15 a 18 Janice Caiafa Partilhar - UFRJ · O futuro em jogo Coryntho Baldez E m tempos de corrida...

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Gabinete do Reitor • Superintendência Geral de Comunicação Social da UFRJ • Ano VI • Nº 61 • Junho/Julho de 2011 Janice Caiafa Cacaso A precariedade dos sistemas de transporte público afeta profundamente a relação dos cidadãos com a cidade. Análises acerca do papel dos meios de transporte na produção de espaços coletivos e sua importância para os processos de alteridade ocupam lugar central nos estudos etnográficos de Janice Caiafa Pereira e Silva, professora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, para quem, “o transporte coletivo ajuda a realizar a cidade”. Em entrevista ao Jornal da UFRJ, Janice Caiafa observa como a falta de investimentos na área afeta, particularmente, as populações de baixa renda, que não contam com outras opções para circular no ambiente urbano. Partilhar a cidade 15 a 18 A poesia viverá sempre Em entrevista exclusiva ao Jornal da UFRJ, Tzvetan Todorov, historiador, linguista e ensaísta búlgaro radicado na França, critica o ensino de Literatura baseado exclusivamente na análise das estruturas internas do texto, sem relação com o contexto mais amplo em que a obra está inserida. O futuro em jogo Com menos recursos e condições para produzir suas pesquisas, as Ciências Humanas e Sociais buscam novos caminhos para superar a fragmentação da área e assegurar a sobrevivência do pensamento crítico na universidade. À sombra da lei Operação que matou Bin Laden, além de afron- tar regras de convívio en- tre as nações, tem raízes históricas na doutrina da “supremacia divina” dos Estados Unidos sobre os outros países, de acordo com es- pecialistas. A língua do preconceito Supostos erros de concordância em livro sugerido pelo Ministério da Educação causam polêmica e evidenciam que ainda há muito preconceito contra o uso popular da Língua Portuguesa. Antônio Carlos de Brito, conhecido pelo apelido “Cacaso”, é considerado um dos importantes emblemas da chamada “poesia marginal” brasileira, cuja produção desenvolveu- se por letras de músicas interpretadas pelos amigos Elton Medeiros e Maurício Tapajós. Nós pega o peixe 12 a 14 24 e 25 9 a 11 9 a 11

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Gabinete do Reitor • Superintendência Geral de Comunicação Social da UFRJ • Ano VI • Nº 61 • Junho/Julho de 2011

Janice Caiafa

Cacaso

A precariedade dos sistemas de transporte público afeta profundamente a relação dos cidadãos com a cidade. Análises acerca do papel dos meios de transporte na produção de espaços coletivos e sua importância para os processos de alteridade ocupam lugar central nos estudos etnográficos de Janice Caiafa Pereira e Silva, professora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, para quem, “o transporte coletivo ajuda a realizar a cidade”.

Em entrevista ao Jornal da UFRJ, Janice Caiafa observa como a falta de investimentos na área afeta, particularmente, as populações de baixa renda, que não contam com outras opções para circular no ambiente urbano.

Partilhar a cidade

15 a 18

A poesia viverá sempreEm entrevista exclusiva ao Jornal da UFRJ, Tzvetan Todorov, historiador, linguista e ensaísta búlgaro radicado na França, critica o ensino de Literatura baseado exclusivamente na análise das estruturas internas do texto, sem relação com o contexto mais amplo em que a obra está inserida.

O futuro em jogoCom menos recursos e condições para produzir suas pesquisas, as Ciências Humanas e Sociais buscam novos caminhos para superar a fragmentação da área e assegurar a sobrevivência do pensamento crítico na universidade.

À sombra da lei

Operação que matou Bin Laden, além de afron-tar regras de convívio en-tre as nações, tem raízes históricas na doutrina da “supremacia divina” dos Estados Unidos sobre os

outros países, de acordo com es-pecialistas.

A língua do preconceito

Supostos erros de concordância

em livro sugerido pelo Ministério

da Educação causam polêmica e evidenciam que

ainda há muito preconceito contra o uso

popular da Língua Portuguesa.

