, porém, o coração de pais o

poder dizer que a sua vida, embora curta, foi modelar e a sua morte, um verdadeiro e dignificante exemplo de fé cristã.

S. Luís de Cáceres, 8-12-925. Frei Francisco Maria Herail.” A pequena tiragem deste opúsculo não permitiu que

chegasse a todas as mãos. Pediram-me muitos que eu o reproduzisse, o que faço de bom grado nas comemorações do bi-centenário de Cáceres, reverenciando a memória do mimoso botão e do seu estremecido genitor, meu dileto padrinho Hyldebrando Esteves, cujas mãos eu osculava sempre, sem respeito humano, com amor e veneração, onde quer que eu o encontrasse.

Maria Josepha Pereira Esteves e Hyldebrando Esteves, saudosos pais de Dimas Alexandrino, faleceram em Cuiabá em 1951 e 1956, respectivamente, mas seus restos mortais foram reunidos aos de Dimas, no jazigo perpétuo da família, em Cáceres, onde Dimas viveu de 15.01.1912 a 8.12.1925.

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PERFIL ESPIRITUAL

João Carlos que faleceu aos 72 anos, no dia seguinte ao centenário da morte do seu avô, Coronel de Milícias, João Pereira Leite, foi uma alma sensível, como se depreende da correspondência política, quando adversários, pretendiam alijá-lo da representação federal, da qual fez largos círculos de amigos, entre os quais Lauro Muller, que o levou a formar o Secretariado do seu governo em Santa Catarina. Nos livros da procuradoria Fiscal do Estado, encontra-se o seu testamento assim redigido:

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Bendicto e louvado seja a Santíssima e Individua Trindade, agora e sempre por todos os séculos dos séculos sem fim. Amém. Este é o meu testamento de última vontade, que faço com quasi 72 anos de idade, mas em perfeito estado de saúde mental, para declarar: 1º — Que sou Cathólico, Apostólico romano, em cuja santa e única religião verdadeira tenho vivido e espero em Deus piedosamente morrer; 2º — que peço perdão a todas as pessoas a quem eu, ainda que de leve, tenha offendido, tratado com expressões grosseiras e irosas ou prejudicado n’alguma causa, assim como também que tenho perdoado de todo o meu coração a todos aquelles que por qualquer modo me hajam offendido ou prejudicado.

Não desejo levar para a vida de minha alma no além túmulo, resquício algum de ressentimentos pessoais, bem como não quero deixa-los no coração dos que me sobreviveram e com os quais tenho convivido neste vale de lágrimas.

Declaro que sou filho legítimo do Coronel Luis Benedicto Pereira Leite e de D. Anna Jacintha de Sampaio Leite.

Declaro que sou casado com Dona Amélia de Cerqueira Caldas, filha do Barão de Diamantino e da Baroneza do mesmo título, de saudosíssimas memórias, a qual por effeito do nosso consórcio passou a chamar-se Amélia de Cerqueira Pereira Leite. Declaro que do nosso casamento, celebrado religiosamente e civilmente a 12 de julho de 1892, dia em que completei 31 anos de idade, tivemos quatorze filhos, dos quais vivem actualmente dez, cujos nomes serão descriptos na respectiva declaração de herdeiros,

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opportunamente, quando se fizer meu inventário. Os 4 que Deus levou em bôa hora para a sua Glória, chamavam-se: Luiz Benedicto, João Carlos, Maria da Glória e Luiza da Conceição. Desta, fallecida já moça de 20 annos, no Rio de Janeiro, a 10 de julho de 1925, tenho em meu poder e da minha família os veneráveis restos mortaes. Declaro que não deixo dinheiro para ser inventariado e repartido entre os meus herdeiros, nem tão pouco jóias e adereces de ouro e brilhantes e que os únicos bens que possuo constam de algumas moradas de casas de pouco valor, por assim dizer — únicos salvados do grande naufrágio econômico-financeiro que soffri, mas que me produziu um beneficio incomparavelmente maior, qual o de avivar mais a minha fé na Providência Divina e firmar mais a minha esperança no futuro. Declaro que nada devo a quem quer que seja, nem aqui nesta praça e nem em qualquer outra, dentro ou fóra do Estado. Declaro que instituo herdeiro da terça parte dos meus bens, minha mulher Dona Amélia de Cerqueira Pereira Leite,excluindo-se dela duas pequenas casas, uma em São Luiz de Cáceres, sito à antiga rua da Cadeia d’aquella cidade com outra denominação hoje, no valor de um conto e oitocentos mil réis, que deixo para patrimônio do referido Bispado com a condição de mandar este celebrar todos os annos no mez de Novembro quatro missas: uma para todas as almas do purgatório; outra para as almas de todos os meus parentes ascendentes, descendentes, collateraes e affins e igual e conjuntamente para as almas dos parentes de minha mulher nos mesmos graos; outra para as almas das pessoas que foram trucidadas na triste chacina da “Bahia do Garcez”, em Novembro de 1901 e finalmente a quarta para todos os viventes humanos que estiverem sofrendo quaisquer males corporais ou moraes, afim de que quanto mais soffram se lhes avive mais a esperança e mais se lhes cresça o amor e temor a Deus. Declaro que a outra casa também excluída da sua terça é a que deixa para a Senhora Rosa Theodula Barboza e sua sobrinha Joaquina de Souza Barbosa, sita à Travessa de Santo Antonio desta Cidade, afim de gozarem e usufruírem della enquanto viverem, não podendo por modo algum da mesma dispôr. Desapparecidas as beneficiadas essa casa a que dou o valor de dois contos de réis, passará em plena propriedade a Nossa Senhora do Carmo, cuja Imagem se venera na Igreja do Rosário também nesta

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cidade, devendo ser ella então entregue à respectiva irmandade. Estas duas deixas que faço são excluídas do número de outras casas que possuo afim de que não fique prejudicada a terça parte dos meus bens, que deixo a minha mulher. Dona Roza Theodula e sua Sobrinha ficam com o ônus de pagar as décimas do prédio enquanto viverem e te-lo sempre em bom estado de conservação. Declaro que desejo e faço questão disto, seja o meu enterro o mais modesto possível e o meu caixão mortuário o mais pobre que se possa fazer. O meu corpo será sepultado no cemitério da Irmandade do Senhor Bom Jesus, a que pertenço, junto do qual irão também os restos mortaes da minha filha Luiza, e será devidamente previlegiada por minha mulher e igualmente para si. A Missa do 7º dia em meu sufrágio será simplesmente rezada, sem música e apenas com dobres de sino, na Capela de N. S. da Piedade. Não deixando para a minha família senão pouquíssimo em bens materiais, lego-lhe todavia um bem espiritual supremo, o maior e o melhor de todos os bens do mundo: a fé em que nasci, vivi e graças à Deus, morro e o amor ao Sacratíssimo Coração de Jesus a que nos consagramos lithurgicamente a 29 de outubro de 1926. Cultuem os meus herdeiros este amor como Elle quer e deve ser amado e nada lhes faltará — tudo o mais se lhes advirá por accréscimo. Quero que o meu corpo seja levado à sepultura por 6 praças de preto da força da linha ou da polícia, como a última prova de estima à classe militar a cujo patriótico sacerdócio pertenceu meu pae. Não quero que ninguém procure notícias minhas no espiritismo, depois da minha morte, porque não adoto essas práticas condenadas pela Igreja Cathólica a que pertenço e a quem presto obediência. Marco o prazo de dois annos para ter inicio o inventário dos meus bens. Nomeio meus inventariantes testamentários: 1º — minha mulher Dona Amélia de Cerqueira Pereira Leite, 2º — meu genro Desembargador José Barnabé de Mesquita e 3º — meu filho Doutor Antonio de Cerqueira Pereira Leite, Médico, aos quaes peço aceitarem o encargo sem benefício de inventário, por ser muito pequeno o monte partível. Declaro que tenho um Montepio obrigatório da Fazenda Federal, cuja contribuição acha-se paga até 31 de dezembro do corrente ano de 1933 e outro já remido na Instituição do M.G.D.E. dos servidores do Estado, sendo a metade de ambos de minha mulher e outra metade dos meus herdeiros, na forma dos respectivos regulamentos.

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Também tenho um seguro de vida na Sul-América de dez contos, remido desde 27 de junho de 1926 e que pertence exclusivamente à minha mulher Dona Amélia de Cerqueira Leite, a quem será pago pela Companhia, sem ônus algum, não fazendo parte de minha herança, e isto logo que se prove óbito meu. Não quero que se forre de preto a sala mortuária onde estiver o meu corpo, que é a do Sagrado Coração de Jesus e nem quero que se chore com espalhafatosas lamurias em torno delle ao ser feixado o caixão fúnebre. Quem sentir deveras a minha morte que não a lamente mas que reze a Deus por minha alma. Antes de ser sepultado o meu corpo deverá ser feita a encomendação lithurgica pelo vigário da Boa Morte. A minha mortalha está feita — é a minha beca de Magistrado. Façam vestir ao meu corpo com ella, atando-se à minha cintura um cordão de fio de algodão branco, com quatro nós nas extremidades de um lado e treis do outro, symbolisando as sete dores da Santíssima Virgem Maria.

— Cuiabá, 7 de Julho de 1933 — João Carlos Pereira Leite. Mais tarde, João Carlos, sempre preocupado e zeloso, faria um termo aditivo ao seu testamento, através de instrumento público lançado a folhas 150 e 151v do livro competente da Procuradoria Fiscal e no livro n. 146, fls. 31 e 32 das notas do 2º Ofício da Capital, a cargo do seu primo e afilhado João Pereira Leite, com o seguinte teor:

Testamento que faz o Senhor DESEMBARGADOR JOAO CARLOS PEREIRA LEITE, conforme adiante se declara. Saibam quantos esta publica escriptura de testamento virem que, no anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil novecentos e trinta e treis, aos oito dias do mez de Agosto, nesta cidade de Cuiabá, Capital do Estado de Mato Grosso, na residência do testador à rua Barão de Melgaço número noventa e dois, onde a chamado vim, por me ser distribuída esta, e sendo ahi, perante mim tabellião e as cinco testemunhas adiante nomeadas e assignadas, compareceu o Senhor DESEMBARGADOR JOAO CARLOS PEREIRA LEITE, com setenta e dois annos de idade, casado, magistrado aposentado, residente nesta mesma casa; o qual se achava doente, deitado, a quem reconhecemos pelo próprio e nos certificamos estar em seu perfeito juízo e livre de toda e qualquer coação. E por elle foi dito, perante mim tabelião e as mesmas cinco testemunhas, que, por sua livre e

