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REFORMA AGRÁRIA E CONSTITUINTE O INDICADOR reproduz, neste número, a mesa redon- da sobre Reforma Agrária e Constituinte, organizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - CEBRAP e pela Associa çao Brasileira de Reforma Agrária - ABRA, reali- zada em 11 de julho de 1986, na 38a reuniâo anual da Socie- dade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC, em Curi- tiba. O Prof. Geraldo Mü/ler, do CEBRAP, foi o coordena- dor dos trabalhos e atuaram como expositores Nelson Ribei- ro, ex-Ministro da Reforma Agrária e Professor da Universi - dade Federal do Pará; Luiz Edson Fachin, ex-Chefe da Pro- curadoria Geral do INCRA e Procurador Jurídico do Institu- to de Terras, Cartografia e Floresta do Paraná - ITCF; Sônia Helena Novaes Guimarães Moraes, professora universitária e Diretora da ABRA, Claus Germer, ex-Secretário da Agricul- tura do Paraná e do IPA RDES. 297

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  • REFORMA AGRRIA E CONSTITUINTE

    O INDICADOR reproduz, neste nmero, a mesa redon-da sobre Reforma Agrria e Constituinte, organizada peloCentro Brasileiro de Anlise e Planejamento - CEBRAP epela Associa ao Brasileira de Reforma Agrria - ABRA, reali-zada em 11 de julho de 1986, na 38a reunio anual da Socie-dade Brasileira para o Progresso da Cincia - SBPC, em Curi-tiba.

    O Prof. Geraldo M/ler, do CEBRAP, foi o coordena-dor dos trabalhos e atuaram como expositores Nelson Ribei-ro, ex-Ministro da Reforma Agrria e Professor da Universi-dade Federal do Par; Luiz Edson Fachin, ex-Chefe da Pro-curadoria Geral do INCRA e Procurador Jurdico do Institu-to de Terras, Cartografia e Floresta do Paran - ITCF; SniaHelena Novaes Guimares Moraes, professora universitria eDiretora da ABRA, Claus Germer, ex-Secretrio da Agricul-tura do Paran e do IPA RDES.

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  • GERALDO MULLER

    A questo da Constituinte surge, numa sociedade, quando as re-gras do jogo so consideradas inadequadas pelos atores sociais e, portan-to, os processos sociais em curso no mais so pertinentes ou no maisso adequados a essas normas. A Constituinte, assim, pode ser tomadacomo uma conjuntura social muito especfica, na qual a estrutura come-a a sofrer remodelaes. O que, afinal de contas, busca a Constituinte atualizar, readequar as regras de um jogo que se quer democrtico eso elas que vo encontrar, nos processos sociais, precisamente, o seucontedo. No so as regras que vo definir o jogo: so os processos so-ciais que vo ganhar forma de regras do jogo e delimit-lo. E, evidente-mente, na Constituinte, o que est em discusso a cidadania. Esse oponto fundamental: como se pode, atravs de uma Constituinte, trans-formar os cidados? A idia de cidadania brota da juno de trs di-reitos fundamentais: o direito civil - aquela velha estria de ir e vir; odireito poltico - de votar e de ser votado, ter assemblia, representa-o; e o direito social - de alimentao, habitao, educao - que uma conquista recente, mesmo para os pases desenvolvidos. S assimtemos o cidado. Acontece que os nossos processos sociais no tm,por um lado, muito que copiar da herana histrica europia ou norte-americana. Por outro lado, esses processos, no Brasil, no se deramnum jogo chamado concorrencial, onde, de fato, pequenos grupos dis-putam, entre si, posies de mercado e posies polticas. Temos, apartir dos anos 50, a predominncia de grandes blocos, seja de capital,seja de idias: o capitalismo oligoplico. Vimos a chamada moderni-zao agrria dos ltimos 20, 25, 30 anos. impossvel concordar comessa modernizao, tal qual foi feita. sob esse prisma que se deveconsiderar a questo agrria e a Constituinte. Como que entra o ele-mento agrrio no fabrico possvel dos cidados contemporneos, noBrasil? Tenho algumas questes, que gostaria de nomear. Um dos ele-mentos fundamentais est no fato de que, hoje, o pas predominante-mente urbano e industrial. Essa questo tem uma centralidade, que capaz de articular processos e sobre os quais necessrio tecer conside-raes jurdicas. Como imaginar a mudana no patrimnio fundirionacional, que imenso, visando criao de empregos? Como a refor-ma agrria pode criar empregos, quando toda economia oligoplica responsvel, por sua natureza, pela diminuio do emprego produtivo,seja na indstria ou na agricultura? Alm disso, no se pode voltar as

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  • costas para o progresso tcnico; tambm no vale a pena enfrent-lode peito aberto. No que consistem, afinal de contas, as tais alternativastecnolgicas? Temos uma oposio muito clara entre duas correntesideolgicas: de um lado, temos uma idia neoliberal, que pretendedeixar para as chamadas foras do mercado, como de fato so os gran-des lotes, o papel de, remexendo a estrutura fundiria, mexer com aquesto agrria, patrocinar o fabrico da cidadania; de outro, temos umacorrente que acredita que, sem a interveno do Estado, isso impos-svel, dentro dos padres oligoplicos existentes. Isso requereria umadualidade de mercado. Ser que s existem essas duas formas de pres-so, no h uma terceira? Essas so algumas questes que, acredito, ospresentes aqui iro tratar.

    SNIA HELENA NOVAES GUIMARES MORAES

    A Associao Brasileira de Reforma Agrria - ABRA est ini-ciando o projeto "Constituinte e Questo Agrria", que tem uma sriede vertentes a serem analisadas, justamente para termos uma posiomais aprofundada e no ficarmos apenas defendendo essa ou aquela cor-rente, aquilo que deve ou no ser includo na Constituio, ou detalhan-do excessivamente algumas matrias que no so essenciais como suges-tes para a Constituinte. Pretendemos analisar, num primeiro momen-to, o instituto da posse, dando-lhe um relevo diferente do que dadohoje, na nossa legislao e sugerir formas novas de apropriao da pro-priedade rural, formas novas de uso da terra. Um outro aspecto queiremos discutir, uma avaliao crtica dos institutos da posse, da pro-priedade no Brasil atual.

    Hoje, o que temos a apresentar apenas uma preliminar desseprojeto, pois estamos ainda preparando essa primeira vertente, sobre aposse e a propriedade. Gostaria de levantar dois aspectos sobre a ques-to: um deles o que seria a Constituio ideal para o trabalhador, aqui-lo que ele realmente almeja, embora talvez isso no seja possvel nessaConstituinte, j com defeitos em sua prpria origem. Alm disso, nemmesmo uma lei vai mudar todo o pas, toda a sua estrutura. Em segun-do lugar, consideraremos aquilo que talvez seja o possvel dentro do quens temos no nosso Direito, no nosso sistema e dentro da conjunturapoltica.

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  • No plano ideal, discutiremos os princpios fundamentais relativos questo agrria, baseados numa total reformulao do conceito e no-o de posse e propriedade, de forma a se abolir o atual sistema fun-dirio. Abolindo-o numa perspectiva privada e consagrando-o numaperspectiva de interesse coletivo e de responsabilidade social. Acho im-portante, quando se fala em terra, pensar-se no s na terra rural, mastambm na terra urbana, como bem natural no reprodutvel, que deveser preservado em benefcio de toda a coletividade, acima das diferenasindividuais. Esses so princpios bsicos, que nortearo as discussesdessa Constituinte. Deve-se garantir tambm o acesso terra, em si-tuao de estabilidade, para a produo de bens indispensveis melho-ria da qualidade de vida dos trabalhadores rurais, ou seja, criar-se a pos-sibilidade do acesso terra e, no, o acesso propriedade da terra. muito mais importante discutir o acesso terra do que, propriamente, odireito de propriedade individualista, como ns temos hoje nas leis bra-sileiras. Deve-se garantir a posse agrria, atravs da definio expressae fundamentda no conceito do trabalho produtivo direto, familiar oucomunitrio. Hoje, a Constituio garante, como direito fundamental,o direito de propriedade e, alega-se inclusive, esse direito de proprieda-de to arraigado, contra qualquer proposta de reforma agrria, por maistmida que seja. O que estamos lutando por incluir nessa Constituioideal exatamente a garantia do acesso posse agrria e, no, proprie-dade. Assim, no se garantiria mais o direito de propriedade nas garan-tias individuais, mas sim, se garantiria o acesso posse, o acesso do tra-balhador terra. A garantia do direito individual de propriedade da ter-ra poderia ser includa no texto constitucional, apenas no que diz res-peito aos pequenos produtores que possuem uma atividade agrria efi-ciente, de acordo com suas necessidades e como instrumento de seu tra-balho, fixados os limites mximos, ou seja, um mdulo mximo deexplorao, por qualquer proprietrio, dentro dos planos de reformaagrria.