Antônio Carlos de Brito, conhecido pelo apelido “Cacaso”, é considerado um dos importantes emblemas da chamada “poesia marginal” brasileira, cuja produção desenvolveu-se por letras de músicas interpretadas pelos amigos Elton Medeiros e Maurício Tapajós.

Nós pega o peixe

12 a 14

24 e 25

9 a 119 a 11

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Reitor Aloisio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen UllerPró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Regina Célia Alves Soares LoureiroPró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton FloresChefe de Gabinete

João Eduardo FonsecaFórum de Ciência e Cultura

Beatriz ResendePrefeito da Cidade Universitária

Hélio de Mattos Alves Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Superintendência Geral de Com. Social Fortunato MauroOuvidoria Geral

Cristina Ayoub Riche

Fotolito e impressão Gráfica Posigraf

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550. Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAçãO mENSAl DA SUPERINTENDÊNCIA GERAl DE COmUNICAçãO SOCIAl DA UNIVERSIDADE FEDERAl DO RIO

DE JANEIRO.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca Jornalista responsável

Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE) Edição

Fortunato mauro Pauta

Fortunato mauro, Coryntho Baldez e márcio Castilho

Redação Aline Durães,

Coryntho Baldez, Daniela magioli, Guido Arosa, márcio Castilho, Pedro Barreto, Rafaela Pereira e

Vanessa SolRevisão

érica Bispo e luciana Crespo Arte

Anna Carolina BayerIlustração

Anna Carolina Bayer, João Rezende,Júlio m. de Castro,

marco Fernandes e Zope Charge ZopeFotos

marco Fernandes Expedição

marta Andrade

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O Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de

espaço, as cartas sofrerão seleção e poderão ser resumidas.

UFRJJornal da 2

Agenda

II Fórum de Gastronomia, Saúde e Sociedade: Gastronomia e Turismo

Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC) da UFRJAuditório Hélio Fraga – Bloco K do Centro de Ciências da Saúde (CCS) - Av. Carlos Chagas Filho,

memória, Documentação e Pesquisa

UFRJ é contemplada com Prêmio Oscar Niemeyer

Daniela Magioli

No último dia 17 de ju-nho foi realizado o even-to que reuniu os ganha-dores do Prêmio Oscar

Niemeyer de Trabalhos Científicos e Tecnoló-gicos do Conselho Re-gional de Engenharia, Arquitetura e Agro-nomia (Crea) do Rio

de Janeiro. Foram 81 trabalhos inscritos e 20 instituições p a r t i c i p a n t e s ,

com representantes de diferentes regiões do estado do Rio de Janeiro. A UFRJ

Junho/Julho 2011

O Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) da UFRJ inaugurou, dia 16/06, o Espaço Alexan-dria. Trata-se de um projeto que, inspirado no ambiente no qual foi assentada a semente da cul-tura ocidental, visa estruturar o diálogo da universidade com a dinâmica atual do conhecimento, sem barreiras disciplinares, o que facilita a efetivação de encontros improváveis.

O CBAE e do Espaço Alexandria se localizam na Avenida Rui Barbosa, 762, Praia do Flamengo, Rio de Janeiro.

CBAE da UFRJ inaugura o Espaço Alexandria

373 - Cidade Universitária Rio de Janeiro

Público-alvo: gastrônomos, turis-mólogos, nutricionistas, estudan-

tes de Gastronomia e Nutrição e profissionais das áreas citadas e da saúde.

Máximo de participantes: 150

A memória Institucional e as suas interfacescom a cultura e a oralidade

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011

16 de setembro de 2011Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ – São Pedro Calmon – Avenida Pauster, 250 - Palácio Universitário - Praia Vermelha – Rio de Ja-neiro

8h30 – Abertura

9h-12h – Mesa-redondaMemória e produção

cultural nas instituiçõesBeatriz Resende (FCC-UFRJ)Beatriz Kushnir (Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro)Regina Abreu (PPGAS-UFRJ e PPGMS-Unirio)

13h-16h - Mesa-redondaOs desafios da produção, conservação e difusão da me-mória oral nas instituições

Paulo Knauss (UFF e Arquivo do Estadodo Rio de Janeiro)Luciana Heymann (CPDOC-FGV)Claudia Mesquita (Museu da Imagem e Som)