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própria vontade, em data de sete de Julho ultimo, fez as declarações de sua ultima vontade em testamento cerrado, o qual foi devidamente approvado em dezenove daquelle mesmo mez com as solenidades legaes; que por este Instrumento confirma todas as disposições constantes do referido testamento, additando-lhe as seguintes: — Que quer que, depois de sua morte, a sua família mantenha o compromisso por elle testador assumido para com o Senhor JOAO PAULO DE FARIA, constante da escriptura de dação de pagamento, de vinte cinco de outubro de mil novecentos e vinte nove lavrada em minhas notas; Que as cinco apólices da dívida pública estadual que transferiu ao seu genro JOAQUIM DO ESPÍRITO SANTO FIGUEIREDO, como adiantamento á legítima de sua mulher Dona MARIA JOSE DE FIGUEI REDO, quer que fiquem dispensados da collação, devendo a sua importância sahir da metade disponível de seus bens; Que, o adiantamento em dinheiro, feito por elle testador ao seu empregado AUG USTO ALVES LOPES, elle o deve pagar com seus serviços, cuidando da limpeza e plantações nos quintaes da Praça General Mallet esquina da rua Commandante Costa, no segundo distrito, até que os mesmos sejam partilhados de acordo com o seu testamento cerrado. E de como assim disse, eu tabellião dou fé, sendo testemunhas os Senhores CORONEL JOSINO VIEGAS DE OLIVEIRA PAES, viúvo, capitalista, AURELIANO PINTO BOTELHO, casado, proprietário, HILDEBRANDO ESTEVES, casado, proprietário, LUIZ FRANCISCO DE NORONHA, casado, funcionário público e JOAO BATISTA PULCHERIO, casado, negociante, todos brasileiros, residentes nesta cidade, os quais todos assinam comigo este testamento, depois de lido por mim em voz alta, em presença das testemunhas e do testador que também o assina. Foram praticadas todas as formalidades recomendadas pelo artigo 1.632 do Código Civil, o que orto por fé. Eu, João Pereira Leite, segundo tabelião, o escrevi e assino em público e razo. Em testemunho (sinal público) da verdade. O 2º tabelião JOÃO PEREIRA LEITE, JOAO CARLOS PEREIRA LEITE, JOSÍNO VI EGAS DE OLIVEIRA PAES, AURELIANO PINTO BOTELHO, HILDEBRANDO ESTEVES, LUIZ FRANCISCO DE NORANHA, JOAO BATISTA PULCHERIO. (Selado com 2$200). — Transladado em seguida. Eu, JOAO PEREIRA LEITE, segundo tabelião, o fiz dactilografar, subscrevo e assino.

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Em testemunho (sinal público) da verdade. O segundo tabelião JOAO PEREI RA LEITE. A vida retilínea de João Carlos é verdadeiro patrimônio para a família, que dele se orgulha como homem justo, que sempre viveu a simplicidade da vida familiar.

PERLUSTRE DOS TRES PODERES

Na linhagem de Luís Benedito Pereira Leite destaca-se o seu filho João Carlos, homônimo do Tio paterno deste. A sua figura austera desdobra-se nos documentos que nos foram confiados pelo seu dileto neto mais velho, Sebastião Frederico Teixeira, que possui valioso repositório a respeito do político, do magistrado e do homem de Estado que foi o Des. João Carlos Pereira Leite. A própria carta que acompanhou os documentos enviados já constitui o roteiro:

Meu caro Luiz Philipe. Conforme você sugeriu estamos lhe enviando algumas

lembranças de nossa convivência com o ilustre, muito querido e saudoso antepassado João Carlos Pereira Leite. Fazemo-la ao correr da pena, sem qualquer preocupação, ficando a seu critério selecionar o mais interessante. Inicialmente vamos lembrar o entusiasmo dele pela carreira militar. Em decorrência desse entusiasmo sempre manteve ou procurou manter excelente relacionamento com os militares, aos quais sempre teve na conta de seus melhores e mais leais amigos. Entre estes, lembramo-nos do Mal. Marçal Faria, do Mal. Fontoura, do Gal. Celestino Alves Bastos, do Gal. Caetano, Maior Ricardo de Oliveira, para citar somente alguns coestaduanos. Lembramo-nos, também neste momento, do Gal. Newton (e não Milton) Cavalcanti; o qual, sendo ainda da Cap. de Cavalaria, servindo no 1º R.C., hoje Dragões da Independência, com seu colega Ten. Nestor Penha Brasil — que era, ao tempo noivo de uma das filhas do Gal. Celestino, com quem se consorciou — vez por outra, visitava o então deputado Pereira Leite, conhecido como defensor e amigo da classe militar, como membro da Comissão de Defesa Militar ou Comissão de Assuntos Militares (não sei bem a denominação), da Câmara dos Deputados. Cito o fato apenas para ilustrar que não foi por acaso, segundo nos parece, que o Gal. Newton, na ocasião Comandante da Região Militar, compareceu aos

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funerais do nosso João Carlos Pereira Leite, afastado, há muito, de qualquer atividade social. Queremos, de igual modo e para o mesmo efeito, recordar o fato de ter escolhido para padrinhos de Rita e Luiza, respectivamente, o Mal. Câmara — cujo nome nos foge, no momento, e o Gal. Lauro Muller, de cujo Governo, em Santa Catarina, foi o Secretário da Justiça, e o fato de ser ele mesmo, João Carlos, padrinho de uma das filhas do Gal. Celestino, se bem nos lembramos, de nome Amelinha. A Rita deve lembrar-se de todos esses fatos. A margem breve comentário nosso: Lendo no “Engenho de Vila Real” a genealogia da família, passamos a entender melhor o grande desejo dele parece-nos já ter feito referência a isso, anteriormente — em fazer seu primeiro neto e afilhado seguir a carreira militar, carreira que fora de seu pai — Luiz Benedito Pereira Leite e a qual, diga-se de passagem, ele muito dignificou, conforme se pode deduzi r de seus assentamentos, transcritos em seu precioso livro. A alegria que lhe não pudemos dar — deixamos a Escola Militar de Realengo, no 1º ano, em 1931, onde fomos colegas, entre outros, do Dilermando, do Nestor Cuiabano, dos Curvos certamente ele a teve, numa das “moradas do Pai” em que sobrevive, como espírito, vendo seu bisneto, Luís Frederico de Barros Teixeira, envergar a farda de nossa marinha de Guerra e, hoje, como Capt.Ten., comandando o navio “Abrolhos”, em Aratu, navio esse que integra a moderna equipagem de nossa Marinha, adquirido à Alemanha, e, como amplamente noticiado, inspecionado, em data recente, pelo Presidente ,Geisel. Outro aspecto de sua personalidade: sua lealdade ao partido em que militou, chefiado pelo Pedro Celestino, a quem (não sei se sabe) estava ligado sentimentalmente, desde que o escolheu e a Da. Corina, padrinhos de Amélia. Embora conciliador, por natureza, nunca lhe faltava energia e espírito de combatividade, na defesa de seu partido ou para repelir ataques dos adversários. Sob esse aspecto, sua atuação jornalística não há de ser vista, apenas, como colaborador do “A Cruz”, como comumente se lembra. Foi, também, jornalista político, atuante, escrevendo no jornal do Tito Calhao: “O Mato Grosso” — “O Democrata” — não me lembra mais. Quanto à atividade jornalista vale lembrar aqui, a título de ilustração, o testemunho de Catão das Neves, que, certa vez, presente seu primo Deocleciano, em conversa sobre jornalistas, espontaneamente, se

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referiu à “extraordinária facilidade de escrever do Dr. João Carlos”, que o fazia, sempre, na redação do jornal, de uma assentada, com simplicidade e objetividade, o que muito o impressionara, a ele, Catão, modesto empregado no jornal. O testemunho coincide, aliás, com o que já sabíamos, pelo Benedito London, saudoso amigo, Secretário ou Tesoureiro, não me lembra, do “A Cruz”, desde sua fundação.

Outro breve comentário sobre o que acima ficou dito: A intransigência e combatividade do deputado Pereira Leite na defesa de autoridade do órgão central de seu partido valeu-lhe o reconhecimento do velho Chefe Pedro Celestino, mas grangeou-lhe, de outra parte, a animosidade de alguns próceres azeredistas, os quais, atingidos pelas críticas que mereceram, aliaram-se a celestinistas aproveitadores, quando ocorreu a fusão das duas correntes, passando, então, uns e outros, a hostilizar o deputado Pereira Leite, rasteiramente, junto aos diretórios municipais, com o objetivo de ver o seu nome e o do deputado Severiano Marques, riscado da chapa, na fase de renovação dos mandatos (anexo alguns tópicos de cartas, do próprio punho, umas e copiadas pela Rita, outras, todas contidas em caderno, em meu poder.). Pela leitura desses tópicos pode-se ajuizar das manobras mesquinhas nos bastidores da política e a sobranceira e energia com que o deputado Pereira Leite se contrapõe a seus opositores, defendendo, não só o seu, mas o direito de o seu colega deputado Severiano Marques, de ambos, enfim, serem conservados na chapa de deputados).

Aspecto outro que dispensa qualquer comentário diz respeito ao seu espírito de religiosidade. Lembramo-nos, — a Maria Figueiredo, minha tia, recordava comigo, há dias o que às Sextas-feiras, consagrado ao Coração de Jesus — sua maior devoção — qualquer que fosse o tempo, lá ia ele assistir a sua missa, na Igreja de S. Cristóvão, que freqüentava. Mas, além dessa, era fervoroso devoto de Sto. Antônio e S. Benedito. Neste momento em que relembramos estes pormenores, parece-nos vê-lo, recostado em sua rede de largas varandas, mão direita segura ao punho e o braço esquerdo, pendido, a balançá-la suavemente, enquanto, com sua voz branda, procurava nos alertar — na ocasião lhe anunciamos nosso breve ingresso, no serviço público, nos idos de 32 — para a virtude da obediência, que nos dizia ser a que mais se evidenciava na vida gloriosa de S. Benedito. Estava

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sempre — era um grande ledor da vida dos santos - a alertar-nos com exemplos, que colhia em suas leituras, ele que, sendo reconhecidamente um homem de bem, cristão autêntico, já se constituía, guardadas, as proporções, um modelo vivo e digno para todos nós. Anote-se, nesta altura, que essa virtude da obediência era a tônica de seu comportamento, como religioso e como político, de forma tal que, hoje, pensando nisso, por associação, somos levados a crer que, se vivo fosse, como católico, estaria acatando, sem qualquer dissentimento, as inovações ou atualizações evangélicas, não sei bem como diga, recomendadas pelo último Concílio, assim como na condição de político militante, acatava rigorosamente as decisões de cúpula partidária. Existem outras facetas de sua vida exemplar que nos foram reveladas pelo Major Ricardo de Oliveira, de saudosa memória, cuiabano cem por cento, caracter adamantino, que foi grande e dedicado amigo do nosso João Carlos. En passant: Ao regressar para Cuiabá, foi o Major Ricardo o escolhido para nosso responsável junto à direção do Colégio Militar, onde estudávamos, e foi, no honrado lar desse inolvidável e bondoso cuiabano, na convivência de Da. Chiquinha, também cuiabana, sua virtuosa esposa para nós uma segunda mãe — e na de seu amado filho Geraldo de Oliveira, que praticamente fomos criados. Permita-me uma digressão: O Geraldo de Oliveira — relembro-o com infinita saudade — foi aquele brioso militar que, como Tenente — post mortem Capitão por bravura - tombou, à frente de sua coluna de combate, em 27 de novembro de 1935, no assalto final de reconquista do 3º R. I., sublevado por comunistas.

