16 e 33 - Capital Social Sul lembro a famosa frase do filósofo Descartes que dizia: “Penso, logo...

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16STAMPA Qual a diferença nas relações em redes sociais reais e redes sociais virtuais? Até pouco tempo as relações sociais se da- vam em um espaço e tempo real. Era uma relação um tanto mais difícil pois não podia prescindir das diferenças entre os seus mem- bros. Cada um podia emitir um argumento e ser contestado pelo grupo. Me parece que nas redes sociais virtuais não existe espaço para a tolerância. É possível adicionar e “de- letar” pessoas em um piscar de olhos, basta que ela “curta”, concorde ou descorde de seu posicionamento, fragilizando o diálogo entre eles. As pessoas estão evitando as di- vergências e “desconectando” as pessoas com muita facilidade, o que não é bom. O senhor considera que estamos em uma fase de radicalização nas redes sociais? Sim. A rede social evidenciou algo que até pouco tempo estava latente/velado em nós: o preconceito, a xenofobia, a homofobia e a misoginia são apenas alguns traços pesso- ais que foram desvelados. As redes sociais evidenciaram o pensamento e posições que jamais imaginávamos que as pessoas tinham. Talvez o espaço privado em que as pessoas se posicionam, na sala ou quarto em casa, passa a ideia de uma pseudoliberdade de que posso “dizer tudo o que penso” sem sofrer nenhuma penalização. Esta, porém, é uma falsa liberdade. No seu ponto de vista, qual o nível do debate que se instaura com a “proteção” de estar atrás da tela, e não em um debate ao vivo? Há um debate qualificado? O certo é que estamos vivendo a era também da pós-verdade. Aqui lembro a famosa frase do filósofo Descartes que dizia: “Penso, logo existo”. Talvez a frase que mais se adapte à nossa realidade hoje seja: “Acredito, logo es- tou certo”. No entanto, este “eu acredito” pode vir permeada de preconceitos e parcialidades provindas exatamente da internet. Olho com receio para os argumentos das pessoas que se “alimentam” e “reproduzem” informações do “tio google” e da “tia wikipedia”. Já falei que informação não é necessariamente co- nhecimento. Conhecimento é bem mais pro- fundo, é a capacidade de julgar as próprias contradições do conhecimento. Perdemos o pouco um dos maiores escritores do século, Umberto Eco, que dizia que todo mundo ago- ra opina, até a “legião de idiotas”, e acreditam na sua opinião como se fosse realmente ver- dade. É a “invasão dos imbecis”, diz ele. Não quero ser pedante aqui ao afirmar que só os “especialistas” devem opinar. Não necessa- riamente, no entanto, um argumento deve ter sim, embasamentos sempre que possíveis, científicos. Em média, o brasileiro não chega a ler dois livros por ano. Desta maneira fica difícil sustentar um bom argumento e criar co- nhecimento. Temos a tendência de que quando colocamos nossa opinião, queremos que ela seja aceita. Até que ponto isso interfere nas relações? Exatamente. Isso pode até gerar certas ani- mosidades quando os diálogos e conversa- ções são permeadas de uma certa passio- nalidade que gera o radicalismo, e todo o radicalismo é perigoso. Radicalismo político, religioso, étnico ou qualquer outro que seja pode desencadear uma intolerância ou em atos explícitos de violência. Por exemplo, na conjuntura política brasileira é explícito a po- larização nas redes sociais entre “coxinhas” e “petralhas”, o que tem causado até rompi- mento nas relações de amizade e de fami- liares. O certo seria escolher o “caminho do meio”, da moderação, aquilo que os filósofos gregos chamavam de sophrosyne, a tempe- rança e a moderação, a virtude grega por ex- celência. O senhor acredita que quem passou a expressar sua opinião nas redes já pensava dessa forma antes? Penso que a rede social e a internet reforçou aquilo que a pessoa tinha latente dentro dela. Cada um