Confere certificado de par-ticipação. Inscrições pelo e-mail: [email protected]

IV Seminário

A UFRJ obteve premia-ção pelos trabalhos “Co-nexão Hibrida”, de Bruno Schnellrath; “A concepção de Palmas 1989 (e sua con-dição moderna)”, de Ana Beatriz Araújo Velasques; “A imagem da degradação urbana: Lapa, Rio de Janei-ro”, de Pilar Macarena Teje-ro Baeza; “A poética das di-ferenças na obra de Robert Venturi e Denise Scott Bro-wn”, de Silvio Vilella Colin; e “Por dentro de Copacaba-na: descobrindo os espaços livres do bairro”, de Rogério Goldfeld Cardeman.

contou com cinco trabalhos premiados.

Trata-se de um mérito concedido aos estudantes da área tecnológica selecio-nados por suas unidades de ensino, desde o nível téc-nico até a pós-graduação, premiando os melhores tra-balhos de conclusão de cur-sos com valor acadêmico e/ou potencial mercadológi-co nas áreas de Engenharia, Arquitetura, Agronomia, Geologia, Geografia e Me-teorologia, incluindo tec-nólogos e técnicos de Nível Médio.

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3UFRJJornal da

Junho/Julho 2011 Humanidades

Com menos recursos e condições para produzir suas pesquisas, as Ciências Humanas e Sociais buscam novos caminhos para superar a fragmentação da

.área e assegurar a sobrevivência do pensamento crítico na universidade

O futuro em jogo

Coryntho Baldez

Em tempos de corrida tecnológi-ca e acirrada disputa corporati-va pela superação de marcas de

produtividade, a área de Humanidades parece ter sido deslocada de qualquer função social relevante. Na última década, além de sofrer com a redução do volume de recursos para a pesquisa, comparati-vamente a outros campos de investigação científica, o seu objeto de estudo tornou-se cada vez mais delimitado por uma política pragmática de financiamento de projetos.

Se o mercado supervaloriza as ciências da Vida e da Natureza, incorporando-as à esfera econômica, a produção livre de co-nhecimento e o pensamento crítico – uma histórica tradição das Humanidades – ten-dem a perder força na universidade? Pes-quisadores ouvidos pelo Jornal da UFRJ, mesmo com abordagens distintas, acredi-tam que, de algum modo, a universidade está desafiada a buscar caminhos que pre-servem a autonomia da produção acadê-mica e o intercâmbio entre os campos do conhecimento.

Missão redefinidaDados do Conselho Nacional de De-

senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) mostram que, entre 2001 e 2010, os investimentos de fomento à pesquisa em Ciências Humanas passaram de R$ 9,1 milhões para R$ 36,4 milhões. O cres-cimento é muito inferior ao verificado no mesmo período em várias outras áreas. As Ciências da Saúde, por exemplo, passaram de R$ 9,1 milhões para 71,3 milhões e as Ciências Biológicas deram um salto de R$ 28,2 milhões para R$ 117,5 milhões. Essas áreas, não por coincidência, são de grande interesse para um segmento de mercado sempre à procura de novos produtos: o complexo industrial farmacêutico.

Os números expressam a redefinição da missão da universidade, cada vez mais voltada para a inovação tecnológica e a prestação de serviços, na análise de Rober-to Leher, professor associado da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ e de seu Pro-grama de Pós-graduação em Educação. “Agora, fala-se não apenas em Ciência e Tecnologia, mas em Ciência, Tecnologia e Inovação. Não se trata apenas de um problema semântico ou de nomenclatu-ra, mas da função social da universidade”, avalia o estudioso das políticas públicas para o Ensino Superior. É um processo que se inicia na década de 1990 e culmina

na Lei da Inovação Tecnológica, de 2004, cujo objetivo foi facilitar as parcerias en-tre as empresas e a universidade pública brasileira, destaca Leher, que coordena o Observatório Social da América Latina do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso).