Existem, como acima dissemos, outras facetas da personalidade do querido antepassado nosso João Carlos Pereira Leite — como, por exemplo, sua extraordinária bondade, antes, dir-se-ia, seu espírito de servir a todos, não interessadamente, como político, mas como católico praticante, que sempre procurou viver, evangelicamente, e da melhor maneira possível os ensinos de sua religião. Revejo as folhas escritas e me espanto, com as dimensões que tomou o relato. Fomos mandando braza porque tínhamos em mente estas lembranças mas sem atentar pela sua extensão. É que, também, estávamos preocupados em não retardar ainda mais nossa correspondência, o que, infelizmente ocorreu, porque a Eunice e eu tivemos que ir à Salvador, onde permanecemos cerca de 35 dias, dando assistência à

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nora, submetida à operação de urgência, felizmente bem sucedida. Vamos, pois, por hoje, pôr um ponto final. Quanto ao que ainda poderíamos dizer fica para outra oportunidade. — Ou, quem sabe, o faremos, pessoalmente, num bate papo informal, que é mesmo o de que gostamos muito? A minha caçula Lúcia Maria, último ano de arquitetura, deseja muito conhecer os parentes cuiabanos, as férias se aproximam e vai tornando corpo nosso projeto de uma viagem a Cuiabá... É o caso, então, de matar dois coelhos de uma só cajadada... O Luiz Frederico e a Leda, também desejam conhecer os nossos parentes cuiabanos mas, somente, para o ano pensam em fazê-lo, sendo que o Luiz provavelmente, o fará primeiro, porque deve ir para Brasília fazer um curso de Comando e Estado Maior e de Brasília a Cuiabá fica mais fácil ... O opúsculo “Dom José” foi entregue à Biblioteca Nacional e seu “Furquilha” do qual tínhamos, ainda, alguns exemplares, oferecemo-los às Bibliotecas da Escola Naval, Escola Militar e Associação Ex-alunos dos Colégios Militares. Vamos procurar a Jovita a ver se nos cede alguns exemplares de “Capitães — Generais” que ela conserva, para oferecê-los às bibliotecas do Club Naval e Club Militar. Se você ainda dispuser de alguns queira mandar-nos quando tiver portador. Finalmente o nosso muito obrigado pela certidão de casamento de meu pai. Meu objetivo era saber se constava, nesse documento, o nome de meu avô paterno, pai, também, de Salvador da Costa Teixeira e Custódia Teixeira, os quais, segundo sabemos, por volta dos anos 15 ou 16 transferiram-se para Uberaba, onde constituíram família. O primeiro vim a conhecer, ainda estudante, no Rio, onde ele vinha à miúdo e levava-me sempre a passear pela cidade; no entanto, nunca cogitei do assunto e, pois, nenhum esclarecimento lhe pedi. O Adolfo, por outro lado, como Instrutor de Tiro de Guerra, em suas andanças por diversas cidades de Minas, incluída Uberaba, conheceu a ambos e respectivos descendentes, nossos primos, com os quais, agora, vamos procurar entrar em contacto. Anexo segue também, o xerox do discurso do deputado Pereira Leite, de que eu me lembrava, fora feito, e fiz referência em minha última carta. Sem mais, pedindo excusas pela extensão, envio-lhe cordial abraço e as recomendações da Eunice para você e todos os seus. aa) Sebastião.

A sua atividade política pode estar resumida nas cartas que escreveu ao Dr. Tomás Dulce, em Cáceres; ao Cel. Antônio Antero

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Paes de Barros, hoje nonagenário, então em Campo Grande e ao chefe político de Livramento, Tenente Antônio Estêvão de Figueiredo, com quem conversamos pessoalmente na lucidez dos seus 86 anos. Vejamo-las: 1 — “Meu Caro Amigo Sr. Cel. Antero. Rio, 7 de junho de 1923. Há de lembrar-se de nossa curta palestra à Rua Uruguaiana e durante a qual tive de falar-lhe sobre minha reeleição. Pois bem, posteriormente, um amigo meu avisou-me que algo se trama contra a conservação do meu nome na chapa do nosso partido e agora acabo de receber uma carta de um amigo íntimo nosso de Cuiabá, dizendo que meus desafetos pretendem bloquear-me junto aos diretórios locais, a fim de que estes proponham a minha exclusão e a do Severiano da chapa e que lhe parecia conveniente eu fazer o meu trabalho junto dos mesmos diretórios, a fim de neutralizar ou conjurar qualquer tentativa que eles fizerem contra mim. Desafetos políticos no mesmo partido eu felizmente não tenho, mas é possível que, dentre os nossos amigos políticos de hoje, aqueles que se juntarem ao nosso partido por efeito da fusão, existam alguns desafetos pessoais meus, que não obstante nossos correligionários, ainda conservam ódio em mim e desejo de fazer-me todo o mal possível. Mas o amigo vê que isso é uma cousa pessoal, puramente. Os que me conservam ódio que se vinguem de mim como puderem, mas não podem fazê-lo por intermédio do nosso partido, ao qual tenho dedicado e ao Estado, todas as minhas melhores energias... aa) João Carlos Pereira Leite.” 2 — Carta ao Sr. Dr. Thomás Dulce, em 8 de junho de 1923. ... “Não acredito que hoje, quando ainda melhores serviços poderei prestar ao nosso partido e quanto mais eu necessito da sua assistência benfazeja, no último quartel da vida, que alguém, a não ser algum desafeto pessoal meu, por mera vingança, se lembre de afastar-me da representação do nosso Estado na Câmara, criando-me uma situação de angústia e sofrimentos, para gáudio daqueles contra quem lutei e a quem, mercê de Deus, venci, consolidando a situação do nosso partido de tal forma que o adversário, desanimado, procurou fazer conosco a paz. Tenho certeza absoluta de que o nosso partido não

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consentirá no meu afastamento ... Quando eu propus-me a defendê-lo (refere-se ao partido) num tempo cheio de dúvidas e apreensões, quando a situação era precária em 1916, fui procurado por um amigo meu que veio dizer-me — “que eu estava mal orientado, apoiando o Gal. Caetano que era ainda tempo de recuar e retomar o bom caminho mesmo porque o general cairia infalivelmente e eu não voltaria mais à Câmara. Eu lhe respondi que “entre voltar à Câmara e a minha queda, se o partido que estava defendendo fosse vencido, eu preferiria o ostracismo”. Como é, pois, que agora, que vencemos em toda a linha com a capitulação do adversário, que veio unir-se a nós, é que eu devo ser relegado ao ostracismo, no último quartel de minha vida, reduzido à quase pobreza, e não podendo auferir dessa tranqüilidade que a paz da família matogrossense trouxe a todos nós? Quando eu não posso ocupar-me mais de outro mister? 3 — Carta dirigida ao Sr. Antônio Estêvão Filho, de 9 de junho de 23. Nunca tive ocasião de vir a presença do meu estimado amigo para tratar de minha recondução ao mandato de deputado federal, que o nosso glorioso partido tem me confiado e que eu sempre tenho procurado honrar e dignificar durante oito anos consecutivos, com inexcedível dedicação e lealdade, de que tenho plena consciência. Achava que era desnecessário ... Propriamente não sei quem é que se propõe a conter-me. Seja quem for, porém, não lhe assiste razão alguma de ordem politica para o fazer, porquanto na minha consciência ainda não desmereci do conceito que conquistei no seio do nosso partido pelos bons e oportunos serviços ao mesmo por mim prestados quando periclitava a estabilidade de sua situação política, toda então cheia de dúvidas e incertezas. Pela mercê de Deus, mais do que pelo acerto e felicidade das manobras que empreguei na luta, consegui “forçar o adversário a propor-nos a paz, dessa paz que tanto precisava o nosso torrão natal para o seu futuro engrandecimento. Sempre tenho dado as melhores provas da minha dedicação, sempre pronto, sempre disposto a interessar-me pelo progresso do nosso Estado, bem como pelo bem estar de cada um de nossos correligionários. Meu afastamento, agora ... etc... Na luta os meus serviços foram proveitosos, porque então, no período da paz é que eu devo ser dispensado e atirado ao ostracismo, quando mais não posso ir ocupar-me de outro mister? ...

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Estou nas melhores relações possíveis com o Chefe da Nação, bem como com os ilustres ministros, das diversas pastas do seu honrado Governo, sendo sempre muito considerado por eles, todas as vezes que me cabe tratar de qualquer assunto de interesse de nosso Estado e dos nossos estimados amigos. Qual a vantagem política de eu ser substituído? Qual é o correligionário nosso com mais serviços, com mais sacrifícios, com melhor fé-de-ofícios de que eu? Temos, é verdade, alguns amigos nossos que prometem e que apenas começam de se iniciar na política, mas nenhum deles pode concorrer comigo, para me preterir. Pode qualquer deles ocupar minha vaga quando esta se dê naturalmente.” 4 — Carta dirigida ao seu sobrinho Hildebrando. Em 10 de junho de 1923...Como você sabe, no fim deste ano termina o meu mandato de deputado federal, no qual, por muitas razões, políticas e particulares, eu desejo muito ser reconduzido, pelo menos por mais estes três anos de 1924 a 1926, quando não seja sempre, enquanto Deus me der vida e eu possa prestar os meus serviços ao meu partido, como venho prestando, não tendo receio de ser considerado falta de dedicação. Parece-me até que, não seja falta de modéstia da minha parte, ser talvez o partidário mais dedicado, mais esforçado que o partido tem tido até agora, não temendo confronto com outro qualquer dos meus companheiros. O nosso eminente amigo, chefe e meu bondoso compadre Pedra Celestino, quando foi da eleição de 1921, me declarou: “no meio do nosso partido não haveria ninguém que, por melhores serviços que ao mesmo tivesse prestado, pudesse me preterir na minha reeleição, serviços tais que tinham conquistado para mim um lugar que outro qualquer não poderia preencher, com o mesmo proveito para o nosso partido e para o Estado, para o qual eu tinha um devotamento quase excepcional, pouco comum”. Portanto, não vejo razão alguma de ordem política para que alguém, seja quem for, possa combater a minha reeleição de Fevereiro do ano vindouro, para deputado federal, porquanto à minha consciência, reflexo dos meus atos, não desmereci ainda do conceito que conquistei no seio do nosso glorioso partido pelos bons e oportunos serviços ao mesmo por mim prestados, quando periclitava a estabilidade de sua situação política, toda então cheia de apreensões, dúvidas e incertezas ...

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Daí para cá são evidentes as provas de dedicação que lhe tenho dado, cada vez mais me esmerando por agradá-lo, tornando digno de sua confiança ... Assim sendo, não vejo motivo político para a minha substituição, hoje que melhores serviços posso ainda lhe prestar por estar de muito boas relações com o nosso preclaro Presidente da República Dr. Artur Bernardes e com a quase totalidade da Câmara dos Deputados. Não devia temer hostilidade alguma à minha pessoa tão bem como me acho com o nosso Presidente do Estado, com o Diretório Central e com o governo federal. Mas é que ouço dizer que se pretende trabalhar contra a conservação do meu nome na chapa, nos municípios diversos de nosso Estado e perante os nossos diretórios locais, a fim de que estes proponham a minha exclusão e a do Severiano. Por que razão? Já faltamos algum dia com o cumprimento do nosso dever político para com o partido? Se não faltamos, o razoável é que acha seja mantida como está. Por que estamos em paz? Pois não é paz que mais direito tem de serem conservados na chapa aqueles que mais trabalharam pela nossa vitória, vitória esta conseguida pela capitulação do adversário? o nosso direito pois, de sermos conservados na chapa em quanto bem serviços ao nosso partido, é inconcusso, insofismável, é evidente. Assim peço confabular aí com outros amigos do diretório no sentido de, no ânimo de cada um ficar assentado que se não modifique a chapa a despeito mesmo de querer algum desafeto pessoal nosso, que o temos dentre os amigos novos, trabalhar contra nós. Achando o nosso diretório aí, no firme propósito de sustentar a conservação do meu nome na nossa chapa, como desejo e espero aconteça, ninguém, seja azeredista ou pedrista, como somos, se animará a pleitear nos municípios a minha exclusão e a do Severiano. Tenho sobejas razões para afirmar que o compadre Pedro Celestino é a meu. favor, bem como o Diretório Central do nosso partido. ... aa) João Carlos Pereira Leite.

