1842:C açada ao iabo - Conclave Editora

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1842: CAÇADA AO DIABO 1842: CAÇADA AO DIABO Eu estava ali, em meio àquele suntuoso salão medieval, cujos móveis e obras de arte me remetiam a um sentimento de grandiosidade e ao mesmo tempo de melancolia, saudades de um tempo em que a maioria dos problemas eram resolvidos sob o fio de uma espada. Mas os tempos eram outros e eu precisava reunir todos que pudessem ajudar naquela que seria a maior perseguição já realizada em Londres. Gostando ou não, tínhamos uma oportunidade única de eliminar aquele bastardo que há décadas estava por trás das atividades dos Filhos da Meia-Noite na cidade e que tantos havia levado a morte. Foram muitos anos de luta desde o Concílio Ecumênico de Viena, e até aquele momento não sabíamos quem era o líder deles. Mas, naquela noite, tudo viria a mudar. O corpo que jazia completamente inerte sobre a mesa havia nos dado um nome, ou melhor, a partir das informações de Edward Fletcher, sabíamos quem era o Imperador e seus principais seguidores em Londres, o que faziam e onde se escondiam. Por outro lado, tinha plena certeza de que não poderíamos agir sozinhos naquela caçada. Eu já havia pensado em uma verdadeira estratégia militar para capturá-los, mas para isto precisaríamos que a seita fosse atacada por diversas frentes ao mesmo tempo, tornando a fuga de seus membros praticamente impossível. Tudo teria que ser feito no menor espaço de tempo possível, com uma precisão quase cirúrgica. A fim de colocar meus planos em prática, havia convocado vários líderes de ordens e sociedades, embora não me agradasse nem um pouco estar em companhia de certas pessoas... No entanto, a hora exigia sacrifícios e, se havia pelos menos algo em comum entre todos os convocados, era o desejo de impedir que não só os diabos, mas também os desafortunados espalhassem novamente o caos pela cidade, como já haviam tentado e, por vezes, conseguido. Existiam muitos interesses em jogo, e se não ajudassem por amor à Divindade, o fariam em prol de seus interesses pessoais, que estavam relacionados com o poder e a influência sobre a cidade das brumas. Enquanto perdia-me em sonhos e pensamentos atormentados por tantos anos incansáveis de luta, uma voz ecoou pelo grande salão, tirando-me daquele estado em que me encontrava, perdido em meus próprios devaneios. Um jovem diácono anunciava que Sophie McLarty havia acabado de chegar. Seus cabelos ruivos estavam reluzentes, assim como seus olhos verdes, que não brilhavam tanto desde a primeira vez que nos vimos. Era visível sua alegria e esta

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Caçada ao diaboEu estava ali, em meio àquele suntuoso salão medieval,

cujos móveis e obras de arte me remetiam a um sentimento de grandiosidade e ao mesmo tempo de melancolia, saudades de um tempo em que a maioria dos problemas eram resolvidos sob o fio de uma espada. Mas os tempos eram outros e eu precisava reunir todos que pudessem ajudar naquela que seria a maior perseguição já realizada em Londres. Gostando ou não, tínhamos uma oportunidade única de eliminar aquele bastardo que há décadas estava por trás das atividades dos Filhos da Meia-Noite na cidade e que tantos havia levado a morte. Foram muitos anos de luta desde o Concílio Ecumênico de Viena, e até aquele momento não sabíamos quem era o líder deles. Mas, naquela noite, tudo viria a mudar. O corpo que jazia completamente inerte sobre a mesa havia nos dado um nome, ou melhor, a partir das informações de Edward Fletcher, sabíamos quem era o Imperador e seus principais seguidores em Londres, o que faziam e onde se escondiam.

Por outro lado, tinha plena certeza de que não poderíamos agir sozinhos naquela caçada. Eu já havia pensado em uma verdadeira estratégia militar para capturá-los, mas para isto precisaríamos que a seita fosse atacada por diversas frentes ao mesmo tempo, tornando a fuga de seus membros praticamente impossível. Tudo teria que ser feito no menor espaço de tempo possível, com uma precisão quase cirúrgica. A fim de colocar meus planos em prática, havia convocado vários líderes de ordens e sociedades, embora não me agradasse nem um pouco estar em companhia de certas pessoas... No entanto, a hora exigia sacrifícios e, se havia pelos menos algo em comum entre todos os convocados, era o desejo de impedir que não só os diabos, mas também os desafortunados espalhassem novamente o caos pela cidade, como já haviam tentado e, por vezes, conseguido. Existiam muitos interesses em jogo, e se não ajudassem por amor à Divindade, o fariam em prol de seus interesses pessoais, que estavam relacionados com o poder e a influência sobre a cidade das brumas.

