154564 Por

download 154564 Por

of 337

Transcript of 154564 Por

Trajetria e Polticas para o Ensino das Artes no Brasil: anais do XV Confaeb

Ministrio da Educao

Trajetria e Polticas para o Ensino das Artes no Brasil: anais do XV Confaeb

XV Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do Brasil

Braslia, dezembro de 2006

Edies MEC/UNESCO Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Ministro da Educao Fernando Haddad Ministro da Cultura Gilberto Gil Secretrio-Executivo do Ministrio da Educao Jos Henrique Paim Fernandes Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidades Ricardo Henriques Presidente da Funarte Antonio Grassi

SECAD - Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade Esplanada dos Ministrios, Bl L, sala 700 Braslia, DF, CEP: 70097-900 Tel: (55 61) 2104-8432 Fax: (55 61) 2104-8476

Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura Representao no Brasil SAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar 70070-914 - Braslia - DF - Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 3322-4261 Site: www.unesco.org.br E-mail: [email protected].

Trajetria e Polticas para o Ensino das Artes no Brasil: anais do XV Confaeb

XV Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do Brasil

FAEB

2006. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad) e Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco)

Conselho Editorial da Coleo Educao para Todos Adama Ouane Alberto Melo Clio da Cunha Dalila Shepard Osmar Fvero Ricardo Henriques

Coordenao Editorial Coordenadora Maria Adelaide Santana Chamusca Assistente Shirley da Luz Villela Produo e edio final: Editorial Abar Reviso: Tereza Vitale e equipe Diagramao: Rogrio Pinto Tiragem: 5.000 exemplares

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do Brasil (15.: 2004 : Rio de Janeiro, RJ) XV CONFAEB, 2004 : trajetria e polticas do ensino de artes no Brasil. Rio de Janeiro : FUNARTE : Braslia : FAEB, 2005, ISBN 85-98171-56-5 346p. 1. Arte na educao Brasil. 3. Arte na educao Congressos CCD 372.5

Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos nesse livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO e da SECAD/MEC, nem comprometem a Organizao e a Secretaria. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO e da SECAD/MEC a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitao de suas fronteiras ou limites.

Sumrio

I. AberturaCongresso Nacional da Federao dos Arte-Educadores do Brasil Antnio Grassi ........................................................................................... 15 Apresentao da Federao dos Arte-Educadores do Brasil Jos Mauro Barbosa Ribeiro ..................................................................... 17 Bem-Vindos, Arte-Educadores! Mriam Brum ............................................................................................... 19 Arte e Educao: cerzir fronteiras, enunciar territrios Ricardo Henriques ..................................................................................... 21

II. Painel: polticas pblicas para o ensino de arte no BrasilBoas-vindas! Myriam Lewin ............................................................................................. 31 XV Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do Brasil Antonio Cludio Gomes ............................................................................. 33 A Importncia da Arte no Currculo no Ensino Fundamental das Escolas do Municpio do Rio de Janeiro Maria de Ftima Gonalves da Cunha ...................................................... 35

Aspectos da Arte-Educao a partir dos Anos 1970 no Estado do Rio de Janeiro Caque Botkay ........................................................................................... 37

III. HomenagensNo me Conformo Renan Tavares .......................................................................................... 45 Albertina: dnamo de coragem e liderana Ritamaria Aguiar ........................................................................................ 48 Homenagem ao Professor Camarotti Arheta Ferreira de Andrade ....................................................................... 51

IV. ConfernciasArte-Educao Contempornea ou Culturalista Ana Mae Barbosa ...................................................................................... 55 XV Congresso da Federao de Arte-Educadores do Brasil Las Aderne ................................................................................................ 64

V. Mesas TemticasPolticas Pblicas e o Ensino de Arte no Brasil Mediador: Richard Perassi Luis de Souza ................................................ 79 1. Polticas Pblicas para o Ensino de Arte no Brasil a transversalidade necessria Jos Mauro Ribeiro Barbosa ..................................................................... 89 2. O Ministrio da Cultura e a Funarte Mriam Brum ............................................................................................... 85

3. Educao Fsica e Cultural na Escola Pblica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier ................................................................ 92 4. Polticas Pblicas e o Ensino da Arte Francisco Potiguara Cavalcante Jnior .................................................. 107 Ensino da Arte em Contextos de Comunidade Mediadora: Leda Guimares .................................................................... 113 1. Educao Artstica a Servio da Comunidade: perspectiva histrica dos africanos e da dispora Jacqueline Chanda .................................................................................. 113 2. Componentes da Ao Comunitria como Fontes Pedaggicas Vesta A. H. Daniel ................................................................................... 122 3. Reflexes sobre o Ensino da Arte no mbito das ONGs Lvia Marques Carvalho ........................................................................... 134 Pesquisas em Ensino de Arte no Brasil Mediadora: Isabela Frade ........................................................................ 144 1. Entrevidas: o cotidiano e o ensino de arte Mriam Celeste Martins ............................................................................ 144 2. Pesquisas no Ensino e na Formao de Professores: caminhos entre visualidades e visibilidades Lucimar Bello P. Frange ........................................................................... 148 3. Pedagogia do Teatro e Teatro na Educao Ingrid Koudela .......................................................................................... 161 Formao de Professores de Arte Novos Caminhos Mediador: Aldo Victoriano ........................................................................ 164

1. Formao de Professor@ de Arte: novos caminhos, muitas responsabilidades imensa responsabilidade Lcia Gouva Pimentel ............................................................................ 164 2. Dana-educao: uma contribuio da expresso corporal-dana Mabel Emilce Botelli ................................................................................. 173 3. A Modalidade Msica no Composto Arte-Educao-Msica-Escola: notas, certezas e indagaes em torno da formao de professores Regina Mrcia Simo Santos .................................................................. 182 4. Cursos de Arte: novos caminhos. Abordagens metodolgicas do teatro na educao Aro Paranagu de Santana & Ingrid Dormien Koudela .......................... 204 Arte, Diversidade, Cidadania e Incluso Mediadora: Ritamaria Aguiar .................................................................... 204 1. Arte na Diversidade: da funo incluso Roberta Puccetti ...................................................................................... 204 2. Pertencer e Viver Denise Mendona .................................................................................... 215 3. Educao Intercultural e Educao para Todos(as): dois conceitos que se complementam Ivone Mendes Richter .............................................................................. 220

VI. Comunicaes: Grupos de Trabalho, Psters e Oficinas1. Ensino de Arte e Cultura Visual Coordenao: Terezinha M. Losada Moreira .......................................... 228 2. Currculo e Ensino de Arte Coordenao: Donald Hugh Barros Kerr Jr. ........................................... 237

3. Ensino de Arte na Diversidade Coordenao: Fernando Antnio Gonalves de Azevedo ...................... 246 4. Histria do Ensino da Arte no Brasil Coordenao: Luciana Grupelli Loponte ................................................. 259 5. Arte, Educao Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental Coordenao: Itamar Alves Leal dos Santos .......................................... 264 6. Formao de Professores em Arte Coordenao: Richard Perassi Luis de Sousa ....................................... 268 7. Ensino de Arte e Interdisciplinaridade Coordenao: Maria Clia F. Rosa .......................................................... 277 8. Ensino de Arte nos Espaos Culturais Coordenao: Alice Bemvenutti............................................................... 285 9. Ensino de Artes e Novas Tecnologias Coordenao: Alberto Coelho .................................................................. 299 10. Ensino de Arte, Corpo e Som Coordenao: Rosimerie Gonalves ....................................................... 307

Psters1. A Arte-Educao por Meio do Ldico: Leo no Renascimento Tatiana Dantas Oliveira ........................................................................... 312 2. Ciranda de Tarituba Elis Regina Silveira Vasconcelos de Lima .............................................. 313 3. Comunidade Virtual Faeb Federao de Arte-Educadores do Brasil Arthur Leandro e Itamar Alves Leal dos Santos ...................................... 314

4. Do Labirinto dos Dinossauros ao Labirinto das Crianas Alessandra Mara Rotta de Oliveira .......................................................... 315 5. Ensino da Dana: arte, corpo e socializao Valeska Ribeiro Alvim, Ktia Imaculada Moreira e Maristela Moura Silva Lima ...................................................................... 316 6. O Enigma do Prazer Natasha Parlagreco ................................................................................. 317 7. O Fluxo da Imagem Domina Tudo o fluxo da mulher domina o homem Silvana Fonseca ...................................................................................... 318 8. Lngua de Barro e Fogo Ana Maria Giffoni Soares ......................................................................... 319 9. As Linguagens Artsticas e a Pesquisa em Artes Rose Mary Aguiar Borges e Joo Henrique Verly Serro ....................... 320 10.Macap, Amap: extremo norte do Brasil, bem no meio do mundo Jonas Borges e Anderson Rirley ............................................................. 320 11. Obra de Arte Cdula Dione Souza Lins e Lus Ricardo Pereira de Azevedo ........................... 321 12. As ONGs e a Ludicidade na Formao de Arte-Educadores: uma possibilidade de incluso social? Ana Paula Trindade de Albuquerque ....................................................... 322 13. O Que o Lugar? Por Que e Quando se D o nosso Lugar? Ktia Meireles .......................................................................................... 323 14. Por Que se Esconde a rvore? Barbara Harduim ...................................................................................... 323

15. Projeto de Artes Maria do Carmo Ferreira Magela ............................................................. 324 16. Revista Arte-Educao Alexandre Palma da Silva ........................................................................ 325 17. 2 Encontro de Arte-Educadores da Regio do Mdio Paraba III Resende/RJ. Mltiplas linguagens da arte no mundo da escola Alice Brando, Maria Estela de Oliveira e Nadia Teresinha Moraes Nelson ............................................................. 326 18. Um Tringulo Imoral? Reflexes Acerca da Relao Sexualidade/Famlia/Escola Rejane Galeno e Tissiana Carvalhdo .................................................... 327 19. Uso de VRML para Educao a Distncia em Arte Jurema Luzia de Freitas Sampaio-Ralha ................................................ 328

OficinasCoordenao: Itamar Alves Leal dos Santos e Rosimeri Aguiar Borges ........................................................................... 329 1. Arte-Educare: arte-educao integrada ao programa de educao em valores humanos educare Marcelle de Lima Lyra .............................................................................. 330 2. A Arte na Escrita Maria Beatriz Albernaz............................................................................. 330 3. Brincando de Brincadeira: reciclando o encontro Antonio Atade Cunha Filho ..................................................................... 331 4. Expresso Criativa com o Corpo no Teatro-Educao Ariadne Cardoso Carvalho e Cilene Nascimento Canda ........................ 331 5. Expresso Musical: recriao e som Sidney Mattos .......................................................................................... 332

