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ROCHA, Décio. Representar e intervir: linguagem, prática discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 14, n. 3, p. 619-632, set./dez. 2014. Página619 http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-140310-4513 REPRESENTAR E INTERVIR: LINGUAGEM, PRÁTICA DISCURSIVA E PERFORMATIVIDADE Décio Rocha Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Resumo: A partir do conceito de prática discursiva (MAINGUENEAU, 1989), visto como a simultânea produção de textos e de uma comunidade, em um encontro marcado por uma relação de reciprocidade na qual uma comunidade produz textos que, por sua vez, garantem visibilidade a essa mesma comunidade, este artigo tem por objetivo explorar o tipo de relação que se estabelece entre linguagem e realidade. Para fins de abordagem de duas notícias da mídia, a análise da natureza performativa das ações relatadas (AUSTIN, 1975) e a explicitação de singularidades do ilocutório (DELEUZE; GUATTARI, 1995) serão dispositivos aos quais se recorrerá para sustentar a tese segundo a qual, antes de representar o mundo, o discurso é uma forma de nele intervir. Palavras-chave: Prática discursiva. Representação e intervenção. Performativo. Ilocucionário. Notícia. 1 DO DISCURSO À PRÁTICA DISCURSIVA: UM CONCEITO QUE GANHA CORPO Este trabalho tem por objetivo propor uma reflexão voltada para o encontro entre linguagem e realidade, explicitando o lugar que reservamos para a performatividade no quadro da perspectiva discursiva que vimos praticando e incluindo nesse debate a singularidade da noção de prática discursiva (MAINGUENEAU, 1989). Dando continuidade a um debate iniciado pelo autor em trabalho anteriormente publicado (cf. ROCHA, 2013), o artigo busca responder a duas questões – complementares, sem dúvida –, a saber: (i) que tipo de relações podemos estabelecer entre a perspectiva discursiva que pretendemos sustentar e a noção de performatividade?; (ii) como dar visibilidade ao conceito de prática discursiva, entendido como reformulante de discurso? Este artigo é uma releitura de texto publicado em Intersignos, v. 6, n. 1 (2013), versão na qual o córpus, mais restrito, não foi reproduzido na íntegra, o que impediu a compreensão das análises feitas. Na versão atual, além de um córpus expandido e reproduzido em sua totalidade, figuram avanços mais recentes de pesquisa: autores como J. Butler, G. Deleuze e F. Guattari vêm se articular ao quadro teórico de base, reforçando a interseção entre pragmática e perspectiva discursiva; a performatividade passa a ser reconhecida também em nomes substantivos; aprofunda-se a diferença entre performativos e palavras indicativas de ação realizada verbalmente; ganha posição central nas análises o conceito de prática discursiva. Professor Associado. Doutor em Linguística Aplicada. Email: [email protected].

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  • ROCHA, Dcio. Representar e intervir: linguagem, prtica discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso LemD, Tubaro, SC, v. 14, n. 3, p. 619-632, set./dez. 2014.

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    http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-140310-4513

    REPRESENTAR E INTERVIR: LINGUAGEM, PRTICA

    DISCURSIVA E PERFORMATIVIDADE

    Dcio Rocha

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Rio de Janeiro, Brasil

    CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    Resumo: A partir do conceito de prtica discursiva (MAINGUENEAU, 1989), visto como a

    simultnea produo de textos e de uma comunidade, em um encontro marcado por uma

    relao de reciprocidade na qual uma comunidade produz textos que, por sua vez,

    garantem visibilidade a essa mesma comunidade, este artigo tem por objetivo explorar o

    tipo de relao que se estabelece entre linguagem e realidade. Para fins de abordagem de

    duas notcias da mdia, a anlise da natureza performativa das aes relatadas (AUSTIN,

    1975) e a explicitao de singularidades do ilocutrio (DELEUZE; GUATTARI, 1995)

    sero dispositivos aos quais se recorrer para sustentar a tese segundo a qual, antes de

    representar o mundo, o discurso uma forma de nele intervir.

    Palavras-chave: Prtica discursiva. Representao e interveno. Performativo.

    Ilocucionrio. Notcia.

    1 DO DISCURSO PRTICA DISCURSIVA: UM CONCEITO QUE GANHA CORPO

    Este trabalho tem por objetivo propor uma reflexo voltada para o encontro entre

    linguagem e realidade, explicitando o lugar que reservamos para a performatividade no

    quadro da perspectiva discursiva que vimos praticando e incluindo nesse debate a

    singularidade da noo de prtica discursiva (MAINGUENEAU, 1989). Dando

    continuidade a um debate iniciado pelo autor em trabalho anteriormente publicado (cf.

    ROCHA, 2013), o artigo busca responder a duas questes complementares, sem

    dvida , a saber: (i) que tipo de relaes podemos estabelecer entre a perspectiva

    discursiva que pretendemos sustentar e a noo de performatividade?; (ii) como dar

    visibilidade ao conceito de prtica discursiva, entendido como reformulante de

    discurso?

    Este artigo uma releitura de texto publicado em Intersignos, v. 6, n. 1 (2013), verso na qual o crpus,

    mais restrito, no foi reproduzido na ntegra, o que impediu a compreenso das anlises feitas. Na verso

    atual, alm de um crpus expandido e reproduzido em sua totalidade, figuram avanos mais recentes de

    pesquisa: autores como J. Butler, G. Deleuze e F. Guattari vm se articular ao quadro terico de base,

    reforando a interseo entre pragmtica e perspectiva discursiva; a performatividade passa a ser

    reconhecida tambm em nomes substantivos; aprofunda-se a diferena entre performativos e palavras

    indicativas de ao realizada verbalmente; ganha posio central nas anlises o conceito de prtica

    discursiva.