busca o que lhe convém. Acredi- to que ninguém nasça intolerante, radical ou preconceituoso. Tudo depende dos meios pelas quais a pessoa foi criada. Como ja dizia o filósofo Aristóteles, o pai da ética: “Para ser bom é preciso ser educado nos bons hábi- tos”. Por isso a importância dos formadores, pais, responsáveis, professores na constru- ção de homens éticos: que considere e res- peite a alteridade do outro. O senhor acha que as pessoas se influenciam pelo que o outro postou? Todo o ser humano é influenciável. Já dizia Ortega Y Gasset que: “eu sou eu e minhas circunstâncias”. Desse modo somos influen- ciados por diferentes meios e instituições: fa- mília, religião, meios de comunicação social entre outros. Por exemplo, temos políticos no Parlamento Federal que apresentam um dis- curso de ódio contra homossexuais, mulhe- res, negros... Todos estes políticos acabam tendo respaldo, sustentação e receptividade na sociedade. As suas posições extremas reforçam o sentimento de boa parte da so- ciedade. O senhor acha que os políticos sabem usar as redes sociais? Sim. Eles sabem do poder das redes e usam como forma de se promover, de ter prestígio e de aparecer. Houve a diminuição do espaço televisivo para um espaço maior na internet, principalmente nas redes sociais. Penso que em nossos dias seja mais difícil ser político. Antigamente, ele era julgado de quatro em quatro anos, uma boa gestão era justificada com a reeleição. Hoje, o político é julgado de forma instantânea, em tempo real. Na rede social, o eleitor, que chamo de uma “ágora virtual”, se manifesta para o bem e para o mal, julgando qualquer ação desse político, na hora. Na rede social, o político pode ser julgado ou aplaudido de forma instantânea. Tem muita gente enrolada na Operação Lava Jato e pré-julgamentos nas redes. O senhor acredita que falta informação ou não há interesse em entender a política? Essa visão nova de debater a política é favorá- vel. No entanto, só um “ativismo de sofá” não basta. É preciso aprimorar a participação, só assim vamos fortalecer novamente o sistema democrático que, neste momento, levou um duro golpe. Antigamente a política era restrita a meia dúzia de pessoas e hoje, para o bem e para o mal, as pessoas estão se manifes- tando mais. E sobre o atual cenário político, qual a sua opinião? Há dois anos eu já dizia que as coisas iam de mal a pior. O governo Dilma havia esgotado um modelo de economia sustentado em um consumo subsidiado insustentável, geran- do instabilidade econômica e política. O PT fez alianças pragmáticas com partidos tradi- cionais pouco comprometidos com a ética. Pagou um preço enorme pelos seus erros. Errou politicamente e eticamente nas estraté- gias de governar por 16 anos consecutivos. A insatisfação crescente na classe média brasileira e as consecutivas manifestações dos “paneleiros”, a economia cambaleante, o aumento do desemprego levou o governo de Dilma Rousseff ao precipício. A partir de um golpe parlamentar branco, a presidente Dilma foi deposta pelos seus antigos aliados, ten- do a participação direta do ex-presidente do PMDB Michel Temer. Hoje nós temos um go- verno golpista/interino dirigido por mafiosos. Um presidente citado inúmeras vezes na ope- ração “Lava Jato”, bem como boa parte de seus ministros. A cada dia é uma nova afronta aos brasileiros. A mais recente foi a aprova- ção do então ministro Alexandre de Morais sendo confirmado como ministro para o STF, exatamente para “salvar” seus pares das gar- ras da Lava Jato. Onde estão os “paneleiros”? E as manifestações? Olho com receio para as pessoas que se ‘alimentam’ e ‘reproduzem’ informações do ‘tio google’ e da ‘tia wikipedia’. Conhecimento é bem mais profundo. (...) Em média, o brasileiro não chega a ler dois livros por ano. Desta maneira fica difícil sustentar um bom argumento e criar conhecimento.