Estes documentos por si só revelam a postura e a grandeza d’alma do sobrinho e homônimo do Major João Carlos Pereira Leite.

MISSAO DO PADRINHO

João Carlos era sobrinho carnal da minha bisavó Ana Maria

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da Silva, mãe de José Venâncio, sendo este primo daquele, contemporâneos, amigos e compadres. Os meus avós paternos, Hermínia Alves da Cunha e José Venâncio Pereira Leite morreram muito cedo, em 1888 e 1893, respectivamente, deixando órfãos Maria Josefa e João. Estes contavam quatro e nove anos quando perderam os pais. O padrinho assumiu a educação do afilhado que veio na sua companhia de Cáceres para Cuiabá, onde chegaram em 9.1.1896. Contava meu pai que no mesmo vapor viajaram muitos dos materiais que serviram para a construção do Edifício sede da firma Orlando & Cia., na esquina da antiga Rua de Baixo com a Travessa da Assembléia, dando fundos para a Prainha. Esta casa comercial desempenhou papel influente nos áureos tempos da Borracha e funcionava como se fosse Banco, quando nenhum existia na praça e o próprio Banco do Brasil só viria instalar-se na década de 20.

Lembrava-se meu pai da morte de sua mãe Hermínia Alves da Cunha, na Jacobina, em cuja Igreja, sob o patrocínio de Santo Antônio, foi sepultada bem ao lado da do revolucionário baiano chefe da Sabinada, o médico Francisco Sabino da Rocha Vieira. Recordava-se de quando penteavam seus longos cabelos para sepultá-la. Eram familiares a ele “Nambi” o “Paiol” e a Jacobina, lugares que lhe povoaram o sonho de menino e nos quais nas cavalgadas com o seu pai era-lhe permitido tocar em todas as folhas pretendidas, inclusive o cansanção.

Matriculado pelo padrinho no recém-fundado Liceu de São Gonçalo, inaugurado em 1894 pelos Padres Salesianos de Dom Bosco, ali completou seus estudos. Duas figuras ficaram na sua memória: a do Padre Cassimiro, admirado pelas suas excelsas virtudes e a do Mestre Sampaio. Este era o terror das crianças das primeiras letras e certo dia alguém falou ao meu pai: “Joãozinho, Mestre Sampaio quer falar com você.” Meu pai devia contar 6 anos e pouco e foi até a casa do Mestre e o encontrou morto por sobre a mesa funerária. Voltou correndo contente e feliz, ele que partira nervoso e preocupado. Ao padre Cassimiro chegou a ajudar nas coletas mensais que fazia para o próprio sustento, entregando o supérfluo aos mais necessitados do que ele. No cabeçalho do pedido de esmola e para justificá-la, Padre Cassimiro fazia escrever mais ou menos assim: “O Pároco desta freguesia desde 15 de Novembro de 1899, não recebe do Governo, pensão, côngrua ou estipêndio de

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espécie alguma por isso recorre à caridade pública para o seu próprio sustento ...” Na memória do menino de 11 anos aquelas palavras ecoaram por todo e sempre. Não voltou à Cáceres a não ser quando faleceu a sua irmã Maria Josefa, cheia de filhos em 19.7.1914. Ela era casada com João Cavalcanti e desejava muito ver o irmão mais novo e único antes de morrer. Mas meu pai somente ali pôde chegar depois que ela morrera.

Concluídos os estudos elementares no Colégio Salesiano foi admitido como aprendiz de tipógrafo no estabelecimento comercial de Avelino Siqueira, onde fez carreira e onde se fez homem no dizer de Estêvão de Mendonça, quando elogiou a sua arte tipográfica nos trabalhos elaborados para a exposição de 1908, centenário de Chegada de Dom João Sexto no Brasil e do gesto do Visconde de Cairu, abrindo os portos do Brasil ao comércio com as nações amigas na era napoleônica.

Na família Pereira Leite vale destacada a constante reprodução dos nomes dos ancestrais. Hermínia e José Venâncio deram aos filhos o nome dos avós Maria Josefa e João. João Pereira Leite deu aos filhos os nomes de Hermínia e José Venâncio, obtidos dos avós paternos. Além de Luís-Philippe, que sendo homenagem ao Almirante Saldanha da Gama, não deixou de reproduzir o nome do filho do Major João Carlos que mais tarde se fez Oficial da Polícia Militar do Rio, onde faleceu no século passado. João Pereira tornou-se excelente tipógrafo e compositor de primeira qualidade. Revisor cuidadoso e mais tarde teve Oficina própria que deixou em 1922, após a morte do Tabelião Manoel Nunes de Barros, conhecido pelo vulgo de Mané Sola, para assumir o Cartório do 2º Ofício de Notas de Cuiabá, que fora instalado em 25.01.1821, antes da Independência do Brasil, como constam das notas do livro n. 1, perfeitamente conservado no respectivo arquivo. A testa do Cartório permaneceu cerca de 29 anos, aposentando-se em 12 de julho de 1951, sendo substituído pelo filho Luís-Philippe que, para tanto, acabava de deixar a Chefia do Ministério público Estadual.

Dotado de excelente memória, era João Pereira um dicionário vivo da cidade. Com o passar dos anos mesmo ao falar aos jovens constatava o seu ancestral imediato ou mesmo de nível superior para melhor dissertar com pleno conhecimento de causa sobre os da velha guarda que ele tão bem conhecia. Ao expirar, na manhã de 8.5.1959, teve a assistência dedicada dos diletos médicos

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José Monteiro de Figueiredo e Luís Alves Correa, este colega do meu irmão José Venâncio desde o primeiro ano primário até o último da Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, na qual colaram grau em 7.12.1944. Luís Alves não deixou de lamentar: perdemos a nossa grande cabeça. Os jornais assim se manifestaram: “... O Sr. João Pereira Leite, cuja vida foi um exemplo de dedicação e amor ao trabalho, era estimadíssimo nesta Capital, pelos seus dotes de caráter e boníssimo coração ... (“O Estado de Mato Grosso, edição de 10.05.1959); “Faleceu na manhã do dia 8 do corrente, nesta Capital, o Sr. João Pereira Leite, tabelião aposentado. O extinto que era pessoa muito estimado nesta cidade, teve o seu sepultamento no Cemitério da Piedade com grande acompanhamento. Conhecedor profundo da história da nossa cidade, sua palestra era culta e agradável.” (O Social Democrata); “No dia 8 do corrente, tomamos conhecimento da infausta notícia do falecimento, após grave enfermidade, do nosso prezado amigo Sr. João Pereira Leite. Serventuário de Justiça aposentado, antigo titular do Cartório do 20 Ofício, João Pereira era, por assim dizer, uma crônica viva não só da cidade como de todo o norte do Estado, senhor de extraordinária memória que o notabilizou pela facilidade em esclarecer situações de parentesco e propriedade, com absoluta precisão de dados históricos. Cacerense de nascimento, radicou-se nesta capital, perfeitamente ambientado e em pouco integrado na estima e consideração dos cuiabanos, como um patrimônio social.” (O Combate); “... Serventuário de Justiça durante longos anos, o saudoso Escrivão João Pereira era um padrão de capacidade, e de rigor no cumprimento do Dever, de critério funcional e de absoluta honestidade. Aposentado quando já contava mais de 40 anos de bons serviços à Justiça do Estado e à causa pública, João Pereira havia, não há muito, transmitido o seu conceituado Cartório ao seu dileto filho, o Doutor Luís-Philippe Pereira Leite, membro destacado da Academia Matogrossense de Letras e do Instituto Histórico”. (Jornal do Comércio); “No dia 8 de Maio, tendo recebido todos os confortos da nossa Santa Religião, carinhosa e espiritualmente assistido pelo Revmo. Pe.Vanir Delfino César, passara à melhor vida, o Snr. João Pereira Leite, pai do Exmo. Sr. Dr. Luís-Philippe, que vem tendo uma atuação intensa e vital para com o nosso bi-centenário, “A

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Cruz”; sendo, ao mesmo tempo, abnegado edificante em todas as atividades da Causa Santa de Cristo Nosso Senhor. As preces de sufrágios pela alma do Snr. João Pereira, as condolências ao digníssimo Sr. Luís-Philippe, e esposa, extensivas aos demais filhos, e a todos os membros dessa tradicional família.” (A Cruz — edição de 15.05.1959).

Através da vida, João Carlos, padrinho de Crisma, assumiu a missão dos de Batismo Pedro Gabriel Alves da Cunha e Da. Francelina Alves da Costa Garcia, falecidos logo após aquele 27 de janeiro de 1885, quando o inolvidável Pe. Casimiro Ponce Martins impôs os santos óleos a João Pereira Leite, nascido em 4 de março de 1884, conforme consta das folhas 54 do livro n. 15 da Paróquia de Cáceres. Por isso mesmo sempre mereceu de nós outros a amizade, a gratidão, o respeito e a admiração e também por isso lá estávamos no Cemitério da Piedade, naquela manhã de 8.9.1933, levando João Carlos, comovidamente, até a última morada, consoante já o fixamos nas páginas de “O Engenho da Estrada’ Real”.

BELA AMIZADE

João Villasboas, Mário Motta e João Pereira Leite viveram sólida amizade jamais interrompida através dos tempos. Advogado recém-formado, Villasboas veio estabelecer-se em Cuiabá com escritório, no qual sempre contou com o auxílio eficiente de João Pereira Leite. Ainda pequeno lembrava-me dos escritórios na Rua 13 em frente à atual igreja Presbiteriana e na Pedro Celestino, esquina com a Trav. da Assembléia, onde, em certo período, funcionou a sede local do Banco do Brasil, a primeira especialmente construída para isto. Em 10 de junho de 1920, Mario Motta escrevia de Cáceres para João Pereira: “Prezado , Amigo João Pereira. Desejo a continuação da sua preciosa saúde e da sua exma. família, a quem apresento meus respeitosos cumprimentos. Eu e minha senhora muito agradecemos a gentileza da participação do nascimento de mais um filhinho, a quem fazemos votos de muitas felicidades, desejando-lhe um risonho porvir para alegria dos seus dignos e distintos progenitores, Agradeço-lhe muito a sua boa amizade, o seu desinteressado empenho tomado por mim, comunicando-me as dificuldades que têm surgido com relação à minha fiança e o seu reforço na Delegacia.