6. A Importncia da Dana como Propulsora do Movimento Criativo na Formao de Professores de Arte Carla vila e Mirza Ferreira .................................................................. 333 7. Grafismo Indgena Brasileiro: os Asurini do Xingu Vera Pletitsch ........................................................................................... 333 8. Oficina de Circo Merinia Ribeiro ....................................................................................... 334 9. Percepo Corpreo Vocal para Danar na Escola Nara Salles .............................................................................................. 335 10. Zumbi e a Esttica Africana atravs de Mscaras de Argila Rose Mary Aguiar Borges e Vitria Levy Sztejnman .............................. 336 ndice Autoral ......................................................................................... 338

I. Abertura do XV Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do Brasil

Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do BrasilAntonio Grassi*

o apoiar o XV Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do Brasil (Confaeb), que reuniu profissionais de todo o pas para discutir os rumos do ensino no Brasil, a Funarte afirma sua convico de que necessria a volta da arte como matria prioritria ao currculo do ensino bsico. O encontro teve como tema Trajetria e Polticas para o Ensino de Arte no Brasil e promoveu espaos para a troca de experincias entre arte-educadores sobre os trabalhos desenvolvidos nas escolas brasileiras. As estruturas educacionais do pas vm ao longo dos anos se democratizando, mesmo assim, inegvel a necessidade de que sejam implementadas polticas mais eficazes e consistentes no sentido de garantir a incluso do ensino da arte com qualidade, o acesso ao fazer artstico, compreenso da produo esttica e ao conhecimento do patrimnio cultural. A promulgao, em 1996, da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), foi um passo importante na medida em que abre um processo de discusso nas redes escolares. Neste momento se configurava a oportunidade de resgate do perfil humanista e criativo da educao brasileira, abandonado em detrimento de um ensino tcnico e profissionalizante.* Presidente da Funarte/Fundao Nacional de Arte

A

15

Porm, poucas foram as instituies que vislumbraram o ensino da arte, da filosofia, da sociologia como elementos de peso e imprescindveis para a formao plena do cidado. Para a Funarte fica clara a necessidade de apoiar e tornar-se parceira de iniciativas como as do Confaeb, para que, de fato, possamos avanar na construo de um projeto que reaproxime o universo da educao do universo da arte e da cultura. Durante os trs dias do evento, entre palestras, oficinas e mesas temticas, os participantes debateram questes como o currculo e o ensino de arte, interdisciplinaridade, novas tecnologias e formao dos professores. E o saldo do Confaeb foi positivo. A consolidao de novas perspectivas de trabalho em escolas e universidades comprovou a disposio dos Ministrios da Cultura e da Educao em apoiar a criao e implementao de novas estratgias educativas comprometidas com a identidade social e cultural brasileira. A Funarte quer fazer parte desta mudana e tem trabalhado para a criao de medidas inovadoras, que dem arte o seu devido valor.

16

Apresentao da Federao dos Arte-Educadores do BrasilJos Mauro Barbosa Ribeiro*

A pauta do debate situa-se entre dois olhares passado e presente no como tempos estanques, mas como a trama histrica que sustenta o entendimento do contexto contemporneo, em suas mltiplas dimenses, fundamentando, por conseguinte, a ao educativa e a formulao de polticas pblicas para o ensino. Os objetivos das associaes cientficas, alm de promoverem a discusso, a crtica e a socializao do conhecimento, tm tambm funo de congregar profissionais, estimular a produo de conhecimento, de pesquisa e criar meios necessrios sua divulgao. A cada ano, a Faeb realiza em algum estado da Federao, o Confaeb, nosso momento mais importante de aprofundamento das questes tericopolticas sobre o ensino de arte. Nossa inteno, como diretoria, realizar um congresso que realmente reflita, discuta e apresente respostas para as demandas que se impem ao contexto* Presidente da Federao dos Arte-Educadores do Brasil.

N

a sua XV edio, o Congresso dos Arte-Educadores do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, objetiva refletir sobre os caminhos percorridos pelo ensino de arte no nosso pas e suas perspectivas de novas e possveis direes.

17

contemporneo. Este ano em que o MEC sinaliza com propostas de reformas no sistema de ensino, as questes a serem discutidas, aprovadas e encaminhadas s autoridades competentes tm importncia primordial no apontamento de sadas para os problemas identificados neste frum. Assim, a temtica do congresso, refletida em suas mesas-redondas, comunicaes, oficinas e psters remete para o aprofundamento destas questes. Ser realizado na cidade do Rio de Janeiro era uma vontade h muito alimentada por todos ns, arte-educadores, que acompanhamos e participamos desta jornada de 15 anos, pela importncia poltica e cultural da cidade, e, principalmente, histrica/ afetiva. Nesta cidade foi criada a Escolinha de arte do Brasil, bero, portanto, de nossa histria, e a Sobreart, uma das nossas primeiras experincias associativas de arte-educadores, liderada, bom tempo, pela saudosa Fayga Ostrower. Tambm so desta cidade nossos homenageados in memorian, que em suas vidas tanto contriburam para a arte-educao brasileira, o emrito arte-educador Geraldo Salvador e a guerreira lder do programa Arte sem Barreiras, Albertina dos Santos Brasil. Por fim, a inaugurao da parceria com a Funarte-Minc, a participao de autoridades do MEC, do MCT em mesas temticas e a presena de representantes das Secretarias Estaduais e Municipais de Educao e Cultura do Estado do Rio nos do o forte sentimento de que retomamos nosso lugar como protagonistas da nossa histria, propositores da construo de uma sociedade tica, justa e esttica nos seus fundamentos filosficos e humansticos. Bom Congresso para todos.

18

Bem-Vindos, Arte-Educadores!

Mriam Brum*

com enorme satisfao que a Funarte abriga o XV Congresso da Federao de Arte-Educadores do Brasil. Fizemos questo de receber este congresso no Palcio Capanema, casa habitada por dois amantes em histrico desencontro.

Na verdade, a tarefa a que estamos nos propondo sempre de muito difcil abordagem, j que envolve, alm de questes tcnicas e polticas, questes de ordem emocional, pois como um casal, educao e cultura se encontram desde h muito separados.

Todos ns que convivemos no dia-a-dia com os dois sabemos que eles nascerem um para o outro. Eles prprios percebem a esquizofrenia e a catstrofe geradas por esta separao. Bem, hoje aqui estamos para discutir a relao. Com este intuito, Faeb e Funarte convidaram, para dividir a mesma mesa, representantes da educao e da cultura em suas instncias federal, estaduais e municipais.

* Diretora do Centro de Programas Integrados da Funarte

19

Esperamos que esta iniciativa represente um passo nesta reconciliao, em uma relao mais aberta, com cada um em sua prpria casa, mas compartilhando aes que possam ser transformadoras para a construo de uma sociedade melhor e mais justa. Gostaramos de agradecer aos conferencistas e professores convidados que nos honram com suas presenas, a todos que aqui vieram dispostos a trocar idias, discutir e refletir sobre as trajetrias e polticas para o ensino de arte no Brasil.

20

Arte e Educao: cerzir fronteiras, enunciar territrios*

Ricardo Henriques**

D

esde a sua criao em 1930, com o nome de Ministrio de Estado da Educao e da Sade Pblica, o MEC sofreu quatro grandes mudanas. A primeira ocorreu em 1937, quando o Ministro Capanema estabeleceu a estrutura funcional que perdurou por dcadas. A segunda data de 1953, com o desmembramento da rea da sade para constituir ministrio prprio, quando o Ministrio da Educao ganhou a sigla que at hoje conserva. A terceira ocorreu em 1985, quando foi extinta no MEC a Secretaria de Assuntos Culturais e suas funes e os rgos a ela vinculados foram transferidos ao Ministrio da Cultura. A quarta e ltima, mais recente, ocorreu com a criao do Ministrio do Esporte, que levou para si responsabilidade at ento atribuda rea educacional. Muito j se falou sobre as vantagens e desvantagens da vinculao desses assuntos em uma mesma Pasta, ou de sua separao, tal como hoje se apresentam na estrutura administrativa do governo. A simples transferncia de uma funo governamental programas, projetos, recursos humanos, oramentos e outros meios de um para outro organismo do Estado* Gostaria de agradecer os comentrios e as sempre ricas conversas com Carlos Alberto Xavier. ** Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao; professor licenciado da Universidade Federal Fluminense.

21

no garante, por si s, melhores resultados, em especial quando falamos de educao, a mais importante misso dos governos desde a proclamao da Repblica do Brasil. Tendo em conta a amplitude do desafio educacional do Brasil, j se pensou tambm em levar o ensino superior para o Ministrio da Cincia e Tecnologia, deixando a cargo do Ministrio da Educao apenas a educao bsica. Felizmente essa ltima alterao do aparelho do Estado no se realizou. Digo felizmente porque o problema atual da qualidade da educao est a exigir de toda a sociedade (e no s dos governos) um esforo redobrado, para alm da necessria cobertura quantitativa por demanda da educao bsica. E isto, a partir de uma abordagem sistmica da educao que promova a articulao continuada entre diferentes nveis e modalidades de ensino e contemple de forma integrada a educao infantil, fundamental, mdia e superior. E a questo da qualidade, como sabemos, vinculase adoo de polticas pblicas que viabilizem a preparao e a execuo de um competente projeto poltico-pedaggico pelas escolas de todo o pas, aproveitando-se todos os meios modernos de que dispomos para oferecer contedos curriculares adequados realidade dos diferentes contextos culturais do pas. Portanto, o que aqui cabe no discutir se melhor operarmos com apenas um ou diversos ministrios, e sim como agregar no projeto pedaggico das escolas os vrios e diferentes assuntos da cultura, da educao fsica e do esporte escolar, da educao ambiental, dos direitos e valores humanos e outros contedos indispensveis formao do cidado, na escola e fora dela. Trata-se tambm de organizar a oferta de educao dos sistemas estaduais e municipais de ensino, nas diferentes regies do pas, evitando que essas diferenas regionais se transformem em desigualdades. O processo de separao - que vem de dcadas, pois o litgio entre as diversas reas afins existia antes mesmo da criao do Ministrio da Cultura a partir de uma costela do MEC provocou, em determinados momentos, a busca de identidade tanto da educao quanto da cultura como temticas isoladas. Esse processo, de forma perversa e artificial, transformou diferenas em desigualdades. Na verdade, este um problema da sociedade brasileira como um todo: ns infelizmente confundimos diferena com desigualdade, naturalizamos relaes desiguais e esquecemos os valores positivos das diferenas. Ento, talvez, na tentativa de reforo de suas prprias identidades, tenham se artificializado as distncias entre os Ministrios da Educao e o da Cultura. Esse raciocnio serve tambm para o dilogo entre o projeto poltico pedaggico das escolas e o esporte escolar, a educao ambiental, os direitos humanos, a cincia e tecnologia e o ensino das artes. O que me parece estar na pauta da sociedade brasileira desde a consolidao do processo de redemocratizao, e que tambm constitui uma motivao no interior

