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19 O GRITO DE LAOCOONTE. Sobre o debate entre Lessing, Goethe e Schiller Pedro Süssekind Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/ Professor do Departamento de Filosofia da UFF Introdução Laocoonte grita de dor, ou apenas suspira, serenamente, apesar de seu sofrimento? – Essa questão, que pode parecer muito específica ou pouco relevante, tornou-se um tema central para a teoria da arte na Alemanha do século XVIII. Em torno do tema, um longo debate envolveu autores como Winckelmann, Lessing, Goethe e Schiller, em reflexões sobre o ideal de beleza da arte, sobre a mímesis, sobre os antigos e os modernos ou sobre os limites entre os diversos gêneros artísticos. O sacerdote Laocoonte é um personagem secundário da Guerra de Tróia, nem sequer citado por Homero, no canto IV da Odisséia, quando Menelau menciona para Telêmaco o episódio do cavalo de madeira em que os gregos se esconderam para entrar na cidade. Contudo, outras fontes que não Homero conferem certa importância ao personagem, ligada não ao que ele fez, mas ao que estava na iminência de fazer. Pois Laocoonte foi o único a perceber a artimanha dos gregos naquele episódio do cavalo e, com isso, ele quase mudou o rumo da guerra. Só que a tentativa de desmascarar os gregos contrariava os desígnios dos deuses, então o sacerdote morreu tragicamente, devorado por duas serpentes gigantes enviadas para castigar a sua desmesura. Há duas representações artísticas célebres dessa morte: a descrição da cena feita por Virgílio na Eneida e um grupo estatuário de mármore, exposto atualmente no Vaticano. Nessa cópia romana de um original grego do século II A. C., estão representados, além da figura principal, os dois filhos de Laocoonte, envolvidos pelos anéis dos corpos das duas serpentes gigantes. E a cena narrada por Virgílio é semelhante: os dois monstros atacam primeiro os filhos, depois prendem também o pai e o devoram. O problema debatido pelos teóricos alemães, e objeto deste ensaio, é a diferença entre as duas representações, já que o sacerdote da escultura não grita, embora seja mordido por uma das serpentes, enquanto o personagem da Eneida, na mesma situação, clama aos céus como um touro

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O GRITO DE LAOCOONTE. Sobre o debate entre Lessing, Goethe e Schiller

Pedro Süssekind

Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/ Professor do Departamento de Filosofia da UFF

Introdução

Laocoonte grita de dor, ou apenas suspira, serenamente, apesar de seu sofrimento? – Essa questão, que pode parecer muito específica ou pouco relevante, tornou-se um tema central para a teoria da arte na Alemanha do século XVIII. Em torno do tema, um longo debate envolveu autores como Winckelmann, Lessing, Goethe e Schiller, em reflexões sobre o ideal de beleza da arte, sobre a mímesis, sobre os antigos e os modernos ou sobre os limites entre os diversos gêneros artísticos.

O sacerdote Laocoonte é um personagem secundário da Guerra de Tróia, nem sequer citado por Homero, no canto IV da Odisséia, quando Menelau menciona para Telêmaco o episódio do cavalo de madeira em que os gregos se esconderam para entrar na cidade. Contudo, outras fontes que não Homero conferem certa importância ao personagem, ligada não ao que ele fez, mas ao que estava na iminência de fazer. Pois Laocoonte foi o único a perceber a artimanha dos gregos naquele episódio do cavalo e, com isso, ele quase mudou o rumo da guerra. Só que a tentativa de desmascarar os gregos contrariava os desígnios dos deuses, então o sacerdote morreu tragicamente, devorado por duas serpentes gigantes enviadas para castigar a sua desmesura.

Há duas representações artísticas célebres dessa morte: a descrição da cena feita por Virgílio na Eneida e um grupo estatuário de mármore, exposto atualmente no Vaticano. Nessa cópia romana de um original grego do século II A. C., estão representados, além da figura principal, os dois filhos de Laocoonte, envolvidos pelos anéis dos corpos das duas serpentes gigantes. E a cena narrada por Virgílio é semelhante: os dois monstros atacam primeiro os filhos, depois prendem também o pai e o devoram.

O problema debatido pelos teóricos alemães, e objeto deste ensaio, é a diferença entre as duas representações, já que o sacerdote da escultura não grita, embora seja mordido por uma das serpentes, enquanto o personagem da Eneida, na mesma situação, clama aos céus como um touro

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sendo abatido. Minha intenção é apresentar o debate e explicar por que o problema do grito de Laocoonte, na análise da escultura e na comparação desta com o poema, envolve as questões centrais na teoria da arte do final do século XVIII.

A discussão que apresentarei a seguir diz respeito inicialmente a dois livros: Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na escultura, publicado por Winckelmann em 1755, e Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, obra de Lessing, de 1766. Um traço em comum entre os dois é uma crítica da produção artística de seu tempo, comparada com as obras-primas da Antigüidade clássica. E, como indica o título, especialmente o segundo livro contribuiu para fazer das representações artísticas do sacerdote troiano o principal exemplo e foco das teorias estéticas alemães.

Posteriormente, o tema consagrado por Lessing foi retomado por Goethe, em “Sobre Laocoonte”, de 1798, e por Schiller, em “Acerca do patético”, publicado em 1801, mas escrito alguns anos antes. Nesses textos, o debate segue caminhos próprios, ligados às preocupações e teorias de cada autor: o que importa no estudo de Goethe é o ideal de beleza alcançado organicamente pelo artista; no exemplo dado por Schiller, não está mais em jogo a discussão sobre o belo e sobre os limites do uso do feio na poesia, mas sim a questão do sublime, categoria estética associada ao heroísmo trágico.

1. A polêmica de Lessing Em Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, Lessing se volta contra toda uma tradição que aplica os princípios das artes plásticas à poesia. Essa tradição encontraria uma primeira formulação no antigo aforismo do poeta lírico grego Simônides de Ceos, segundo o qual “a pintura é uma poesia muda e a poesia, uma pintura falante” (LESSING. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, p. 76). A identificação entre as artes expressa nesse aforismo encontra ecos ao longo da Antigüidade, tanto na República de Platão, quanto na Poética de Aristóteles, ou em Horácio, que praticamente repete Simônides com o verso “ut pictura poesis”, “a poesia é como a pintura” (HORÁCIO. Arte poética, p. 65). Segundo Lessing, a noção dessa identidade entre as artes, consagrada pelos antigos, teria permanecido até a época moderna como referência para a avaliação do belo artístico.