    Professor Associado. Doutor em Lingustica Aplicada. Email: [email protected].

  • ROCHA, Dcio. Representar e intervir: linguagem, prtica discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso LemD, Tubaro, SC, v. 14, n. 3, p. 619-632, set./dez. 2014.

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    A especificidade da primeira questo prende-se em parte diversidade de

    definies que podemos encontrar para o conceito de discurso. No propsito meu no

    momento tematizar tal diversidade e, por essa razo, restrinjo-me a lembrar trs

    definies de discurso dentre as vrias que aqui poderiam figurar - definies que

    representam formas antagnicas de pensar o conceito, se considerarmos a clssica

    diviso entre tendncias anglo-americanas e tendncias francesas. Quanto segunda

    questo, ela representar um esforo que fao para concretizar um possvel modo de

    atualizao da noo de prtica discursiva, recorrendo a dispositivos que buscaro dar

    conta de sua singularidade e de sua produtividade na anlise de textos variados.

    Inicio, deste modo, lembrando uma definio inaugural de discurso, a saber, a

    definio oferecida por Z. Harris em Discourse Analysis, obra publicada em 1952. Nela,

    Harris tematiza duas questes em estreita inter-relao: uma compreenso de discurso

    entendido como sucesso de frases, unidade de anlise que ultrapassa o limite da

    frase, e como o lugar de encontro da lngua com a cultura, ou seja, ponto de interseo

    entre o comportamento lingustico e o no lingustico. Na referida obra do autor, a

    expresso discourse analysis remete a um mtodo para investigar a coeso de

    enunciados falados e escritos. Essa primeira definio de discurso fornecida por Harris

    parece hoje mais compatvel com o campo de investigaes da Lingustica textual, e no

    da Anlise do Discurso.

    Muitos dos trabalhos da vertente anglo-americana da Anlise do Discurso no se

    afastaro significativamente dessa primeira concepo de discurso, sendo a nfase

    colocada na extenso das unidades de anlises (sempre superiores frase) e no fato de

    lidarem invariavelmente com enunciados em situao de uso. Alguns autores ainda

    iluminaro um outro aspecto caracterstico de tal entendimento de discurso, a saber, o

    carter interdisciplinar que assumem as pesquisas na rea1. Acrescentemos, para

    concluir, que uma outra marca dos estudos realizados nessa vertente a nfase no

    planejamento intencional das trocas verbais por seus atores. No fragmento transcrito a

    seguir, a diferena estabelecida pelo autor entre texto e discurso explicita essa

    dimenso consciente de um projeto de comunicao: Chapter 1, Language in use,

    distinguishes between text (a communicative unit) and discourse (the meaning the text

    producer intends to communicate and the receiver has to interpret). (WIDDOWSON,

    2007).

    Passemos a uma outra perspectiva para definir discurso, recuperando, desta vez, a

    posio defendida ao final dos anos 60 por Michel Pcheux, filsofo considerado como

    o fundador da Anlise do Discurso na Frana. Sua orientao terica se configurou em

    forte oposio aos trabalhos que se desenvolviam poca sob o marco da Anlise de

    Contedo de base behaviorista, americana, em desenvolvimento j desde o incio do

    sculo XX2.

    De modo conciso, diremos que Pcheux privilegia a articulao entre Lingustica,

    Histria e Psicanlise para dar conta de fatores como o ideolgico e o sujeito na

    1 Em seu Discourse Analysis, Brown e Yule (1983) fazem referncia a uma interseo entre disciplinas

    to diversas quanto a sociolingustica, a psicolingustica, a lingustica filosfica e a lingustica

    computacional. 2 Para um maior detalhamento dos trabalhos em Anlise de Contedo, ver Rocha e Deusdar (2006).

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    produo de efeitos de sentido. Aqui, a linguagem mostra-se como no transparente:

    preciso ensinar a ler o real sob a superfcie opaca, ambgua e plural do texto

    (ORLANDI, 2005, p. 10). Sua concepo de discurso vem desestabilizar o tradicional

    esquema da comunicao, segundo o qual o emissor transmite uma mensagem a seu

    receptor, por intermdio de um canal adequado e de um cdigo comum a ambos. Com

    efeito, distanciando-se de tal perspectiva informacional e problematizando a noo de

    condies de produo, Pcheux recusa a ideia de mensagem como transmisso de

    informao entre A e B; em seu lugar, prefere a noo de discurso como efeito de

    sentido entre A e B (PCHEUX, 1969, p. 18). Desde sempre fica claro que A e B no

    representam a presena fsica de organismos humanos individuais, e sim lugares

    passveis de uma descrio sociolgica (o lugar do patro, do operrio, etc.) que se

    apresentam alterados em uma srie de formaes imaginrias referentes imagem que

    fazem de si e do outro, assim como do referente (isto , o contexto ou a situao em que

    tem lugar o discurso). Estabelecem-se, desse modo, relaes entre as situaes (que so

    objetivamente definidas, coincidindo com a realidade fsica) e as posies (que so

    representaes dessas situaes, objetos imaginrios) segundo uma lgica particular: o

    indivduo interpelado em sujeito pelas formaes discursivas (que representam na

    materialidade lingustica as formaes ideolgicas que lhes correspondem) sustentar

    processos discursivos, entendidos como sistema de relaes de substituio, parfrases,