22

do atual governo, a necessidade de quebrarmos essas barreiras, rompermos com este artificialismo e resgatarmos aquilo que , no campo ampliado, natureza comum entre educao e cultura. Evidentemente, numa sociedade de conhecimento a eliminao de fronteiras de saberes fator de ruptura da noo de territrios e de limites rgidos, dando substncia a contedos transdisciplinares. Evidentemente pode haver um certo bairrismo carioca nesta nfase, mas importante registrar o fato simblico da realizao do XV Confaeb no Palcio Capanema. notvel que um ministro do Estado Novo tenha conseguido conciliar educao e cultura e trazer para a instituio toda uma tradio, vinda da poca de fortalecimento do movimento comunista, da ao dos modernistas, da articulao dos educadores em torno do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova. Gustavo Capanema empreendeu um notvel esforo de fortalecimento da educao nacional e contava com a colaborao de nomes importantes como Carlos Drummond de Andrade, seu chefe de gabinete. Reuniu tambm em torno de si Portinari, Bruno Giorgio, Villa-Lobos, Lcio Costa, Oscar Niemeyer, Roberto Burle Marx, Humberto Mauro, grandes nomes nas artes plsticas, na msica, na arquitetura e no cinema, e representantes de vrios outros campos da cultura nacional, para construrem juntos um projeto de educao para o pas. Portanto, considero relevante que este movimento de reaproximao acontea a partir da luta da Federao de Arte Educadores do Brasil e dentro do Palcio Capanema. Eu no sou arte-educador, mas recuperei um pouco de histria: o movimento de arteeducao passa a ser to forte, sobretudo nos anos 90, que permite hoje a discusso sobre a diversidade cultural e a incluso social, temas que passam a habitar obrigatoriamente o debate sobre currculo nos meios educacionais. Assim, os Parmetros Curriculares Nacionais/PCN so contagiados, de forma positiva, pela discusso da diversidade, em grande parte a partir desta articulao no interior das escolas, no interior do movimento dos especialistas do ensino das artes em todo o pas. Felizmente ns estamos hoje tendo a oportunidade de conceber alguns instrumentos reais para alm dos PCN: ns estamos conseguindo refletir esta agenda da diversidade no interior dos sistemas de ensino como um todo, em seus componentes formal e no-formal. Um elemento ativo nessa conquista evidentemente a prpria secretaria que eu tenho a honra de estar coordenando. E uma questo que se coloca no campo da definio a nitidez poltica de uma agenda que valoriza um outro ethos na relao com a educao: a dvida histrica que este pas tem que assumir para ter uma agenda poltica de transformao. Um exemplo esclarecedor o prprio nome da secretaria que dirijo: Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e

23

Diversidade (Secad). A designao talvez no cause impacto de comunicao, tanto que abro mo disso para tornar denso o seu contedo e tomar de forma poltica as suas principais metas. De forma muito breve: educao continuada uma expresso que causa um efeito real sobre aquilo que deve ser implementado em processo; a idia de continuidade do processo educacional, a educao permanente. Isso significa a educao como direito efetivo de todos ao longo de toda a sua vida, conduzindo para dentro da secretaria a prioridade do direito de todos educao, como proposta que substitui a falsa e incompleta idia dos sistemas de ciclos etrios distribudos entre crianas, jovens adultos e idosos. A expresso traz para a Secretaria a responsabilidade de organizao de uma agenda que permita lidar com a dvida histrica brasileira no que se refere desigualdade de oportunidades educacionais. Outro elemento que compe o nome da nova Secretaria a alfabetizao; ela confere nitidez poltica quele que o ponto inicial do processo de excluso social, na medida em que convivemos com ndices vergonhosos de analfabetismo. Alm disso, explicita a firmeza do iderio poltico e pedaggico de Paulo Freire. Ns temos cerca de 65 milhes de pessoas com mais de 15 anos de idade que no completaram o ensino fundamental neste pas. simplesmente absurdo se pensar que este pas v ter uma insero decente na sociedade do conhecimento se ns ainda temos cerca de um tero de sua populao que sequer concluiu os ciclos iniciais da educao bsica. Ns estamos migrando de forma veloz para aquilo que Manuel Castels chama de excluso cognitiva, separando efetivamente esta parte da sociedade das possibilidades de desenvolvimento de suas potencialidades. Destes 65 milhes de brasileiros, 33 milhes so, pelo menos, analfabetos funcionais e 16 milhes de pessoas so analfabetos absolutos. Os analfabetos absolutos esto distribudos em todas as faixas etrias. Na realidade, h uma retrica falsa segundo a qual o analfabetismo um problema de idosos quando, na verdade, hoje ns temos, na faixa etria situada entre os 15 e os 29 anos de idade, cerca de trs milhes de analfabetos absolutos, cidados que no so capazes de ler uma mensagem e transmiti-la, ou de escrever uma frase. O terceiro elemento realmente prioritrio no nome e na ao da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade. O conceito de diversidade assume a frente da cena no MEC, como organizador de uma secretaria que, pela primeira vez, passa a tratar da diversidade cultural como prioridade poltica na histria do Ministrio. Desde 1930 nunca houve a coragem e o discernimento de se reconhecer a relevncia da diversidade mencionando-a no prprio nome de uma secretaria nacional. Esse tema

24

nunca participou sequer de uma diretoria do MEC. Por que isto to fundamental? Porque, em ltima instncia, o Ministrio da Educao assume para si a agenda da incluso educacional como meta prioritria. Mas ns temos um passo anterior que o entendimento da complexidade deste pas no que se refere sua diversidade tnicoracial, de gnero, geracional, de orientao sexual, territorial e cultural. A Secad orientada pela busca de incluso educacional com reduo das desigualdades e, nesse sentido, os parmetros que informam a estratgia de organizao e ao da Secretaria sustentam-se no trinmio: democratizao qualidade eqidade. Democratizao explicita a insuficincia de procedimentos que assegurem o acesso escola nos distintos nveis e modalidades de ensino e destaca a necessidade de arranjos institucionais que promovam a complementariedade entre acesso, permanncia e sucesso dos alunos nos sistemas de ensino. Qualidade coloca-se como referncia prioritria das polticas pedaggicas e das prticas de ensino destacando-se a importncia, entre outros elementos, do adensamento da estrutura curricular e integrao com as agendas extra-curriculares; da gesto dinmica, tcnica e participativa das escolas; e da adeso nos contedos formais e no formais de ensino aos saberes e valores reconhecidos como relevantes pela comunidade e da juventude local. Eqidade de forma a enfrentar as diversas formas de fragmentao social valorizando as diferenas como forma ativa de enfrentamento das desigualdades. A construo desse trinmio tem no reconhecimento e na valorizao da diversidade a possibilidade de traduo de um eixo organizador da agenda educacional que traz, com seriedade, o sentido da eqidade e de promoo da qualidade em todo o sistema. O ensino das artes, em suas vrias linguagens, assume papel estratgico, na medida em que representa uma dimenso relevante da eqidade de oferta de oportunidades de educao com qualidade. Esta abordagem permite uma melhoria dos processos de ensino-aprendizagem, tendo no ensino das artes um instrumento de ampliao da viso e compreenso do mundo, o que inclui necessariamente, como um de seus resultados, a melhoria do rendimento escolar. Busca-se construir um entendimento de que a escolarizao em si no assegura a aprendizagem, e de que o nosso maior desafio , para alm da democratizao do acesso, conseguir garantir instrumentos de aprendizagem efetiva das crianas, dos adolescentes, dos jovens e dos adultos, integrando a estrutura curricular do ensino bsico aos contedos relevantes dos ambientes familiares e comunitrios e diversidade do pas.1 Essa estratgia1 A possibilidade de adaptao do ensino bsico aos distintos contextos do pas estabelece uma clara referncia ao programa Interao entre a Educao Bsica e os diferentes contextos culturais existentes no pas desenvolvido no incio dos anos 1980 pela Secretaria de Cultura do MEC, comandada por Alosio Magalhes.

25

permite tornar evidentes os objetivos de que havia falado o da democratizao, da qualidade e o da eqidade que passam a ser peas-chave de todo o processo. Quando pensamos qualidade, um dos campos que nos parece fundamental, sobretudo quando pensamos na juventude, a possibilidade de se estabelecerem nas prticas cotidianas da sala de aula e no contra turno, fora da sala de aula, estratgias de seduo, de encanto e de mobilizao de desejos que permitam o desenvolvimento de todas as potencialidades dos alunos. Nesse sentido, a fronteira artificializada entre educao e cultura, entre a educao e as artes, precisa ser rompida de forma a que os espaos de aprendizagem na sala de aula e fora dela sejam portadores de uma outra viso de mundo. preciso fazer com que o encanto, possvel de ser insinuado nos projetos pedaggicos, sinalize a formao de um outro ator social, um novo homem, uma nova mulher, engajados nesse processo que estamos querendo construir junto com a sociedade brasileira. Este movimento de renovao do ensino das artes, que vem se solidificando ao longo dos ltimos 20 anos mais ou menos, se harmoniza plenamente com as possibilidades de contribuirmos com um instrumento, que obviamente no nico, para provocar um choque de qualidade: estabelecer a cultura como balizadora dos saberes dentro da educao. Alm disso, ela constitui tambm um instrumento fundamental para o estabelecimento da eqidade, sobretudo se considerarmos a juventude da periferia nos centros urbanos, a juventude do meio rural, se pensarmos nas juventudes. Falo de juventudes, no plural. Juventudes porque no devemos acatar uma viso homogeneizadora do universo dos jovens que fragilize a possibilidade de uma agenda de poltica pblica produzida com os jovens e para os jovens. A escola pblica, infelizmente, em vrias dimenses no est estruturada para interagir com nossos jovens e produzir um ambiente de ensino e aprendizagem que seja dinmico, criativo, formador e transformador. Ao contrrio, so inmeras as indicaes de que, apesar de ser o ltimo espao republicano de nossa sociedade (nem as praas so pblicas), a escola, de forma recorrente, se apresenta como uma mquina de excluso que produz e reproduz nossos vergonhosos padres de excluso e desigualdade. As escolas so construdas a partir de uma viso de ambientes familiares e comunitrios que no tm mais existncia concreta. Acredito que, em grande medida, as prticas de ensino se organizam a partir de idealizaes sobre supostas famlias que j no existem mais, e sobre comunidades que no so mais visveis na sociedade brasileira. So famlias e comunidades idealizadas na experincia do ps-guerra europeu e que ainda ocupam o imaginrio da escola brasileira.