Para contestar a tradição, o Laocoonte tem como ponto de partida uma polêmica com as Reflexões sobre a imitação das obras gregas na

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pintura e na escultura, de Winckelmann. Mais precisamente, Lessing questiona a validade do comentário comparativo de seu precursor sobre expressão que o rosto do sacerdote troiano tem na escultura e no poema de Virgílio. A referência a esse tema no título do livro indica a estratégia de usar Laocoonte como exemplo, pois a comparação específica de duas representações artísticas do mesmo tema serve para a discussão sobre as fronteiras, sobre a separação entre a poesia e pintura. – Ou melhor, entre a poesia e as artes plásticas, pois Lessing explica no prefácio que compreende “sob o nome de pintura as artes plásticas em geral” (Laocoonte, p. 77).

Grande parte da descrição da escultura de Laocoonte feita por Winckelmann é reproduzida por Lessing não para demonstrar o caráter da arte grega, como pretendia o primeiro, mas para ressaltar o sentido daquela censura a Virgílio. Na primeira representação descrita – o grupo estatuário –, haveria um contraste entre o corpo e a expressão do rosto do sacerdote. Segundo Winckelmann, um sofrimento intenso é revelado no “abdome dolorosamente contraído”, mas a dor não manifesta “nenhuma raiva no rosto e na posição como um todo”. E esse contraste é apontado como um exemplo da concepção grega da dignidade e da sublimidade com que um grande homem suporta o sofrimento: “A dor do corpo e a grandeza da alma são distribuídos com o mesmo vigor em toda a construção da figura. Laocoonte sofre, (...) sua desgraça atinge a nossa alma, mas desejaríamos poder suportar a desgraça como esse grande homem”. (WINCKELMANN. Réflexions sur l’imitation des œuvres grecques en pinture et sculpture, p. 142). Assim, a boca entreaberta da figura principal indicaria apenas um “suspiro lamentoso”, o que está de acordo com o princípio de nobre simplicidade e calma grandeza, defendido pelo autor como o ideal da arte antiga.

Segundo Lessing, em contraposição a esse elogio, Winckelmann faz uma crítica a Virgílio, por contar na Eneida que o sacerdote troiano solta um “grito terrível”, em vez de optar por aquele suspiro tão expressivo da estátua, no qual se revela a grandeza da alma e a expressão sublime do sofrimento. E é exatamente nessa censura feita pelo autor das Reflexões que se poderia identificar uma aplicação dos critérios das artes plásticas para julgar a poesia. Por isso, a análise da diferença entre o Laocoonte esculpido e a narrativa poética constitui o ponto de partida para toda a argumentação sobre as fronteiras entre as artes. A questão polêmica, portanto, diz respeito ao grito de Laocoonte.

Concordando com Winckelmann na constatação de que a beleza constituía a norma suprema das artes plásticas nos gregos antigos, Lessing

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se refere a uma lei dos tebanos que ordenava a imitação do belo e proibia sob penalidade a imitação do feio. O problema, para ele, era apenas aplicar os mesmos princípios que regem as artes plásticas a um poema, como o de Virgílio, e à maneira como ele descreve a morte do sacerdote troiano. A cena é narrada assim na Eneida: “E primeiro, abraçando os tenros corpos / Dos dois filhinhos seus, os miserandos / Membros uma e outra serpe lhes devora”. Em seguida, os “monstros” envolvem também o pai nas dobras de seus corpos imensos. Então Laocoonte tenta desatar os nós que o enredam junto com seus filhos, enquanto escorre sangue e “veneno anegrado”, e neste ponto surge o célebre grito: “clamores ao céu levanta horrendos, / Quais do touro os mugidos, quando d’ara / Ferido se escapou e da segure / Sacudiu da cerviz o golpe incerto”. (VIRGÍLIO. Eneida. II, 208-210 / 221-224.)

Os “clamores” aparecem, então, como um ponto culminante da narrativa, na ação que tem início quando as duas serpentes alcançam os filhos de Laocoonte. Desse modo, o grito se insere numa sucessão de acontecimentos narrados e não se congela, como na escultura, num único momento representado. Por isso, quem lê os versos ou os escuta, não pensa na abertura da boca do sacerdote, nem que seus traços são feios em função dessa abertura.

Segundo Lessing, ao contrário do que ocorre quando se observa a estátua, a leitura da poesia pressupõe, no momento em que o grito é narrado, um conhecimento prévio do personagem, que já tinha sido apresentado como um patriota de boa índole e como um pai afetuoso. Por isso, quando o sacerdote clama aos céus, o que se expressa é uma dor insuportável mesmo para o melhor dos homens. E, como na poesia o caráter do personagem não precisa se manifestar na expressão do rosto, ele pode gritar sem perder a grandeza. Em comparação, a escultura, por ter a necessidade de exprimir a alma da figura num único gesto, deve dar à expressão do rosto os traços mais suaves e dignos de um suspiro lamentoso.

As diferenças entre a poesia e a pintura seriam conseqüências dos diferentes meios de expressão das duas artes. Por exemplo, não faria sentido, na narrativa, apresentar o sacerdote e seus filhos sem roupa, durante uma cerimônia de sacrifício, no entanto só o corpo nu é capaz de expressar, na escultura, o sofrimento físico a que Laocoonte estava submetido. As artes plásticas se dirigem ao olhar, por isso precisam deixar visíveis todos os aspectos expressivos do corpo reproduzido. Na poesia, a imaginação possibilita que se veja através de qualquer roupa, bastando ao escritor

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descrever o esforço feito pelos músculos contraídos. (Cf. Laocoonte, p. 121.)

Embora a poesia nem sempre imite fatos e objetos visíveis, ela também realiza “pinturas poéticas”, e é nessa atividade tão próxima das artes plásticas que se revelam os limites de cada atividade. Lessing aceita a noção tradicional de que a arte imita objetos ou ações, mas estabelece uma diferença não só quanto ao que é imitado, como também quanto aos signos ou o meio da imitação próprio de cada arte. Ele se encarrega de esclarecer qual é o “nó da questão”, apontando uma distinção essencial entre os objetos visíveis “pintados” na poesia e aqueles representados na própria pintura. No primeiro caso, trata-se de “uma ação visível progressiva, cujas diferentes partes acontecem uma após a outra”; no segundo, de “uma ação visível inerte, cujas diferentes partes se desenvolvem uma ao lado da outra no espaço”. (Cf. Laocoonte, p. 190).