    Um outro aspecto seria, j num outro contexto, a garantia abso-luta do direito de propriedade aos pequenos proprietrios, quando hou-vesse desapossamento ou desapropriao por utilidade pblica. Essesso os casos, por exemplo, de barragens, os casos em que o poder p-blico tem que deslocar populaes que muitas vezes so indenizadas deforma injusta. O pequeno posseiro ou pequeno proprietrio, com ovalor da indenizao, no consegue obter uma terra de nvel razovel ousimilar que ele tinha e, muitas vezes, no tem condies de se defen-der. Nesses casos especficos, estaria garantido totalmente seu direito,

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  • no atravs do ressarcimento, atravs de ttulos ou indenizao, mas,sim, mediante reassentameto dos agricultores em reas equivalentes, emregies contguas ou prximas da rea de interveno, indenizados, emdinheiro, todas as benfeitorias. S assim poderiam ser feitos projetosde grandes obras pblicas.

    Outra questo muito em voga a defesa de alguns juristas de quea Reforma Agrria deve ser apenas mencionada no texto constitucional.Ns temos visto, em vrios textos de outros pases, que a reforma agr-ria, quando realmente uma proposta para ser levada adiante, e efeti-vamente um programa de governo, vem quase detalhada na Constitui-o. Isso ns podemos ver na Constituio Portuguesa, na Constituioda Nicargua e, parece-me, na Constituio do Mxico. Nesse detalha-mento, devem ficar bem especificados os objetivos da Reforma Agrria.Assim, no captulo 'Da Ordem Econmica e Social", deveria estar oprojeto de Reforma Agrria, no apenas como meno desapropriaode terras improdutivas, mas como um anteprojeto efetivo de ReformaAgrria, quanto: a) aos seus objetivos; b) ao conceito de apropriaoe uso da terra, conforme mencionei anteriormente; c) forma de elimi-nao gradativa das propriedades que no atendam s necessidades s-cio-econmicas do pas, atravs de processos expropriatrios diferen-ciados, podendo a lei definir as condies de indenizao ou a requisi-o, sem indenizao, no caso de abandono injustificado da terra ouconcentrao abusiva (esses ltimos seriam casos, praticamente, de con-fisco); d) competncia complementar aos Estados e Municpios para adesapropriao, por interesse social, para fins de Reforma Agrria; e) definio de formas preferenciais de explorao comunitria da terra;f) definio de formas transitrias de explorao da terra alheia (os ar-rendamentos, parcerias, contratos agrrios, seriam formas transitrias e,no, formas, como hoje so, extremamente definitivas de explorao daterra, atravs de terceiros, mediante a cobrana de um aluguel, ou deuma parceria; parte do pagamento dessa renda da terra, no caso de con-trato de arrendamento, poderia ir para um Fundo gerido pelo governo,que deveria ser reinvestido na prpria propriedade); g) distribuiodos subsdios do poder pblico aos agricultores; h) setorizao da ati-vidade produtiva e industrial do campo, delimitando-se o que inds-tria e agroindstria (a rea industrial, inclusive, poderia ser obrigada acomprar, a preos razoveis, os produtos das propriedades agrcolas);i) participao dos trabalhadores rurais e dos pequenos agricultores nadefinio e execuo da Reforma Agrria, atravs de suas organizaes

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  • prprias, associativas ou sindicais (no projeto de Reforma Agrria,essa questo sempre discutida e, estando garantida na Constitui-o, h muito mais facilidade de se sensibilizar a classe trabalha-dora, para que ela participe e possa cobrar o que est na legisla-o); j) implantao de uma justia especfica para o campo, de umaJustia Agrria (esse um assunto que tenho um certo receio de abor-dar, porque, se j tivemos uma Reforma Agrria muito mutilada por umdecreto, podemos v-Ia completamente exterminada, por sentena deum Poder Judicirio, extremamente conservador e no aparelhado paraenfrentar os conflitos agrrios); 1) coexistncia dos diversos setores depropriedade agrria: pblico, privado e comunitrio. Essa outra questoque temos discutido muito na ABRA, dentro daquela perspectiva dopossvel nesta Constituio, a introduo de trs setores no campo: o se-tor pblico; o setor privado, que no d para ser eliminado, pelo menosna conjuntura atual; e um setor chamado reformado, integrado pelasreas onde se aplicasse a Reforma Agrria. Esse setor teria ento umoutro sentido, uma outra vinculao com a terra: o uso da terra. No seteria mais s a propriedade da terra, mas a concesso de seu uso, quepoderia, at, ser transmissvel de pai para filho, mas o domnio da terrapermaneceria como est. So estas as nossas notas preliminares, o quetemos pensado, observado na imprensa e discutido com alguns tcnicosligados questo agrria.

    LUIZ EDSON FACHIN

    1. A calibra'o das contradies sociais

    Nenhum outro momento histrico do Pas possivelmente apre-sentou, numa transio poltica, tamanho confronto entre os ideaisde mudana e os interesses conservadores. O Brasil vive atualmenteesta luta diuturna: de um lado a retrica do mudancismo e poucas pr-ticas transformistas; de outro, a aplicao eficiente da anci ttica se-gundo a qual ' preciso mudar alguma coisa para que tudo continue namesma".

    Nesse contexto nem sempre possvel ter precisa clareza na an-lise de questes to relevantes como a que se refere luta pela terra. Oque se observa, por exemplo, na tentativa de avano social, a repeti-

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  • o de alguns erros histricos cujos efeitos so bem conhecidos, espe-cialmente aps 1964. Porm, ao mesmo tempo, se denota tambmque a ruptura pacfica com o sistema autoritrio tem levado a segmen-tos progressistas defenderem apenas o rtulo da Nova Repblica semadentrar mais fundo e firme no contedo desse frasco indiscutivelmentecomplexo e contraditrio.

    O to famoso receio de retrocesso que povoa as cabeas civiscomo espada vigilante da pseudo-normalidade nacional, tem sido umdos responsveis pelo agrupamento de progressistas e conservadoressob o mesmo e surrado guarda-chuva partidrio.

    Em certo sentido, foras ponderveis do Pas repetem o equili-brismo da corda bamba ao ouvirem insistentemente a advertnciade que "se ficar o bicho pega e se correr o bicho come".

    No fundamental, vivemos, enfim, um razovel impasse. Esse im-passe, porm, tem beneficiado aos detentores do governo dos interessesdominantes. Se a questo avanar para alm da democracia polti-ca, como se faz necessrio, postulando a democracia social e econmica,a justa distribuio da renda nacional, o pleno emprego, a repressoao abuso econmico, ao solvimento da intrincada questo militar, adiviso que se instaura entre segmentos que concordam com tal avanomas que discordam do tempo e do modo em que ele deve se dar, so-mada s correntes contrrias a qualquer mudana, prestam por promo-ver um choque de foras que tem sido, de algum modo, competente-mente administrado pelo governo dos interesses dominantes. O que aNova Repblica tem feito, enfim, calibrar contradies sociais, em-pregando uma roupagem avanada para prticas conservadoras. E quan-do, de fato, concedido algum passo frente, face presso social, nomomento seguinte cuida-se, com todo esmero e eficincia, para que sedem dois passos atrs.

    Essa ttica da ambigidade tem confundido alguns movimentossociais e, em certos momentos, provocado um pouco de imobilismo.

    por dentro dessa relativa e engenhosa arquitetura que a NovaRepblica tem-se apropriado, com o cuidado de um aluno extremamen-te aplicado, das lies das sstoles e distoles de um conhecido Ge-neral de triste mas recente memria.