26

Diante disso, ns precisamos ser capazes de transformar esse processo dentro da escola. Necessitamos republicanizar os sistemas de ensino. E para tornar a escola um espao republicano por excelncia, fundamental que consigamos associar polticas universalistas com polticas diferencialistas, isto , polticas especficas, ditas de ao afirmativa que, em ltima instncia, so capazes de mobilizar saberes locais, valorizar identidades constitudas de forma substantiva em cada territrio e promover um campo de aprendizagem que rompa com a artificialidade das fronteiras entre educao e cultura. As diferenas tm valores positivos e no so necessariamente desigualdades; essas diferenas so os verdadeiros instrumentos bsicos para as prticas inclusivas no cotidiano do sistema de ensino. A relao da educao com a cultura hoje absolutamente fundamental para que possamos fazer essa transformao. Quando se constri uma escola em tempo integral, ou uma escola aberta nos finais de semana, estamos tornando objetiva uma estratgia a de abrir as portas das escolas que esto fechadas para a sociedade. Abrir no s para fazer campeonatos de futebol e jogo de xadrez, mas sobretudo para valorizar os saberes locais daquelas comunidades que esto interditadas, que no podem freqentar ou ocupar plenamente o espao da escola. A escola freqentemente construda segundo um modelo quase prisional: muros altos, fechados, numa arquitetura que no a arquitetura do espao aberto de uma verdadeira repblica. Ns estamos falando da possibilidade de romper estes muros e permitir que essa idia de fronteira seja desmontada em nome da virtuosidade que surge de uma agenda transdisciplinar. Isto evidentemente no vai de encontro disciplina, ou aos saberes fortes das disciplinas ou aos valores centrais do mrito; o que entendemos que esses saberes das disciplinas precisam dialogar com os saberes locais e, assim, eliminar fronteiras e mostrar flexibilidade. Eu gostaria de concluir dizendo que hoje o Ministrio da Educao e o Ministrio da Cultura esto tentando estabelecer laos que tm rebatimentos naturais. Aes esto acontecendo em estados e municpios com o objetivo de romper as barreiras e criar um campo de transitoriedades possvel. Nesse movimento, pretendemos implementar de forma consistente aquilo que deve deixar de ser episdico, ou seja, a prtica continuada de polticas pblicas verdadeiramente preocupadas com o aprendizado. Essas polticas requerem a articulao de pelo menos trs dimenses: escala (aumentar a cobertura das aes, romper com os limites das experincias piloto e dos elementos idiossincrticos de vrias aes); continuidade (a arrogncia do poder no pode fazer com que se quebre uma experincia bem sucedida em nome de outro experimentalismo, isso absolutamente inconsistente com a idia de poltica pblica); e multidimensionalidade (procurando dar conta

27

da complexidade do fenmeno social e educacional). Ento, escala, continuidade e multidimensionalidade so dimenses que ns buscamos articular na elaborao e na conduo de uma poltica pblica para a educao e a cultura capaz de cerzir fronteiras e enunciar novos territrios de aprendizagem. Nosso entendimento o de que o ensino das artes passa a ter um papel fundamental, um papel de destaque, nas suas mltiplas linguagens, para poder contribuir para um outro aprendizado e uma outra pedagogia poltica que torne possvel priorizar a educao contemplando os critrios democratizao, qualidade e eqidade.

28

II. Painel: Polticas Pblicas para o Ensino de Arte no Brasil

Boas-Vindas!

Myriam Lewin*

B

om-dia a todos, autoridades, professores, palestrantes, convidados e participantes do XV Confaeb aqui presentes, que souberam reconhecer a importncia deste momento para a histria da arte-educao no Brasil.

com grande satisfao que a Funarte, juntamente com a Faeb, abre seus espaos para abrigar o XV Confaeb, oportunidade de encontro das mais diversas correntes de pensamento e relato de aes voltadas para esta discusso to fundamental da arteeducao, que no tem encontrado espaos para sua prtica e desenvolvimento. Reconhecendo que usufruir dos bens culturais e participar integralmente da vida cultural do pas , sobretudo, um direito da cidadania, a Funarte, atravs de sua trajetria, sempre entendeu que a educao possui uma importncia poltica no sentido da socializao do conhecimento. A cultura uma das mais importantes vertentes na construo da verdadeira cidadania. a porta de entrada para um mundo onde a dignidade e o respeito so premissas fundamentais para a formao plena de cidados transformadores. Triste constatar que a arte ainda continua tendo de pedir licena para entrar tanto na escola quanto na vida institucional do pas.

* Diretora-Executiva da Funarte

31

Podemos entender essa dificuldade quando reconhecemos que uma ao efetiva nas instncias formadoras do homem, quaisquer que sejam elas, educao, cultura, trabalho, sade e lazer, para no citar outras tantas reas transversais, exige mudanas e redefinies dos papis cotidianos de toda uma estrutura j sedimentada. Exige-se ousadia no campo poltico e institucional, pois ameaa as estruturas de poder constitudas. Gigantes tm de ser enfrentados. Entre eles, a burocracia, que devoradora e desestimulante. Enquanto no conseguimos ferramentas de gesto leves, desembaraadas, atentas especificidade do fazer cultural, no ser possvel vencermos este enorme desafio. No quero me estender na descrio das aes da Funarte no campo da arteeducao, pois isto ser tema da mesa de logo mais. Prefiro usar este espao para reafirmar o compromisso da Funarte em reestabelecer uma trajetria que j foi pioneira no pas e que, emblematicamente, inaugura, com o XV Confaeb, o embrio de uma nova linha de trabalho, que certamente encontrar parceria na Educao.

32

XV Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do BrasilAntonio Cludio Gomes*

com grande satisfao que a Secretaria de Estado de Educao do Rio de Janeiro participa como parceira do XV Congresso Nacional da Federao de Arte-Educadores do Brasil (2004). Sado, em nome do secretrio Claudio Mendona titular da pasta e da governadora Rosinha Garotinho, s demais autoridades componentes da mesa das esferas federal, estadual e municipal , aos organizadores do evento e, em especial, aos arte-educadores presentes. Muito feliz a escolha do local do evento, o Palcio Gustavo Capanema, espao de memorveis lutas pela escola pblica de qualidade. No poderia deixar de citar, ainda, o trabalho produtivo da professora Rose Mary Aguiar Borges, da comisso de infra-estrutura e apoio deste evento, docente da rede estadual e militante assdua dos ideais da Confaeb, lotada na Coordenadoria Regional Serrana II, em Nova Friburgo. Foi atravs de sua oportuna solicitao que disponibilizamos os computadores em rede aqui instalados e mobilizamos os professores estaduais com a garantia de acesso a este Congresso, que se notabilizou, ao longo dos anos, por tantas inovaes e contribuies que tm trazido ao ensino da arte no pas. Junto-me homenagem em memria dos arte-educadores Geraldo Salvador de Arajo e Albertina Santos Brasil, na qual acrescento o saudoso mestre Hilton

* Subsecretrio-Adjunto da Gesto Escolar.

33

Arajo, pioneiro no ensino do Teatro na Educao, de quem tive a honra de ser aluno na UniRio. Inmeras so as contribuies do ensino da arte. Desde os Pioneiros da Educao, enaltecidos no legendrio manifesto da Escola Nova de 1932, at o reconhecimento inconteste dos clebres pedagogos e pensadores da atualidade educacional. Tais como o desenvolvimento da criatividade, do trabalho em equipe, da compreenso da condio humana, do aporte intelectual, das habilidades manuais, rtmicas, literrias, e tantas outras, manifestas nas diversas linguagens artsticas do teatro, da msica, das artes plsticas, da dana, assim como na histria das artes. Sem distino entre artes maiores ou menores, na valorizao do processo sobre o resultado, j que o aprendizado se d nos ensaios de erro e acerto, na construo das habilidades e competncias indispensveis para o crescimento pessoal e da coletividade. Parabns, muito obrigado e bom trabalho a todos.

34

A Importncia da Arte no Currculo no Ensino Fundamental das Escolas do Municpio do Rio de Janeiro

Maria de Ftima Gonalves da Cunha*

um prazer participar deste evento, enquanto representante da Secretaria Municipal de Educao da Cidade do Rio de Janeiro. tambm um prazer poder integrar a mesa composta pelas trs instncias governamentais responsveis pelas polticas pblicas do ensino de arte no Brasil: governos federal, estadual e municipal. Esse casamento, proposto pela Mriam Brum, numa articulao maior e mais constante, favorece, sem dvida, a implementao de caminhos para o ensino de arte no nosso pas.

Especificamente a Diretoria de Educao Fundamental da Secretaria Municipal de Educao do Rio locus da discusso do ensino, da orientao curricular e da formao dos professores desta rede, que uma rede atpica, por ser a maior rede municipal do pas e, acredito, ainda, da Amrica Latina. No municpio do Rio, temos 1.409 escolas. que adotam um currculo a multieducao , nosso ncleo curricular bsico, e, neste currculo, contemplamos as quatro linguagens da arte: Teatro, Msica, Artes Visuais e Dana como reas de conhecimento oferecidas da 5a 8a srie. Os alunos, nessas sries, trabalham obrigatoriamente, em cada ano, com uma dessas linguagens, o que significa que eles podem estar vivenciando as quatro linguagens no decorrer desse perodo de sua educao.* Diretora de Educao Fundamental, do Departamento Geral de Educao da Secretaria Municipal da Cidade do Rio de Janeiro.