Lessing estabelece assim a diferença fundamental entre a poesia e a pintura, ao definir a primeira como uma arte temporal e a segunda como uma arte espacial. Essa classificação diz respeito tanto ao objeto próprio de cada arte quanto ao meio ou aos signos utilizados para imitar os objetos. Os signos utilizados pela pintura são “figuras e cores no espaço”, enquanto a poesia trabalha com “sons articulados no tempo”. Em função dos tipos de signos, as ações constituem o objeto próprio do poeta, já o pintor e o escultor imitam os “corpos com as suas qualidades visíveis”.

A conclusão é que, quando a pintura imita ações, ela o faz alusivamente, por meio dos corpos, do mesmo modo que a poesia expõe corpos por meio de ações. E o melhor exemplo, para ressaltar essa diferença na imitação dos objetos, é o modo como Homero descreve seus objetos. De acordo com Lessing, o poeta grego não privilegia qualificações atribuídas às coisas descritas, mas narra com enorme riqueza de detalhes as ações desempenhadas. As embarcações ora são negras, ora velozes, ora côncavas, ou seja, seus atributos não têm minúcias (como ocorreria nas descrições “frias” de poetas mais recentes). No entanto, quando as embarcações navegam, ou aportam, ou naufragam, essas ações ganham contornos nítidos e são realçadas pelas comparações com os movimentos de animais ou fenômenos naturais, aparecendo assim numa sucessão temporal que lhes dá vida para a imaginação.

A questão do belo na poesia também é exemplificada com um trecho de Homero, quando Lessing compara a ausência de uma descrição de Helena, na Ilíada, com as tentativas de descrição de belas mulheres por outros poetas. Há uma passagem que pode ser considerada não como

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“pintura em ação”, mas como “pintura sem pintura” (Cf. LESSING, Laocoonte, p. 231), demonstrando que a poesia é capaz de expressar o objeto visível por meios indiretos. Trata-se dos versos em que os anciãos de Tróia, enquanto contemplam o exército inimigo em formação, vêem surgir Helena. (Cf. HOMERO. Ilíada. III, v. 156-158.) Para Lessing, ao mostrar o efeito causado pela beleza nos homens que, embora já velhos, a reconhecem como digna da guerra que lhes custa tanto e ameaça destruir sua cidade, Homero dá a respeito da beleza uma idéia muito mais viva do que aquela que poderia ser descrita.

No entanto, se a beleza pode encontrar seus caminhos próprios na poesia, diferentes daqueles que caracterizam as artes plásticas gregas, resta saber se a feiúra, evitada pelos pintores e escultores clássicos, precisa ser excluída também dos poemas. Mais uma vez, Homero oferece um exemplo que contraria essa exclusão, ao descrever Tersites como “o mais feio” dos guerreiros gregos, antes da cena em que Odisseu castiga seu atrevimento com um golpe de cetro, provocando risos em todos os que participavam da assembléia (Ilíada, II, 216-219). Nesse caso, a figura grotesca serviria para reforçar o efeito cômico provocado pela ação que vem em seguida.

Esses exemplos indicam uma característica das considerações de Lessing: elas constituem uma teoria estética que não está voltada para as regras da arte, como fazia a tradição das poéticas normativas consagrada desde Horácio, mas para o efeito produzido pelas obras. É a valorização do efeito que se revela nas passagens de Homero: a imagem da riqueza do escudo de Aquiles, obtida na descrição de sua fabricação pelo deus Hefesto; a idéia da beleza de Helena, em conseqüência da reação dos anciãos; o resultado cômico da cena com o feiíssimo Tersites.

A mesma constatação pode ser feita em relação ao exemplo principal, mencionado no título do livro. O grito de Laocoonte no poema de Virgílio se justifica pela sua expressividade, contrariando a regra tradicional que, com base na interpretação questionável do ut pictura poesis de Horácio, tinha levado Winckelmann a censurar o poeta latino pelo uso do feio. Em Lessing, só o efeito alcançado por meios expressivos próprios serve como critério para a discussão sobre o belo, levando em conta os limites entre os diferentes gêneros artísticos.

2. Análise da escultura A partir da descrição do Laocoonte por Winckelmann e dos questionamentos propostos por Lessing, estabeleceu-se o exemplo em torno do qual se desenvolveu o debate estético classicista na Alemanha, durantes

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a segunda metade do século XVIII. Goethe escreveu em 1798 um ensaio que retoma o tema de seus precursores, mas critica algumas das afirmações deles a partir de uma análise minuciosa da escultura. Esse ensaio, intitulado “Sobre Laocoonte”, apareceu no primeiro número da revista Propileus, publicação dirigida por Goethe e Schiller, com a colaboração do historiador da arte Heinrich Meyer. O projeto da revista correspondia aos interesses dos autores nesse período, posteriormente denominado Classicismo de Weimar, em que eles debateram o projeto de imitação dos antigos herdado de Winckelmann.

A relação entre a representação de Laocoonte na escultura e a narrativa de Virgílio só é considerada no final de “Sobre Laocoonte”, em algumas observações a mais sobre “a relação do objeto com a poesia”. Goethe concorda inteiramente com Lessing, ao considerar injusta em relação ao poeta romano a comparação com o grupo estatuário, avaliado como a “obra-prima” mais bem realizada no campo das artes plásticas. A diferença é que o argumento não diz respeito à fronteira entre as artes, mas ao caráter episódico da descrição da cena na Eneida. Existiria na narrativa da atitude do sacerdote um exagero, justificado pela função de argumento retórico que o episódio tem no poema, porque é Enéias quem narra a história, a fim de explicar como ele e seus compatriotas cometeram o erro imperdoável de permitir a entrada do cavalo na cidade. A cena descrita, “extravagante e repulsiva”, teria a função de causar uma impressão exagerada no ouvinte do texto declamado, para fazê-lo aceitar o fato sem condenar o erro do herói-narrador. (Cf. Escritos sobre arte, p. 127.) Assim, segundo Goethe, como a história de Laocoonte constitui apenas um meio retórico, sendo secundária no poema, ela não poderia servir de base para uma comparação que visa a saber se aquela situação é um objeto apropriado para a poesia.

Em sua introdução aos Escritos sobre a arte, Todorov destaca a diferença de propósito da estética de Goethe em relação às teorias de seus precursores Winckelmann e Lessing. Essa diferença caracterizaria uma “estética orgânica”, em comparação com uma “estética mimética” e uma “estética genérica”. (TODOROV, Tzvetan. “Goethe sur l’art”, In GOETHE. Écrits sur l’art. p. 38.) Em outras palavras, a explicação que cada um dos autores dá, ao interpretar uma obra de arte, segue um princípio distinto: no caso de Goethe, a composição; no de Winckelmann, a imitação; no de Lessing, as características de cada gênero e o seu efeito.