    sinonmias, etc., que funcionam entre elementos lingusticos significantes em uma

    formao discursiva dada (PCHEUX, 1988, p. 161). Desse modo, o sentido no

    poder ser localizado na materialidade do significante, situando-se, antes, na

    dependncia de uma formao discursiva, isto , segundo a posio sustentada pelo

    sujeito que enuncia. A dependncia de uma formao discursiva com relao ao

    interdiscurso , no entanto, dissimulada por intermdio da transparncia do sentido que

    a se produz, o que confere forma-sujeito uma propriedade que lhe constitutiva, a

    saber, o duplo esquecimento: esquecimento das determinaes que lhe designam

    precisamente o lugar que ele ocupa e o esquecimento de que ele seleciona um enunciado

    (e no um outro) que j se encontra previsto no campo da formao discursiva

    considerada (forma de esquecimento que lhe confere a liberdade que lhe possvel

    alcanar).

    Como se percebe, a reflexo de Pcheux se distancia, e bastante, dos critrios

    utilizados regularmente pela vertente anterior. Sua proposta nada tem a ver com a

    extenso das unidades de anlise ou com qualquer modalidade de sujeito intencional,

    psicolgico, que se revele senhor de seu dizer. O sujeito somente tem acesso a parte de

    seu dizer. Com efeito, a interpelao do indivduo em sujeito do ideolgico implica o

    apagamento da lngua na histria, da resultando o efeito de evidncia do sentido e a

    iluso de transparncia da linguagem. Essa iluso tambm refora a iluso de um

    sujeito-origem do que dito, dissimulando o fato de que o sujeito se define, antes, como

    posio, isto , como lugar do qual lhe lcito enunciar.

    A terceira e ltima acepo de discurso que apresento referendada por D.

    Maingueneau. Em um sentido amplo, discurso designar no tanto um campo de

    investigao passvel de ser circunscrito, mas principalmente um certo modo de

    apreenso da linguagem, que pressupe a atividade de sujeitos inscritos em contextos

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    determinados (MAINGUENEAU, 1998, p. 43). Em uma acepo mais pontual,

    discurso poder ser compreendido como um uso mais restrito que se faz do sistema

    lngua, e sobre essa segunda acepo que incide nosso interesse, tendo em vista sua

    produtividade no que diz respeito diversidade de critrios para a constituio de

    crpus3 a serem submetidos investigao. A ttulo de exemplificao, cito alguns dos

    critrios que vm permitindo fracionar para fins de anlise o universo discursivo,

    traduzindo-o em domnios ou campos discursivos que j representam uma escolha feita

    pelo pesquisador: ao se falar de discurso comunista ou discurso socialista,

    privilegiamos, como critrio de classificao, a construo de um certo posicionamento

    no interior do campo discursivo referente a ideologias polticas, critrio esse que j no

    o mesmo que nos autoriza a falar de discurso jornalstico ou discurso cientfico,

    designaes que colocam em cena um certo modo de configurao da ao do homem

    situada na histria. Com base na mencionada diversidade de critrios a servio de uma

    tipologizao dos discursos, poderemos ainda falar de discurso do professor ou de

    discurso do operador de telemarketing, quando o enfoque recair sobre uma dada

    categoria de locutores; e, seguindo a mesma ordem de raciocnio, de discurso

    polmico ou discurso prescritivo, quando justamente se desejar enfatizar uma dada

    funo da linguagem.

    A produtividade da noo de discurso que acolhemos s se deixa perceber quando

    nos damos conta de que, seja qual for o critrio que adotemos, a apreenso de uma dada

    identidade discursiva sempre estar na dependncia de seu outro, isto , de uma forma

    qualquer de alteridade. Em outras palavras, apenas por fora de uma estratgia de

    facilitao pedaggica podero ser dissociadas noes como as de discurso e

    alteridade, discurso e interdiscurso entendendo-se por interdiscurso o conjunto das

    unidades discursivas com as quais um discurso particular entra em relao implcita ou

    explcita (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2004, p. 286). Assim, nessa

    perspectiva, falar de discursos comunistas s ganha sentido quando, no interior de um

    dado campo, outros tantos perfis discursivos no comunistas seriam possveis4, no

    como mera presena de um real naturalizado, mas precisamente como aquilo que abre a

    possibilidade de sua constituio como alteridade no plano enunciativo (RODRIGUES;

    ROCHA, 2010).

    A relao que aqui se estabelece entre ato de enunciao e produo textual vem

    caracterizar a concepo de discurso defendida por Maingueneau. Com efeito, para o

    autor, discurso (ou prtica discursiva) uma noo que se refere a uma dupla produo

    que tem lugar simultaneamente: a produo de textos e a produo de uma comunidade

    discursiva. Dito em outras palavras, a constituio de uma dada comunidade discursiva

    e a produo textual so as duas faces de uma mesma moeda, no havendo qualquer

    possibilidade de se estabelecer uma relao de causalidade linear entre ambas. Como se

    3 Dada a frequncia de uso do termo na rea dos estudos da linguagem, penso ser adequado contribuir

    para que crpus (forma nica no singular e no plural, a exemplo de lpis) alcance a condio de palavra da lngua portuguesa a ser dicionarizada. Alis, uma rpida busca da grafia crpus no Google acadmico j nos indica ser essa uma iniciativa apoiada por muitos. 4 Posio que no isenta de problemas e que ser preciso repensar, se for considerado que uma srie de

    excluses intervm na produo de toda estrutura binria, e essas excluses nunca encontram espao no

    discurso racional (BUTLER, 2005, p. 24).