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  • 2. A Constituinte do Governo

    Nessa construo cclica que quase no conduz a lugar algum,se insere a convocao da Assemblia Nacional Constituinte. Para amai-nar a frustrao imposta por 22 parlamentares, ciosos de seu compro-metimento com o status quo, procurou-se compensao na convocaoda Constituinte, que deveria ser o momento maior das aspiraesnacionais, no sentido de criar um novo ordenamento poltico-jurdico.Porm, no se consumou no dia 28 de junho de 1985, quando o Presi-dente da Repblica assinou a Mensagem n. 330 submetendo ao Con-gresso Nacional projeto de Emenda Constitucional, o ideal de umaConstituinte livre, soberana, exclusiva e autnoma.

    Convocados a legislar em causa prpria, os futuros constituintessero, em verdade, os futuros membros do Congresso Nacional. Cuida-ro, portanto, de tecer o novo estatuto constitucional do qual novivero apartados. Ou seja: teremos um Congresso constituinte, frmu-la muito distante das reais necessidades e reivincidaes da grande maio-ria da populao.

    Por bvio, isso extremamente pouco, embora no signifiqueque devamos abandonar o caminho e, sim, ver, com clareza, que aestrada de reencontro da vida nacional no retilnea, mas sinuosa edifcil, a exigir luta, organizao e mobilizao, questioriamentose crticas, como mostra a realidade que surge da Reforma Agrria doGoverno.

    Se, desde que deixamos de ser colnia, as Constituies brasilei-ras foram forjadas sem a participao do povo, alm de ocupar o peque-no espao que restou, cabe, tambm, pugnar por transformaes deri-vadas de movimentos sociais organizados que independem dos freiose contrapesos do Governo e de suas instituies, superando o autori-tarismo das minorias econmicas e o casusmo, do que exemplo a"Comisso Afonso Arinos".

    Hoje, de qualquer modo, fundamental despertar ainda maispara as questes bsicas que se colocam na perspectiva da Constituin-te, at para tentar obstruir retrocessos como o que se avizinha, decor-rente dos "lobbies" engendrados no meio rural por grupos e pessoas de

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  • espritos caiados pelo dio e pela violncia. Mais ainda: tal posturatambm se mostra necessria para denunciar o clientelismo de candida-tos e, inclusive, de partidos que at estiveram na resistncia demo-crtica.

    Se as perspectivas no so animadoras, o mito da permanenteesperana incondicional to nefasto e frgil quanto o da desesperananiilista.

    3. A terra na perspectiva da Constituinte

    O instituto da propriedade foi e continuar sendo ponto nevrl-gico das discusses sobre as questes fundamentais do Pas. Por isso,o debate sobre a questo agrria na perspectiva de uma Constituintesuscita alguns tpicos para anlise.

    No obstante se apresentar uma proposta de Constituinte de cu-nho conservador, mitigada em sua soberania e liberdade, seguem adiantealgumas indicaes para a discusso. Tais indicaes correspondema poucos .dentre tantos outros itens, certamente mais relevantes.

    O ponto de partida considera tambm a existncia do Plano Na-cional de Reforma Agrria, o qual, apesar de sua insuficincia, timi-dez e recuos, reacendeu a nvel institucional o debate sobre a questoe comprometeu o Governo com metas e definies.

    3.1. Definio constitucional da natureza do direito de propriedaderural

    De um conceito privatista, a Constituio em vigor chegou fun-o social aplicada ao direito de propriedade rural. E um hibridismoinsuficiente, porque fica a meio termo entre a propriedade como direi-to e a propriedade como funo social. Para avanar, parece necess-rio entender que a propriedade uma funo social. Isso poder cor-

    responder efetiva supremacia dos interesses pblicos e sociais sobre osinteresses privados, gerando inmeras conseqncias, inclusive alm daquesto agrria.

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  • Se, ao invs de a propriedade rural ter uma funo social, ela setornar funo social, concluir-se- que no h direito de propriedadesem o cumprimento dos requisitos da funo social. Essa configura-o poderia permitir a um Estado democrtico arrecadar todos os im-veis rurais que sejam enquadrveis nessa categoria, sem indenizao. Seno h direito, logo, no h o que indenizar.

    Entender, hoje, que no h propriedade rural sem funo social uma construo terica correta, mas cuja base jurdica ainda deveser conquistada.

    3.2. A desapropriao por interesse social para fins de reforma agrriade imveis que estejam produzindo

    Fixado como princpio que a propriedade, antes de direito, uma funo social (o que faz nela avultarem as obrigaes e no as fa-culdades), os imveis rurais enquadrados nessa situao, qual seja, noutilizao, poderiam ser sumariamente arrecadados pelo Estado. Nohaveria que se falar, ento, em desapropriao, posto que no haveriao que desapropriar.

    Aqueles imveis que estiverem produzindo, ao inverso, estariamsujeitos desapropriao por interesse social para fins de reforma agr-ria, fixando-se-lhes indenizao cujo teto mximo, em qualquerhiptese, fosse o valor declarado pelo proprietrio para fins de ITR -Imposto Territorial Rural. Dessa forma, todos os imveis rurais nopas, agricultados ou no, estariam sujeitos reforma agrria.

    Obviamente, a utilizao devida e no arbitrria desses meca-nismos pressupe um Estado democrtico de direito. O desencadea-mento pacfico e ordenado de um processo de Reforma Agrria, inseri-do no conjunto das instituies que imperam no Brasil, est direta-mente ligado existncia de um Estado democrtico de direito. O cum-primento de um ordenamento jurdico em vigor pode corresponder verificao de um Estado democrtico de direito, que se d no somen-te pela conformidade legal dos procedimentos, mas, principalmente,pela legitimidade dos instrumentos disponveis. Tal legitimidade aferida pelo respeito s reivindicaes do prprio povo, pelo exerccio

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  • do poder que no invada as esferas de autodeterminao individual,e pelo respeito ao interesse pblico e comum, fundamentalmente.

    3.3. O mdulo mximo

    Consentnea com as demais medidas, a fixao de mdulomximo de propriedade rural deve atingir tanto nacionais quanto es-trangeiras (pessoas fsicas ou jurdicas), terras pblicas ou privadas.Sua previso deve ser constitucional. De certo modo, ainda que muitotnue, essa idia j tem algum amparo no Estatuto da Terra (ao tratardo latifndio por dimenso no art. 40, inciso V), e na Constituiofederal (art. 171, nico). Com a vigncia de tal limitao, ser impres-cindvel estabelecer regra disciplinando a destinao das reas dos im-veis que excedam o mximo a ser fixado.

    3.4. Questo agrria e meio ambiente

    A compreenso interdisciplinar do universo agrrio traz tonaa necessidade de assegurar constitucionalmente a proteo dos recursosambientais. Esses recursos, especialmente os espaos fsicos inseridosnos imveis cobertos de mata nativa, devem ser apreendidos comobens pblicos de natureza especial, intocveis.

    A existncia ou inexistncia dessas reas de proteo ambientaldevem corresponder diferentes graus de incidncia do Imposto Terri-torial Rural. O relevo a esse aspecto decorre da definio primeira acer-ca da natureza publicista ou privatista do direito de propriedade.

    3.5. Questo agrria e justia

    O contexto agrrio no pode prescindir de dispositivos insti-tucionais capazes de instrumentalizar a defesa dos trabalhadores, emtodos os nveis, bem como de coibir a violncia no campo.

    A justia agrria que se cogita no pode se esgotar na previsoconstitucional da Justia Agrria enquanto estrutura destinada aresolver processual e formalmente litgios de sua competncia. Deveir mais alm, abarcar o conjunto de direitos e faculdades atribuveisao trabalhador rural, inclusive a nvel previdencirio, de sade etc.

    Se essa a Justia necessria, preciso, desde logo, relativizarseus efeitos e sua fora, para corrigir injustias, face a uma limitao

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  • que lhe nsita: ao Poder Judicirio, o mundo dos fatos o mundo dosautos, ou seja, a realidade o universo processual. Esse "fechar de,olhos" para o mundo a que se submete, com raras exce es, o magis-trado, faz com que ao Poder Judicirio reste aplicar ao trabalhadora lei, via de regra, confeccionada direta ou indiretamente pelo patro.O resultado sobejamente conhecido. Alm disso, o Judicirio umdos poderes que granjeia maior descrdito junto populao, confor-me revelaram recentes pesquisas de opinio pblica divulgadas por ve-culos da imprensa escrita diria. O descrdito advm da morosidadeprocessual, do acmulo de servios, da m remunerao de alguns ma-gistrados (especialmente em incio de carreira), das acusaes acercada existncia de julgadores venais, e de outras tantas circunstnciastambm muito conhecidas.