A situação é paradoxal, afirma o pro-fessor da FE, porque inovação tecnológica, historicamente, é compreendida como pesquisa e desenvolvimento (P&D), ati-vidade desenvolvida essencialmente nas empresas. Um estudo da Universidade da

Pensilvânia (EUA) – ressalta Leher – mos-tra que nove de cada dez inovações são produzidas fora da universidade. “Como no Brasil, as empresas nacionais não têm atividade de inovação relevante, à exceção da Petrobras e da Embraer, e as corpora-ções multinacionais não produzem aqui as suas inovações, essa função está sendo transferida para a universidade”, critica o docente.

Em sua opinião, os editais dos órgãos de fomento que financiam as pesquisas estão induzindo as instituições públicas de

Ensino Superior a desenvolver atividades de inovação tecnológica. Mas Leher inda-ga: como pode a universidade se envolver em um processo associado à “fetichização” da mercadoria, que busca torná-la objeto de desejo do consumidor? De acordo com o professor, como as empresas e corpora-ções multinacionais que querem criar os caros setores de P&D no Brasil, a universi-dade está cumprindo um papel de presta-dora de serviços.

“Se as corporações farmacêuticas pre-cisam fazer um levantamento de biodiver-sidade, elas não vão montar um grande la-boratório na Amazônia para realizar a ta-refa. Não apenas porque teriam que inves-tir muitos recursos em laboratórios e con-tratação de pesquisadores, mas também porque é uma iniciativa que gera tensões e desconfianças em relação a registros de propriedade. Quando a universidade faz esse trabalho para a indústria do setor, isso não acontece”, frisa Leher. Segundo ele, são comuns convênios de universidades públi-cas com empresas laranja que negociam patentes diretamente com multinacionais farmacêuticas. “É uma atividade de servi-ços desenvolvida pela universidade brasi-leira que está se generalizando”, condena o pesquisador.

O sonho sob suspeitaLuiz Bevilacqua, professor emérito da

UFRJ e pesquisador do Núcleo de Trans-ferência de Tecnologia (NTT) do Progra-ma de Engenharia Civil (PEC) do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, também vê com preocupação a relação entre os interesses do mercado e a univer-sidade. “Existe toda uma visão de mundo que deu grande força para práticas utili-taristas e imediatistas na universidade. O mundo ficou muito atrelado a resultados econômicos e financeiros, e o progresso ficou associado ao rendimento. Isso, de fato, tem atrapalhado um tipo de produção científica com maior horizonte”, assinala o pesquisador.

Até nas próprias agências de financia-mento, afirma o professor, é comum se exigir resultados imediatos. Mas, segundo ele, a pesquisa mais genuína, aquela mais arriscada, que não produz respostas de curto prazo, é alvo da suspeita dos órgãos de financiamento e, às vezes, da própria sociedade. É um procedimento – acres-centa – que força os pesquisadores a con-

Marco Fernandes

Junho/Julho 2011

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Junho/Julho 2011UFRJJornal da 4 Junho/Julho 2011Humanidades

tribuírem em um ritmo incompatível com a produção de ideias originais.

Se os pesquisadores precisam publicar cinco ou seis trabalhos por ano, cumprem tal tarefa na esteira do conhecimento já produzido, de acordo com o professor da Coppe. “Quebrar barreiras é mais comple-xo, exige mais tempo e paciência. O finan-ciamento desse tipo de pesquisa é difícil, porque tem resultados mais no longo pra-zo. A lógica das agências é não alimentar sonhos. Mas a pesquisa, no fundo, é isso. Algumas pessoas precisam sonhar”, afirma o coordenador do projeto Espaço Alexan-dria, dedicado a reunir grupos de pesquisa interdisciplinar em torno de eixos temáti-cos comuns.

Para Bevilacqua, o Espaço Alexandria, de certo modo, é um contraponto ao uti-litarismo que se estabeleceu na universi-dade brasileira. Contudo, o professor res-salta não estar afirmando que, por si só, é ruim investir em pesquisa tecnológica. Por exemplo, melhorar o desempenho de um automóvel para reduzir a produção de ga-ses de efeito estufa é importante. “Mas não se pode ficar restrito a tal tipo de pesquisa. Precisamos ter liberdade para dar grandes saltos. As teorias que quebram paradigmas surgem, na maioria dos casos, de modo inesperado. Às vezes, se busca uma coisa e,

mas com soluções eficazes para problemas imediatos.