35

Na Secretaria Municipal de Educao, entendemos que, como poltica pblica, hoje, ns precisamos valorizar o ensino de arte na grade, nas suas quatro linguagens, enquanto reas especficas do conhecimento, sem perder de vista um processo mais amplo de integrao entre estas reas da arte, que se caracteriza na perspectiva da educao esttica. Nesse momento, passamos por um processo de atualizao curricular. Esse ncleo curricular bsico, a multieducao, est na nossa rede desde 1996 e mais uma vez trazemos para os professores que ensinam arte na Rede Pblica do Municpio uma atualizao, uma discusso desses componentes curriculares, assim como todos os outros. Nessa discusso atual, afirmamos a importncia conceitual e a importncia do investimento nessa poltica que garante aos alunos da rede terem um ensino de arte valorizado. Esse um vis que acredito ser bastante importante quando pensamos no processo de desenvolvimento desses jovens, meninos e meninas, do segmento da 5a 8a srie do ensino fundamental. importante lidar com as questes da sensibilidade, da afetividade, do desejo, da criatividade, que so processos detonados pelo ensino de arte. Todas as reas de conhecimento precisam beber dessa riqueza que o ensino de arte nos traz. Alm do trabalho na grade curricular, possumos, na rede municipal, nove ncleos de arte, que so programas de uma poltica de extensividade do horrio escolar do aluno, ou seja, uma possibilidade para o aluno participar em oficinas de arte, ampliando o seu horrio na escola. Na verdade, trabalhamos com duas grandes vertentes no ensino de arte: uma, na perspectiva da alfabetizao nessas linguagens: o aluno precisa ler e interpretar o mundo a partir das linguagens da Arte. Isso contemplado no horrio regular da escola, na grade curricular. A outra perspectiva diz respeito extensividade do horrio escolar: a possibilidade de aprofundar conhecimentos, atendendo ao interesse, ao desejo, ao talento, vontade de estar ampliando o espao de convvio escolar em oficinas de arte. Para isso, ns temos os ncleos de arte. muito importante podermos continuar reafirmando as polticas de formao atravs de um processo de interlocuo com o campo, com esses professores e a partir de uma demanda do prprio campo para contemplar essa rea de arte no currculo escolar. Eu quero agradecer, mais uma vez, a possibilidade de estar aqui, compartilhando com vocs a ao da Secretaria Municipal de Educao do Rio de Janeiro com suas polticas pblicas para o ensino da arte. Muito obrigada.36

Aspectos da Arte-Educao a partir dos Anos 1970 no Estado do Rio de Janeiro

Caque Botkay*

B

om-dia a todos os meus colegas! Agradeo o convite da Funarte para esse importante encontro, e que bom comear o dia ouvindo boa msica. A queda do som veio a propsito para mostrar a importncia do canto coral na nossa formao, uma vez que pudemos todos, com afinao, cantar a msica at o final. Quero parabenizar a minha amiga Mriam Brum pela organizao de um evento to necessrio para o pleno desenvolvimento da educao atravs do pensamento voltado para a educao cultural e artstica no mbito escolar. Sou assessor da subsecretria de Ao Cultural, professora Ceclia Conde, Subsecretaria que abrange o interior e a baixada, totalizando os 92 municpios do Estado do Rio de Janeiro. E, falando em Ceclia Conde, eu gostaria de prestar uma justa homenagem ao educador e artista Pedro Domingues, casado com Ceclia Conde por mais de quarenta anos, e que faleceu no dia 08 do ms corrente. Cito este nome porque ele foi um grande expoente do assunto de nosso encontro.

* Assessor da Subsecretaria de Ao Cultural da SECRJ.

37

Pedro Domingues era um educador, um artista plstico e bonequeiro como raros e que, junto com a Ceclia Conde e Ilo Krugli, formou um trip capitaneado pelo Augusto Rodrigues, que mudou muito os conceitos da questo da arte e educao nos anos 1960 aqui no Rio de Janeiro. Eles quebraram todas as antigas convenes, fundaram um novo pensar e distriburam entre milhares de pessoas e eu tenho a honra de me incluir como um dos pupilos dessa gerao. Ento, uma homenagem memria do Pedro esta minha participao aqui hoje. Continuo a falar a respeito de Ceclia Conde, que foi uma das fundadoras do moderno conceito de arte-educao. Ceclia, h duas semanas, com o Pedro ainda hospitalizado, dirigiu, aqui, o Encontro Nacional de Educao Musical, produzido pelo Conservatrio Brasileiro de Msica. Neste Conservatrio, do qual diretora artstica, Ceclia fundou, em 1972, o curso de Musicoterapia, pioneiro no Brasil, no qual tive o grande prazer de ter sido da turma inaugural. Logo, eu venho acompanhando a articulao dos conceitos de arte e educao ao longo desses trinta e poucos anos. Eram, ento, nossos professores, por exemplo, os j citados Pedro e Ilo, Klaus e Angel Vianna, Aylton Escobar, Mauro Costa, Fernando Lbeis. Nos anos 1970, Ceclia Conde, junto com Joo Rui Medeiros e Paulo Afonso Grisolli, comeou as viagens pelo interior do Estado para conhecer o que se fazia, o que acontecia fora da capital. E esta grande cidade do Rio de Janeiro j trazia a herana de capital nacional, com todo seu aparato de bens patrimoniais que abrangiam dezenas de teatros, incluindo o Teatro Municipal, cinemas, casas de espetculos, museus, centros culturais e fartos investimentos. Alm de ser a capital cultural do pas, em contraponto aos escassos recursos tcnicos e financeiros dos antigos municpios fluminenses. Eu, pessoalmente, no sou partidrio do termo interiorizao da cultura, porque aparenta ser um descobrimento do Brasil, sem levar em conta a cultura previamente existente. D a impresso de que no existia nada antes, tem de se levar a cultura com as naus da cidade grande. O interior est l, e sempre esteve. riqussima e variada a sua produo e temos de travar conhecimento com ela. Logo, temos de comear a compartilhar esses fazeres culturais, o pensamento tem de sair das grandes capitais ou no vamos avanar no conhecimento do pas e do que deve ser feito em nome da sua arte, sua cultura e, conseqentemente, em nome da sua educao. Nos anos 1980, Ceclia Conde me convidou para integrar a equipe central de animao cultural nos CIEPs do Estado do Rio de Janeiro, que foi uma inovao dela com o professor Darcy Ribeiro na rea da cultura dentro das escolas. Este o tema central que considero da maior importncia que ns poderemos falar aqui hoje: o animador cultural. Foi uma mudana de conceito da relao da arte com a escola envolvendo a comunidade e o prprio prdio educacional. Quebrou-se um antigo conceito da arte congelada dentro da sala de aula, embora o mesmo seja da38

maior importncia. Eu acredito que no so atividades excludentes. No estou falando aqui da eliminao da Educao Artstica na escola. A questo que abordo que a Animao Cultural, que era o artista fazendo a ponte, a ligao entre comunidade e a sua escola, trazia o conceito mais abrangente de cultura como totalidade das aes de uma coletividade. Ento, toda a comunidade tomava posse, deixava de ver a escola como aquela construo inatingvel. O que pertencia s aos alunos e ao corpo docente deixou de ser um corpo estranho comunidade, o que possibilitou uma maior aproximao na prpria educao dos filhos e demais parentes. Ento, a populao tornou-se agente e partcipe do desenvolvimento da prpria escola. O conceito de educao na cabea das diretoras e professoras dessa nova escola tambm se transformou, porque mudou o enfoque da utilizao daqueles muros. Com o tempo, davam-se at casamentos nos finais de semana dos Cieps, naqueles novos e belos prdios. E mais: cursos de doceiras, desfiles de modas e cineclubes para a toda a populao. Alm de amplos debates sobre os mais diversos assuntos, como discriminao racial, violncia domstica, o papel da mulher, alternativas para os jovens. Cada comunidade e cada escola tinham seus animadores culturais, oriundos da regio, e que sabiam o que era importante para estabelecer aquele trnsito diverso. Agora, temos de falar sobre o que ocorreu em meados dos anos 1990 quando abateu-se, talvez, a pior praga que temos para desenvolvimento do nosso assunto de hoje que a falta de continuidade de projetos fundamentais como o citado. Acredito que sem uma anlise profunda a esse respeito e se os setores polticos no compreenderem que um programa no pode findar em um nico e breve mandato, passaremos a vida inteira organizando eventos e projetos imediatos e no poderemos pensar no cerne da palavra desenvolvimento, que eu creio ser a palavra-chave para o nosso pas. O programa de animadores culturais foi desmontado. Tnhamos 1.100 animadores culturais pelo estado inteiro, em todos os municpios. Eram dois animadores por Ciep, sempre com linguagens artsticas diferentes. Ou era dana e msica ou msica e teatro ou literatura e dana. As linguagens eram distintas e eles no trabalhavam dentro da grade, mas dentro de toda a escola, inclusive com voz ativa nas reunies deliberativas. Tudo isso foi desmontado e, agora, temos ainda seiscentos animadores que esto fora dessa funo original. Ficamos, ento, sem a animao cultural e sem a educao artstica, dependentes de um maior ou menor grau de interesse de cada diretora. Ficamos sem ambos. No temos na grade a educao artstica e no temos o animador para fazer esse contato com a comunidade. Meu atual sentimento de que todas as aes ligadas arte na educao esto muito isoladas. Por outro lado, temos j uma histria de realizaes j experimentadas, uma base que fundamental.39

Outro dia, conversando em um debate no Dia da Cultura, eu estava na rdio MEC falando com a Maria Ju, a diretora do Circo Voador, que o reergueu das cinzas. Isso que bonito na cultura, ela no morre, ela fica enterrada viva por um tempo, depois ela retorna. Estvamos falando sobre a questo de meia entrada para teatros e cinemas, para os estudantes, a importncia disso. Mas tambm conclumos que, se pensarmos na evaso escolar que temos no interior, nas favelas, na baixada, quem esse aluno da meia entrada? Quem que se beneficia? Qual a meia entrada para o ex-estudante que no est mais na sala de aula? Que acesso esse ex-aluno ter em cinema e teatro? Lembro-me ainda de que 70% dos municpios do Rio de Janeiro no tm cinema nem teatro. Temos de encarar o quadro como grave, temos de pensar com muito carinho sobre essa questo da evaso escolar e a nossa funo dentro disso. A nossa funo de transformar a escola em um espao menos voltado para o estudo massivo, sem a tica humana que a arte traz para dentro da escola. Outra coisa que observamos, talvez to sria quanto todos esses aspectos, foi a questo da professora, principalmente no interior e na baixada fluminense, que no tem o que ler, no tem verba e nem um salrio que possa propiciar uma literatura de qualidade, assistir a uma pera, visitar uma boa exposio. Na maioria da vezes, essa professora nem pode vir da baixada at o museu, porque os grandes bens materiais, museus, teatros e salas de exposio, esto todos aqui na capital. Culpa da herana da capital brasileira e capital cultural. Ento, s o preo do transporte j inviabiliza uma vinda. Sem o ovo e sem a galinha, a professora precisa estar instrumentalizada para estimular o aluno a ter um pensamento plural. A partir desta constatao, a equipe da Subsecretaria de Ao Cultural formulou um projeto, uma minuta, do que seria a funo da Educao Artstica nas Escolas da Rede Pblica Estadual do Rio de Janeiro, da qual farei um resumo:O documento abre com uma frase de Jos Miguel Wisnik: A arte ensaia e antecipa aquelas transformaes que esto se dando, que vo se dar ou que deveriam se dar na sociedade. Introduo: ... buscando novas solues, a funo da educao artstica nas escolas da rede pblica estadual do Rio de Janeiro tem como uma das suas finalidades sensibilizar, atravs das prticas das linguagens artsticas, os professores de ensino fundamental e os futuros professores que cursam as duas ltimas sries das escolas de formao de professores, alm dos animadores culturais que, ainda, esto no Estado. A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional se refere s artes nos arts. 3o, 24, 26, 32 e 33. O art. 26 determina que o ensino das artes constitui

40

componente curricular obrigatrio nos diversos nveis de educao bsica de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos deixando, agora, de ser considerada uma atividade educativa conforme era referida na lei anterior. Os parmetros curriculares nacionais situam a educao artstica de forma bastante ampla, abordam aspectos relativos aos fundamentos tericos e histricos na arte da educao e do ensino da arte no Brasil. Segundo os PCNs os parmetros curriculares nacionais , a arte tem uma funo to importante quanto a dos outros conhecimentos no processo de ensino e aprendizado.