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    percebe, o que est em questo, portanto, a natureza da relao entre os textos e as

    assim chamadas condies de produo desses textos: os modos de organizao dos

    homens e de seus discursos so indissociveis, as doutrinas so inseparveis das

    instituies que as fazem emergir e que as mantm. (CHARAUDEAU;

    MAINGUENEAU, 2004, p. 105).

    Como justificar tal concepo de discurso? Devemos lembrar um dos aportes

    fundamentais da pragmtica: a linguagem como forma de ao sobre o mundo. Ora,

    assim como os homens se organizam em sociedade, trabalham, modificam a ordem das

    coisas que os rodeiam, eles tambm produzem linguagem, produzem textos, o que seria

    uma outra forma de atuar sobre esse mundo. A investigao das interaes verbais tem

    contribudo para reafirmar uma tal perspectiva, na medida em que a palavra

    desempenha um papel de regulao/construo do vasto leque de relaes que se

    estabelecem entre os homens: relaes de dominao, de enfrentamento, de definio de

    identidades, de produo de diferentes modos de subjetivao.

    2 LINGUAGEM-REPRESENTAO E LINGUAGEM-INTERVENO:

    QUANDO DIZER INVENTAR

    A concepo de discurso que acolhemos apresenta a vantagem de permitir a

    relativizao do poder da linguagem de representar o mundo para o sujeito. Com efeito,

    retomando Latour (2001), preciso superar a crena em uma certa correspondncia

    entre palavras e estados de coisas, ou seja, superar a crena naquilo que fundamenta o

    que o autor denomina o acordo modernista, a saber, a ideia de que haveria um mundo

    l fora ao qual uma mente tentaria obter acesso. (LATOUR, 2001, p. 133).

    Na verdade, a novidade inaugurada nesse debate reside na possibilidade de

    perceber que a temos um desafio que em muito ultrapassa as fronteiras da Lingustica,

    tal como esta se definiu ao incio do sculo XX. Entramos, por essa via, no debate

    relativo articulao entre linguagem e cognio.

    Tendo definido discurso como prtica discursiva (MAINGUENEAU, 1989),

    definio que pressupe, como vimos, uma reversibilidade essencial entre as duas

    faces, social e textual, do discurso (MAINGUENEAU, 1989, p. 56), devemos afastar

    como inadequada qualquer interpretao que reduza o conceito mera sequncia de

    palavras ou a um contraponto do mundo emprico5. Afinal, no estamos diante de

    uma polarizao entre mundo real e palavras e textos: palavras tambm so

    produo do mundo, o que j se verifica desde o exemplo dos filsofos analticos da

    linguagem dos anos 60, quando, com Austin, se afirma a noo de performatividade da

    linguagem. Afinal, fazemos coisas quando produzimos textos: ao dizer obrigado,

    realizo a ao de agradecer algo; ao dizer prometo te trazer o livro, engajo-me

    efetivamente numa promessa, tornando-me devedor de algum.

    5 Alis, no foi por outra razo que o autor preferiu a denominao prtica discursiva a discurso:

    para evitar a clssica confuso entre discurso e texto.

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    Se discurso tudo isso simultaneamente produo textual e produo de uma

    comunidade , ento, no possvel supor que ele mantenha uma relao de mera

    representao com o mundo: o discurso no pode simplesmente represent-lo porque ele

    no est distanciado do mundo, ou seja, ele tambm participa desse mundo. Seria,

    talvez, prefervel assumir que a linguagem tem, sim, algum poder de representao, mas

    o mundo j no coincidiria exatamente com a representao desse mundo por

    intermdio da linguagem, uma vez que, ao fazer referncia a esse mundo, a linguagem

    congela o tempo, altera distncias, oferecendo-nos um retrato sempre parcial de um

    dado momento, o retrato de uma realidade passada e/ou de uma nova paisagem que no

    coincide com as coordenadas geogrficas de tudo o que pode ser verificado no mundo

    ao vivo. Lembro que evidncias como essas se aproximam da posio assumida pelo

    bilogo Francisco Varela, que, rejeitando uma dimenso ontolgica do conceito de

    representao (isto , recusando o conceito em seu sentido forte, segundo o qual o

    mundo tem uma existncia que antecede o momento de seu conhecimento) aceita,

    contudo, uma acepo fraca (ou pragmtica) do conceito, segundo a qual a

    representao do mundo remete a uma construo ou interpretao desse mundo

    sempre temporria e aberta a problematizaes. Em outras palavras, uma atividade de

    representao que compreende em sua atualizao um processo de inveno (VARELA;

    THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 144). precisamente a essa dimenso de inveno que

    chamei em outros trabalhos, seguindo a lio deixada por Deleuze e Guattari (1995), de

    interveno no mundo: os enunciados s representam o mundo no sentido de

    produzirem uma certa verso desse mundo, ou seja, de intervirem nesse mundo

    (ROCHA, 2006).

    3 NOTCIAS QUE TEMATIZAM O QUE PODE UMA PALAVRA

    Quero tematizar a relao (problemtica) entre discurso e representao,

    recuperando a noo de prtica discursiva (MAINGUENEAU, 1989) para proceder a

    uma leitura que considero relevante de textos que circulam na mdia. Pretendo com isso

    retomar um debate voltado para os estudos da performatividade da palavra, conferindo,

    segundo espero, uma maior concretude ao conceito de prtica discursiva.