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Até aquela data ignorava por completo o que se passava. Com o seu telegrama provoquei uma resposta dos meus procuradores Orlando, Irmãos, que, até então silenciosos, responderam-me que não podiam reforçar a minha fiança porque esta não existia na Delegacia, que o Villasboas retirara de lá o respectivo processo. Passei-lhes nova procuração com poderes para prestar fiança e reforçá-la, e ontem recebi um telegrama deles, avisando-me que a procuração foi registrada na Delegacia. Não sei a que atribuir tudo isso, peço ao amigo orientar-me nesse emaranhado de cousas. Nesta data escrevo ao Dr. Euphrósio nesse assunto e peço-lhe também por sua vez pedir ao deputado Faria Albernaz e remeter-me com brevidade uma novena de procuração a fim de solucionar de uma vez por todas este tão complicado caso de fiança. Esperamos aqui o Villasboas até o dia 20 ou 22. Está demorada a decisão da sua causa. Estou ansioso por isso, apesar de saber que o direito, a razão e justiça estão do nosso lado. Como sempre, ao seu inteiro dispor aqui fica o sempre agradecido e obrigado. aa) Mario Motta.”

A velha carta não deixa de ser uma página da nossa história. Ela ressalta a função da Casa Orlando como se fora um Banco de vital importância na vida dos negócios de Cuiabá. Por todos procurada e a todos servindo. Revela a amizade sincera e leal que permaneceria crescendo. Antes de sepultado João Pereira, Mario Motta, durante as últimas horas, fez questão de afirmar querer passar as derradeiras horas ao seu lado. Quanto desci para estudar, concluído o secundário, vali-me da companhia do casal amigo cuja viúva bondosa e veneranda cercada do nosso respeito e do nosso carinho, na companhia do único filho que sobra de quantos deu a luz, vive à vigília dos seus noventa anos.

Com Villasboas mantinha parceria avícola. No quintal da Pedro Celestino, esquina da Trav. da Assembléia onde ele e Mário Motta residiam, em diagonal com a casa assobradada de Dona Nenê Palma, nascida Addor e viúva do saudoso homem do Comércio de outros tempos, Manoel Rodrigues Palma, Villasboas e eu tínhamos criação comum de galinhas. O seu galo pescoço pelado era multicolorido, forte e bonito. Certa manhã, levei um frangão para soltar no quintal e com ele provoquei o pescoço pelado e este avançou sobre nós e me deu solene bicada nas costas da mão esquerda. O braço teve que ficar na tipóia vá rios dias e eu tive de

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tomar a única injeção anti-tetânica da minha vida, receitada por este outro médico venerando, amigo e compadre, Dr. Antônio de Pinho Maciel Epaminondas, o decano dos médicos cuiabanos que também está na glória dos seus quase noventa anos.

Villasboas zombava do fato e ria a não poder dizendo que o seu pescoço pelado passara a cantar: “Eu biquei um menino e ainda bico outro”, referindo-se ao mano José Venâncio. Na casa do Villasboas, quando esquecíamos em cima da mesa caderno, régua, lápis ou borracha nos quais colocava o nome para identificação, Villasboas não perdia tempo, fazendo acrescentar em todos eles a palavra “merda” para ver a nossa indignação. Político hábil, no Governo ou na Oposição, sempre teve o respaldo de largos círculos de amigos fiéis e de um grupo mais reduzido que até lhe era mais fiel nos momentos de amargura do que nos próprios de opulência e neste círculo menor papai sempre se colocou. Na saúde e na doença, no trabalho, na política sempre ao seu lado, aborrecendo-se quando em 1946 fui nomeado para o Conselho Administrativo do Estado e ele, por política partidária não respeitou nos seus comentários a dignidade do filho do seu grande e inalterável amigo. No fundo do coração a mágoa não encontrou raízes, tão bela e tão nobre aquela amizade assim confirmada em 1959; “Profundamente ferido pela dolorosa notícia passamento meu velho querido amigo João Pereira envio seu digno filho demais membros desolada família meus sinceros pêsames cordiais saudações — Senador Villasboas”.

Na noite em que Villasboas assumiu a sua Cadeira na Academia Matogrossense de Letras, em 5 de dezembro de 1975, em virtude de compromisso simultâneo, não me foi dado ouvir o seu discurso de posse e nem o de saudação proferida pelo nosso confrade Demóstenes Martins, mas o alcancei na recepção posterior que se fez no Clube Esportivo Dom Bosco; sentei-me ao seu lado e ficamos longo tempo conversando e revivendo fatos felizes e marcantes do passado. Recordou, com emoção, a saudação que fizera ao velho político Baiano — Jota Seabra, quando este completou noventa anos e recebeu a consagração dos seus amigos.

Nas caminhadas que fazia a cavalo, ainda moço, em Cáceres na Companhia do seu pai, Benedito Pio Villasboas, chegou certa feita até o sítio da Jacobina dos Pereira Leite e ali o seu pai lhe mostrou,

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na pequena Igreja de Santo Antônio a sepultura humilde de um médico Baiano, Francisco Sabino da Rocha Vieira, chefe da revolução Sabinada, em 1837, e Villasboas, emocionado, testemunhava que ali naquele momento e naquela circunstância ele aprendera a amar a Bahia.

Villasboas é um dos grandes filhos de Cáceres, onde nasceu em 21.04.1891 e a sua vida gloriosa será um dia escrita com amor e carinho pelos filósofos dos nossos dias, como expressão destacada da geração que sucede a cada passo. Em 1923 Mário Motta mudava-se de Cáceres para Cuiabá e os de casa fomos os primeiros amigos dos seus filhos e juntos, naquela noite distante, sem luz fomos à Rua do Meio, no Armazém do João Cabral, comprar vela e fósforo para iluminar a casa dos que acabavam de chegar para ficar em Cuiabá. Mário Motta e João Pereira tão amigos tiveram os seus nomes perpetuados nos respectivos netos varões e por coincidência, embora em anos diferentes, foram nascer no mesmo dia 4 de fevereiro. Elegâncias da providências. Cousas de Deus... Nem se esqueça neste capítulo de saudade e de amizade que Mário Motta é filho do inolvidável Marechal Aníbal da Motta, herói da retomada de Corumbá de 13.07.1867.

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Hermínia Alves Cunha

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José Venâncio Pereira Leite

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BENEMÉRITOS FRANCISCANOS

No começo do século XX, o operoso Dom Carlos Luís D’Amour, segundo bispo de Cuiabá, que, após 12 anos de lutas ingentes, obtivera, em 1894, os primeiros salesianos para a sua Diocese, conseguia dos superiores da cidade francesa de Alby, os primeiros franciscanos para Cuiabá, depois irradiados para Cáceres e Poconé.

No primeiro grupo destacava-se a figura inconfundível de Frei Luís Maria de Gallibert.

A Diocese de São Luís de Cáceres foi erigida em 8 de abril de 1910, por S.S. o Papa Pio X, que pelas letras Apostólicas “Novas Constituere”, elevou à categoria de archidiocese a sede Episcopal de Cuiabá, dando-lhe por sufragâneas as novas sedes de Santa Cruz de Corumbá e de São Luís de Cáceres e assim constituindo a Província Eclesiástica de Cuiabá.

Esta, bula de instituição foi posta em execução pelo Decreto da Nunciatura Apostólica de 22 de outubro do referido ano de 1910, assinado pelo Núncio no nosso País, o Exmo, Reverendíssimo Senhor D. Alexandre Bavona, arcebispo de Thassalia,

O primeiro bispo da nova diocese de São Luís de Cáceres, foi o Senhor D. Modesto Augusto Vieira, anteriormente vigário de Caratinga, na arquidiocese de Mariana, o qual foi nomeado em março de 1911, mas não tomou posse da sua sede, que finalmente resignou.

Para preencher a sede vacante foi eleito por S. S. o Papa Bento XV o Reverendíssimo Frei D. Luís Maria Gallibert, provincial então neste Estado, da ordem Terceira Regular de São Francisco de Assis do Brasil. A notificação desta nomeação foi feita pelo Exmo. Senhor Núncio Apostólico no dia 18 de dezembro de 1914 e a confirmação no dia 15 de março de 1915.

Devido a circunstâncias excepcionais, principalmente à guerra monstruosa que então assolava a Europa, e cujos sinistros reflexos atingiram o mundo inteiro, tornando as comunicações excessivamente difíceis, o novo bispo foi autorizado não esperar as Bulas de nomeação.

E, assim, em virtude de um Mandato Apostólico expedido pela Nunciatura Apostólica de 13 de fevereiro de 1915, o Reverendíssimo Frei Luís Maria Gallibert recebeu a sagração

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episcopal em 15 de agosto de 1915, das mãos do Exmo. Senhor D. Carlos Luís D’Amour, Arcebispo Metropolitano de Cuiabá, assistido pelos Exmos. Revendíssimos D. Cyrillo de Paula Freitas, Bispo de Corumbá, e Dom Francisco de Aquino Correa, Bispo de Prussiade e auxiliar de Cuiabá.

E tomou posse da diocese no dia 3 de outubro de 1915, com grande manifestação de júbilo do povo desta cidade.

Conta a diocese quatro paróquias: a da Santíssima Trindade de Mato Grosso, criada pela Lei Provincial de 1733; a de São Luís de Cáceres em 16 de setembro de 1779, por provisão confirmada pelo Prelado Diocesano, de 4 de agosto de 1780; a de Nossa Senhora de Poconé, pela Resolução Provincial de 09 de agosto de 1817 e de Nossa Senhora do Livramento, pela Lei Provincial de 28 de agosto de 1835.

Pela Constituição “Inter-Nostri”, de 10 de maio de 1928, S.S. o Papa Pio XI erigiu a Prelazia Nullius de Porto Velho que abrange o Município de Santo Antônio do Rio Madeira, que pertenceu à Paróquia da Santíssima Trindade de Mato Grosso, desta diocese.

Pela Constituição “Animarum Causa”, de 10 de março de 1929, o Santo Padre, Pio XI, erigiu a Prelazia Nullius de Guajará Mirim, cujo território foi também desmembrado da Paróquia da Santíssima Trindade de Mato Grosso.

O Reverendíssimo Frei Dom Luís Maria Gallibert, Bispo de São Luís de Cáceres, nasceu no dia 31 de dezembro de 1877, em Lasfaillades, Locanato de Anglés, Diocese de Alby, República Francesa.

Fez ele na escola S. João Ambialet os seus estudos secundários e alcançou o grau de bacharel em letras que lhe foi conferido pela Faculdade de Toulóuse.

Entrou na Ordem Terceira de São Francisco de Assis e fez a sua profissão de religioso em 1894, conquistando com muito brilho, em 1897, o Doutorado em Letras na Faculdade de Chermont. .

Em 24 de Junho de 1902, recebeu a ordenação sacerdotal e foi sucessivamente professor de Letras e de Filosofia nos Colégios de São João de Ambiolete Sainte Marie — Alby.

Em setembro de 1908, desembarcou em Cuiabá a fim de reunir-se aos companheiros da Ordem que o tinham precedido em 1904 e foi logo nomeado Superior com poderes de Provincial.