No tomarei muito tempo porque temos outros colegas da mesa que falaro sobre suas experincias. Eu vou s dizer que este projeto visa qualificar e aperfeioar professores e alunos, e essa equipe seria composta por educadores, professores de arte, supervisores, conferencistas e palestrantes. Seria um projeto piloto em dez escolas; est pronto para ser executado, estamos lutando por ele e nossa luta constante. Comentei aqui a questo dos municpios, que 70% deles no possuem equipamentos culturais, e eu tenho levantado a possibilidade de verbas provenientes de loterias e renncias fiscais, tenho discutido o assunto no Conselho Estadual de Cultura, do qual fao parte. Ento, se 70% do estado do Rio no possui equipamento, eu fico pensamento nos cinco mil municpios do Brasil. Mas a grande maioria tem a escola. Ento, nesse casamento, a gente precisa obedecer a uma das boas propostas dos ensinamentos histricos: crescei e multiplicaivos. Porque onde quer que haja uma escola, ns podemos chegar e dever da cultura caminhar junto com esse processo. Agora, como uma palavra de incentivo, eu fui jurado pelo segundo ano do prmio Cultura nota dez, que atende aos 92 municpios do Rio de Janeiro e que d prmios a dez projetos artsticos e sociais que envolvam cultura no estado. No ano passado, nossa equipe examinou 312 projetos e esse ano foram 282. Eu posso dizer, com clareza, que a imensa maioria desses projetos, e foram quinhentos e tantos, vindos do interior e da baixada fluminense, passavam pela escola de alguma forma. Quero dizer que a escola continua sendo o eixo das atividades, dos acontecimentos, nos municpios do Rio de Janeiro. E precisamos, simplesmente, sistematizar, apoiar e entender a importncia disso no crescimento dessa meninada que at os dez anos vai aprender tudo o que vai levar pela vida. Muito obrigado e um bom-dia a todos.

41

III. Homenagens

No me Conformo

Renan Tavares*

Q

ue a palavra potica de Gabriel, o Pensador, na msica No me conformo, possa se comunicar com a sensibilidade dos que aqui esto, vivos, e que viveram as peripcias desta gerao, assim como possa tocar o esprito daqueles que j partiram, que j no esto mais entre ns, mas que igualmente fizeram parte desta gerao de luta por um mundo melhor, por uma mudana efetiva e duradoura!

Assim, quero agradecer a oportunidade de remexer minhas memrias para falar e homenagear, com todos vocs, Geraldo Salvador de Arajo, neste XV Congresso da Federao de Arte-Educadores do Brasil. Para no me alongar muito, penso ser oportuno evocar somente trs momentos de convvio com este saudoso amigo. O primeiro, se deu em um passeio de barco pelos mares do sul, que circundam a ilha de Santa Catarina, quando Florianpolis, em 1995, acolheu o VIII Congresso da Faeb. Em uma manh nem to cinzenta nem to ensolarada, pude estar com Ingrid e Geraldo e perceber a serenidade e disponibilidade para o outro como caractersticas fundamentais de sua personalidade. Pudemos trocar, num cenrio de beleza singular, experincias pessoais, que, certamente, foram fundamentais para o amadurecimento de uma relao de afeto e respeito pelo outro.* Professor Doutor da UniRio.

45

Foi, sem dvida, um momento mpar para ns trs e como gostoso lembrar e resgatar o imenso viver que juntos experimentamos naquele passeio de barco. Um segundo momento, foi no Colgio de Aplicao (CAp) da UFRJ, quando o procurei para reativar a possibilidade de ter os estudantes do Curso de Licenciatura, da Escola de Teatro, da UniRio, realizando o Estgio Supervisionado nas aulas de Artes Cnicas do Ensino Fundamental e do Ensino Mdio junto equipe de professores de Teatro. Neste momento, conheci a apaixonante dimenso do trabalho de formao dos estudantes de Licenciatura que Geraldo desenvolvia e fui generosamente acolhido no tocante ao nosso interesse como Universidade. Ao mostrar o espao do CAp dedicado s atividades de Artes Cnicas, Geraldo revelava a cada momento seu total engajamento e descrevia as dificuldades e vitrias alcanadas para, finalmente, se chegar ao ambiente favorvel para o desenvolvimento das atividades inerentes tanto ao ensino dos alunos do CAp quanto formao dos futuros professores. Ainda aqui, neste encontro, com interesses nitidamente profissionais, pude reconfirmar a serenidade, a generosidade, a disponibilidade para com o prximo como qualidades inerentes quela personalidade. Como ltimo momento de convvio, talvez o mais intenso e o mais produtivo, em que Geraldo me revelou sua incansvel e cuidadosa ateno a tudo o que diz respeito insero do Teatro no universo do ensino, foi quando acolheu meu convite para ler e avaliar uma numerosa contribuio de pesquisadores e estudantes dos cursos de mestrado e doutorado de So Paulo e do Rio com vistas a uma publicao sobre teatro e educao no ensino e na comunidade. Trabalhamos juntos durante um pouco mais de um ms, trocando idias, experincias e desfrutando de um valioso prazer em verificar a real existncia de textos, resultantes de pesquisas e experincias em sala de aula, oriundos de quase a totalidade dos estados do Brasil. Nossa tarefa ler e avaliar foi concluda e foi elaborado, dentro do prazo, o sumrio para tal publicao que, apesar de no ter sido efetivada, nos aproximou sobremaneira. Nesta poca, experimentamos uma forte sensao de orgulho de pertencermos a uma comunidade de pesquisadores, cujos textos poderiam contribuir para subsidiar o trabalho pedaggico dos inmeros professores de teatro nos trs nveis de ensino. Durante este tempo de intenso trabalho conjunto, Geraldo me revelou seu interesse em trabalhar na UniRio e pude, ento, atravs de um dossi que ele preparou, apresentar ao Colegiado do Programa de Ps-Graduao em Teatro sua candidatura como Professor Convidado. Uma carta da profa. dra. Ana Mae Barbosa ao ento vice-reitor da Unirio em muito colaborou para a concretizao deste desejo. A participao do prof. dr. Geraldo Salvador de Arajo foi aceita, sem questionamentos. Entretanto, inesperada e surpreendentemente, a chama de sua vida se apagou.46

Recentemente, revendo o filme de Peter Brook, Encontro com homens notveis, que trata da juventude de Gurjief, fiquei impressionado sobre um questionamento que ele faz durante sua busca pelo conhecimento: o que acontece quando se morre? A resposta de um dos notveis cabe aqui ser reproduzida: a gente desenvolve durante a vida uma substncia fina que custa muito tempo para morrer depois de nossa morte. Ao me lembrar destes trs momentos de convvio com Geraldo, ouso dizer que sua generosidade, sua cuidadosa ateno e disponibilidade para o prximo, sua paixo pelo que fazia profissionalmente, sua serenidade, seu prazer em acolher e ouvir seus pares ainda permanecem vivas e por estarem vivas, enquanto sutil e fina substncia justifica nossa homenagem. T-lo assim em nossa memria , sem dvida, colocar-nos como aprendizes diante de um verdadeiro mestre. Espero que saibamos alimentar, cotidianamente, em nossas mentes e em nossos coraes, o legado que Geraldo nos deixou, enquanto arte-educadores que somos.

47

Albertina: dnamo de coragem e lideranaRitamaria Aguiar*

A

lbertina sempre foi e : cone e fnix, ao mesmo tempo. Mas, ultrapassa todas as denominaes conhecidas em nossa lngua ptria e as outras que conhecemos: dinmica, generosa, altrusta e empreendedora. Nem isolada e nem distrada, atenta e aglutinadora.

Observadora atenta...

Caminha devagar, mas clere, com segurana; em alternncias de cadncias, mas sempre em frente, olhando o cho e visualizando as estrelas e as nuvens... Com a arte, levou e proporcionou que muitas pessoas tivessem deslocamentos sensveis que permeavam a andana pelo mundo. Em alguns momentos, era o exerccio participativo e compartilhado unindo relaes dialticas entre meta e metodologia; forma e funo; teoria e experincia. Em outros momentos, percebia, em cada olhar, novas figuras, volumes cores e luzes, oportunizando sempre espaos para que cada artista demonstrasse a sua capacidade e competncia, com respeito e tica.

* Coordenadora de Programa Arte Sem Barreiras da Funarte.

48

Sempre indagvamos a ela de onde vinha tanta fora e entusiasmo. A resposta era sempre a mesma: minha fora ancorada pela verdadeira f e por acreditar que podemos realizar coisas boas. Em sua formao acadmica, lecionou em diversas universidades; fundadora da Faculdade de Servio Social de Sergipe; criou o Centro de Cultura e Arte entre outras diversas associaes. Idealizou e dirigiu os Festivais de Arte de So Cristvo (SE). Presidiu a Aliana Francesa do estado de Sergipe e foi vice-presidente do Conselho Estadual de Cultura Mineira, mas cidad do mundo... Como Madre Superiora, aceitava sem esboar nenhum antagonismo as questes religiosas diferentes da sua. Bem, partimos das esferas intelectiva, cientfica e acadmica e entramos no campo da emoo, nico pelo qual podemos falar com o corao. A proposta de vida de Albertina foi sempre essa: a de falar atravs da emoo e do corao. Certa vez, Edithinha (o anjo tutelar em vida de Albertina), preocupada com a longa viagem que ela realizaria, externou a preocupao do cansao, e Berta respondeu: Querida Edithinha, tenho vivido muito e continuarei vivendo; o cansao no faz parte do meu currculo. Quando conheci Albertina? Atravs de quem? Alegro-me em responder: Em 1984, estiveram no Brasil Joanne Grady (diretora do Very Special Arts Internacional) e Earl Copus (Presidente de Melwood Traininng) e Laurie Larhrop, antroploga, que vieram a convite das professoras Olvia Pereira e Sara Couto Csar, atravs do Partners of Amrica. Companheiros das Amricas (Partners of Amrica) uma grande associao que realiza intercmbios entre Brasil e Estados Unidos. Nessa ocasio, eu respondia pela Diretoria Executiva. Assim, nos enderearam, para avaliaes de intercmbio, duas propostas: Projeto Centro de Vida Independente idealizado por Rosngela Berman e o Projeto Artes para pessoas com viso reduzida, apresentado por Albertina Brasil Santos. As duas propostas foram aceitas pelo contedo significativo e necessrio. Realizou-se o intercmbio e, na volta, Albertina e um grupo de idealistas conscientes da responsabilidade, montaram a Associao Very Special Arts/Arte Sem Barreiras com o apoio da Funarte, em parceira com dezenas de instituies de, para e com pessoas com deficincia, secretarias de cultura, universidades, entre outras associaes. Reunies e mais reunies foram realizadas e, finalmente, em 1990, foi oficialmente fundada a Associao Very Special Arts/Arte Sem Barreiras/Funarte.