    Sem uma mudana estrutural, para o Poder Judicirio nada emer-gir de inovador e compatvel com a realidade contempornea. Aest o exemplo da Justia do Trabalho, rgo especializado cuja "efi-cincia" bem sabida pelos trabalhadores, a qual encarregou-se de"banalizar" os conflitos entre patres e operrios, servindo muitomais como um mecanismo do Estado para amortecer movimentose reivindicaes.

    Mais do que alteraes no Poder Judicirio, a misria e a cons-cincia contemporneas exigem mudanas reais na estrutura econmica.Qualquer iniciativa que no considere como pressuposto alteraessubstanciais no contexto histrico, poltico e econmico vigente, ain-da que possa representar um famoso "passo a frente", estar condena-da, mais cedo ou mais tarde, a compelir os segmentos sociais envolvi-dos a dar dois passos atrs. E tais mudanas devem ser da essncia do"regime" e, no, perfunctrias.

    Dessa forma, a Justia Agrria exsurge como necessria mas hojeser possivelmente ineficaz, sem transformaes mais profundas noEstado e na sociedade, especialmente no campo.

    Isso no significa, de modo algum, que a implantao da JustiaAgrria deva estar condicionada verificao plena de tais circunstn-cias. Corresponde, apenas, a estabelecer uma simples regra de propor-cionalidade entre a eficcia da Justia Agrria e essas transformaes.Enquanto for mantido, por fora dos interesses predominantes, o atualstatus quo, a Justia Agrria apresentar srias limitaes ao seu nobrepropsito de distribuir a real e efetiva justia para o caso concreto.

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  • Mesmo que nesse contexto sejam instalados rgos jurisdicionaisagrrios, um conjunto de itens devem ainda ser postos em discusso,destacando-se, dentre eles, o princpio da elegibilidade dos juzes agr-rios como forma de democratizar o acesso judicatura e ao prpriofuncionamento do juzo. Salienta-se, ainda, a necessidade de instituiro poder cautelar geral e "ex officio" do juiz agrrio, inclusive para evi-tar despejos e expulses violentas. A nvel legislativo, cabem inmerasmodificaes, como, por exemplo, no tocante ao chamado desforopessoal ou de mo prpria, albergado no art. 502 do Cdigo Civil re-manescente da medieval justia privada.

    Em verdade, a efetividade da Justia Agrria deve procurar tam-bm resolver um clssico problema posto sempre como um dilemadiante do direito: a igualdade. O princpio segundo o qual todos soiguais perante a lei, consagrando a isonomia no texto constitucional,cedeu terreno arguio da legitimidade da prpria lei, vale dizer:no basta ser tratado igualmente diante de uma lei que no considerouas desigualdades sociais e que no abrigou princpios protetores dasclasses menos privilegiadas. Tal argio leva a concluir que a socie-dade brasileira ainda tem um longo e ngreme caminho a percorrer naconquista de um verdadeiro Estado democrtico de Direito. Hoje, ape-nas, engatinha-se em direo a caminhos ainda por desvendar.

    o que tinha a expor.

    NELSON DE FIGUEIREDO RIBEIRO

    Vivemos o ltimo quartel do sculo vinte. E tempo pois, de fa-zermos - ainda que a vo de pssaro - uma rpida visualizao, atuale prospectiva, da situao do quadro social da gente brasileira.

    Nesse sentido, o que propomos simplesmente uma olhadela riospores da nossa pobreza, de modo a permitir que, no gigantesco esforode engenharia social que h de se seguir instalao da Assemblia Na-cional Constituinte, possamos nos livrar dos constrangimentos da ini-quidade, da injustia social, e qui, da aviltante imagem - internacio-nalmente ccnhecida de sermos um Pas cujo desenvolvimento se fezprivilegiando os menos necessitados.

    Assim, oportuno lembrar que o quadro estrutural da distribui-o da riqueza e da renda do pas dolorosamente concentrado. Cons-trumos a nossa histria marcados, no como povo livre, mas como

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  • povo dependente, de precria autonomia. Quando no eram os interes-ses forneos que nos impunham o ritmo e o estilo de desenvolvimento,eram os interesses particulares de grupos minoritrios, estribados no po-der, que determinavam o limite possvel de qualquer concesso aos maisdespossui'dos. E assim, geramos um desenvolvimento de baixa tonicida-de, subserviente, onde os ricos se tornaram cada vez mais ricos e os po-bres cada vez mais pobres. Os privilgios e a fortuna de uns poucos, ti-nham por corolrio a fome e a subcidadania de muitos.

    A linha de demarcao da pobreza no Brasil, por mais rgidos quesejam os critrios para sua demarcao, tem-se mantido sempre em n-veis muito altos. H regies do Pas onde a misria comparvel quelaexistente em Bangladesh.

    Estas regies assistem ao desemprego e ao subemprego lancina-rem macios contingentes populacionais. Mas o que agride - do pon-to de vista econmico - saoer que o desemprego e o subempregono bastam para explicar a extenso da pobreza. No Brasil, um traba-lhador desempregado ou subempregado talvez no esteja em situaopior do que aquele que ganha um ou dois salrios mnimos, to baixo o piso salarial e to grande a diferena entre o menor e o maior dos sa-lrios.

    Nossa pobreza ainda apresenta outras morfoses. Se do ponto devista econmico, o pobre um ente apendicular, sem qualquer funono sistema produtivo, do ponto de vista social, ele vtima da intensaproletarizao, que ele assume na plenitude do sentido lxico do termo:processo de pauperizao no qual a nica riqueza que o chefe de famliatem a oferecer a sociedade a sua prole. So eles - verdadeiramenteos despossudos.

    A misria tambm gera destitudos. E aqui surge a sua formapoltica: as pessoas miserveis so destitudas de toda e qualquer cida-dania. No tm direitos, nem merecem reconhecimentos.

    Essas formas completivas que a misria assume nos colocamdiante de um quadro social que, ao entardecer do sculo vinte, chocaprincipalmente por sua tendncia perenidade. Diferentemente do quevem sendo feito no resto do mundo, onde alguns pases pobres tm suasprioridades e estratgias de planejamento centradas no combate po-breza, somente agora, com o advento da Nova Repblica, o Brasil iniciaum trabalho de enfrentamento da misria. A India situou a linha de-marcatria da pobreza no seu sexto plano qinqenal ao nvel de 48%da populao no binio 1979/80, mas conseguiu reduzir esse limite

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  • para 37% da populao no binio 1984/85. O stimo plano qinqenalpor isso, estipulou at 1990 a meta de 26% da populao abaixo da li-nha de pobreza, e de 10% at o meado da prxima dcada (do "Finan-cial Times", apud. Folha de S. Paulo, de 30/06/1986).

    A questo agrria brasileira parte importante da questo social,pois, em qualquer conjunto de foras que se possa selecionar para ex-plicar a precria situao de vida a que est submetido um aprecivelcontingente da nossa populao rural, h de figurar, como vetor causalsignificativo, a histrica distribuio da propriedade no campo. Se nadcada de 1950, mais de 70% da populao brasileira viviam no meiorural, na dcada de 1980, apenas 30, ai' permaneciam, embalados queforam, nos ltimos trinta anos, por um fantstico fluxo de migrao in-terna. Esses grandes contingentes populacionais, impelidos pelas neces-sidades de sobrevivncia, dirigiram-se, ora para as cidades, ora para asfrentes pioneiras de penetrao, aspirando a uma vida melhor. Sempre,entretanto, impulsionado pela fome e pela misria, errante pelo Pas, doNordeste para o Sul e para o Norte; do Sul para o Norte, acampado aquiou acol, o migrante tornou-se "bia fria" (trabalhador temporrio)junto s empresas rurais, posseiro nas frentes de penetrao, biscateironas periferias dos centros urbanos. Onde quer que esteja, ou estsubempregado ou est acorrentado s incertezas da sazonalidade ou daposse temporria. NSo tem direito a programar seu futuro, porque se-quer consegue garantir o seu presente. A incerteza, a instabilidade, advida, a insegurana e o medo so os traos que distinguem o carterpsicossocial e cultural da famlia rural brasileira, transmitindo-se de paipara filho, num encadeamento cruel.