    Tendo por meta o que ora anuncio, convido o leitor a tomar conhecimento dos

    textos que figuram em anexo, versando sobre o episdico movimento Cansei, nome

    pelo qual ficou conhecido popularmente o Movimento Cvico pelo Direito dos

    Brasileiros6. No anexo 1, reproduzimos uma notcia publicada no caderno O Pas do

    jornal O Globo de 17/08/2007, intitulada Governador do Piau protesta contra

    declaraes do presidente da Phillips. Muito resumidamente, trata-se da reao de

    descontentamento manifestada pelo governador do Piau diante de declarao prestada

    por Paulo Zottolo, presidente da Philips, ao jornal Valor Econmico: apoiando o

    movimento Cansei e desejando remexer no marasmo cvico do Brasil, Zottolo

    6 Trata-se de movimento surgido em julho de 2007, logo aps o acidente com o voo 3054 da TAM. O

    Cansei se declarava apartidrio e tinha por objetivo a reflexo sobre os motivos do que considera a

    desordem da administrao pblica no governo Lula. Intelectuais de esquerda apontaram o movimento

    como elitista.

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    afirmou que "no se pode pensar que o pas um Piau, no sentido de que tanto faz

    quanto tanto fez. Se o Piau deixar de existir ningum vai ficar chateado". Quanto ao

    anexo 2, intitulado Episdio do preconceito ao Piau, trata-se de fragmento de um

    texto maior localizado na internet que tematiza o movimento Cansei, caracterizando-o

    em seus traos gerais.

    Sobre que fato(s) exatamente se fala nessas notcias? Se tomarmos o exemplo da

    primeira delas, reproduzida no anexo 1, veremos que se trata, na realidade, de algo que

    j se anuncia no ttulo e no subttulo: algum declara algo, e essa declarao gera

    reaes de protesto. Eis o que aqui se anuncia como acontecimento: duas aes que se

    realizam exclusivamente pela linguagem, a saber, as aes de declarar algo e protestar

    contra algo dito. Alis, ambas remetem a um tipo de ao que parece ser a tnica de

    todo o texto, como se verifica ao se recuperar tudo o que dito na notcia:

    (1) o presidente da Philips apoia o movimento Cansei;

    (2) o presidente da Philips concede entrevista ao jornal Valor Econmico;

    (3) o presidente da Philips debocha do Piau em sua declarao;

    (4) o governador do Piau protesta em uma nota contra o deboche do presidente da Philips;

    (5) o governador cobrar em ofcio posicionamento do presidente Lula e do Congresso;

    (6) o presidente da Philips desculpa-se por telefone com o governador do Piau;

    (7) o governador aceita as desculpas;

    (8) o governador solicita retratao pblica;

    (9) o presidente da Philips promete desculpar-se em nota a ser divulgada;

    (10) um site piauiense prope campanha de boicote aos produtos da Philips;

    (11) o site piauiense alega algo como justificativa de sua proposta;

    (12) o presidente da Philips no consideraria importante o mercado piauiense.

    Listando-se as doze aes que constituem a notcia veiculada, algo se percebe em

    comum: todas se caracterizam ou como performativas, ou como aes cuja realizao

    remete a um ato de natureza verbal. Com efeito, aes como declarar, protestar,

    desculpar-se, aceitar desculpas, pedir retratao pblica, prometer retratar-se, alegar

    possuem em comum o fato de realizarem um ato pelo simples fato de serem enunciadas;

    por sua vez, apoiar movimento cvico contra o governo, entrevistar, conceder entrevista,

    debochar, redigir ofcio, cobrar posicionamento, propor campanha de boicote so aes

    que se concretizam por intermdio do uso da palavra.

    Se passamos agora a um outro fragmento de texto tambm veiculado pela mdia

    na mesma ocasio (anexo 2), poderemos ainda ter acesso a uma srie de outras aes

    cujo denominador comum permanecer sendo esse mesmo carter verbal das aes

    realizadas. Vejamos:

    (13) o presidente da Philips no Brasil concede entrevista ao jornal Valor Econmico;

    (14) o presidente da Philips afirma que, ao apoiar o movimento Cansei, deseja remexer no

    "marasmo cvico" do Brasil;

  • ROCHA, Dcio. Representar e intervir: linguagem, prtica discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso LemD, Tubaro, SC, v. 14, n. 3, p. 619-632, set./dez. 2014.

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    (15) o presidente da Philips afirma que "no se pode pensar que o pas um Piau, no

    sentido de que tanto faz quanto tanto fez. Se o Piau deixar de existir ningum vai ficar

    chateado";

    (16) o presidente da Philips pede desculpas ao povo do Piau em entrevista Folha de S.