49

Taiwan, Sobradinho, Bruxelas, Ouro Preto, Paris, Januria, pelo mundo afora... Em todos os locais em que representava a Associao Very Special Arts/Arte Sem Barreiras /Funarte, Albertina os transformava em espaos de divulgao da arte esttica realizada pelas pessoas com deficincia. Sua conduta e postura fortaleciam a aproximao e interao entre os povos, levando a imagem do Brasil de forma positiva e qualificada. Albertina, como bem enfatiza Luiza Cmara, transformou em magia o palco das representaes para milhares de pessoas. Em cada oportunidade de realizaes de festivais, mostras de arte, seminrios e congressos, as pessoas iam mudando seus conceitos e pr-conceitos. A Mestra Albertina, sempre flexvel em direo s mudanas, quando em determinada poca, em reunio com Otoniel Serra e Paulo Cesar Soares, levei a nova filosofia de incluso como um novo vetor de interao e mostrei que essa filosofia deveria nortear as nossas futuras aes, Albertina imediatamente acatou a idia e, assim, reconstrumos estradas de incluso. Refletindo... E juntaram-se a ns os amigos e profissionais interessados e comprometidos: Brulio, Ksia, Zez Gonzaga, Rosita Gonzalez, Maria do Carmo, Ruth, Tereza, Luiza, Otoniel, Maria Lcia Godoy, Paulo Csar, Fernando e tantos outros... O Brasil comeou a mudar... Com um trabalho intenso, ultrapassou os limites que a vida tentou lhe impor e cada dia mais forte, deixava a marca de sua trajetria. A arte, at ento para poucos, comeou a ocupar um lugar de destaque; os artistas com deficincia comearam a mostrar sua performance e esttica. Mas, o tempo foi pouco para tantas realizaes e, quando pensvamos que Albertina seria eterna, da perspectiva renascentista em beleza e harmonia, ela fez a viagem no tempo... Renascer o verbo... Os observadores sensveis e atentos podem perceber a profundidade dessas variveis sempre harmnicas: o cone da arte em linguagem universal, sem barreiras espao-temporais, e sua histria de incluso. Renascer o verbo... Obrigada, Albertina!

50

Homenagem ao Professor Camarotti

Arheta Andrade*

com imensa honra e respeito que, por meio desta homenagem, tentarei expressar o sentimento de gratido e saudade que invadiu, nesses ltimos dias, os coraes de tantos arte-educadores que conheceram Marco Antonio Camarotti Rosa. Professor da Universidade Federal de Pernambuco, Ph.D em teatro, escritor, ator, dramaturgo, encenador, enfim, Camarotti dedicou toda a sua vida a questes relativas aos campos da arte e da educao. Lutou, junto a muitos dos arte-educadores aqui presentes, por espaos ativos para o trabalho em arte-educao dentro das instituies de ensino e colaborou com valiosas pesquisas sobre teatro infantil, teatro folclrico, dentre tantas outras. No entanto, no apenas deste homem de grande importncia acadmica que quero falar, mas tambm do brilhante ser humano que tive o privilgio de encontrar, para alm do espao acadmico. Posso dizer que conheci um dos homens mais belos que j vi. Homem cuja beleza se expressava atravs da interminvel crena na vida, na f do encontro indiscriminado com o outro, no respeito s diferenas e ao tempo de cada um. Beleza presente na coragem de se entregar por* Universidade Federal de Pernambuco.

51

inteiro aos seus alunos, abrindo as portas de sua casa, de sua famlia, de sua vida, do seu corao. Beleza concentrada no dedicado amor com que realizava todas as suas atividades. E, dentre as tantas que realizava, a que ele mais amava era a educao. Sempre ouvi isso dele, de sua esposa, de sua filha. Mais que ensinar o o qu e o como dar aulas de teatro, o nosso professor nos ensinou o amor pela arte-educao, amor com que descobrimos o como e o o qu ensinar. Finalizo dizendo que o professor Marco Camarotti contagiou uma legio de educadores com seus sonhos de um mundo melhor, com sua f no homem e em suas possibilidades de mudana. Sua sabedoria brilhava como o fogo Era vasta e plena como um grande rio Serena e suave como o vento Se vocs me permitirem, eu gostaria de me referir letra da msica Mistrios, de Milton Nascimento, que, melhor que minhas palavras, expressa o sentimento dos arte-educadores que foram alunos de Camarotti.

52

IV. Conferncias

Arte-Educao Contempornea ou Culturalista

Ana Mae Barbosa*

N

os ltimos anos, o esforo de entendermos a rea de Arte-Educao ou Ensino da Arte em relao com a cultura que nos cerca, gerou estudos muito significativos. Dentre os Estudos Culturais da Arte-educao, podemos mencionar trs livros: Building Bridges, de Marjo Rsnem (1998); Teoras y Prcticas en Educacin Artstica, de Imanol Agirre (2000) e The Arts and the creation of mind, de Elliot Eisner (2002).

Curiosamente, Rsnem, que finlandesa, Agirre, que espanhol e Eisner, um americano, partem do mesmo ponto: o conceito de Arte como experincia, elaborado em 1934 por John Dewey. Este conceito circulou entre os pragmatistas e fenomenologistas com sucesso, mas no teve larga aceitao entre artistas e crticos de arte durante o alto modernismo, para o qual importava, principalmente, a materialidade da obra ou sua conceituao. O ps-modernismo retoma o conceito, embebendo-o em um contextualismo esclarecedor que amplia a noo de experincia e lhe d uma densidade cultural. , portanto, natural que os Estudos Culturais da Arte-Educao tomem como base a experincia como argumento cognitivista. Dos trs livros aos quais me refiro, o de Eisner o mais ousadamente classificatrio. Em The Arts and the creation of mind, Elliot Eisner estabelece uma taxonomia das vises* Titular do Departamento de Artes Plsticas da Escola de Comunicao e Arte (ECA), da USP.

55

de Arte-Educao que persistem na contemporaneidade. Suas conceituaes de arte e de educao o aproximam de John Dewey e Paulo Freire. Conceitua educao como um processo de aprender, como inventarmos a ns mesmos. Paulo Freire, menos confiante nas nossas invenes pessoais, ensinou-nos que a educao um processo de vermos a ns mesmos e ao mundo em volta de ns. Enquanto Eisner enfatiza imaginao, Paulo Freire valoriza-a, mas sugere dilogos com a conscientizao social. Para ambos, a educao mediatizada pelo mundo em que se vive, formatada pela cultura, influenciada por linguagens, impactada por crenas, clarificada pela necessidade, afetada por valores e moderada pela individualidade. Trata-se de uma experincia com o mundo emprico, com a cultura e a sociedade personalizada pelo processo de gerar significados, pelas leituras pessoais auto-sonorizadas do mundo fenomnico e das paisagens interiores. a, na valorizao da experincia que os trs filsofos e/ou epistemlogos se encontram: Dewey, Paulo Freire e Eisner. Se para Dewey experincia conhecimento, para Freire a conscincia da experincia que podemos chamar conhecimento. J Eisner destaca da experincia do mundo emprico sua dependncia de nosso sistema sensorial biolgico, que a extenso de nosso sistema nervoso ao qual Susanne Langer chama de rgo da mente. Segundo Eisner, refinar os sentidos e alargar a imaginao o trabalho que a arte faz para potencializar a cognio. Cognio o processo pela qual o organismo se torna consciente de seu meio ambiente. Novamente os trs gigantes da filosofia da educao se encontram e nos alertam acerca da importncia da arte para nos permitir a tolerncia ambigidade e a explorao de mltiplos sentidos e significaes. Esta dubiedade da arte a torna valiosa na educao: arte no tem certo e errado, tem o mais ou o menos adequado, o mais ou o menos significativo, o mais ou o menos inventivo. Arte na educao se contrape s supostas verdades da educao e, mais supostas ainda, s certezas da escola. So muitas as vises da Arte-Educao as quais dependem da nfase que se d s funes da arte na educao. Para Eisner, as que operam at nossos dias so: auto-expresso criadora; soluo criadora de problemas; desenvolvimento cognitivo; cultura visual; ser disciplina; potencializar a performance acadmica; preparao para o trabalho.

56

A leitura de Eisner, como sempre, estimulou-me a pensar em termos de Brasil e de nossa trajetria histrica. Cada livro novo dos trs grandes tericos da ArteEducao (EFLAND, PARSONS e EISNER) uma provocao intelectual. Comecemos a analisar as mais recentes vises categorizadas por Eisner. Vejamos a idia de preparao para o trabalho, enfocando a necessidade de flexibilizar o indivduo para ser capaz de mudar de emprego pelo menos uma vez na vida e estar conseqentemente preparado para desempenhar mais de uma tarefa. Para mim, esta uma funo apontada pela ideologia neoliberal. Encontramos na histria do ensino da arte no Brasil a configurao da viso da arte como preparao para o trabalho no fim do sculo XIX ancorada nas idias liberais de Rui Barbosa, Andr Rebouas e Ablio Csar Pereira Borges. Mas, com uma conotao libertria ligada ao anti-escravagismo e aparentemente nobre preocupao de preparar os escravos recm-libertos para conseguir empregos. No deixavam de ser hipcritas como os neoliberais de hoje, que querem que tudo continue o mesmo: eles ganhando muito dinheiro s custas de manter a maioria na instabilidade empregatcia. Os nossos liberais de antigamente pensaram em preparar os escravos para trabalhos de pintura de gregas e frisas decorativas, ornatos sobrepostos como rosceas e vitrais, assim como em mtodos de ampliao de figuras para que trabalhassem na construo civil, portanto, assimilando-os nas mais baixas classes sociais. Quanto arte na educao para melhorar a performance acadmica, esta concepo ainda no chegou ao Brasil. tpica da Arte-Educao norte-americana dos ltimos anos, depois que uma pesquisa mostrou que os dez primeiros lugares do exame SAT (equivalente ao Enem), por uma dcada, haviam cursado pelo menos duas disciplinas de arte. No ensino mdio nos Estados Unidos, os alunos escolhem as disciplinas que vo cursar. No Brasil no h liberdade de escolha, o currculo parece prescrio mdica. Portanto, nem se poderia fazer uma pesquisa dessas no Brasil. A arte como disciplina configurada no Disciplined Based Art Education, que mudou o ensino da arte nos Estados Unidos na dcada de 1990, tambm no emplacou no Brasil, apesar de vrios arte-educadores brasileiros terem sido enviados pelo poder privado para cursar o instituto de preparao para o DBAE mais fraco dos financiados pela Getty Foundation, na regio pobre de Chattanooga, numa forada tentativa de ressaltar nosso suposto subdesenvolvimento. Na realidade, no temos uma Arte-Educao subdesenvolvida, mas temos at pensamento prprio. Um amigo da Austrlia um dia me perguntou: Como vocs, no Brasil, escaparam do DBAE, enquanto os pases da sia esto por ele colonizados? Dialogamos com o ps-modernismo ou ultramodernismo e sistematizamos nosso prprio sistema com a Proposta Triangular, inspirada em