Enquanto perdia-me em sonhos e pensamentos atormentados por tantos anos incansáveis de luta, uma voz ecoou pelo grande salão, tirando-me daquele estado em que me encontrava, perdido em meus próprios devaneios. Um jovem diácono anunciava que Sophie McLarty havia acabado de chegar. Seus cabelos ruivos estavam reluzentes, assim como seus olhos verdes, que não brilhavam tanto desde a primeira vez que nos vimos. Era visível sua alegria e esta

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devia estar contrastando, a olhos vistos, com o meu estado aparentemente frio e estático. Afinal, havia chegado a pior hora daquela longa noite que estava por vir, eu precisava contar a Sophie sobre seu pai Anthony, pelo qual sabia que tinha um amor incontestável. Ela nem deu-me tempo de falar, aproveitando que estávamos sozinhos, veio correndo se sentar ao meu lado, deu-me um beijo e foi logo falando que estava esperando um filho meu. Numa frieza da qual me arrependo verdadeiramente, sem demonstrar nenhuma emoção por aquela notícia abençoada, simplesmente disse que o pai dela era o Imperador. Ela sabia muito bem o significado daquele termo e num espaço ínfimo de tempo, sua alegria se esvaiu e eu senti seus dedos quentes tocarem em minha face com uma força que jamais imaginara que pudesse ter. Naquele instante, palavras doces deram lugar a blasfêmias contra mim e minha ordem. Foi então que a peguei pelos braços e a coloquei contra meu corpo, enquanto podia sentir seu coração bater aceleradamente.

Pude sentir também suas lágrimas molhando-me a face, enquanto ela murmurava pedindo que aquilo não fosse verdade. Sophie sabia o que estava por vir, qual era o significado daquela reunião tão incomum, o que seria decidido e o que seria obrigada a fazer. Pois mesmo para a sua sociedade, que não enxergava nem o bem e nem o mal absoluto em nenhum ser, os Filhos da Meia-Noite eram vistos como grandes inimigos. Acreditavam que tanto eles quanto a Igreja Católica eram os culpados pela deturpação de seus ritos e práticas e, por conseguinte, por todas as perseguições que sofreram através dos séculos. Enquanto enxugava suas últimas lágrimas, a porta do grande salão se abriu e Jonathan anunciou os demais convidados. Cada líder trazia consigo seus principais aliados, que iam entrando e se colocando em volta da mesa. Estavam todos ali, templários, hospitalários, inquisidores, tanto católicos quanto Anglicanos, além de Cabalistas, Senhores do Krav-magah, Wiccans, Maçons e até mesmo escolásticos. Sophie pertencia a Wicca, mas embora já tivesse desenvolvido vários de seus dons, ainda não estava preparada para assumir a liderança de sua sociedade, a qual era exercida por Raven MacCulloch e David McMurray.

Depois que todos estavam a postos, comecei a contar-lhes sobre Edward Fletcher, desde quando o capturamos até o momento em que nos deu as informações que precisávamos para livrar a cidade do poder dos Filhos da Meia-Noite e da Irmandade do Armagedon. É claro que as mais importantes e sigilosas foram deixadas para o final, pois precisava saber até onde estariam dispostos a ir, a fim de cumprir com um desejo que imaginava ser de todos. Como já esperava que fosse acontecer, uma longa discussão se desencadeou logo após minhas últimas explicações. O grande problema estava em uma das resoluções do Concílio Ecumênico de 1815, isto é, a caça aos membros de seitas e sociedades místicas, o que incluía wiccans e maçons. Portanto, naquele momento se acendia a fogueira das vaidades, dentro da qual ninguém se entendia. Ofensas e mais ofensas podiam ser vistas por todos os lados, que eram incendiadas pelas palavras insanas do promotor católico Gianluca Dellaguardia. No início, até

tentei amenizar os ânimos, mas a situação chegou a tal ponto que, sem paciência para tal balbúrdia, simplesmente sentei em minha cadeira e fiquei presenciando, meio que atônito, o desenrolar daquela discussão que parecia ser interminável. Mas no fim, quase coloquei tudo a perder... Uma frase ecoou pela minha mente e me fez sair quase que instantaneamente daquele estado: “Podemos começar a limpeza pela senhorita Sophie McLarty, afinal, ela carrega o sangue podre que nos trouxe até aqui esta noite”.