De fato, o livro Laocoonte explicava a serenidade nos traços do sacerdote troiano não pelo ideal de beleza, mas pelas exigências específicas

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da escultura, considerada como arte espacial, distinta do gênero a que pertence a poesia, uma arte temporal. Já as Reflexões procuravam justificar por que o sacerdote mantém uma expressão de serenidade mesmo na representação de um grande sofrimento físico. Seria “natural”, seria uma imitação fiel da natureza, mostrá-lo desesperado, mas os artistas antigos expressam a perfeição caracterizada pela nobre simplicidade e pela calma grandeza, e esse caráter indica o caminho de uma imitação voltada para algo que vai além da natureza, para o belo ideal. Nesse caso, é importante lembrar que Winckelmann partia de uma crítica da imitação direta da natureza, para definir a arte grega como um outro tipo de imitação, que não resulta em meras cópias, mas leva às imagens ideais dos deuses, ao belo universal.

Goethe, por sua vez, procura demonstrar que, na obra de arte perfeita, cada elemento se justifica a partir da relação com os outros elementos, para compor um todo como modelo de simetria e variedade, de calma e de movimento, de oposições e gradações sutis. Assim como fez o autor das Reflexões, ele considera o conhecimento do corpo humano em suas diferentes partes, em suas proporções, em suas finalidades internas e externas, nas formas e nos movimentos, como ponto de partida necessário para o escultor. É a partir do conhecimento do objeto a ser reproduzido que se definem as condições para a realização de uma obra de arte elevada: o “característico”, fruto da observação; a expressão das paixões no repouso ou no movimento; o “ideal”, revelado na escolha do momento culminante a ser representado; a “graça”, adquirida pela maneira de representar; e a beleza, como uma submissão a um ideal capaz de integrar os extremos da natureza humana em um todo harmônico. De acordo com essas condições, o processo da criação artística parte da observação da natureza e passa pelo aprendizado das características do objeto, apresentadas em harmonia, para alcançar a perfeição de um ideal artístico mais elevado.

Curiosamente, Goethe chama a atenção, no início do seu texto teórico a respeito de uma escultura, para a limitação de qualquer teoria da arte, já que a essência de uma obra pode ser contemplada, sentida, mas não conhecida e menos ainda expressa em palavras. A primeira frase resume esse argumento: “Uma obra de arte autêntica, assim como uma obra da natureza, permanece sempre infinita para o nosso entendimento”. (GOETHE. Escritos sobre arte, p. 117.)

Nessa frase pode ficar indicada a tendência “realista” do autor, ou a sua valorização do sensível sobre o racional, da objetividade sobre a especulação – tendência que poderia ser exemplificada em muitas outras

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passagens dos seus Escritos sobre arte. Mas revela-se ali também o motivo dessa tendência, um ponto que pode passar despercebido à primeira vista. A comparação “uma obra de arte autêntica, assim como uma obra da natureza...” não é apenas ilustrativa, pois a maneira de pensar a relação entre arte e natureza constitui a base da estética de Goethe. Para ele – e esta é a questão decisiva – tanto a arte quanto a natureza produzem obras que o nosso entendimento não é capaz de abarcar, ou que vão além do alcance de uma descrição com palavras.

Como um estudioso dos fenômenos naturais, o escritor baseia suas considerações sobre arte em uma concepção da natureza como uma dinâmica, e dos objetos naturais como resultados de processos orgânicos que o naturalista procura compreender. A idéia de um “fenômeno originário” – uma origem da qual resulta toda a diversidade – perpassa as investigações científicas de Goethe, em diversas áreas. Um exemplo disso é o estudo de botânica A metamorfose das plantas, de 1790, que concebe toda a diversidade vegetal como desdobramento de uma “Urpflanze”, uma “planta primordial”.

Assim, se em “Sobre Laocoonte” o parâmetro da comparação com as obras de arte é o dos objetos naturais, que podem ser apreendidas por meio dos sentidos, isso significa que a essência das obras ultrapassa qualquer esforço de descrição. Pois, para entender a fundo os objetos naturais, segundo o escritor-cientista, seria preciso conhecer a natureza em sua totalidade.

Chamo a atenção para essa posição assumida, desde a primeira frase do texto, a respeito de um tema tradicional no debate filosófico sobre a arte: a imitação da natureza. Em relação à tradição aristotélica (tal como compreendida na época), Goethe defenderá que a obra de arte não é resultado de uma simples cópia da forma dos objetos naturais, mas um todo “orgânico”, composto por vários elementos que se harmonizam e produzido segundo uma série de condições que caracterizam a criação artística. De acordo com essa teoria estética orgânica, é o modo de ser das obras de arte que se assemelha ao modo de ser da natureza, no sentido de que as leis do processo de criação estão submetidas a uma compreensão de totalidade. E é por isso que, ao comparar arte e natureza em termos de nosso entendimento, Goethe considera uma grande vantagem para a obra de arte o fato de ela ser autônoma e fechada em si mesma.

Após a consideração teórica geral, feita no início do texto, a intenção é mostrar como o grupo estatuário Laocoonte satisfaz todas as condições definidas para a obra de arte “perfeita”, “mais elevada”, “mais

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eminente”, num diálogo aberto com as interpretações anteriores que reconheceram nessa obra o ideal de beleza alcançado pela Antigüidade.

A primeira descrição da escultura em “Sobre Laocoonte” diz respeito a uma questão discutida anteriormente por Lessing – a redução da figura aos traços essenciais –, que Goethe destaca ao resumir a situação representada à de “um pai com dois filhos, em perigo, a ponto de ser vencido por dois animais”. (Escritos sobre arte, p. 119.) No livro sobre a fronteira da pintura e da poesia, tanto a redução aos traços essenciais quanto a escolha do momento oportuno revelam as características específicas das artes plásticas, consideradas como espaciais, por isso chamam a atenção para certas limitações impostas ao escultor, mas que não poderiam ser aplicadas ao poeta.

A intenção de Goethe não é a mesma de Lessing, como ele indica ao afirmar: “Se eu tivesse de explicar esse grupo, caso não conhecesse nenhuma interpretação do mesmo, iria denominá-lo um idílio trágico”. Nesse caso, a redução aos elementos essenciais está ligada à escolha do momento mais expressivo, necessária para uma obra de arte ganhar vida quando contemplada, para apresentar seu sentido pleno, que se renova ao olhar de cada espectador. E a caracterização “idílio trágico” pode ser lida como uma justificativa da mistura entre poesia e escultura.