    Paulo;

    (17) o presidente da Philips diz que seu comentrio foi "infeliz";

    (18) o presidente da Philips se desculpa por "deboche" sobre o Piau;

    (19) o presidente da Philips diz ao governador Wellington Dias (PT) que visitar o Piau;

    (20) divulga-se para a imprensa uma informao: a visita o presidente da Philips ao Piau;

    (21) estudantes quebram dois aparelhos da Philips durante manifestao pblica em uma

    praa de Teresina;

    (22) na manifestao, distribuda uma nota de repdio ao presidente da Philips;

    (23) na nota, diz-se que a afirmao do presidente da Philips foi uma "demonstrao clara

    do preconceito que a elite paulistana tem contra nordestinos";

    (24) UNE e UBES tambm assinam a nota de repdio;

    (25) a Assemblia Legislativa do Piau aprova um decreto considerando o presidente da

    Philips persona non grata no estado;

    (26) a presso pblica faz com que o decreto seja aprovado;

    (27) o ttulo de persona non grata impede que qualquer instituio do poder pblico no

    Piau conceda homenagens ao presidente da Philips;

    (28) as declaraes do presidente da Philips tambm repercutem na Assemblia Legislativa

    do Cear;

    (29) o deputado Toms Figueiredo Filho (PSDB) prope uma moo de repdio contra o

    presidente da Philips;

    (30) o deputado Yala Sena diz que "somos Estados nordestinos e estamos cansados dessa

    discriminao".

    Assim como era o caso do texto anterior, diversos performativos so localizados

    neste segundo texto, o que vem ratificar a compreenso de que se trata de mais uma

    notcia em que a palavra coincide com a ao realizada. Se se perguntasse o que

    acontece neste segundo texto, seria possvel responder que acontecem aes que se

    realizam por intermdio da palavra, a exemplo de aes como pedir desculpas /

    desculpar-se, dizer, divulgar, propor, que so inequivocamente performativos.

    Para alm desses performativos explcitos, ainda se encontram aes cuja

    realizao remete a algo que, no contexto, somente poder ocorrer por intermdio da

    palavra. Explico-me. A ao de apoiar algo pode ser executada por intermdio de um

    gesto fsico, em casos como, por exemplo, ele apoiou a mo sobre a mesa. No

    entanto, sua natureza verbal evidente em ele apoiou o movimento Cansei. O mesmo

    parece ocorrer com enunciados em que se apresentam sintagmas como os seguintes:

    conceder entrevista, remexer no "marasmo cvico", assinar nota, aprovar decreto,

    conceder homenagem, impedir que se conceda homenagem todas elas aes que, no

    contexto em que figuram, s podem se realizar por um ato verbal.

    At aqui, ratifica-se o j conhecido no texto do anexo 1, em que a linguagem no

    pode ser considerada como cumprindo a funo de proceder a mero relato de algo

    anteriormente ocorrido, caracterizando-se, antes, como a prpria ao que se realiza.

    Com efeito, se algo acontece no texto 1, sempre algo que remete a uma ao da

    palavra sobre o mundo: debochar de algum, declarar algo, desculpar-se, alegar algo,

    etc.

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    Contrariando essa onipresena de aes que se atualizam pela palavra, quero aqui

    retomar duas ltimas aes que, ao que tudo parece indicar, realizam-se por um gesto

    fsico de natureza no verbal: (20) o presidente da Philips visitar o Piau; (21)

    estudantes quebraram dois aparelhos da Philips. Como se percebe, visitar uma cidade ou

    quebrar aparelhos so aes que se praticam agindo-se diretamente sobre o mundo

    circundante, por meio de um deslocamento fsico no espao para visualizar algo (visitar

    um local), ou de uma determinada fora que se aplica sobre um objeto de modo a

    danific-lo (quebrar algo). Contudo, parece que, mesmo nesses casos, a dimenso verbal

    no foi suprimida: ainda que seja bastante plausvel perceber nessas duas aes sua

    natureza, digamos, no linguageira, preciso reconhecer que ambas se atualizam e se

    legitimam - em um contexto eminentemente verbal. Com efeito, a visita ao Piau se

    anuncia em um contexto que remete a um pedido de desculpas por parte do presidente

    da Philips; o mesmo se d em relao ao ato de quebrar aparelhos da Philips, que tem

    lugar em meio a uma manifestao pblica de repdio ao que declarara o presidente da

    empresa sobre o Piau. Logo, ambas as aes podem ser consideradas como

    emblemticas de um gesto maior de desculpas ou de acusao que ganha sentido

    apenas por intermdio da linguagem, explicitando-se, desse modo, o ilocutrio, que

    remete quilo que se faz quando se fala: o ilocutrio, por sua vez, explicado por

    agenciamentos coletivos de enunciao, por atos jurdicos, equivalentes de atos

    jurdicos, que coordenam os processos de subjetivao ou as atribuies de sujeitos na

    lngua, e que no dependem nem um pouco dela. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.

    16)

    Quero ainda registrar uma outra singularidade do texto do anexo 2 no que diz

    respeito natureza linguageira das aes que se praticam: para alm dos verbos,

    substantivos como comentrio, deboche, informao, manifestao pblica, nota de

    repdio, afirmao, decreto, presso pblica, declarao, moo de repdio,

    discriminao, mantm preservados os traos de uma certa categoria de eventos que se

    atualizam na (e pela) linguagem.

    Diante da significativa presena de tal categoria de acontecimentos na notcia

    acontecimentos de natureza discursiva, que recuperamos na superfcie dos textos por

    meio de verbos e nomes -, no nos resta seno reconhecer que a funo da linguagem

    aqui no pode ser propriamente representar uma certa conformao de mundo, isto ,

    contar o que acontece no mundo, como se primeiramente se produzisse uma ao (no

    linguageira) qualquer que apenas mais tarde seria reportada por meio das palavras;

    antes, sua funo parece coincidir com a prpria produo e inveno desse mundo,

    uma vez que tudo o que ocorre so ... proferimentos de acusao, de indignao, de

    retratao, de proposio, etc.