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Gallibert pertence a uma importante família cristã que já deu à Igreja um bispo na pessoa de um primo, Monsenhor Gallibert, bispo de Eno, e missionário na China, já falecido.

Dom Luís Maria Gallibert dirigiu o seminário de Cuiabá onde foi sempre admirado e respeitado pelas suas acrisoladas virtudes, a ponto de a Santa Sé o distinguir com o episcopado, que ele exerceu com bondade e descortino durante mais de 40 anos. Já avançado em idade, acometido pelas enfermidades próprias da velhice, resignou o cargo, retornando à França, sua pátria e berço da sua Ordem Terceira, sendo antes merecidamente galardoado com a Legião de Honra. Era o reconhecimento maior da sua pátria ao filho dedicado e dileto que prestara os mais acentuados serviços ao Brasil, sua pátria de adoção.

Quando elevado ao episcopado a gente cuiabana brindou Dom Gallibert, oferecendo as suas jóias e os seus adereços para que se transformassem na sua cruz peitoral e na corrente de ouro que ele portava com muita humildade e muito reconhecimento aos ofertantes cuiabanos. A vida de Dom Gallibert foi edificante em todos os sentidos. Percorria as regiões mais inóspitas da sua extensa diocese, com freqüência e exemplar paciência, a todos ministrando os socorros espirituais da religião e até mesmo os materiais, pois do pouco que possuía tudo dava ao próximo no seu abnegado espírito franciscano.

Na imprensa cuiabana, sob o título “Merecida recompensa”, escrevia a propósito: “Acaba de regressar da Europa, em peregrinação a Lourdes, no ano centenário da aparição da Virgem à Santa Bernadete, o meu particular amigo, Dom Máximo Biennes, administrador apostólico da Diocese de Cáceres, terra dos meus ancestrais paternos, que a ajudaram fundar nos idos de 1778, subscrevendo a ata histórica que lhe assinala o nascimento em 6 de outubro daquele ano, com o notável Capital General Luiz de Albuquerque de Meio Pereira e Cáceres.

Na sua cidade natal, célebre pelas disputas dos albigenses, esteve com o Dom Luís Maria Gallibert, francês de estirpe, que durante 40 anos dirigiu a Diocese de Cáceres, que apresenta uma extensão territorial maior do que muitos países europeus. No seu retiro de Alby, no Convento da sua querida Ordem Franciscana, o Venerando Prelado, filho também da gloriosa terra de Rei São Luiz, sofre as conseqüências das privações nas suas vigilias e

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caminhadas pelos inóspitos sertões matogrossenses, no seu apostólico trabalho pastoral.

Ao renunciar a Diocese, octogenário e enfermo, quis a França premiar o seu grande filho, conferindo-lhe a sua mais alta condecoração - a Legião de Honra. Resta ao Brasil, que foi testemunha e beneficiário dos seus labores, conceder a Dom Luís Maria Gallibert, também, em sinal de gratidão, a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Fica o apelo e a sugestão às autoridades competentes, que serão sensíveis à justiça e ao merecimento da recompensa devida a quem tanto fez pelo Brasil.” (A Cruz - 8.02.59)

Anos mais tarde, a propósito do centenário do nascimento do ínclito missionário, tive a oportunidade de escrever na Imprensa cuiabana, sob o título abnegado missionário, novo louvor a Dom Gallibert: “Abre-se no dia 31 de dezembro de 1976 o centenário do nascimento de um ilustre da França, que passou a maior parte da sua vida no Brasil, ou mais precisamente nas cidades matogrossenses de Cuiabá e Cáceres. Humilde franciscano, filiado à congregação de Alby, cidade francesa que se tornou célebre na história pela disputa dos albigenses, Frei Luís Maria de Gallibert veio para o Brasil no começo do século com o primeiro contingente trazido da Europa pelo saudoso Arcebispo de Cuiabá, Dom Carlos Luís D’Amour. Estabelecidos no Seminário da Conceição, cuja direção foi logo confiada ao Frei Luís, tornou-se estimado e respeitado pela gente cuiabana, pela sua humildade e pelo seu saber, permanecendo à frente do modelar estabelecimento fundado pela clarividência de Dom José Antônio dos Reis, primeiro Bispo de Cuiabá, até que a Santa Sé, em face da renúncia de Dom Modesto, primeiro bispo designado para a Diocese de Cáceres, nomeou Frei Luís para aquele importante múnus. Sagrado em Cuiabá, em 15.08.1915, Dom Gallibert tornou-se, de fato, primeiro Bispo de Cáceres, iniciando um episcopado fecundo de intensos trabalhos apostólicos. A gente cuiabana lamentou a ausência de Frei Luís, mas presenteou-o, de modo carinhoso, ofertando-lhe o anel e a Cruz peitoral, em campanha que ficou memorável pela grandeza e pela generosidade do coração cuiabano, que sensibilizou o infatigável missionário e os seus irmãos de hábito. Dom Gallibert percorreu muitas vezes a sua Diocese, fazendo-o a cavalo ou em embarcações singelas, durante mais de 40 anos, ou seja, durante todo o seu bispado.

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Já alquebrado pela doença e pelo cansaço, rogou à Santa Sé a sua resignação ao posto e somente em 1958 logrou o seu intento, passando a Diocese a contar com o administrador apostólico na pessoa de Dom Máximo de Biennes. A França não se esqueceu dos notáveis serviços prestados nos ínvios sertões da Pátria irmã, pelo seu ilustre filho, sob o hábito humilde de franciscano e enviou-lhe a sua mais alta condecoração, a Legião de Honra, que ele passou a ostentar como prêmio da sua vida missionária. Regressando à Pátria, lá faleceu quase nonagenário, rodeado pelos seus conterrâneos e irmãos de hábito, guardando sempre na mente e no coração, naqueles derradeiros dias, a imagem dos seus diocesanos e dos matogrossenses que ele tanto amou e que muito lhe devem. Ao ensejo do nascimento de Dom Gallibert, filho da terra do Rei São Luís, Rei de França, Bispo da Diocese de São Luís de Cáceres e ele mesmo, também, Luís ilustre, deixo consignado nestas linhas a mais imorredoura. lembrança do abnegado missionário.” (Diário de Mato Grosso. Cuiabá, 3 de dezembro de 1976)

A Diocese de Cáceres, em 27 de abril de 1975, rejubilava-se pelos 60 anos de sacerdócio de outro franciscano francês, Pe. Paulo Maria Cabrol, que foi o primeiro sacerdote ordenado pelo saudoso Dom Francisco de Aquino Correa, Arcebispo de Cuiabá, logo após a sua sagração episcopal em 1º.1.1915. Era a comunidade cacerense convidada, então, a dar graças a Deus pelo feliz evento, ressaltando-se que o jubilado granjeara incontáveis méritos, estima e amizade do povo cacerense. De fato, acentuava o convite, por ocasião de um batismo, de um casamento, de uma primeira Comunhão, de uma confissão, de uma bênção, de uma visita, de uma palavra amiga ... o Padre Paulo Maria Cabrol tornara-se presença da Graça para todas as famílias cacerenses.

Nos últimos anos com ele mantive correspondência, pois através dele, em pesquisa nos assentamentos dos batizados da Paróquia, fizemos a reconstituição de todos os vigários assim dispostos: Manoel Alves da Cunha, de maio de 1799 a fevereiro de 1813; Joaquim José Gomes da Silva, de maio de 1825 a novembro de 1829; José da Silva Fraga, de dezembro de 1829 a agosto de 1840; Benedito d’Araújo Filgueira, de dezembro de 1840 a setembro de 1841; Manoel Pinto Siqueira, de setembro de 1841 a setembro de 1844; Benedito Braz de Carvalho, de 25.12.1844 a maio de 1845;

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Antônio Joaquim Seixas, de dezembro de 1852 a junho de 1857; Domingos Carkis da Cunha, de 1857 a 1858; Francisco Pereira de Moraes Jardim, de janeiro a maio de 1859; Antônio Rufino da Costa Vianna, de maio de 1859 a 1862; João Leocádio da Rocha, de janeiro de 1863 a setembro, quando volta o Padre Francisco e fica de 1863 a 1864; Casimiro Ponce Martins, de junho de 1865 a setembro de 1902; Constantino Taésio de 1903 a junho de 1906. Padres da Ordem Terceira Regular de São Francisco: Boaventura Bertrac, de agosto de 1906 a junho de 1909; Sebastião Rainaud, de 1909 a 1910; João-Luís Bourdoux, de 1910 a outubro de 1921; Paulo Maria Cabrol, de 1921 a junho de 1925; Athanasio Flottes, de 1925 a 1.928; Ambrósio Daydé, de 1928 a abril de 1945; Jerônimo Sacase Badi, de 1946 a 1947; Henrique Maynadier, de 1947 a 1949; Severino Rouquette, de 1949 a 1957; Elie Mas, de 1957 a 1970 e Ivo Terral, de 1970 até os dias que correm.

Cumpre destacar que o primeiro da freguesia de Cáceres, Padre Manoel Alves da Cunha, foi muito ligado aos Pereira Leite, batizando alguns deles nos impedimentos do segundo Pároco, Padre Joaquim José Gomes da Silva, que batizou os demais e que era parente dos Pereira Leite pelo lado materno, por ser cunhado de Leonardo Soares de Sousa, que subscreveu a ata de fundação de Cáceres, em 6 de outubro de 1778. O Padre Manoel Alves da Cunha era homem muito preparado, pertencendo à sua linhagem minha avó paterna Hermínia Alves da.Cunha, sepultada na Jacobina, em 1888, deixando viúvo José Venâncio Pereira Leite.

Com a letra bastante trêmula, assim me escrevia, em 10 de setembro de 1975: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. De certo voltou a Cuiabá, aborrecido por não ter tido encontro comigo. Bem verdade, mas me descuidei no Sábado de procurá-lo e no Domingo nem soube onde estavam reunidos. E logo nesta madrugada, regressaram à Capital. S. Sa. me perdoará, porque talvez fosse a última ocasião de conversar juntos, nesta terra. O encontro definitivo será lá no céu, eis a nossa esperança na Bondade e misericórdia de nosso Pai. Tinha recebido a sua atenciosa carta e procurei atender seus desejos - segue a lista dos Padres Vigários que constam no Registro de batizados. Quanto aos casamentos, infelizmente não encontrei nada. Felicitando a S. Sa. pelo seu zelo e atividades, peço a Deus que o conserve ainda muitos anos nessa

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luta para ganhar muitas almas e fortalecê-las com seu exemplo e oração. Desculpe-me mais uma vez. Junto uma lembrança dos 60 anos, rezando por todos os amigos. Cordial abraço. aa) Frei Paulo Maria Cabrol”.

O testamento espiritual do Padre Paulo Cabrol pode ser considerado pelo autógrafo que me deixou no verso da lembrança do seu jubileu, enfeixado nestas belas palavras: “Neste momento de profunda alegria, confio no amor de Cristo — imolado nas minhas mãos, todos os parentes, amigos e necessitados. Assim Deus seja louvado e reúna a todos no céu. Cáceres 28.02.75”.