Ao mesmo tempo, o professor da FE frisa que a área de Humanidades sofre um processo de esvaziamento na própria universidade brasileira. “É um fenômeno visível a olho nu na UFRJ. Não podemos permitir a decadência das instalações das Ciências Humanas e Sociais, que é indu-tora da desorganização da área. Cada vez mais, tenho que trabalhar como se fosse um intelectual medieval. Ou seja, tenho que comprar os meus livros, colocá-los nas minhas prateleiras e ficar recluso em casa para pesquisar e escrever. Na Praia Verme-lha, ninguém consegue produzir. É uma situação inusitada, porque a universidade tem a função de socializar o conhecimen-to, mas não podemos fazer isso em nosso espaço de trabalho. Preciso ficar agendan-do encontro com estudantes como se esti-vesse em um consultório médico, ou seja, em horários em que há salas desocupadas”, conta o pesquisador.

Ficar sem verba de órgãos de fomento, segundo o docente, é muito ruim porque a universidade pública brasileira não tem in-fraestrutura própria para apoiar a pesquisa. Para Leher, a degradação das instalações físicas da área de humanidades expressa uma correlação de forças na universidade. “A precariedade da infraestrutura não é ge-neralizada na UFRJ. Muito provavelmen-te, não veremos isso, por exemplo, na área das engenharias, das Ciências da Natureza e da Vida, que estão mais imbricadas com as necessidades do mercado”, observa o pesquisador.

Pensar é arriscarMas, para Luiz Bevilacqua, se é verda-

de que as Humanidades estão perdendo importância, uma parcela de responsabili-dade cabe aos próprios cientistas da área. “Há 30 anos, talvez houvesse um precon-ceito, mas hoje acredito que não existe

no meio do caminho, se encontra outra. É nisso que o Brasil precisa investir”, defen-de Bevilacqua, que deseja fazer do Espaço Alexandria o berço do primeiro Prêmio Nobel brasileiro.

“A universidade está no mundo”Já Marco Antonio Teixeira Gonçalves,

professor e diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, conside-ra que a influência externa que a univer-sidade sofre em todas as áreas do conhe-cimento resulta, muitas vezes, em debates importantes para a sociedade. “A imagem, por exemplo, é um assunto que vem sendo discutido por quase todas as áreas das Ci-ências Humanas e Sociais, como a Filoso-fia, a Comunicação Social, a Antropologia e a Sociologia. Existem questões externas relacionadas à sociedade que se refletem no debate acadêmico. Precisamos enten-der que a universidade está no mundo”, afirma o professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.

Ao comentar o fato de que o financia-mento às Ciências da Natureza e da Vida é mais volumoso do que o destinado às Humanidades, Marco Antonio Gonçal-ves ressalta que é preciso levar em conta a existência de um universo maior de pes-

soas nas engenharias e na Medicina, por exemplo. É uma quantidade que contras-ta, segundo ele, com a menor procura de campos como os de História, Filosofia, Sociologia e Antropologia. “Eu não gosto da ideia de que exista uma desvalorização das Ciências Humanas e Sociais. Esse é um campo com reflexões e propósitos diferen-tes. As profissões das Ciências da Vida e da Natureza já têm ocupações no mercado de trabalho bem definidas, enquanto quem cursa Filosofia ou Antropologia não sabe bem o que poderá fazer. É outro tipo de relação com o mercado”, analisa o antro-pólogo.

Em relação às exigências de produti-vidade acadêmica, Marco Antonio afir-ma que é a única forma de democratizar a produção e a difusão de trabalhos. Para ele, como o dever do cientista é publicizar o seu conhecimento, a publicação de seus estudos em artigos ou livros deve ser algo natural. O professor não concorda com a ideia de que a qualidade fica prejudicada por causa da pressão para publicar. “Nin-guém vai produzir um artigo ruim, por-que precisa fazer uma contagem no CNPq. O que os pesquisadores estão fazendo é tentar tornar mais objetiva sua produção, buscando as melhores condições para pu-blicar em função da atual lógica de pro-dução científica. Mas isso não atrapalha a independência da produção universitária. Inclusive, pode-se não produzir nada e prosseguir como professor. O que estamos discutindo são avaliações extra-universitá-rias por parte de órgãos como a Coorde-nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do Ministério da Educação e do CNPq, que exigem produ-tividade e pontuações. Mas considero que a universidade lida com isso de maneira livre”, destaca Marco Antonio Gonçalves.