    Para finalizar este breve exerccio de anlise, quero observar que a referida

    produo/inveno de uma determinada configurao de mundo pressupe

    necessariamente um certo arranjo ou uma certa qualidade de relaes entre os sujeitos

    que dele participam, instituindo-se, desse modo, alianas e oposies em meio

    polmica criada. No outra coisa o que encontramos quando deparamos com notcias

    como as que compem esse crpus: pistas para trabalhar os embates e as alianas que se

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    travam ininterruptamente. o que se atesta ao se reler o texto do anexo 1, por exemplo,

    no qual podemos identificar sucessivos estgios de alianas e de afrontamentos7:

    Movimento Cansei x governo Lula

    Presidente da Philips + movimento Cansei x governo Lula

    Jornal Valor Econmico + presidente da Philips

    Governador do Piau + piauienses x presidente da Philips

    Governador do Piau + presidente Lula + Congresso

    Presidente Lula + Congresso x presidente da Philips

    Presidente da Philips + governador do Piau

    Presidente da Philips + piauienses

    Piauienses x presidente da Philips

    Tais alianas e oposies entre diferentes agentes so a contrapartida do estado de

    coisas criado por todo o conjunto de aes (de natureza verbal) exercidas nesse

    universo. Ora, a esse respeito, o crpus sobre / com o qual trabalhamos oferece-nos um

    caminho bastante seguro como acesso a uma noo que considero central na perspectiva

    discursiva de Maingueneau: a noo de prtica discursiva. Como j definida

    anteriormente, a prtica discursiva traduz a indissociabilidade constitutiva que se

    verifica entre uma dada produo de textos e a constituio de grupos que, por um lado,

    produzem esses textos e, por outro, so a seu turno tambm por eles produzidos. Como

    vemos, uma breve leitura da notcia do anexo 1 capaz de nos oferecer o que

    denominamos pistas para trabalhar embates e alianas. Se estendssemos nosso

    crpus, incorporando outros textos publicados na ocasio pela mdia8, teramos ainda

    acesso a outras tantas informaes que s fariam alargar esse crculo de alianas e

    afrontamentos: como aliados do presidente da Philips e do movimento Cansei

    incluiramos a Ordem dos Advogados de So Paulo, Distrito Federal e Mato Grosso do

    Sul, o Conselho Regional de Medicina, a FIESP, a Associao Brasileira de

    Odontologia, artistas (Regina Duarte, Hebe Camargo, Ivete Sangalo, Lo Jaime, dentre

    outros), etc.

    A partir das referidas pistas, dois procedimentos poderiam, ento, ser adotados: (i)

    produo de um novo crpus constitudo no mais por textos da mdia versando sobre o

    movimento Cansei, mas por textos em que os prprios participantes dessa rede de

    alianas e embates tomassem a palavra, a exemplo da entrevista concedida pelo

    presidente da Philips Folha de S. Paulo, de depoimentos prestados por atores diversos,

    etc.; (ii) levantamento de hipteses acerca do modo como se constituem tais redes,

    traando-se um breve perfil das comunidades que, no contexto da noo de prtica

    discursiva segundo formulao de Maingueneau, so a contrapartida daquela produo

    textual9.

    7 Nos enunciados que se seguem, o sinal x indica uma relao de oposio; o sinal +, uma relao de

    aliana. 8 Por exemplo, buscar nas referncias a meno ao MOVIMENTO Cvico pelo Direito dos brasileiros,

    documento do qual foi extrado o anexo 2. 9 Penso que a deciso de trabalhar com textos enunciados pelos prprios atores que constituem a rede de

    alianas e afrontamentos traria maior legitimidade a uma investigao interessada pelo conceito de prtica

    discursiva.

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    O que ora se verifica que (quase) nada acontece no mundo relatado nessas

    notcias que no passe pela palavra. pela palavra que se atualizam as aes e, por isso,

    a palavra o agente mesmo que intervm, que modifica, que produz e altera relaes no

    mundo apresentado.

    4 (IN)CONCLUSES: A LINGUAGEM COMO TRANSMISSO DE PALAVRAS DE ORDEM10

    Como vimos, ao se rejeitar a verso forte de representao, rejeita-se, por

    extenso, um certo entendimento de cognio vista como mera recognio, que consiste

    no exerccio concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo

    o mesmo: o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado,

    concebido (KASTRUP, 1999).

    J ao se relacionar linguagem e representao na acepo fraca da palavra,

    assegura-se uma dimenso produtiva de coengendramentos do sujeito e do mundo por

    intermdio da palavra. A linguagem no seria mero instrumento disposio de uma

    mente para re(a)presentao de um mundo l fora espera de ser descoberto,

    garantindo-se, desse modo, uma boa dose de inveno nessa nova modalidade de

    representao. Linguagem para alm da informao e da comunicao, funcionando a

    palavra que se enuncia como palavra de ordem.

    Concluo este artigo refletindo sobre por que opto por uma perspectiva discursiva

    de base enunciativa e por que pretendo reservar um lugar de destaque para a noo de

    prtica discursiva. De modo conciso, trabalhar numa perspectiva enunciativa,

    assumindo um compromisso com a alteridade, com o heterogneo, contribui no sentido

    de fazer implodirem as vises totalizantes sobre o real, possibilitando repensar os

    grandes esteretipos com os quais convivemos; contribui tambm no sentido de

    desnaturalizar o que pode efetivamente ser apreendido como efeito discursivo, em

    posio plenamente compatvel com uma viso performativa da linguagem, entendida

    como essa dimenso do discurso que tem a capacidade de produzir o que ele nomeia.