    Sem ambages, preciso dizer que a gnese desse fluxo migrat-rio - a causa das causas - remonta ao latifndio. No nos parece ne-nhum exagero afirmar que a migrao dos trabalhadores rurais est liga-da, num primeiro momento, a variveis como emprego, renda e ocupa-o da terra, que por sua vez, so condicionadas pela presena soberbado latifndio. Este o elemento que vai explicar - em boa parte - asrazes da concentrao cia renda agrcola, do baixo nvel de empregorural, que tornam o meio rural um ambiente hostil, de baixa capacidadede reteno de mo-de-obra.

    J houve tempo em que esse movimento migratrio cumpriu oseu papel de estimular o desenvolvimento. Durante todo o perodo desubstituio de importao, quando o eixo dinmico da economia tor-nou-se domstico, a incipiente industrializao da economia brasileira

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  • logrou evitar uma "crise agrria" das maiores propores, simplesmenteporque permitiu que o meio urbano absorvesse considervel parcela dapopulao rural errante. Atualmente, a situao diferente. O latifn-dio tange as populaes rurais dos seus domnios, ou as mantm emreas minsculas (minifndios), ou ainda, impe seu domnio sobre asreas antes ocupadas por migrantes. No existe mais forma de fazercom que as cidades absorvam esses excedentes populacionais - a histriano se repete. Surge ento, a nova e triste figura do acampamento - pro-va maior do desespero e da insegurana da famlia rural brasileira.

    J no vivemos uma crise agrria. Vivemos um paroxismo. Essasreflexes todas nos permitem antever de forma trgica a virada do s-culo em nosso Pas, se nada for feito agora para mudar o curso dosacontecimentos. O que pode ser feito em nossos dias para evitar essemovimento inercial para a entropia? Qual a estratgia poltica quedevem adotar os grupos sociais que lutam pela reforma agrria nestaconjuntura? Talvez a resposta natural a estas questes surja na Consti-tuinte da Nova Repblica. Em sendo assim, ela torna-se catalizadora detodas as esperanas do povo brasileiro, no sentido de definir, no apenasas mudanas que a sociedade exige e espera que sejam feitas, mas princi-palmente, no sentido de definir a praxiologia dessas mudanas, de talforma que elas se tornem irreversveis e auto-aplicveis. A Constituintede 1987 dever, por isso ter como sol inspirador de seus objetivos estra-tgicos, a op'o pelos pobres, a preferncia pelos despossu (dos e desti-tudos, respaldando dessa forma a ao do Governo para que este possafazer as mudanas fundamentais exigidas pela sociedade.

    A Constituinte brasileira, portanto, tem de perseguir como seuobjetivo ltimo a concepo e organizao de um novo modelo de so-

    ciedade, centrada na autonomia da pessoa humana, como sujeito e cida-do, autor e no objeto da histria de seu tempo. Essa , sem dvida, agrande novidade da Nova Repblica. No a transio democrtica di-rigida apenas s instituies polticas, mas sim a democracia econmicabaseada no princpio tico da "igualdade de oportunidade para todos"que se constituir essencialmente no que tem de novo, na Repblicaque estamos reconstruindo um sculo aps a sua proclamao. E a pr-pria estrutura da sociedade que tem de ser reinstitucionalizada para queos nveis de pobreza possam ser superados ou atenuados at o final dosculo.

    Adotando uma atitude realista diante da questo social brasileira,a Constituinte tem de dar um golpe de morte no latifndio como fora

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  • nutriz da misria pela qual passa a metade da populao brasileira. Tra-ta-se, portanto, de uma abordagem estrutural da questo agrria brasi-leira; e que por isso mesmo no se reduz apenas ao tratamento sintom-tico, orientado para a eliminao dos seus efeitos e conseqncias,apoiado exclusivamente no aporte de aes assistencialistas ou na re-presso violncia. O legislador constituinte dever voltar-se para ascausas do problema social e, portanto, para a eliminao das foras en-trpicas que o alimentam.

    No se pretende com isso a excluso da assistncia social; o esta-do de necessidade de sobrevivncia que caracteriza a pobreza absolutade grande parcela da populao brasileira exige do poder pblico umaintervenao supridora direta, para garantir a sobrevivncia de grandescontingentes populacionais, onde a fome se tornou a idia-forca queorienta seus passos no dia a dia. O que no se pode aceitar a exclusivi-dade dessas medidas, porque por si s no levam superao dos trgi-cos nveis de misria que a Nao atingiu.

    A grande questo que a sociedade ter de formular para ser res-pondida pela Constituinte consiste na definio da praxiologia que opoder pblico deve adotar para que, no crepsculo do sculo, sejam re-vertidas as tendncias para a proletarizao e misria do povo. De forma especfica, necessrio que sejam formulados os pressupostos fun-damentais da reforma agrria brasileira para que sejam inseridos naConstituio Federal, enquanto ideal histrico concreto da sociedade.

    Destarte, conveniente identificar e caracterizar o patrimniopoltico da reforma agrria. Em outras palavras, cumpre salientar o quea sociedade brasileira j concebeu e internalizou em matria de combate estrutura agrria vigente. Esse patrimnio poltico - assim posta aquesto - condio residual na discusso da estratgia de reformaagrria e constitudo por pressupostos j inseridos no Estatuto da Ter-ra e sua legislao complementar ou na atual Constituio Federal, quedevem ser mantidos e, se revistos, devem ser aperfeioados, explicita-dos, nunca porm exclu,dos. Pode-se pois, afirmar que j integram opatrimnio poltico da reforma agrria brasileira, os seguintes pressu-postos fundamentais:

    1 - a desapropriao por interesse social como instrumento b-co da estratgia de ao da reforma agrria;

    2 - o assentamento agrrio nas regies onde habitam os exce-dentes populacionais, em respeito a sua cultura familiar;

    3 - o assentamento agrrio apoiado no trip: a oferta de terras,

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  • a oferta de condies para o uso e explorao da terra e a organizaodo trabalhador;

    4 - o conceito de latifndio, por dimenso ou por exploraoque exclui a noo estranha ao Estatuto da Terra, de latifndio produ-tivo ou improdutivo;

    5 - o carter complementar, em relao reforma agrria, daspolticas tributria, de colonizao e de regularizao fundiria;

    6 - os planos nacional e regionais com metas especficas paracada Estado;

    7 - a regionalizao do mdulo rural.O pressuposto n. 4 pode levantar polmicas, se for mal entendi-

    do. Para que se evite isto, importante distinguir estratgia de ao degoverno e matria de lei. Como estratgia de ao de governo, impera-tivo, na atual circunstncia poltica e econmica em que vive o Brasil,que os latifndios por dimenso produtivos sejam protegidos do atoexpropriatrio. Mas isto no quer dizer que seja adequado que se trans-forme isto em matria de lei. O Estatuto da Terra no distingue entreprodutivo e improdutivo. Ele apenas define a amplitude da ao do po-der pblico quando estabelece que todos os latifndios, como tal defi-nidos em lei, so expropriveis; dentro dessa amplitude ou parmetro deao e segundo as circunstncias histricas e locacionais, o governodever praticar o seu ato de imprio, fazendo a desapropriao, a partirde critrios de convenincia.

    Na estratgia poltica da reforma agrria brasileira necessrioreconhecer alguns princpios ou critrios fundamentais indispensveispara a viabilizao da reforma agrria. Dentre estes, cumpre ressaltar,preliminarmente, a noo de que a reforma agrria brasileira parteintrnseca do processo de redemocratizao do Pas, vale dizer, integraa transio poltica que a Nao tenta realizar. Disso decorre que se,por um lado, no haver democracia plena sem a reforma agrria, poroutro, a reforma agrria ter de passar pelas vicissitudes e percalos me-rent..es ao processo de transio poltica. Da se conclui, como princpiobsico, que a reforma agrria brasileira ser feita por aproximaes su-cessivas, e se infere que cada aproximao no deixar de ter algum ca-rter traumtico. Duas grandes aproximaes da reforma agrria j feza sociedade brasileira: a primeira, quando definiu seu arcabouo legal -o Estatuto da Terra e a legislao que o completa; a segunda, foi a apro-vao do plano nacional e dos planos regionais de reforma agrria quedefiniram respectivamente a estratgia global de interveno do Estado

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  • no setor fundirio e a estratgia de ao em cada unidade da Federao.Resta agora a terceira grande aproximao: aquela que for definida pelaConstituio e que deve ser no momento, a nossa preocupao funda-mental.