Gestão da pobreza?Para Roberto Leher, no entanto, o pen-

samento crítico encontra condições muito difíceis de se desenvolver na universidade brasileira pelo fato de questionar a ordem social dominante. Mas em que sentido esse tipo de reflexão vem sendo sacrifi-cada? Segundo ele, os editais de pesquisa, salvo raros casos, não valorizam as pers-pectivas críticas, mas uma determinada concepção de Ciências Sociais e Humanas que não indagam as causas dos proble-mas enfrentados pela sociedade brasileira. “Particularmente, existe uma proliferação de estudos acerca da chamada pobreza nas áreas de Economia, Educação, Serviço So-cial, Comunicação Social, entre outras. É curioso que essas pesquisas busquem ana-lisar diversas dimensões da pobreza, mas, em geral, não questionem seus fatores de-terminantes. Digo brincando que se trata de um novo campo de estudo: a ‘pobreto-logia’. São especialistas em pobres. Fazem mensurações sobre os níveis de pobreza e estudam políticas focais para subgrupos de pobres”, exemplifica Leher. Segundo ele, as Ciências Humanas e Sociais têm certo apoio para produzir um conhecimento mais operacional, comprometido não ne-cessariamente com a busca da verdade,

Marco Fernandes

Luiz Bevilacqua: “Existe toda uma visão de mundo que deu grande força para práticas utilitaristas e imediatistas

na universidade.”

Como pode a universidade se envolver em

um processo associado à “fetichização” da

mercadoria, que busca torná-la objeto de

desejo do consumidor? Indaga Roberto Leher.

Como pode a universidade se envolver em

um processo associado à “fetichização” da

mercadoria, que busca torná-la objeto de

desejo do consumidor? Indaga Roberto Leher.

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Junho/Julho 2011Junho/Julho 2011 5UFRJJornal da

Junho/Julho 2011 Humanidades

Se as Ciências Humanas e Sociais perderam peso nas políticas de financiamento da pesquisa científica no Brasil, ainda é possível viabilizar uma universidade pública que produza conhecimento livre e crítico em benefício do conjunto da sociedade?

De acordo com o professor da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ, Roberto Leher, talvez o maior desafio, hoje, seja criar condições para que a universidade defina, de forma autônoma, seus problemas de pesquisa e suas linhas de investigação. Ele concorda que determinadas pesquisas interinstitucionais, de maior escopo, sejam objeto de editais, mas diz que aquelas mais cotidianas devem ser decididas no âmbito interno da universidade.

A universidade, segundo ele, deve retomar o poder de definição sobre as suas linhas de investigação não apenas nas Humanidades, mas em todas as áreas. Ele defende a retomada de conceitos de financiamento presentes no CNPq dos anos 1960, quando havia a avaliação de projetos desvinculados de editais, que eram aprovadas por seu mérito intrínseco. “Era a chamada verba de balcão”, lembra o professor.

O projeto Espaço Alexandria (www.espacoalexandria.com.br), segundo o seu coordenador e professor emérito da UFRJ, Luiz Bevilacqua, se insere no conceito de ampla liberdade acadêmica, focando especialmente em áreas incipientes, com pouca investigação e bibliografia. “É uma tentativa de libertar a universidade dos critérios do mercado e dos modelos acadêmicos de pesquisa que priorizam a quantidade e os resultados imediatistas”, explica o professor emérito.