57

mltiplas experincias estudadas em diferentes lugares. Hibridizamos falando nossa prpria linguagem de necessidades e somos hoje um dos pases que junto com Cuba e Chile esto na liderana do ensino da arte na Amrica Latina com um sistema bem desenvolvido de Arte-Educao. A Colmbia, graas aos esforos dos ltimos anos, est prestes a se integrar a este grupo de qualidade. No Modernismo, os lugares de excelncia do Ensino da Arte na Amrica Latina eram a Argentina e o Mxico. Das vises da Arte-Educao que Elliot Eisner nos fala, as que dizem respeito nossa histria e aos nossos dias no Brasil so em ordem cronolgica: a expresso criadora, a soluo criadora de problemas, a cognio e a cultura visual. Quanto a esta ltima h uma grande diferena do caso americano. Eisner d a entender que foi a deciso de ampliar a anlise visual circunscrita arte para outros universos visuais como a publicidade, o cinema, o vdeo clip, que fez surgir nos Estados Unidos a preocupao com a multiculturalidade. No Brasil, o movimento foi inverso. Ao sairmos de uma ditadura de 20 anos, o processo de redemocratizao, nos anos 1980, trouxe em seu bojo a preocupao plural com a multiculturalidade. Durante a ditadura, os nicos suspiros democrticos no Ensino da Arte foram os festivais, especialmente os de Ouro Preto, nos quais professores, alunos, artesos locais e povo em geral podiam intercambiar. Por meio dos festivais, os universitrios de arte tinham contato com o povo e suas culturas. Quando os resultados daqueles intercmbios puderam chegar mais abertamente s universidades, manifestaram-se na necessidade de respeito produo de todas as classes sociais. Foi o multiculturalismo baseado na diferena de classes sociais que primeiro eclodiu no Brasil. O revigoramento das idias de Paulo Freire, que voltou ao Brasil em 1980 com uma recepo popular nunca vista para um educador, assim como o incio do Ps-Modernismo na Arte-Educao, no Festival de Inverno de Campos de Jordo, em 1983, consolidaram o valor do reconhecimento das diferenas que depois orientou a poltica multicultural do Museu de Arte Contempornea de So Paulo (de 1987 a 1993)1, que era bastante ampla, incluindo a cultura visual do povo como os lateiros, os carnavalescos, os pintores de placas de bar etc.2 Este esforo multicultural trazia a necessidade de ver criticamente a produo do povo, das minorias e das mdias, especialmente a publicidade e a programao da1 2

Ver Tpicos Utpicos BH: Comarte, 1998. arte popular chamo arte do povo. a arte reconhecida em separado pelo cdigo hegemnico como arte do povo, resultando que o artista do povo que a faz tambm se reconhece como artista. Exemplo: Vitalino. Chamo arte das minorias. Esttica do povo ou cultura visual do povo, quando o produto tem alta qualidade esttica, no codificado pela cultura dominante e o prprio criador no se v como artista. Exemplo: lateiro, as bancas dos feirantes, os bonecos de escapamento, a confeiteira de bolo. Esttica das massas quando ligada aos valores visuais dos grandes mitos e manifestaes populares, como o Carnaval, o Candombl. Popular Art dos americanos chamo de cultura de massa (no singular).

58

rede Globo, que fora durante a ditadura e pelo menos at 2002, mais poderosa que o Ministrio da Educao. No prprio Festival de Campos do Jordo (1983) teve lugar o primeiro curso de anlise de televiso oferecido arte-educadores, que fora precedido de cursos de TV em estdio, vdeo e cinema, em 1980, durante a Semana de Arte e Ensino da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo. Mesmo nas oficinas de arte e computador, realizadas em 1984 durante o Congresso de Histria do Ensino da Arte na ECA-USP, ainda no se falava de cultura visual. S nos anos 1990 comeamos a usar a expresso Cultura Visual (TV, internet, softwares interativos etc.), para falar das mdias que modelam nossa mente, nos ensinam sobre arte e comandam a nossa educao, embora j as vissemos trabalhando criticamente como imagem e como significao. O conceito j era conhecido, mas o termo cultura visual entrou no vocabulrio dos arte-educadores graas ao curso que deu Kerry Freedman em So Paulo, no SESC/Vila Mariana, em 1998, e publicao do livro de Fernando Hernandez. Um dos textos de Kerry Freedman discutidos no curso est publicado neste livro. Entretanto, a cultura visual achou o caminho preparado por livros como A imagem no Ensino da Arte (1991), Metodologia do Ensino da Arte (1993) e outro, bem anterior, Teoria e Prtica da Educao Artstica (1975), que j falava de experincias na Escolinha de Arte de So Paulo com a anlise de imagens da TV. Mas voltemos ao incio: a idia da arte na escola como expresso criadora difusa, data do incio do modernismo, tendo como patronos Franz Cizek, artista do Movimento de Secesso de Viena, Viktor Lowenfeld e Herbert Read, que para teorizar sobre Arte-Educao, recorreram, o primeiro a Freud e o segundo a Jung, tendo como base filosfica comum Martim Buber. Portanto, as primeiras sistematizaes tericas na Arte-Educao foram de origem psicanaltica e psicolgica. Embora nenhum destes autores houvesse prescrito que a anlise visual inerente ao desenho de observao da natureza era a nica forma aceitvel de estmulo expresso. Como diz Eisner, a idia do Ensino da Arte como soluo criadora de problemas esteve influenciada pela Bauhaus. (1919-1932, WEIMAR-DESSAU) A funo do ensino da arte era produzir solues para a vida e para o design tecnicamente eficientes, esteticamente prazerosas e socialmente relevantes. A idia era desafiar expectativas tradicionais quando a melhor forma de resolver problemas fosse encontrada. Na Escolinha de Arte de So Paulo, trabalhamos no s no desenho de observao de objetos e roupas de bom desenho, visitando lojas da moda, mas ensaiamos o desenho grfico de capas de discos e livros e a construo de objetos de madeira. Atualmente, a abordagem mais contempornea de Arte-Educao na qual estamos mergulhados no Brasil a associada ao desenvolvimento cognitivo.

59

Embora Eisner afirme que a viso de Arte-Educao mais fortemente implantada no imaginrio popular a ligada expresso criadora difusa interpretada como algo emocional e no mental, como atividade concreta e no abstrata, como trabalho das mos e no da cabea, o movimento de Arte-Educao como cognio se impe no Brasil. Por meio dele se afirma a eficincia da arte para desenvolver formas sutis de pensar, diferenciar, comparar, generalizar, interpretar, conceber possibilidades, construir, formular hipteses e decifrar metforas. Rudolf Arnheim foi um dos expoentes da idia de arte para o desenvolvimento da cognio. Sua concepo se baseia na equivalncia configuracional entre percepo e cognio. Para ele, perceber conhecer. Eisner aponta Ulric Neisser e Nelson Goodman como colaboradores desta viso. Arrisco a afirmar que o Projeto ZERO, que Goodman iniciou e financiou pessoalmente, foi a maior fonte de pesquisas sobre a cognio em arte e a cognio por meio da arte. O livro The Arts and Cognition, editado pelo Projeto ZERO, em 1977, foi um forte argumento cognitivo. Evidenciou que arte depende de julgamento, mas obriga a poucas regras que precisam ser conhecidas antes de se ousar desafi-las. Estas regras so para Arnheim a gramtica visual subjacente a todas as operaes envolvidas na cognio como recepo, estocagem e processamento de informao, percepo sensorial, memria, pensamento, aprendizagem etc. Acusado de formalista nos anos 1980, na efervescncia do Ps-Modernismo nos Estados Unidos, Arnheim, entretanto, vem sendo recuperado pelos cognitivistas, pois sua gramtica visual no se comprazia apenas na forma, mas derivava de uma negociao contextual mental e se dirigia ao contexto perceptual. A princpio se trabalhava a percepo desta gramtica visual s a partir da percepo do mundo fenomnico. Nos anos 1980, precisamente a partir de 1983 (Festival de Inverno de Campos do Jordo), o esforo cognitivo de apreender a imagem da Arte se ampliou e outras mdias visuais tambm passaram a interessar ArteEducao e a um novo grupo, o de especialistas em educao e comunicao. Estou preparando um livro que trata, principalmente, dos modos pelos quais se aprende arte, portanto, de cognio e interdisciplinaridade. Artigos publicados entre 2002 e 2003, de Michael Parsons e Arthur Efland, da Universidade Estadual de Ohio (EUA) e Kit Grauer, Rita Irwin, Alex de Cosson e Sylvia Wilsom, da Universidade de British Columbia, Vancouver, British Canad, iniciam o livro que presidido pela idia de Arte como conhecimento. Em seguida, o conhecimento da Arte ocupa a segunda parte do livro, centrada no Ensino da Histria da Arte. Os artigos de Edward Lucie-Smith, Crtico e Historiador da Arte da Inglaterra, de Donald Soucy, da Universidade de New Brunswick e de

60

Annie Smith, da Universidade de Toronto, ambos do Canad, so republicaes dos anais do Congresso sobre O Ensino da Arte e sua Histria, por mim organizados em 1989 no MAC, USP. Estes anais de tiragem restrita so conhecidos apenas pelos pesquisadores, mas alguns textos so muito importantes para a prtica de professores do ensino fundamental e mdio em sala de aula. Annie, que veio duas vezes ao Brasil dar cursos no Museu de Arte Contempornea da USP, infelizmente, morreu poucos anos atrs, deixando uma lacuna na experimentao do ensino da Histria da Arte e muitos de ns, seus amigos, saudosos. O texto de Jacqueline Chanda, que encerra a segunda parte, j anuncia o tema da terceira parte, reclamando por uma teoria crtica no ensino da Histria da Arte baseada na leitura da obra e do campo de sentido da arte. O texto de Jacqueline Chanda foi publicado primeiramente no Brasil pelo SESC/ Vila Mariana, que o distribuiu no curso que ela ministrou no projeto A Compreenso e o Prazer da Arte, em 1998. Na Parte III do livro, dois artigos paradigmticos de Brent Wilson e David Thistlewood so palestras que deram para o Simpsio sobre o Ensino da Arte e sua Histria, em 1989, que continuam muito atuais. Sob a g