Sem pensar em nada, virei-me para o lado e agarrei seu pescoço. Sentia que poderia sufocá-lo até a morte, mas parecia que ainda restava em mim um pouco de frieza. Talvez por espanto ou ainda por desprezo pela alma daquele maldito inquisidor, todos fizeram um silêncio mórbido. Somente olhares se cruzavam quando minhas palavras quebraram o silêncio: “Se fizer mais alguma ofensa, se inflamar mais alguma discussão, Sr. Dellaguardia, eu o convidarei a se retirar de Londres juntamente com seus acólitos. E se não fizer isto, pode ter certeza que não restará um para voltar a Roma!”. Sem nenhum comentário sobre o incidente, todos voltaram a seus lugares e, durante mais de três horas traçamos nossos planos para que pudéssemos destruí-los. A grande caçada começaria ainda naquela noite, depois que todos reunissem seus grupos e avisassem aos membros que não estavam presentes na reunião. Cada líder ficou responsável por um grupo, que foi reunido não por suas crenças, mas sim por suas habilidades em “combate”. Ao todo, deviam estar diretamente envolvidos na missão mais de cinqüenta pessoas, fora as que se mantiveram nas sombras. Estas, por sua vez, utilizaram sua influência e contatos para descobrirem informações sobre possíveis esconderijos que pudessem ser utilizados quando a perseguição começasse. Tínhamos pouco tempo para tanto, três dias talvez, depois disto era provável que conseguissem fugir.

Pode-se dizer que a caçada aos nossos inimigos foi uma busca quase que incessante pelas ruas estreitas e sombrias da cidade das brumas. Os grupos se revezavam dia e noite, indo a todos os tipos de lugares que eles pudessem freqüentar, de restaurantes mais requintados a antros de ópio e prostituição. Mensageiros cortavam os quatro cantos de Londres, interligando as informações e pistas encontradas, além de informar as baixas ocorridas e sucessos obtidos. As brumas, que a cada dia ficavam mais densas e sombrias, devido a fumaça que saía das grandes fábricas, eram ao mesmo tempo, o refúgio deles e o manto de nossas operações. Pela manhã, corpos eram encontrados boiando no Tâmisa, nas ruas miseráveis de East End ou ainda nas proximidades de belas casas e mansões que rodeavam o West End, local onde viviam os diabos mais afortunados. Assim, Londres vivia um verdadeiro banho de sangue. Na região leste, poucos se importavam com os acontecimentos, pois crimes eram mais do que comuns naquela área da cidade. No lado oeste, as coisas eram mais complicadas, mas nada que nós e os maçons não pudéssemos encobrir, devido a nossa influência sobre a jovem Scotland Yard. Em alguns casos, as mortes pareciam mais do que “naturais”, se é que posso dizer isso. Na quarta e última noite de nossa caçada, até onde

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sabíamos, além de Anthony McLarty apenas um membro poderoso entre os diabos havia conseguido escapar e entre os membros mais importantes da Irmandade do Armagedon, todos já haviam sido eliminados.