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Qual a diferença nas relações em redes sociais reais e redes sociais virtuais? Até pouco tempo as relações sociais se da-vam em um espaço e tempo real. Era uma relação um tanto mais difícil pois não podia prescindir das diferenças entre os seus mem-bros. Cada um podia emitir um argumento e ser contestado pelo grupo. Me parece que nas redes sociais virtuais não existe espaço para a tolerância. É possível adicionar e “de-letar” pessoas em um piscar de olhos, basta que ela “curta”, concorde ou descorde de seu posicionamento, fragilizando o diálogo entre eles. As pessoas estão evitando as di-vergências e “desconectando” as pessoas com muita facilidade, o que não é bom.

O senhor considera que estamos em uma fase de radicalização nas redes sociais?Sim. A rede social evidenciou algo que até pouco tempo estava latente/velado em nós: o preconceito, a xenofobia, a homofobia e a misoginia são apenas alguns traços pesso-ais que foram desvelados. As redes sociais evidenciaram o pensamento e posições que jamais imaginávamos que as pessoas tinham. Talvez o espaço privado em que as pessoas se posicionam, na sala ou quarto em casa, passa a ideia de uma pseudoliberdade de que posso “dizer tudo o que penso” sem sofrer nenhuma penalização. Esta, porém, é uma falsa liberdade.

No seu ponto de vista, qual o nível do debate que se instaura com a “proteção” de estar atrás da tela, e não em um debate ao vivo? Há um debate qualificado?O certo é que estamos vivendo a era também da pós-verdade. Aqui lembro a famosa frase do filósofo Descartes que dizia: “Penso, logo existo”. Talvez a frase que mais se adapte à nossa realidade hoje seja: “Acredito, logo es-tou certo”. No entanto, este “eu acredito” pode vir permeada de preconceitos e parcialidades provindas exatamente da internet. Olho com receio para os argumentos das pessoas que se “alimentam” e “reproduzem” informações do “tio google” e da “tia wikipedia”. Já falei que informação não é necessariamente co-nhecimento. Conhecimento é bem mais pro-fundo, é a capacidade de julgar as próprias contradições do conhecimento. Perdemos o pouco um dos maiores escritores do século, Umberto Eco, que dizia que todo mundo ago-ra opina, até a “legião de idiotas”, e acreditam na sua opinião como se fosse realmente ver-dade. É a “invasão dos imbecis”, diz ele. Não quero ser pedante aqui ao afirmar que só os “especialistas” devem opinar. Não necessa-riamente, no entanto, um argumento deve ter sim, embasamentos sempre que possíveis, científicos. Em média, o brasileiro não chega a ler dois livros por ano. Desta maneira fica difícil sustentar um bom argumento e criar co-nhecimento.

Temos a tendência de que quando colocamos nossa opinião, queremos que ela seja aceita. Até que ponto isso interfere nas relações?Exatamente. Isso pode até gerar certas ani-mosidades quando os diálogos e conversa-ções são permeadas de uma certa passio-nalidade que gera o radicalismo, e todo o radicalismo é perigoso. Radicalismo político, religioso, étnico ou qualquer outro que seja pode desencadear uma intolerância ou em atos explícitos de violência. Por exemplo, na conjuntura política brasileira é explícito a po-

larização nas redes sociais entre “coxinhas” e “petralhas”, o que tem causado até rompi-mento nas relações de amizade e de fami-liares. O certo seria escolher o “caminho do meio”, da moderação, aquilo que os filósofos gregos chamavam de sophrosyne, a tempe-rança e a moderação, a virtude grega por ex-celência.