    Os avanos que a Constituinte - como a aproximao sucessivamais iminente - vier a realizar em favor da reforma agrria brasileiratm um significado poltico extraordinrio neste ano de campanha elei-toral, sobretudo, se reconhecermos que a ttica adotada pelos advers-rios da reforma agrria, nos ltimos trinta anos, tem sido sempre a mes-ma: postergar a ao do poder pblico em matria de reforma agrria.Assim foi antes do Estatuto da Terra. Assim o foi durante os vinte anosque lhe seguiram. Assim foi na elaborao do Plano Nacional e dosPlanos Regionais. Assim tentaro fazer em relao aos avanos que aConstituinte vier a preconizar.

    Tambm necessrio reconhecer, na abordagem poltica da refor-ma agrria, que exatamente do latifndio que seus adversrios obtm opoder poltico de que sempre desfrutam no Pas. As relaes que o lati-fndio estabelece, seja com parceiros, seja com a sua mo-de-obra tem-porria, os bias-frias, seja ainda com o sistema produtivo e seu respec-tivo processo decisrio, tm proporcionado ao proprietrio rural lati-fundirio um grande poder poltico, que lamentavelmente no tem ser-vido ao bem comum. Quando se recorda ainda, que esse proprietrio la-tifundirio a excecflo no quadro do sistema agrcola brasileiro, hojeformado majoritariamente por pequenas e mdias propriedades, refora-se a idia de que essa concentrao de poder em to poucas mos con-trria ao bom senso e ao interesse pblico, restando ento a certeza deque a reforma agrria brasileira, ao atomizar esse poder poltico, dar amais decisiva contribuio para o fortalecimento de uma "democraciapara todos".

    Finalmente, ainda sob o ngulo poltico, necessrio que as for-as que apiam a reforma agrria e so comprometidas com o trabalha-dor rural brasileiro definam de forma clara os postulados que desejamformular perante a Constituinte. Esses postulados devero se tornar pla-taforma de campanha eleitoral dos candidatos Constituinte compro-metidos com a reforma agrria. Podero permear todos os partidos, defoma que o eleitorado possa escolher, qualquer que seja a filiao par-tidria, exclusivamente aqueles candidatos que se revelem ostensiva-mente comprometidos com a defesa desses postulados perante Consti-tuinte. A formulao desses postulados e a sua intro/ecb na campanha

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  • eleitoral que agora comea, deve ser o trabalho prioritrio das forasque tradicionalmente lutam por uma vida mais digna para o homem docampo.

    CLAUS GERMER

    Gostaria de dizer que esse bloco dos "ex" (ex-ministros, ex-se-cretrios) que participa desta mesa redonda tem, na minha opinio, umsignificado poltico: a Reforma Agrria, da qual se falou h um ano epouco atrs, hoje absolutamente "ex", de modo que eu gostaria decolocar a Reforma Agrria dentro do nosso bloco dos "ex", pelomenos a Reforma Agrria oficial.

    Gostaria de dizer que a Constituio, assim como as demais leisque dela derivam ou coexistem com ela, s vezes mais importantesdo que a prpria Constituio, precisa de algo mais para existir concre-tamente, para existir eficazmente.

    Em 1964, depois do golpe que derrubou o Presidente Joo Gou-lart, a Constituio atual foi emendada no sentido de que se pudesseaprovar uma nova lei de Reforma Agrria - O Estatuto da Terra.Desde ento transcorreram 22 anos. Na mesma ocasio em que se apro-vou a Emenda Constitucional, aprovou-se o Estatuto da Terra. Malou bem, a Lei de Reforma Agrria brasileira. Uma lei, sob certos as-pectos, capaz de permitir a implantao de uma Reforma Agrria noBrasil. No entanto, a lei permaneceu entre a vida e a morte. Nosomente isso: a situao tal que as pessoas, os lderes polticos que,no Brasil, so favorveis aplicao da lei, so considerados subversivos,so colocados numa posio quase ilegal, ao lado de um movimentopopular que, ao reivindicar a Reforma Agrria, a aplicao da lei pelogoverno, tem sofrido a represso policial, legal, do nosso regime.

    A Constituio vigente possui diversos dispositivos que confe-rem direitos populao. No entanto, esses dispositivos no so apli-cados e as pessoas que procuram fazer valer os seus direitos, basea-dos nesses dispositivos, especialmente as pessoas do povo, so habi-tualmente reprimidas, o que faz com o que a gente encare o processode se escrever uma nova Constituio de um modo no mnimo cautelo-so, prudente. Verificamos, cristal inamente, que as leis servem paramuitas coisas, inclusive para serem feitas com o objetivo de no seremcumpridas.

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  • As leis, para serem cumpridas, precisam estar respaldadas numafora. Portanto, as leis que beneficiam o povo s sero cumpridasse ele tiver fora. Podemos mesmo dizer, exagerando um pouco, que,se o povo tiver fora, a lei se tornar at um pouco secundria. Porexemplo; a partir de 1978, o movimento sindical urbano brasileiroreinstituiu o seu direito de greve, sem que a lei de direito de greve fos-se alterada. Da mesma forma, os setores empresariais constantementeburlam a lei, violam e se sobrepem lei impunemente. Mais im-portante do que fazermos uma Constituio bem escrita conseguirmosutilizar o processo constitucional para caminhar na conscientizaoe na organizao popular, ajudando a romper os bloqueios ideolgicosque impedem a populao de ver o sistema de explorao e de opres-so em que vive.

    Devemos aproveitar esse processo de debate, a fim de que essapopulao conscientizada possa organizar-se em entidades represen-tativas e expulsar os pelegos dessas entidades, colocados pelo regime au-toritrio, que ali esteve presente, est e continuar estando, se a po-pulao no puder, organizadamente, transform-las em instrumentosde sua defesa e, no, da sua opresso.

    Desse ponto de vista, eu dividiria a Constituinte em duas fasesimportantes: a primeira, o processo constituinte, aquele em que nos en-contramos agora, com enormes limitaes, que o processo do debate,do confronto, do esclarecimento das contradies verdadeiras queesto por baixo dos fatos polticos mostrados populao. Um pro-cesso de educao poltica sobre os direitos da populao e sobre osmodos de se obterem esses direitos. Alm disso, esse processo de deba-te deve servir para que as entidades populares que existem possam for-talecer-se e as que no existem possam ser criadas. Que essas entidades,como um todo, possam se articular e no se constituam apenas numasoma de entidades isoladas, com lutas isoladas, mas que passem por umprocesso de acumulao de foras, com correntes de luta e de coesoque progressivamente se formem em torno de entendimentos, jque as causas de todos os trabalhadores, em todos os lugares e setoresso as mesmas. Essa a fase primeira, que me parece mais importante.

    A segunda, a fase de escrever a Constituio, de identificaros dispositivos que interessam populao, as garantias de seu cumpri-mento.

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  • Todos sabemos que esta Constituinte no vai ser representati-va do povo que o Congresso Nacional deveria representar. No entan-to, nele s existem trs deputados operrios, embora os trabalhadoresconstituam quase 90% da populao. Ao que me consta, l no exis-te nenhum trabalhador rural sem terra, nem mesmo um pequeno pro-dutor rural. verdade que o Congresso Nacional possui, nas suas ban-cadas, algumas dezenas de pessoas de boa vontade, de pessoas compro-metidas com a causa popular, mas no so operrios, no so trabalha-dores rurais, no so bias-frias nem pequenos proprietrios. Esses alia-dos no chegam certamente a cem e o Congresso Constituinte vai-secompor de mais de quinhentas pessoas.

    Por outro lado, as leis desse Congresso extremamente conserva-dor-foram feitas para a manuteno do status quo e no foram der-rubadas pelo nosso democrtico governo da Aliana Democrtica,de forma que no podemos ter nenhuma expectativa de que, de re-pente, essas leis funcionem contra os objetivos para os quais foramfeitas e a favor de uma maior representatividade popular na Consti-tuinte. Portanto, a prxima Constituinte no nos oferece alterna-tivas animadoras.