É contra os limites estabelecidos por Lessing que Goethe elabora sua descrição da escultura em uma história reduzida aos traços essenciais: “Um pai dorme ao lado de seus dois filhos, eles são cercados por serpentes e, ao acordarem, tentam escapar da rede viva”. Ele ressalta, desse modo, que a situação representada na escultura dá, em função da escolha do momento e da capacidade do artista, uma idéia dinâmica que se descobre com toda evidência quando o espectador fecha os olhos diante da obra e os abre em seguida para ver o mármore em movimento. Essa situação dinâmica seria obtida pelo escultor segundo um princípio de gradação, que Goethe chama de “ciência suprema”.

“Sobre Laocoonte” contraria também a oposição feita por Winckelmann entre a dor sensível manifesta no abdome contraído e a expressão “tranqüila” do rosto. E o autor chama a atenção para isso ao afirmar que, embora não pretenda “reduzir a natureza humana, negando o papel das forças espirituais”, mesmo os traços do rosto são determinados pela sensação imediata da dor. Goethe reconhece as “aspirações e sofrimentos de uma natureza grandiosa”, assim como o terror e os sentimentos paternais que se misturam na situação, de modo que a vida espiritual estaria representada em seu nível mais elevado, ao lado da vida

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corporal. Desse modo, ele afirma não discordar inteiramente de Winckelmann, cuja descrição da figura de Laocoonte acentua uma representação dos sofrimentos físicos em conflito com o espírito elevado, mas contesta a oposição corpo-rosto proposta nas Reflexões.

A identificação do conflito do homem físico e do homem espiritual terá como base, assim, uma interpretação nova, baseada na noção de movimento, de transição de um estado a outro. Por representar um momento de transição, a estátua conservaria um traço claro do estado anterior e, com isso, unificaria no mesmo momento representado o esforço combativo (atividade física), visível no gesto dos braços que seguram a serpente, e o sofrimento (submissão à dor, resignação na qual se revela o lado espiritual), visível na contração do corpo e na expressão do rosto.

Goethe observa a obra como um todo, com as duas serpentes e as três pessoas, conjunto cuja representação acentua a expressividade do objeto escolhido: homens que lutam contra criaturas perigosas. O fato de não se tratar de uma oposição simples, concentrada em um único ponto – como poderia acontecer no caso de outra criatura representada e de um único homem –, conciliaria a unidade do grupo com uma diversidade expressiva. A descrição do grupo é precisa e ressalta a escolha das figuras representadas. Serpentes são capazes de paralisar três pessoas, cada uma de modo diferente, o que revela a primeira gradação: uma delas apenas enlaça, a outra reage aos esforços da figura central com uma mordida. Já as pessoas representadas são descritas como um homem já velho, mas forte, ainda com energia física, e dois meninos que a comparação com o adulto mostra como naturezas sensíveis à dor.

Segundo a noção de uma dinâmica, de um movimento captado pelo artista, cada figura humana exprime uma dupla ação, de modo que as três interagem em diversos níveis. Essa observação leva o autor a descrever a escultura novamente, para esclarecer cada uma das ações exercidas e o sentido que tem para o todo. Um dos filhos “quer se libertar ao erguer o braço direito e afastar com a mão esquerda a cabeça da serpente” e, ao mesmo tempo, em sua situação de prisioneiro, ele quer “se aliviar do mal atual e evitar um mal maior”. (Cf. Escritos sobre arte, p. 124). O pai tenta se libertar com os braços e, ao mesmo tempo, seu corpo faz um gesto de fuga enquanto é ferido. O outro filho tenta se soltar do laço que o prende e se assusta com o gesto do pai, como uma espécie de observador presente na própria obra, uma testemunha participante. O momento representado seria o ponto culminante no qual se resumem todos os extremos da situação. Nele,

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um dos corpos é incapaz de se defender, o outro se defende mas é ferido, o terceiro tem ainda esperança de fugir e contempla com desespero os demais.

Goethe afirma que, em face dos sofrimentos próprios e alheios, o ser humano de fato possui apenas três sentimentos: o medo, o terror e a compaixão. Ou seja, “a previsão temerosa de um mal que se aproxima, a percepção inesperada do sofrimento presente e a participação no sofrimento” presente ou passado. (Cf. Escritos sobre arte, p. 126.) Há uma observação, nesse contexto, que remete diretamente à definição, feita por Lessing, da fronteira entre pintura e poesia:

A arte plástica, que sempre trabalha para o momento, tão logo escolher um objeto patético, apreenderá aquele que despertar o terror; a poesia, ao contrário, se apegará àquele momento que suscitar medo e compaixão.

Mas essa distinção entre os dois campos da criação artística é

mencionada justamente para demonstrar que o Laocoonte, constitui uma “realização suprema” das artes plásticas por ultrapassar sua fronteira. Não é à toa que os sentimentos mencionados são o medo e a compaixão, os mesmos que definem o efeito da arte trágica na Poética de Aristóteles e que tinham sido discutidos por Lessing em seus estudos de teatro, no livro Dramaturgia de Hamburgo. Um dos temas desses estudos, aliás, é justamente a distinção entre medo e terror. (Cf. LESSING. De teatro e literatura, p. 56.)

O objetivo de Goethe é indicar como esses sentimentos podem ser produzidos também numa escultura, de acordo com a interpretação proposta. Nesse sentido, se a figura central do pai é capaz de despertar o terror, no mais alto grau – percepção súbita do sofrimento presente –, o filho mais novo provoca a compaixão e o mais velho, o medo (uma vez que lhe resta a esperança de escapar). Assim, a obra representa também o medo e a compaixão, tanto para amenizar a impressão violenta do terror quanto para abarcar os três sentimentos que compõem uma totalidade espiritual. Todo o escopo da situação patética estaria representado, e de tal maneira que o efeito dos sentimentos também se expressa no interior da própria obra, porque a compaixão pelo filho mais novo move o esforço do pai, que no entanto se vê na terrível situação da qual não pode escapar. Por isso, a obra “esgota o seu objeto e preenche com sucesso todas as condições da arte”.

Goethe retoma assim a noção winckelmanniana da exemplaridade da arte grega, mas a estende ao processo de criação artística como um todo.