    (BUTLER, 2005, p. 17)

    Refletir sobre tais questes implica, sem dvida, um compromisso social que nos

    reenvia definio de uma tica do profissional interessado pelo campo da linguagem.

    Implica tambm a construo de um caminho a ser percorrido pelo analista do discurso

    para proceder sua leitura de um dado entorno social, leitura essa autorizada em grande

    parte pelo recurso noo de prtica discursiva, uma vez que ela que nos permite

    fazer hipteses acerca do modo como textos e grupos se interdelimitam. Eis a uma

    tarefa inadivel nos dias de hoje, quando tanto se fala em subjetividades no

    identitrias, mas nunca para retraar um caminho de desnaturalizao dessas

    identidades, explicitando, assim, o processo de sua produo em prticas de diversas

    ordens linguageiras ou outras. E se dizemos tratar-se de uma tarefa inadivel, porque

    ela apenas refora o compromisso tico acima referido.

    10

    Por palavra de ordem entendo a relao de qualquer palavra ou de qualquer enunciado ... com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16)

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    ANEXO 1

    O Globo Caderno O Pas, p. 9 - Sexta-feira, 17 de agosto de 2007

    ANEXO 2

    Episdio do preconceito ao Piau

    Em entrevista ao jornal Valor Econmico, o presidente da Philips no Brasil, Paulo Zottolo

    afirmou que, ao apoiar o movimento Cansei, desejava remexer no "marasmo cvico" do

    Brasil, e afirmou: "No se pode pensar que o pas um Piau, no sentido de que tanto faz

    quanto tanto fez. Se o Piau deixar de existir ningum vai ficar chateado". Mais tarde,

  • ROCHA, Dcio. Representar e intervir: linguagem, prtica discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso LemD, Tubaro, SC, v. 14, n. 3, p. 619-632, set./dez. 2014.

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    Zottolo pediu desculpas ao povo do Piau em entrevista a Folha de S. Paulo, dizendo que

    seu comentrio foi "infeliz". Mnica Bergamo.

    "Presidente da Philips se desculpa por "deboche" sobre o Piau". Folha de S. Paulo. 16 de

    agosto de 2007. Acessado em 6 de outubro de 2007.No dia 17 de agosto, Zottolo disse ao

    governador Wellington Dias (PT) que visitaria o Piau. Aps divulgada tal informao para

    a imprensa, estudantes quebraram dois aparelhos da Philips durante manifestao pblica

    em uma praa de Teresina. Cerca de 50 manifestantes estavam presentes e uma nota de

    repdio a Zottolo foi distribuda. Um trecho do texto, assinado por entidades como UNE e

    UBES, diz que a afirmao do presidente da Philips foi uma "demonstrao clara do

    preconceito que a elite paulistana tem contra nordestinos."Jos Eduardo Rondon e Simone

    Iglesias.

    "Estudantes do Piau fazem ato contra Philips; "Cansei" critica o governo no Sul". Folha de

    S. Paulo. 18 de agosto de 2007. Acessado em 6 de outubro de 2007.Devido presso

    pblica, a Assemblia Legislativa do Piau aprovou um decreto considerando Zottolo

    persona non grata no estado. O ttulo apenas simblico, mas impede que qualquer

    instituio do poder pblico no Piau conceda homenagens a Zottolo. As declaraes de

    Zottolo tambm repercutiram na Assemblia Legislativa do Cear. O deputado Toms

    Figueiredo Filho (PSDB), props uma moo de repdio contra o presidente da Philips.

    "Somos Estados nordestinos e estamos cansados dessa discriminao", disse o deputado

    Yala Sena.

    Fonte:

    Recebido em: 02/12/13. Aprovado em: 21/10/14.

    Title: Representing and intervening: language, discursive practice and performativity

    Author: Dcio Rocha

    Abstract: Based on the concept of discursive practice (MAINGUENEAU, 1989), which sees

    it as the simultaneous production of texts and of a community in a reciprocal relationship

    in which that community produces texts that in turn give visibility to it, this paper explores

    a key point of contact between language and reality. In order to approach two media news,

    the analysis of the performative nature of reported actions (AUSTIN, 1975) and the

    explicitation of singularities of the illocutionary (DELEUZE; GUATTARI, 1995) will be a

    device to argue that, before representing the world, speech is a way of intervening in it.

    Keywords: Discursive practice. Representation and intervention. Performative.

    Illocutionary. News.

    Ttulo: Representar e intervenir: lenguaje, prctica discursiva y performatividad

    Autor: Dcio Rocha

    Resumen: Desde el concepto de prctica discursiva (MAINGUENEAU, 1989), visto como

    la produccin simultnea de textos y de una comunidad en un encuentro marcado por una

    relacin de reciprocidad en la cual una comunidad produce textos que, a su vez,

    garantizan visibilidad a esa misma comunidad, este artculo tiene por objetivo explorar el

    tipo de relacin que se establece entre lenguaje y realidad. Para fines de abordaje de dos

    noticias de medios de comunicacin, el anlisis de la naturaleza performativa de las

    acciones relatadas (AUSTIN, 1975) y la explicitacin de singularidades del ilocucionario

    (DELEUZE; GUATTARI, 1995) sern dispositivos a los cuales se recorrer para sostener

    la tesis segundo la cual, antes de representar el mundo, el discurso es una manera de en

    ello intervenir.

    Palabras-clave: Prctica discursiva. Representacin e intervencin. Performativo.

    Ilocucionario. Noticia.