    No meio rural brasileiro, aps a edio da proposta do PrimeiroPlano Nacional de Reforma Agrria, h mais de um ano atrs, ao in-vs de os beneficirios da Reforma Agrria conseguirem abrir o seu ca-minho, fortalecer a sua organizao, ampliar o seu grau de penetraona opinio pblica, - quem se organizou foram os proprietrios, foramas correntes conservadoras do campo. O Paran, por exemplo, se en-cheu de sociedades rurais. Sociedades rurais so associaes de proprie-trios. Criou-se no Brasil at uma entidade das mais difundidas hoje,pelos meios de comunicao - a Unio Democrtica Ruralista - UDR,cuja raiz reacionria todos conhecem, e que deseja eleger uma baga-tela de 50 ou 60 deputados federais. Os outros setores empresariais es-t se organizando de igual modo. E ns no vemos perspectivas deque correntes populares, com seus minguados recursos, consigam fazerfrente a esse rolo compressor. Entretanto, vamos ter que fazer o pos-svel para colocar naquele Congresso pelo menos um bom nmero depessoas representativas, comprometidas com as teses populares, quepossam, pelo menos, promover a denncia das teses antipopulares quel venham a ser colocadas. E no s isso: pessoas que possam, de prefe-rncia, impedir que a prxima Constituio seja pior que a atual e que

    _tragam contribuies para o avano das lutas populares. Esperamos que

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  • esses deputados sejam articulados com o movimento popular, isto ,com os diversos setores populares organizados atravs das suas entidadesrepresentativas.

    Para terminar, afirmo que a Constituinte e a Constituio, em-bora no sejam mais importantes do que a organizao popular, desem-penham, efetivamente, um papel da maior importncia. Ns todossabemos o valor que tem o registro de um direito num diplomalegal, o valor que tem esse fato como ponto de apoio para movimentospopulares, para a ampliao dos direitos do povo, dos trabalhadoresde diversos setores.

    Antes de me referir a alguns pontos que me parecem importantesna Constituio, gostaria de fazer um comentrio rpido sobre a traje-tria do projeto de Reforma Agrria dos atuais Governos Federal eEstadual, para ilustrar um pouco como se pode andar para trs dizendoque se est andando para a frente, ou como se pode andar para a direitadando-se a impresso de que se est andando para a esquerda (e comoisso acontece sem que a opinio pblica consiga ficar sabendo o graude manipulao a que est submetida)

    A primeira coisa que gostaria de dizer que esse projeto de Re-forma Agrria do Governo da Nova Repblica conseqncia de um com-promisso muito claro, assumido em praa pblica por uma coligaopoltica chamada Aliana Democrtica, que, ao se constituir, assinouum documento, atravs dos representantes dos dois partidos (ou de umpartido e uma dissidncia, o PMDB e a dissidncia do PDS), no qual secomprometia, entre outras coisas, a aplicar o Estatuto da Terra. O Dr.Tancredo Neves, candidato dessa coligao, fez discursos contundentesa esse respeito.

    Um ano e meio depois, praticamente nada ocorreu, no Brasil,em termos de Reforma Agrria. Em maio de 1985 foi editada a propos-ta do primeiro Plano Nacional e somente em outubro, 5 meses depois,foi editado o plano definitivo. Todos sabem que o plano definitivopouco ou nada tem a ver com a proposta inicial. Nesse perodo, entrea proposta e o plano definitivo, que se comeou a escrever a palavrad 'ex", especialmente medida que o governo decidiu mudar de rumoe no fazer Reforma Agrria. Os que acompanharam a Histria devemlembrar que, quando a proposta foi editada, levantou-se uma enormereao empresarial das federaes patronais, dos proprietrios ruraise dos seus representantes polticos, os parlamentares. Isto fez com que

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  • o governo progressivamente recuasse, a tal ponto que, na ocasio, jdesistia de fazer uma campanha de esclarecimento sobre o seu projeto.No entanto, os representantes dos grandes proprietrios apareciam dia-riamente, nas redes de televiso, nos jornais, dizendo, no o que eraa Reforma Agrria proposta pelo governo, mas, sim, a sua verso propa-gandstica. Chegou-se a tal ponto que, enquanto o ministro da Refor-ma Agrria era convocado para reuinies patronais, onde ouvia coisasque como representante de um governo democrtico, no era obrigadoa ouvir, de outro lado proibiam-se membros do governo, como aconte-ceu aqui no Paran, de comparecerem a manifestaes populares afavor da proposta do governo. Este foi o caso da minha modestapessoa. Quer dizer: estava tudo bem se eu comparecesse a reunies desociedades rurais pelo Paran afora, contra o projeto do governo, masficava muito complicado eu comparecer a uma reunio de agricultoressem terra ou de sindicatos de trabalhadores rurais que queriam mani-festar-se a favor do projeto do governo. Isso aconteceu bem antes deoutubro de 1985, quando se editou o plano definitivo, o atual PlanoNacional de Reforma Agrria.

    Para ilustrar, gostaria de fazer alguns comentrios sobre o Paran.De l para c, o Governo do Paran e o Governo Federal continuamdiscursando a sua disposio de fazer a Reforma Agrria. Editou-seo Plano Nacional e agora, em maio de 1986, editaram-se os PlanosRegionais de Reforma Agrria. O Governo do Paran criou a Secretariade Coordenao de Reforma Agrria. Os jornais esto cheios de decla-raes de membros do governo, garantindo que a Reforma Agrriasai. O Presidente foi at falar com o Papa. A manipulao da imprensa,dos meios de comunicao, das entidades de diversos tipos, to gran-de que relativamente fcil ao governo, nesse grande conluio entregoverno e classes empresariais, fabricar uma verso que nada tem a vercom os fatos. Quer dizer: enquanto bate de um lado e pouco se noti-cia, ele assopra do outro e a imprensa d o maior destaque. Isso oque tem acontecido.

    No Paran, a partir de julho do ano passado, ficou decididoque essa estria de Reforma Agrria acabaria e isso ocorreu junto coma deciso federal: as duas no esto desligadas. A partir de ento, fi-zeram-se algumas coisas interessantes. Primeiro, aplicou-se uma tticade promessas: colocaram-se em pauta, na negociao, junto aos agri-cultores sem terra, propostas que ningum entendia, mas que faziamcom que os lderes do movimento, as entidades que apoiavam a Re-

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  • forma Agrria, passassem um enorme tempo discutindo o assunto.Enquanto isso, nada se fazia.

    De l pr c, quatro propostas foram discutidas, perdendo-se,com cada uma delas, um enorme tempo. Assim, o governo do Paranrecebeu, da Federao Patronal - FAEP, junto com o Bamerindus,que um banco sediado no Paran, a seguinte proposta salvadora:vamos reassentar agricultores sem terra na margem de segurana do la-go de Itaipu. uma proposta absurda, porque ilegal. A lei probe.Quando se desapropria uma rea para uma determinada finalidade, elano pode ser destinada para nada alm daquilo, sob pena de os proprie-trios exigirem a reverso da propriedade. O pessoal ia ter que enxugarItaipu, voltar tudo atrs... Mas o Governador do Estado foi a Braslialevar essa proposta e ela ficou em discusso na imprensa do Paran du-rante diversas semanas, apesar de notoriamente ilegal.

    Quando esse assunto se esgotou, surgiu outra proposta mirabolan-te: fazer um acampamento provisrio no Paran. Isso tambm um ab-surdo, porque todo o mundo que est acampado acha que est ali provi-soriamente e quer sair do provisrio para se assentar. O absurdo da pro-posta no impediu que ela fosse discutida semanas a fio.

    Depois dessa, surgiu a proposta de se fazer um Kibutz no Paran.O Secretrio da Reforma Agrria constantemente est declarando quevai instalar um Kibutz misturado com comuna chinesa. Mas nada foipublicado para entendermos o contedo da proposta. Quer dizer: pelojeito, vamos ter que mandar os sem-terra fazer Mestrado em Israel para,na volta, implantarem os Kibutz. Ora, muito mais fcil fazer a Refor-ma Agrria primeiro e, talvez aps a primeira safra, na entressafra, fazer-mos um curso e, quem sabe, at mandarmos uns para l para aprende-rem o que um Kibutz, certamente com proveito.

    Apesar do absurdo da proposta, isso foi discutido semanas a fio,tal como das outras vezes.