Sob o título “Meritórios Feitos”, escrevi sobre ele: “A vizinha cidade de Cáceres foi palco, nos derradeiros dias de outubro de acidente automobilístico no qual perdeu a vida o venerando missionário francês Frei Paulo Maria Cabrol, da Ordem Franciscana de Alby, primeiro sacerdote ordenado por Dom Aquino, logo após a sua sagração em 10 de janeiro de 1915. Frei Paulo que contava 61 anos de missa, estava prestes a atingir o nonagenário e grande parte da sua vida decorreu nas missões de Mato Grosso, Estado que foi sempre cenário da sua atuação sacerdotal benemerente. Apesar da sua avançada idade, Frei Paulo era de uma dedicação incomparável e sabia atender a quantos o procuravam. Muito me ajudou na coleta de dados para os meus levantamentos históricos. Sintetizou, a meu pedido, toda a atividade franciscana em Mato Grosso desde os primórdios do século, forneceu-me dados valiosos sobre a paróquia de Cáceres cujo primeiro pároco foi o Pe. Manoel Alves da Cunha, considerado o homem mais inteligente de seu tempo e que na era colonial integrou uma das juntas governativas que substituíram o deposto Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, 90 e último Capitão General de Mato Grosso. Pertencia à linhagem da minha avó paterna, descendente dos Alves da Cunha. Outros elementos teve oportunidade de me fornecer, inclusive para o estudo das cartas de liberdade das alforrias que, no século passado, eram concedidas aos escravos pelos senhores, seja em reconhecimento aos serviços prestados, seja. porque tenham conseguido amealhar o quanto necessário estipulado nas leis imperiais. Encontrou ele em Cáceres, para mim, batistério de 1845 nos quais os cabritinhas, filhos escravos, já no ato do batismo, recebiam a liberdade, tudo em antecipação, verdadeiramente marcante, às leis do ventre livre

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e outras, inclusive a Lei Áurea. Relevantes os serviços prestados à comunidade pelo sacerdote, ora desaparecido, que recebeu em abril de 1975 merecida homenagem dos cacerenses, ao celebrar os 60 anos de vida sacerdotal. Em resposta aos cumprimentos, ele me agradecia: “Neste momento de profunda alegria, confio ao amor de Cristo imolado nas minhas mãos todos os parentes, amigos e necessitados. Sim, Deus seja louvado e reúna todos no Céu.” Esta mensagem não foi a derradeira que dele recebi, pois nesta, ainda se referindo ao acontecimento, ele pedia a Deus que suscitasse muitas vocações para que se ampliasse a messe em Mato Grosso que ele tanto amava. Tombou no campo de serviço e não chegou a receber a condecoração brasileira que amigos, merecidamente, pleiteavam para ele. O Senhor galardou-o com o prêmio maior, na eternidade. (Diário de Mato Grosso - Cuiabá, 25.11.1976).

Outra figura de prol da Ordem Terceira de São Francisco, foi o Frei Carlos Vallete, cuja vida benemérita decorreu toda ela em Cuiabá e Poconé, onde faleceu quase nonagenário. Dele já falei com muito carinho, pois foi aquele que oficiou no meu batismo 75 dias de nascido e. quase à morte. Bondoso, Frei Carlos dedicava-se à radiestesia, descobrindo poços de água potável para serem abertos pelos interessados, valendo-se de pequeno galho de árvore, à guisa de pêndulo; estudava as plantas medicinais de Mato Grosso das quais possuía interessante fichário enriquecido de valiosas informações, por ele colhidas ao longo dos tempos e deixou um trabalho a respeito, o qual é muito lido e procurado pela gente pobre da zona rural. Foi sepultado em Poconé, cercado de respeito e admiração da comunidade.

Outra figura franciscana de prol foi Frei Ambrósio Daydêe. Dotado de fibra de guerreiro, a sua característica foi a luta sem tréguas em prol dos ideais católicos. Exerceu a sua atividade em Cuiabá, onde fundou, em 15.05.1910, o Jornal “A Cruz”, ao lado dos saudosos desembargadores João Carlos Pereira Leite e Joaquim Pereira Ferreira Mendes, falecidos em 8 e 25 de setembro de 1933, respectivamente. A polêmica era o forte de Frei Ambrósio, que foi vigário capitular após a morte do Arcebispo Dom Carlos Luís d’Amour, em 9 de julho de 1921. Transferido depois para Cáceres, ali foi vigário da Paróquia até falecer, em 14.04.1945, em São Paulo, para onde seguira em tratamento de saúde.

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Não se esqueça também, entre outros tantos, a figura forte e irradiante de Frei Francisco Maria Herail, que escreveu sobre Dimas e exerceu grande parte do seu apostolado em Poconé. Em certo período de sua vida foi o responsável pela conservação das estradas que ligavam Cuiabá a Poconé e Cáceres. Entendia de construção e foi também o responsável pela edificação do Colégio São Francisco de Poconé.

Mutilado pela diabete, insuficiente visual, e nonagenário, vivendo no convento de Nossa Senhora de Fátima, na Capital paulista, é bem o representante digno da velha geração de abnegados Franciscanos. No seu peito outrora forte brilha a Condecoração da Ordem do Cruzeiro do Sul, merecido pleito brasileiro aos seus abnegados labores e aos da sua benemérita ordem franciscana que, na pessoa também abnegada de D. Máximo de Byênes, segundo bispo de Cáceres, prossegue a obra evangelizadora de D. Gallibert e dos seus denodados irmãos franciscanos.

VILA MARIA DOS MEUS MAIORES

Nos últimos tempos, tenho-me dedicado, particularmente, ao estudo da História do Município Matogrossense de Cáceres,visando o seu próximo bicentenário de fundação. Há vários anos, venho pesquisando os arquivos daqui e d’lhurés, e a matéria está sendo distribuída em três volumes:o 1º já impresso, “O Engenho da Estrada Real”, é aceno e apelo para as comemorações bicentenárias. Brevemente, será divulgado convenientemente. O segundo, “O Médico da Jacobina”, no prelo em S. Paulo, é a biografia do tio-bisavô, Pedro Nolasco Pereira Leite, o primeiro matogrossense a doutorar-se em medicina, sobremodo enriquecido pela própria tese de doutoramento de 1860 e do interessante “Compêndio de História Natural”, que deixou manuscrito. O terceiro volume, que receberá o título em epígrafe, acha-se em final de elaboração e deverá estar lançado até 6 de outubro de 1978, a grande data bicentenária. .

Nascido na cidade de Cuiabá, no arraial Monções dos Bandeirantes, Pascoal Moreira Cabral e Miguel Sutil de Oliveira, cujas cinzas se reúnem agora na Cripta — Monumento da Basílica do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, ouvi sempre, desde criança, dos lábios do meu saudoso pai, cacerense como todos os seus ancestrais, as mais belas e evocativas histórias sobre Cáceres, em cuja fundação tomou

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parte o meu tetravô, Leonardo Soares de Souza. Tornei-me desde então um cacerence de Coração, regado pelo sangue de cacerense de quatro costados.

Aquelas maravilhosas histórias viveram sempre na minha mente e no meu coração, os quais coloquei agora a serviço da bela terra Cacerence, hoje sob novas perspectivas para o desenvolvimento e o progresso da região num ritmo de causar admiração. As suas terras ubérrimas estão a serviço da técnica para lograr a maior produtividade. Todos se unem no esforço criador, considerando a terra e o homem e o resultado opera maravilhas.

Ao completar 198 anos, quero saudar a histórica Vila Maria, hoje florescente Cáceres, as suas dignas autoridades cônscias do seu dever na hora presente e o seu povo generoso e trabalhador, todos voltados para prosperidade do Município, vale dizer para grandeza do Mato Grosso do Brasil.

(Folha Matogrossense de Cuiabá de 6.10.1976)

EPOPÉIA ALBUQUERQUEANA

A linha de Tordesilhas, dividindo o Mundo Antigo entre os grandes navegadores da época, foi decisiva para fixação das fronteiras do Reino Português.

Os entendimentos e as conversações preliminares ao Tratado de Madrid, firmado em 13 de janeiro de 1750, possibilitaram a criação da capitania de Mato Grosso, pela Carta Régia de 9 de maio de 1748.

É interessante notar a precaução e o zelo do Conselho Ultramarino, certo e determinado, nos mínimos detalhes.

Rolim de Moura, primeiro Capitão General da recém-criada capitania, recebe todo um programa a cumprir, inclusive o roteiro de viagem, perseguindo a mesma rota das Bandeiras. João Pedro da Câmara tem acesso a Vila Bela através do Pará e Luís de Albuquerque a atinge pela I’nsula, ou seja, pelo Araguaia, passando por Cuiabá.

A ação do grande estadista, Luiz de Albuquerque Meio Pereira e Cáceres, nos 17 anos à frente da Capitania, teve o condão de plasmar as linhas duradouras da Capitania, que se fundara ao influxo das lavras do Sutil, com o propósito de utilizar o braço índio e da ocupação do solo pelo Ut Possidetis.

O vigoroso estadista foi o grande plantador de cidades,

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lembrando, quase todas, os lugares mais assinalados do reino ou seus personagens: Albuquerque, Coimbra, Casalvasco, Poconé, Vila Maria, são, disso, a prova.

A última delas, hoje Cáceres, formoso jardim à margem do Paraguai, tem o seu bicentenário à vista.

Nós, antevivemos aquela efeméride gratíssima porque participamos de sua fundação, nas pessoas dos nossos ancestrais.

Os nossos pensamentos e propósitos, estão assim planejados: a) publicar o livro de nossa autoria “Vila Maria dos Meus Maiores”, em preparo; b) motivar povo e governo para a erecção, em praça pública, da estátua de Luiz de Albuquerque; c) cunhar Medalha comemorativa em bronze, com a efígie do fundador, tendo no verso as armas da cidade, ou do Estado ou, ainda, ambos os brasões; d) fazer uma exposição histórica alusiva ao grande acontecimento.

Esperamos que o povo cacerense, unido, dê ao bicentenário, a expressão e o sentido que tem como fundamento e base a integração que a epopéia albuquerqueana reservou para o Brasil dos nossos dias.