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Para ele, a observação da natureza e o conhecimento do objeto são condições iniciais para que o artista, por meio de sua sensibilidade, da busca de harmonia, das escolhas e da intuição da beleza, faça uma obra de arte que vai além da simples cópia dos objetos naturais e que alcança uma perfeição ideal. E nesse ideal há algo de infinito, que ultrapassa até mesmo as fronteiras entre as artes, tão bem definidas por Lessing, pois na escultura de Laocoonte, seria possível identificar tanto o movimento (o tempo), quanto o efeito que a poética atribui à poesia trágica.

3. Laocoonte como herói trágico

Schiller escreveu, na última década do século XVIII, uma série de textos teóricos a respeito da tragédia. A base desses textos, assim como de toda a sua teoria estética, foi o estudo da Crítica do juízo, de Kant, publicada em 1790, mas a preocupação com o tema específico da arte trágica remete às questões tradicionais da poética que tinham sido apresentadas e discutidas na Alemanha sobretudo por Lessing. Trata-se, assim, de um ponto de convergência entre a estética filosófica e a poética dos gêneros.

A partir de seus estudos kantianos, Schiller considera a tragédia como apresentação artística em que se expressa o conflito entre os dois lados da existência humana, entre a faculdade sensível e a racional. A forma da tragédia seria, assim, a representação artística apropriada para apresentar o sofrimento e a resistência ao sofrimento. A finalidade de comover, ou despertar compaixão, é entendida como um prazer moral na contemplação da vitória sobre a sensibilidade. Com essas conclusões, a teoria da tragédia de Schiller se distancia das reflexões de seus antecessores sobre o belo artístico e sobre o que pode ou não ser representado na arte. Sua intenção, também de base kantiana, é pensar a relação da arte com a moralidade, com a razão e com a cultura, tema recorrente nos estudos do escritor, até as famosas cartas Sobre a educação estética do homem, de 1794.

Já em “Acerca da razão por que nos entretêm assuntos trágicos”, um de seus primeiros ensaios estéticos, Schiller defende a autonomia da arte a partir de uma distinção entre “fim moral” e “influência sobre a moral”. Contrariando a concepção tradicional, platônica, de que a finalidade da arte está ligada à sua utilidade moral, como veículo de ensino da virtude, o autor critica os que favorecem a utilidade desprezando o prazer, como se este fosse um aspecto secundário da atividade artística. Uma teoria da arte, para ser completa, deveria incluir uma teoria do prazer, ou de um prazer que se diferencia daqueles que as pessoas sentem em sua vida cotidiana, sempre

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condicionados a satisfações, desejos, alívios. Schiller investiga então um “prazer livre” produzido pela arte, que repousa “inteiramente em condições morais” (Teoria da tragédia, p. 15). A conclusão do autor é que não há fim moral separado do prazer ou em contraposição a ele, como sustentava a concepção tradicional. É o próprio prazer criado pela arte que pode aperfeiçoar moralmente, pois envolve um “estado lúdico” em que se supera o conflito entre o lado racional e o lado natural do ser humano. Schiller propõe então uma classificação das artes, de acordo com as categorias de representações que são fonte de prazer livre, como o bem, o verdadeiro, o belo, o comovente e o sublime. Nessas categorias, com base em estudos de estética filosófica, há diferentes relações com as faculdades da razão: o bem entretém a razão; verdadeiro e perfeito, o entendimento; belo, o entendimento e a imaginação; comovente e sublime, a razão e a imaginação. Chega-se, assim, a uma classificação diferente daquela proposta por Lessing, entre as artes temporais e espaciais. A distinção é entre as belas artes e as artes comoventes, sendo as primeiras ligadas ao sentimento de prazer do belo e as segundas, ao do sublime. As belas artes privilegiam o entendimento e sua relação com a imaginação, porque são voltadas para o perfeito e o belo; as artes comoventes são voltadas para o bem, o sublime e o comovente, privilegiando a razão e sua relação com a imaginação. Schiller passará a investigar as artes comoventes, porque é nessa relação entre a razão e a imaginação que, a partir das noções kantianas, pode-se pensar a passagem do sensível ao racional. E a tragédia será considerada como a mais elevada das arte comoventes, portanto como o gênero que produz com maior intensidade aquela finalidade discutida no começo do texto como “influência sobre a moralidade”. Essas questões são retomadas e desenvolvidas em diversos ensaios, como “Acerca da arte trágica”, “Acerca do sublime” e “Acerca do patético”. Mas é apenas neste último texto que o autor recorre ao exemplo de Laocoonte, retomando a seu modo o debate entre Winckelmann e Lessing sobre o grito do sacerdote troiano. Analisarei a seguir a maneira como Schiller se insere na discussão, levando em conta o contexto de suas reflexões kantianas sobre a tragédia. O ensaio “Acerca do patético”, publicado apenas em 1801, numa edição das obras reunidas do autor, é uma versão da segunda parte do texto “Do sublime”, que tinha aparecido na revista Thalia em 1793. Ao desdobrar o texto anterior, Schiller pode ressaltar uma proximidade em relação às considerações de Goethe, que em seu ensaio de 1798 sobre Laocoonte

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destacara a noção de patético ao interpretar a escultura. Em todo caso, o resultado mais evidente é que, nas obras publicadas em 1801, o conjunto de ensaios escritos em 1792-93 ganhava os contornos de uma teoria da tragédia dividida segundo os conceitos-chave de “trágico”, “sublime” e “patético”, com base naquela distinção entre belas artes e artes comoventes. Por isso, o texto sobre o patético começa com uma reflexão baseada na teoria da tragédia já discutida nos ensaios sobre o sublime, sobre a arte trágica e sobre os assuntos trágicos. Em “Acerca do patético”, é retomada inicialmente a discussão sobre a finalidade da arte de “Acerca da razão por que nos entretêm assuntos trágicos”. A finalidade é definida, nessa retomada, como a apresentação do supra-sensível, de modo a tornar sensível a independência moral das leis naturais. E, como duz o autor, “é sobretudo a arte trágica que realiza isso” (SCHILLER, Teoria da tragédia, p. 113). Pois na tragédia há dois elementos na apresentação artística do lado sensível e do lado racional do ser humano: o primeiro é a resistência, mas ela é avaliada de acordo com a intensidade do segundo, o ataque. Quanto a este, ele argumenta: “Para que a inteligência do homem (...) possa manifestar-se como uma força independente da natureza, é necessário que, anteriormente, a natureza tenha dado aos nossos olhos provas de todo o seu poder”. E o poder tem como efeito visível o sofrimento causado, aquilo que afeta a sensibilidade, o pathos. É ao “pathos”, ao sofrimento, que se relaciona o conceito de patético do título do ensaio: “O ser sensível tem de sofrer funda e intensamente. O pathos tem de existir a fim de que o ser racional possa manifestar a sua independência e apresentar-se no seu agir”. O sofrimento causado pelo poder da natureza gera uma resistência por parte do homem, como exteriorização do livre princípio, “em nós”, contra a violência das emoções e dos afetos da sensibilidade. Assim, a “grande arte” – e Schiller pensa evidentemente na tragédia – “não é a de ter sob o nosso domínio emoções que apenas leve e fugazmente arranham a superfície da alma”, ou seja: “é necessária uma capacidade de resistência que se situa infinitamente acima de todo poder natural, para que se mantenha a liberdade da alma numa tempestade que agita toda a natureza sensível.” (Cf. Teoria da tragédia, p. 114) A avaliação de Schiller diz respeito à relação entre a liberdade moral e o herói trágico. Só se chega à representação da liberdade moral através da mais viva apresentação da natureza sofredora, de modo que o herói trágico deverá primeiro “legitimar-se perante nós como ser capaz de sentir”, antes de o “homenagearmos como ser racional e acreditarmos na