O senhor acredita que quem passou a expressar sua opinião nas redes já pensava dessa forma antes?Penso que a rede social e a internet reforçou aquilo que a pessoa tinha latente dentro dela. Cada um busca o que lhe convém. Acredi-to que ninguém nasça intolerante, radical ou preconceituoso. Tudo depende dos meios pelas quais a pessoa foi criada. Como ja dizia o filósofo Aristóteles, o pai da ética: “Para ser bom é preciso ser educado nos bons hábi-tos”. Por isso a importância dos formadores, pais, responsáveis, professores na constru-ção de homens éticos: que considere e res-

peite a alteridade do outro.O senhor acha que as pessoas se influenciam pelo que o outro postou?Todo o ser humano é influenciável. Já dizia Ortega Y Gasset que: “eu sou eu e minhas circunstâncias”. Desse modo somos influen-ciados por diferentes meios e instituições: fa-mília, religião, meios de comunicação social entre outros. Por exemplo, temos políticos no Parlamento Federal que apresentam um dis-curso de ódio contra homossexuais, mulhe-res, negros... Todos estes políticos acabam tendo respaldo, sustentação e receptividade na sociedade. As suas posições extremas reforçam o sentimento de boa parte da so-ciedade.

O senhor acha que os políticos sabem usar as redes sociais? Sim. Eles sabem do poder das redes e usam como forma de se promover, de ter prestígio e de aparecer. Houve a diminuição do espaço televisivo para um espaço maior na internet, principalmente nas redes sociais. Penso que em nossos dias seja mais difícil ser político. Antigamente, ele era julgado de quatro em quatro anos, uma boa gestão era justificada com a reeleição. Hoje, o político é julgado de forma instantânea, em tempo real. Na rede social, o eleitor, que chamo de uma “ágora virtual”, se manifesta para o bem e para o mal, julgando qualquer ação desse político, na hora. Na rede social, o político pode ser julgado ou aplaudido de forma instantânea.

Tem muita gente enrolada na Operação Lava Jato e pré-julgamentos nas redes. O senhor acredita que falta informação ou não há interesse em entender a política?Essa visão nova de debater a política é favorá-vel. No entanto, só um “ativismo de sofá” não basta. É preciso aprimorar a participação, só assim vamos fortalecer novamente o sistema democrático que, neste momento, levou um duro golpe. Antigamente a política era restrita a meia dúzia de pessoas e hoje, para o bem e para o mal, as pessoas estão se manifes-tando mais.

E sobre o atual cenário político, qual a sua opinião? Há dois anos eu já dizia que as coisas iam de mal a pior. O governo Dilma havia esgotado um modelo de economia sustentado em um consumo subsidiado insustentável, geran-do instabilidade econômica e política. O PT fez alianças pragmáticas com partidos tradi-cionais pouco comprometidos com a ética. Pagou um preço enorme pelos seus erros. Errou politicamente e eticamente nas estraté-gias de governar por 16 anos consecutivos. A insatisfação crescente na classe média brasileira e as consecutivas manifestações dos “paneleiros”, a economia cambaleante, o aumento do desemprego levou o governo de Dilma Rousseff ao precipício. A partir de um golpe parlamentar branco, a presidente Dilma foi deposta pelos seus antigos aliados, ten-do a participação direta do ex-presidente do PMDB Michel Temer. Hoje nós temos um go-verno golpista/interino dirigido por mafiosos. Um presidente citado inúmeras vezes na ope-ração “Lava Jato”, bem como boa parte de seus ministros. A cada dia é uma nova afronta aos brasileiros. A mais recente foi a aprova-ção do então ministro Alexandre de Morais sendo confirmado como ministro para o STF, exatamente para “salvar” seus pares das gar-ras da Lava Jato. Onde estão os “paneleiros”? E as manifestações?

“Olho com receio para as pessoas que se ‘alimentam’ e ‘reproduzem’ informações do ‘tio google’ e da ‘tia wikipedia’. Conhecimento é bem mais profundo. (...)Em média, o brasileiro não chega a ler dois livros por ano. Desta maneira fica difícil sustentar um bom argumento e criar conhecimento.