    Ao mesmo tempo em que isso ocorria, em setembro do ano pas-sado o Presidente da Repblica assinava trs atos desapropriando trspropriedades. No Paran isso foi uma festa. O governo dizia que erapara valer, "a Reforma Agrria comeou". Chegaram ao despropsitode prometer que at o final do ano seriam assentadas de 2.500 a 3.000famlias. No entanto, os proprietrios dos trs imveis desapropriadosem setembro entraram com uma ao e os juzes deferiram o recursoe colocaram o problema em discusso.

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  • Assim, a histria recente da Reforma Agrria no Paran mais oumenos a seguinte: em 1984, por causa da presso do movimentopopular, o INCRA, no tempo da Velha Repblica, desapropriou umarea para assentar cerca de 1.200 famlias, que eram ilhus do RioParan. Elas estavam acampadas em barracas na beira do rio, pois ti-nham sido expulsas das ilhas inundadas por ltaipu. Destas, 84 recebe-ram terras, e a maior parte foi mal reassentada. Em 1985, o ltimo Ge-neral-Presidente, que eu no vou citar pelo nome para atender ao seuapelo, assinou uma desapropriao de 10.000 hectares no Paran, poucoantes de deixar o governo. Imediatamente foram reassentadas, nos doisou trs meses prximos, cerca de 350 famlias. Todos ficaram mais tran-qilos, porque aquilo foi bem antes da proposta do Primeiro Planoda Roforma Agrria. Pensamos: agora o negcio vai deslanchar. Masisso no aconteceu: de maio para c, apenas 194 famlias foram reassen-tadas no Paran. Depois, no final do ano, desapropriaram mais trsreas. Passaram-se seis meses e nada mais foi feito.

    Ento perguntamos: por que se faz um Plano Regional de Refor-Agrria? Para que se cria uma Secretaria Extraordinria de Coordenaoda Reforma Agrria? H um ditado, no Brasil, que diz o seguinte:"Quando o governo quer, faz. Quando no quer, cria uma comisso".

    A Secretaria Extraordinria de Coordenao da Reforma Agrriano Paran, nada mais do que uma comisso, com o nome de Secreta-ria. A est o problema. O Plano Regional de Reforma Agrria, para oParan, nada mais do que um plano sem substncia. Mas o governogastou um tempo enorme na criao da Secretaria e na edio do planoque iria organiz-la. E, em funo disso, pedia pacincia. A opiniopblica, as pessoas que no acompanham diretamente o problema nosabem o que est se passando. Assim, quando um lder, um represen-tante do movimento dos sem-terra d uma entrevista na televiso e"mete o pau" no governo, o telespectador em sua casa, diz: esse muito sectrio, muito radical!

    A Reforma Agrria era uma tarefa da Secretaria da Agriculturado Paran. A Secretaria possui sete empresas vinculadas, de grande di-menso, cerca de sete mil funcionrios, centenas de veculos e instala-es, casas, prdios espalhados por todo o interior do Paran, uma ti-ma estrutura para apoiar um Plano de Reforma Agrria, precisando, tal-vez, ser complementada com alguma coisa. Pois bem, depois que foicriada a Secretaria Extraordinria de Coordenao da Reforma Agrria,o Secretrio de Agricultura reuniu os seus diretores e todos os rgos e

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  • disse: "o Governo decidiu fazer a Reforma Agrria e criou uma Secreta-ria especialmente para isso. Portanto, atualmente, a responsvel pelaReforma Agrria no Paran a Secretaria Extraordinria de Coordena-o de Reforma Agrria. No quero mais saber de Reforma Agrria naminha Secretaria."

    Deste modo, agora existe a SEC, composta pelo Secretrio, oitoou nove assessores, dentro de uma casinha alugada perto do Palcio doGoverno e nenhum escritrio no interior. Alis, o Instituto de Glebas,o,de Cartografia e Florestas pertence a essa Secretaria e tem aqui, emCuritiba, o chefe, o subchefe e dois assessores.

    De maio do ano passado at julho/86 o tempo passou e no se fezabsolutamente nada na direo da Reforma Agrria. Pelo contrrio, asEpessoas comprometidas com a Reforma Agrria esto sendo deslocadasdos seus lugares, ou se demitem quando ocupam cargos de confiana,ou so demitidas, ou so constantemente ameaadas de transferncia oude demisso. Hoje, aqui no Paran, nas reas onde h maior concentra-o de acampamentos, os tcnicos da EMATER tm medo de estacionaro carro na frente da sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.Porque se pararem o tempo suficiente para que algum ligado ao gover-no os veja, esto ameaados de transferncia.

    Ns temos uma Constituio, que, mal ou bem, assegura a realiza-o da Reforma Agrria. Temos uma lei de Reforma Agrria, temos oINCRA, com ramificaes em todos os Estados, o Ministrio da Refor-ma e do Desenvolvimento Agrrio e diversos Estados com instituiesprprias para isso e com uma infinidade de bens, portarias e regulamen-tos complementares. Mas a Reforma Agrria no se realiza. Para queela se realize, necessrio fortalecer o movimento dos agricultores sem-terra, fortalecer a aliana desses movimentos com movimentos sindicaisde trabalhadores urbanos e difundir, no meio da opinio pblica, a in-formao correta sobre o que Reforma Agrria, esclarecendo o que esse movimento e o que est ocorrendo hoje. Evidentemente, se a Cons-tituio puder contemplar mecanismos mais avanados, ser melhor.

    Outro problema srio a questo da indenizao das terras de-sapropriadas. Existia um decreto-lei, de 1969, do General Mdici, queestabelecia que o teto da indenizao seria constitu (do pelo valor decla-rado no cadastro do INCRA. Neste cadastro, quem declara as caracte-rsticas da propriedade, inclusive o valor, o proprietrio. Sobre essevalor ele paga o imposto territorial rural. Como nesses anos todos, elenunca correu o risco de ser desapropriado, de pagar muito imposto ou

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  • de se verificarem as informaes, os valores informados, geralmente,esto abaixo dos 10% do valor real. Portanto, no ato da desapropriao,ele deveria receber o valor que ele prprio declarou no cadastro. No en-tanto, em novembro de 1985, o Senado, onde tem maioria o Governoda Nova Repblica, "comprometida com a Reforma Agrria", conside-rou inconstitucional esse artigo, decidindo que a desapropriao temque ser feita pelo valor de mercado. Alm disso, o proprietrio podereclamar ainda um nmero incessante de coisas. Ora, os cofres pblicosno vo agentar pagar o valor de mercado das reas necessrias Re-forma Agrria.

    Em vez de avanar no processo, ns estamos recuando. Em vezde conseguir garantir, neste governo, pelo menos aquilo que j estavanum projeto de lei, ou seja, pagar o valor mnimo possvel, se fez o con-trrio: colocaram nas mos dos proprietrios a oportunidade de assaltaros cofres pblicos, cobrando o valor de mercado por reas muitas vezesvalorizadas devido a obras do prprio governo.

    A opinio pblica no sabe que esse artigo foi declarado inconsti-tucional: isso passa por "debaixo dos panos". A imprensa no faz umamanchete esclarecendo que foi declarado inconstitucional o artigo tal.Mas sai a manchete de que foram assinadas tantas desapropriaes, ens sabemos que estas vo passar por um verdadeiro calvrio, at setransformarem em terras disponveis para o reassentamento.

    Esta a realidade que estamos vivendo. Em funo disso, deve-mos garantir e ampliar, na Constituinte, aqueles dispositivos que j exis-tem e que permitem fazer uma Reforma Agrria, mesmo que limitada.E, para que ela ocorra, fundamental que as entidades representativas,como movimentos organizados da populao, cresam, se fortaleam ese articulem nacionalmente.

    Hoje existe uma organizao bastante forte no movimento dosagricutures sem-terra. Eles possuem uma entidade nacional com umacoordenao nacional, localizada em So Paulo, e coordenaes esta-duais em quase todos os Estados do pas. Editam um jornal, que o"Jornal dos Trabalhadores Sem-Terra", que, mensalmente, informa asituao do movimento, das lutas pela Reforma Agrria em todo o pas.Peo a todos os presentes que contribuam se informando a respeitodessa questo e se aglutinando, nas entidades populares no Brasil, emtorno dela. A Reforma Agrria no uma reivindicao vazia, nem su-perad, mesmo que alguns assim a considerem. Ela atinge os interessesde cerca de 11 .000.000 (Onze milhes) de trabalhadores rurais sem terra

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  • no Brasil. No h teoria que os impea de realizar o seu direito, desdeque consigam organizar-se adequadamente.

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