Como o meu grupo era o único que estava com todas as suas forças reunidas, cabia a nós a derradeira missão. No entanto, durante a perseguição a Anthony, as informações desencontradas fizessem com que eu dividisse o grupo, que seria liderado por Erick Knight. Andamos por horas e como já era tarde nossos corpos já pediam descanso. A noite já havia sido por demais exaustiva e éramos duramente castigados pelo frio cortante, embalado pelo vento e pela chuva fina. Foi então que paramos e nos recostamos nas paredes de um beco sujo e fedorento de Whitechapel, uma das áreas mais miseráveis e perigosas do leste de Londres. No entanto, assim que recostamos, a chuva começou a aumentar, seguida pelo vento frio que congelava até os ossos. Parecia improvável que realmente conseguiríamos recobrar nossas forças e nossa razão. Por um momento, enquanto tentava recolocar minhas idéias em ordem, fiquei observando Sophie, que estava do outro lado, bem na minha frente. Ela estava visivelmente cansada, quase sem forças e seus lindos cabelos, agora desgrenhados, escondiam seu rosto de menina. Porém não ficaríamos ali por muito tempo... De repente, um corpo envolvido pelos braços da escuridão saiu de dentro das sombras e levou Sophie consigo. Sem pensar, fui até a parede e ao tocá-la, não havia nada além de tijolos vermelhos. Naquele instante, meu corpo e minha mente foram tomados por um estado de fúria. Corri desesperadamente por aquelas ruas e becos tortuosos que nos cercavam na esperança de encontrá-la. Entretanto, no meu caminho só havia dor, pavor e sombras, muitas sombras, elas estavam por todos os lados. Meus gritos se misturavam aos trovões e ecoavam pela noite adentro sem nenhuma resposta. Em mim só havia desespero, não sabia por onde procurar.

Quando a esperança parecia não mais existir, ouvi gritos, eram de Sophie, tinha certeza disso. Estava perto e por algum tempo tentei me concentrar, para que pudesse descobrir de onde vinham. Foi então que consegui chegar a um beco, as densas brumas atrapalhavam muito a minha visão. Mesmo assim, pude ver dois corpos bem próximos. Um estava recostado na parede e outro estirado no chão. “Graças a Deus!”, pensei na hora. Sophie estava sentada e ainda respirava, enquanto seu pai tinha uma respiração muito fraca. Queria sair logo dali com Sophie, mas antes precisava terminar com o que havia começado. No chão,

do lado dela, havia uma espada e o sangue escorria lentamente pelos símbolos satânicos nela esculpidos. Sem pensar em mais nada, sem o mínimo de compaixão sequer, peguei a espada com as duas mãos e cravei bem no meio do coração de Anthony McLarty. Mas qual não foi minha surpresa, quando a lâmina entrou em seu corpo! Não era Anthony que estava ali e sim, minha amada Sophie. O desgraçado havia se transformado nela, enquanto Sophie foi transformada em sua própria imagem. Mais uma vez, Anthony se utilizava de seus malditos dons! Eu havia matado Sophie e não ele como imaginava.

Porém, no momento em que retirava a espada de Sophie, percebi que sombras se formavam atrás de mim. Não sei se por intuição ou simplesmente por impulso, virei para trás girando a espada junto com o meu corpo, quando parei, a cabeça dele estava rolando pelo chão. Na verdade, quando golpeei Anthony, seu corpo estava se transformando em sombras, mas por sorte, a única parte que precisava para mandar aquele desgraçado para o inferno, que teve a coragem de condenar sua própria filha a morte, ainda estava intacta. Então virei-me novamente em direção ao corpo de Sophie e, diante dele, caí de joelhos, em prantos. Por um tempo, segurando-a entre meus braços, fiquei pedindo desesperadamente aos Céus que a trouxesse de volta. Quando estava saindo do beco, carregando seu corpo sem vida, meus companheiros chegaram, mas sem dizer nada a ninguém, ignorando até mesmo Erick Knight, fui caminhando entre eles e embrenhei na noite escura, fria e chuvosa. Afinal, não havia mais nada a fazer, a não ser lamentar pela minha própria ira. Em meio ao meu desespero, minha mente só conseguia ter um único pensamento: “Por que me abandonaste Senhor? Por que? Depois de tantas batalhas, tantos sacrifícios... Por que me tirastes minha amada e meu filho? Lembra-se? Não por nós Senhor, não por nós, mas para a glória de teu nome!”.

Isto tudo aconteceu ontem à noite, hoje levei o corpo de Sophie para os arredores de Londres, num local mais afastado e ainda rodeado por belos campos e flores. Chorei muito ao ver seu corpo sendo consumido pelas chamas, mas sabia que aquela era a melhor forma de prestar minhas últimas homenagens. E em meio as rosas, que ali floresciam, espalhei suas cinzas. Como ela mesma dizia, tudo vinha da natureza e para ela deveria voltar. Mas sua morte não será em vão. Hei de fazê-los pagar!

Edward Marshal, Conde de PembrokeMestre do Templo em Londres.