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sua fortaleza da alma”. Em outras palavras, “o patético só é estético na medida em que é sublime”. Essa frase, que pode ser considerada como uma indicação precisa da origem kantiana das reflexões do autor, resume toda a argumentação. Apenas quando a paixão se transforma em afeto e remete à razão, há uma transformação, uma passagem do sensível ao racional. Seria fraca e superficial uma apresentação da simples paixão (voluptuosa ou penosa), sem a apresentação da capacidade de resistência supra-sensível. Por isso, a tragédia, que o autor considera a mais elevada das artes, lida sempre com estes dois elementos: a apresentação da natureza padecente (patético), e a apresentação da resistência moral ao sofrimento, em que se revela o lado sublime do sofrimento. O ensaio “Acerca do patético” apresenta, assim, algumas das conclusões mais gerais de Schiller a respeito da arte trágica, cuja tarefa seria de tornar sensível o que há de mais elevado no homem. E é justamente com base nas conclusões de sua teoria da tragédia que ele comenta a descrição que Winckelmann faz da estátua e a narração que Virgílio faz da história de Laocoonte, retomando o debate proposto por Lessing. As duas representações artísticas são citadas como exemplos do sublime trágico. Volto, assim, ao tema principal deste ensaio. Lessing chegara a identificar um “traço sublime” no grito do sacerdote troiano representado pelo poeta latino (Laocoonte, p. 105), mas não tinha a intenção de elaborar essa categoria estética, posteriormente valorizada por Kant. Goethe chama a própria escultura de “idílio trágico”, depois indica a relação do patético na escultura com os sentimentos do medo e da compaixão, tradicionalmente associados à tragédia, mas não desenvolve uma reflexão sobre os conceitos de trágico e de patético em sua análise. – Os dois autores indicavam o que se torna, no contexto do ensaio que analiso agora, a questão decisiva, para a qual o Laocoonte serve como exemplo. Schiller comenta que o grupo estatuário pode ser considerado como uma “medida para o que a arte plástica dos antigos era capaz de produzir no terreno do patético”, entendido como a representação do pathos, do sofrimento, que se revela sublime quando mostra a autonomia moral do homem. De acordo com as características indicadas por Winckelmann, a escultura apresentaria a luta da inteligência contra o sofrimento, revelando por um lado a animalidade e a coação da natureza, por outro a humanidade e a liberdade da razão.

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Concordando com Goethe, o autor comenta também que, se Virgílio descreve a mesma cena que serviu de objeto ao escultor, o poeta épico não pretendia “entrar na alma de Laocoonte”, como fez o escultor, pois a descrição era apenas uma passagem secundária de seu poema. Destaca-se assim, novamente, o tema original de Lessing: o limite entre as artes, de acordo com os propósitos específicos de cada uma. Mas em seguida os versos de Virgílio são interpretados por Schiller de acordo com um objetivo diferente daquele que orientava o livro Laocoonte. E essa diferença é declarada:

Já conhecemos a narração virgiliana através dos excelentes comentários de Lessing. Mas o objetivo a serviço do qual Lessing a usou foi apenas o de ilustrar, neste exemplo, os limites da representação poética e pictórica, não o de desenvolver daí um conceito do patético. A mim, porém, quanto a esse último fim, ela não me parece menos proveitosa... (Teoria da Tragédia, p. 127)

Segundo a interpretação proposta em “Acerca do patético”, as

serpentes enviadas pelos deuses aparecem como a força terrível da natureza, poder destrutivo e invencível contra o qual a capacidade física humana nada pode fazer. Essa força natural é a primeira condição para a apresentação do sublime, porque se impõe irresistivelmente à capacidade física humana muito mais fraca do que ela. Contudo, os monstros avançam antes sobre os filhos de Laocoonte, e com isso expõem o sacerdote diretamente ao conflito entre o mundo sensível e o mundo racional. Porque, nessa situação, ou ele foge, sucumbindo ao pavor, sem levar em conta seus filhos, ou escolhe a morte certa por livre e espontânea vontade. E essa possibilidade de escolha seria constitutiva da natureza humana: “fôssemos nada mais do que seres sensíveis, que não seguem nenhum outro instinto a não ser o da conservação, aqui ficaríamos parados, detendo-nos no estado do mero sofrimento”. Mas há “qualquer coisa em nós que não toma parte das afecções da natureza sensível e cujas atividades não se regulam por condição física alguma”. Em vez de fugir, o sacerdote se lança contra as serpentes não por instinto natural, mas por escolha racional, ou seja, porque deve enfrentá-las em nome de sua dignidade. Assim, “sua morte torna-se um ato de vontade” e expressa a possibilidade de agir livremente diante da imposição terrível da natureza. Schiller conclui:

...expulsos de toda fortificação que pode formar uma defesa física para o ser sensível, atirando-nos dentro da invencível fortaleza da nossa liberdade

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moral, ganhamos uma segurança absoluta e infinita justamente por deixarmos perder-se no campo dos fenômenos uma arma de defesa apenas relativa e precária. (Teoria da tragédia, p. 132)

O ataque ao homem moral (o pai) antes do ataque ao homem físico

seria fundamental para produzir o efeito de uma apresentação negativa do sublime, fato acentuado na narrativa de Virgílio pelo que já sabemos a respeito de Laocoonte antes de ler a descrição do ataque das serpentes. Nessa constatação, Schiller concorda inteiramente com Lessing, que já tinha comentado a referência a uma caracterização prévia do personagem para justificar o grito do sacerdote no poema. No entanto, como sua própria indicação da diferença de propósitos mostra, ele não pretendia ressaltar o traço distintivo da poesia em relação à escultura, mas chamar a atenção para o caráter do herói trágico: se sua grandeza moral o torna digno de compaixão, quando luta com uma força superior à sua, o fato de enfrentar as serpentes por “livre escolha”, para salvar os filhos, faz de Laocoonte um herói cuja morte se torna um “ato de vontade” e, portanto, uma afirmação da liberdade diante da necessidade natural.