FUTURO PROMISSOR

O ano de 1977, nos bastidores matogrossenses, foi agitado pelo problema da divisão do Estado, que se efetivou pela lei complementar n. 31, de 11 de outubro de 1977, cujo artigo 2º assim dispôs: “A área desmembrada do Estado de Mato Grosso do Sul, situa-se ao sul da seguinte linha demarcatória: das nascentes mais altas do Rio Araguaia, na divisa entre os Estados de Goiás e Mato Grosso, segue, em linha reta, limitando os Municípios de Alto Araguaia, ao norte, e Coxim, ao Sul, até às nascentes do córrego das Furnas; continua pelo córrego das Fumas abaixo, limitando, ainda, os Municípios de Alto Araguaia, ao norte, e Coxim, ao sul, até sua foz no rio Taquari; sobe o rio Taquari até a barra do rio do Peixe, seu afluente da margem esquerda, continuando por este até sua nascente mais alta, tendo os Municípios de Alto Araguaia, ao leste, e Pedro Gomes, ao oeste; segue daí, em linha reta, às nascentes do Rio Correntes, coincidindo com a linha divisória dos Municípios de Alto Araguaia e Pedro Gomes; desce o rio Correntes até a sua confluência

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com o rio Piquiri, coincidindo com os limites dos Municípios de Itiquira, ao norte, e Pedro Gomes, ao sul; continua pelo rio Correntes, coincidindo com os limites dos Municípios de Itiquira, ao norte, e Corumbá, ao sul, até sua junção com o rio Itiquira; da junção do rio Correntes com o rio Itiquira, segue coincidente com a divisa dos Municípios de Barão de Melgaço, ao norte, e Corumbá, ao sul, até a foz do rio Itiquira no rio Cuiabá; da foz do rio Itiquira no rio Cuiabá, segue por este até a sua foz no rio Paraguai, coincidindo com a divisa entre os Municípios de Poconé, ao norte, e Corumbá, ao sul; da confluência dos rios Cuiabá e Paraguai sobe pelo rio Paraguai até o sangradouro da lagoa Uberaba, coincidindo com os limites dos Municípios de Poconé, ao leste, e Corumbá, ao oeste; da boca do sangradouro da lagoa Uberaba segue sangradouro acima até a lagoa Uberaba, continuando, por sua margem sul, até o marco Sul Uberaba, na divisa do Brasil com a Bolívia, coincidindo com os limites dos Municípios de Cáceres, ao norte, e Corumbá, ao sul. “

Face à divisão acima consubstanciada, Cáceres permaneceu na porção territorial tradicional de Mato Grosso, de cujo progresso é hoje um dos baluartes mais sólidos. A árvore bissecular deita frondosos galhos e propicia belos renovos a constituírem comunidades outras plenas de vigor e de desenvolvimento dentro da técnica mais avançada dos nossos dias. A primitiva estrada real que ligava as minas do Cuiabá à Vila Bela, então sede da Capitania, ainda guarda a retificação e o asfalto para que mais rápido se faça e em melhores condições o escoamento da sua riqueza. Não só o Rio cujo caminho encantava a alma de Hércules Florence faz 150 anos, mas todos os setores da hodierna comunicação são acionados visando a sua grandeza. A inteligência dos seus administradores e dos seus homens públicos vem correspondendo ao que dela se esperava, de modo que Cáceres será amanhã a grande terra da esperança, do serviço e do amor, estribada no seu passado e na figura augusta dos que a construíram.

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LUIS-PHILIPPE PEREIRA LEITE

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BIBLIOGRAFICAS

LUIS-PHILIPPE PEREIRA LEITE é figura bastante conhecida nos meios culturais de Mato Grosso, membro destacado que é da Academia Matogrossense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, cuja Presidência exerce atualmente. Recentemente participou da campanha contrária à divisão territorial de Mato Grosso. Nascido em Cuiabá, em 12.12.1916, filho de João Pereira Leite e de Jovita Valladares Pereira Leite, é Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e Notário Público. No Estado desempenhou cargos de relevo, como sejam: Procurador Fiscal, Procurador Geral da Justiça e Procurador Eleitoral. Integrou os Conselhos: Fiscal, Administrativo, Penitenciário, de Desportos, da Ordem dos Advogados do Brasil. Deputado à Assembléia Legislativa do Estado, subscreveu a Carta Magna de Mato Grosso, em 11.07.1947. Segundo Ten. R-2, foi vice-presidente da FMD e Secretário do Aero Clube de Maio Grosso.

Publicou as seguintes obras: “Palestras Acadêmicas”, “Elogio de Corsino do Amarante”, “Instantes Vivos”, “A Capitania de Mato Grosso” e a “Independência”, “Capitães Generais de Mato Grosso”, “Forquilha, o Fundador e a Padroeira”, “O Engenho da Estrada Real” e “O Médico da Jacobina”, estes dois últimos integrando a trilogia para celebrar do bicentenário de Cáceres, estando em final de elaboração o terceiro volume “Vila Maria dos Meus Maiores”, além de “Coração Peregrino”.

Tem pronto para entrega ao prelo “Bispo do Império” e conclui outra trilogia “Três Sorocabanos no Arraial”, constituída de três monografias: I - “O Guarda-Mor”, II - “O Lavrador-Mor”, III - “O Orago-Mor”, recordando os primeiros dias do Arraial e das Minas de Cuiabá.

Cidadão honorário de N. S. do Livramento, Sócio honorário do Instituto dos Cegos de Mato Grosso e Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas e do de São Paulo, é possuidor de mais de uma dezena de medalhas e condecorações, dentre as quais se destacam: “As Pontifícias da Ordem de S. Gregório Magno e a Pro Ecclesia et Pontifice; a da Universidade Federal de Mato Grosso; a da Soberana Ordem Militar de Malta e as das Sociedades Brasileiras de Geografia de São Paulo e Rio”.

Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo,

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ao Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas, à Academia Sergipana de Letras e ao Instituto Histórico e Genealógico de Sorocaba (SP).

APRECIAÇOES

1 — “Rio, 15 de fevereiro de 1978. Caríssimo Amigo, Prof. Luís-Philippe. Muito grato por me haver oferecido, com amável dedicatória manuscrita, um exemplar da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso — ano 77 — Tomos CVII — CVIII. Gosteio de que trouxesse inserto, na pág. 57, o meu artigo sobre retificações à História do Forte de Coimbra, pois a isso era conveniente, por tratar-se de um episódio da Velha Província. Gosteio de apreciar seus trabalhos anteriores, revividos nas páginas iniciais da revista, porque o que é bom precisa mesmo de vivência, para conhecimento das gerações que se sucedem. Sua fortaleza de espírito, sua tenacidade heróica de sobrepor-se a injunções da natureza são uma lição e um exemplo para a reabilitação física e moral de quantos se vejam inibidos de instrumentos vitais indispensáveis para a luta pela existência. São votos ao bom Deus que eu formulo, ao concluir estas linhas pela sua magnífica personalidade. Com afetuoso abraço. aa) Gen. Silveira de Mello.”

2 — “Rio, 13 de fevereiro de 1978. Estimadíssimo Luís-

Philippe, envio-lhe estas linhas em agradecimento pela remessa que me fez da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (1977). Vou saborear a leitura da mesma com emoção que traz tudo quanto diz respeito à nossa querida Cuiabá, máxime com origem nas suas mãos, na sua bondade e no seu obstinado sentido cultural, devotado principalmente à vida e à história de nosso Estado. Sensibiliza-me infinitamente receber suas periódicas demonstrações de presença, de afeto e de fidalguia. Mais feliz do que eu, em certos pontos, é você, Luís-Philippe, que viu e sente o passar dos dias de sua preciosa existência no próprio seio do torrão natal, onde tudo e todos o cercam do mais justo respeito e admiração. Invariavelmente ligado a essa terra generosa em que nós ambos abrimos os olhos, terra de panoramas infinitos, cortadas sempre pelas caudais poéticas e acolhedoras de nossos rios Cuiabá e Coxipó, sempre a correrem

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mansamente por aí. Mais feliz do que, e de que qualquer outro, porque tem a força de ânimo para se manter no mundo das cogitações culturais e de solidariedade cristã, feito por si e para si próprio, na polarização de toda a bondade e todo o desprendimento individual. A Revista me trouxe pois uma profunda emoção. Traz-me prazer sua leitura que, por outro lado, entretanto, acentua aquele aperto de coração que você sabe quanto amargura o meu destino. t que tão cedo me vi privado da ventura de viver ligado à terra e à gente de minha origem; privado da vida tranqüila e amorosa de uma cidade interiorana e modesta, mas repleta de bondade e de solidariedade humana. Obrigado Luís-Philippe. Achei admirável a feitura e a matéria incluída na Revista; e quero, por seu intermédio, felicitar nossa Academia por abrigar e, de certa forma, propiciar o primoroso trabalho em apreço. Receba este agradecimento, incomparável amigo, e, se possível, transmita—o a toda a Diretoria da Revista, bem como à Academia Matogrossense de Letras, a qual tanto me orgulho de integrar e à qual consagro meu melhor afeto. Estou esperando nova oportunidade para ir aí revê—Io, rever amigos e de rever, ungido e respeitoso, o reduto cultural da Casa Barão de Melgaço. Oxalá possam estas palavras, na sua humildade, ressoar por momentos no ambiente da admirada e tão afastada Academia... Abraços do Mal. Joaquim Justino Alves Bastos. “

3 — “Niterói, 5 de abril de 1978. Prezado amigo e confrade, Luís-Philippe. Ainda, sob a gostosa impressão dos bons dias passados na saudosa e querida Cuiabá, onde estive em visita estritamente afetiva, depois de tantos anos, e revi amigos, conterrâneos e parentes, escrevo-lhe esta carta para agradecer-lhe a gentil acolhida que me proporcionou em sua casa. Eu, que tive sempre admiração pelo seu talento, pela sua cultura e pela sua personalidade excepcional, fiquei, ainda, mais encantado pelo vigor das suas idéias e pela produtividade literária desenvolvida nesta saudável maturidade, cheia de entusiasmo, de esperanças e realizações. Gostei de vê-lo esgrimindo palavras e idéias, com a mesma eloqüência, com a mesma sinceridade e o mesmo calor de quando o conheci há 30 anos, em a nossa heróica Assembléia Legislativa, de 1947, da qual você participou vibrantemente e, mais que isso, leal e patrioticamente.

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Agora, ao encontrá-lo entregue à faina literária, a que se dedica febrilmente, estou convicto de que a nova tarefa, tão cuidadosamente elaborada, em torno da vida e da obra dos Generais-mores do nosso glorioso Estado, assegurar-lhe-á o merecido renome de historiador máximo da nossa vitoriosa terra natal. O trabalho de recuperação dos ‘quadros desses vultos extraordinários dos fatos matogrossenses, que tive ocasião de comprovar e sobre um dos quais, inclusive vi, externei, pessoalmente, a minha opinião de ignorante da arte, mostrou-me o quanto de amor e desprendimento cívico vem colocando nessa iniciativa, a qual contará, incondicionalmente, com os meus mais veementes aplausos. Parabéns. I: mais uma dádiva que você dedica à inteligência e à cultura da gente matogrossense, ávida de conhecer, em profundidade, a fecunda e estóica história política do nosso Estado, desde a promoção de Paschoal Moreira Cabral a Capitão-mor, de que nos dá notícias Paulo Setúbal, no seu gostoso livro: “Ouro de Cuiabá”. Hoje, é meu único propósito levar-lhe a manifestação do meu agradecimento pelos momentos de fraterno convívio com que me obsequiou em sua tenda de trabalho. Aproveito-me do ensejo para formular votos de que “as cifras tensionais” referidas por você, não tenham outro significado senão o de uma natural reação fisiológica, produzida pela intensa e fecunda atividade intelectual, a que se encontra entregue, pois esse é o tributo pago por todos à agilização da nossa mente, das nossas idéias, das nossas emoções, do nosso psiquismo - fonte da vitalidade criadora do nosso espírito, energia misteriosa que levou o filósofo a enunciar a genial afirmativa: “penso, logo existo”. Você existe, logo não há como fugir a ‘essas episódicas variações da pressão arterial. Talvez pudéssemos criar, quiçá, uma nova modalidade de hipertensão: A hipertensão Acadêmica... Com a minha amizade e admiração, aqui fico ao seu dispor, enviando-lhe, com os melhores cumprimentos, augúrios de todos os êxitos. Abraços do Jary Gomes. “.

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