Existe aqui uma diferença em relação a Winckelmann, Lessing e Goethe que se evidencia não só pelo privilégio da descrição poética de Virgílio em relação à escultura, como também pelo tipo de análise, já que Schiller não tem a intenção de fazer uma crítica empírica, baseada na observação detalhada da obra. Mas a mudança mais importante, quando se comparam as reflexões desses autores, diz respeito a uma questão de estética filosófica.

Retomando a denominação de Todorov, tanto a “estética orgânica” de Goethe, quanto a “estética mimética” de Winckelmann e a “estética genérica” de Lessing filiam-se ao propósito classicista de estabelecer um modelo de perfeição da Antigüidade, ligado ao belo. Isso é mais evidente no caso de Winckelmann, já que o seu intuito é definir um ideal de beleza criado pelos artistas gregos. O ideal, que não pode ser alcançado pelas simples imitação da natureza, deveria servir então como modelo para a arte moderna. Mas a controvérsia de Lessing em relação a essa posição apenas questiona os limites de aplicação daquele modelo, de modo que a “estética genérica” constitui uma reflexão sobre os critérios para avaliar o belo e o feio na arte, levando em contas os meios de expressão próprios de cada gênero. Goethe, por sua vez, defende um novo modo de pensar a relação entre arte e natureza, para além da simples imitação. Sua teoria se baseia na noção de que a composição de uma obra de arte deve ser orgânica, e de que

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o artista aprende a compor, ou desenvolve o seu estilo, a partir da observação da natureza. Ele precisa imitar as formas num primeiro momento, mas depois passa a compreender os processos que as criam, sendo capaz de incorporá-los a seu modo de se expressar. Trata-se, portanto, de uma nova definição do belo artístico, concebido como um ideal. E o Laocoonte serve justamente como exemplo de uma obra de arte que alcança esse estágio mais elevado da criação orgânica da beleza.

Na teoria de Schiller, pode-se considerar que as bases do classicismo não são contestadas, uma vez que ele não só concorda em muitos pontos com as interpretações de seus precursores, mas também elege como tema o mesmo exemplo de Laocoonte, na escultura e na poesia, aceitando a sua condição de modelo. Mas a relação do autor com o projeto de imitação dos antigos parece mais ambivalente, com posições diferentes, que dependem dos assuntos específicos em questão. Um exemplo disso é que, em “Acerca do patético”, Schiller critica a tragédia francesa, cuja frieza e decoro impedem o patético, e elogia a tragédia grega, quanto à capacidade de apresentar a resistência ao sofrimento (pathos) como algo positivo, como uma “ação da alma”: “O artista grego, que tem de representar um Laocoonte, uma Níobe, um Filocteto, ignora o que seja uma princesa, um rei ou um filho de rei: atém-se somente ao ser humano”. Esse elogio leva a uma constatação da exemplaridade dos antigos: “Essa delicada sensibilidade à dor, essa natureza calorosa, sincera, verdadeira e não encoberta, comovendo-nos tão funda e vivamente nas obras de arte gregas, é modelo de imitação para todos os artistas e uma lei dada à arte pelo gênio grego” (Teoria da tragédia, p. 117). Então a ambivalência das reflexões de Schiller fica evidente quando se compara esse texto com “Acerca da arte trágica”, de 1792, que critica a tragédia grega por sua “cega sujeição ao destino”, vista como “humilhante e ofensiva” para a liberdade humana (Teoria da tragédia, p. 94). Só a tragédia moderna, esclarecida pela filosofia kantiana, seria destinada a atingir a mais elevada emoção trágica, ligada à apresentação da idéia de liberdade.

Essa ambivalência da posição de Schiller deve ser subordinada a seu propósito de refletir sobre as condições e as possibilidades da arte trágica no mundo moderno. Assim, é possível compreender melhor o elogio aos gregos em “Acerca do patético” quando se considera que ele se insere numa reflexão sobre os parâmetros de criação da tragédia na modernidade, com base na estética kantiana (especialmente na categoria de sublime elaborada na terceira crítica). Nesse caso, é de acordo com a concepção moderna do trágico que Laocoonte serve de exemplo.

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A exemplaridade não implica, aqui, o elogio da perfeição da arte clássica em contraposição à decadência da arte moderna, como ocorre nos textos de Winckelmann, Lessing e mesmo no ensaio de Goethe sobre Laocoonte. Schiller se apropria do debate para pensar à sua maneira as questões do clássico e do moderno, da exemplaridade dos antigos e dos desafios da criação artística em sua época (temas que ele desenvolveria também nas cartas Sobre a educação estética do homem e em Poesia ingênua e sentimental).

Portanto, a grande diferença da teoria estética de Schiller, quando comparada com as reflexões de seus interlocutores nesse debate, diz respeito à justificativa do privilégio das artes que manifestam o patético e o comovente em relação às belas artes. É a categoria do sublime que permite ao autor tomar distância das censuras tradicionais ao feio e das tentativas de pensar o belo artístico como ideal de perfeição e critério para avaliar as criações artísticas. Não importa tanto, nesse sentido, se grito de Laocoonte é belo ou feio, ou se a descrição poética deve ou não ser medida pelos mesmos parâmetros da representação na escultura. Para Schiller, importa que o grito de Laocoonte é trágico, como manifestação do sofrimento, do patético, num personagem que oferece resistência à dor sensível e que se eleva para além desse sofrimento. Apresenta-se o patético que se torna sublime, e com isso a idéia de liberdade moral. Aquele traço de grandeza indicado por Winckelmann, comentado por Lessing e analisado por Goethe torna-se o foco de uma filosofia do trágico, tema privilegiado nos primeiros escritos que se integram à estética filosófica schilleriana.

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