Para facilitar a compreensão do “espírito” do projeto, Bevilacqua relata um fato ocorrido na Universidade do ABC, da qual foi coordenador acadêmico e reitor. Em um concurso na área de Neurociências, uma candidata jovem, com apenas quatro anos de doutorado, no final da sua apresentação acerca da memória, afirmou que gostaria, na verdade, de ter pesquisado a respeito dos processos neurológicos do sonho. Indagada sobre as razões que a impediram de seguir tal caminho, respondeu que não conseguiria publicar seus estudos em revistas científicas, uma vez que o campo é embrionário e tem escassa bibliografia. Caso se dedicasse a estudar o sonho, teria apenas um ou dois artigos publicados e ficaria reprovada no concurso. Para se tornar professora universitária, abandonou seu projeto, estudou outra área e conseguiu publicar 15 artigos. Hoje, trabalha com pesquisas sobre o sonho na Universidade do ABC. “É um exemplo de como o modelo de produtividade acadêmica bloqueia as ideias. O Espaço Alexandria busca acolher exatamente esse tipo de pesquisa”, realça o professor.

Marco Antonio Gonçalves, professor e diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, sustenta que o maior desafio da universidade no século XXI é desfazer a fragmentação do conhecimento. Se o aprofundamento de diversos temas foi reflexo de mudanças sociais e teve papel importante, ele pode gerar, também, um isolamento nocivo. “Tentar aproximar campos que estão no mesmo processo de discussão e não se comunicam, não dialogam, deve ser uma tarefa da universidade”, observa o professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.

Ele considera que, a partir de determinadas questões, a área de Humanidades pode produzir um diálogo bastante frutífero entre diversos campos. Mas como conectá-los? Para ele, o caminho não é, necessariamente, reunir fisicamente as pessoas, mas criar “redes sócio-acadêmicas que façam com que o conhecimento ultrapasse as instâncias de fragmentação. É preciso remontar a produção de pesquisas a partir de outro paradigma”, conclui o antropólogo.

Por um novo modelo de pesquisa

mais. Inclusive a Academia Brasileira de Ciências, que tem tido um papel impor-tante, incorporou a área de Ciências Hu-manas há quatro anos”, enfatiza o professor da Coppe.

Bevilacqua critica alguns pesquisado-res das Ciências Humanas e Sociais – “não todos” – porque dedicam muito tempo para análises do pensamento de outros. No Brasil, diz que, infelizmente, ainda existe a cultura de “teto baixo”. “Precisamos afirmar o nosso pensamento e mostrar ao mundo que temos algo a dizer. Alguns pensadores, como Caio Prado Junior, Cel-so Furtado e Darcy Ribeiro, formularam questões novas e expressaram ideias pró-prias. É preciso que os jovens da área be-bam diretamente nessas fontes, e não em seus intérpretes, e se preparem para for-mular o seu próprio pensamento”, afirma o coordenador do Espaço Alexandria.

Embora saiba que publicar pensamen-tos originais e renovadores é uma tarefa difícil, Bevilacqua afirma que o problema afeta todas as áreas do conhecimento, em diversos países. Depoimentos de professo-res do exterior confirmam que muitos dos seus alunos não conseguem publicar ideias novas porque contradizem teses crista-lizadas de pesquisadores com reputação científica. O professor emérito da UFRJ acha que o Brasil ainda padece daquilo que Nelson Rodrigues identificou como “síndrome do complexo de vira-latas”. Por exemplo, em vez de aumentar o número de bolsas no exterior, Bevilacqua defen-de a importação de jovens pesquisadores estrangeiros, sem campo de trabalho em seus países, para reforçar pesquisas prio-ritárias para o Brasil. “No mundo político, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o único que saiu do Brasil e disse: ‘Eu não sou vira-lata’. Precisamos de alguém que não tem curso superior para agir com independência e altivez em relação aos outros países. Essa postura existe pratica-

mente em todas as áreas e precisa ser abo-lida”, enfatiza o professor emérito.

Estudos fragmentadosEm relação à crítica de que os estu-

dos na área das Humanidades são cada vez mais fragmentados, Marco Antônio Gonçalves afirma que, com o processo de acúmulo de conhecimento e a populari-zação da universidade, muitas pessoas vão estudar os mais diversos campos. Hoje, segundo ele, existem milhares de informações à disposição do pesquisa-dor, o que torna mais difícil o conheci-mento totalizante. “As grandes teorias da sociedade vão, na verdade, deixando de existir no momento em que certas questões se aprofundam e surgem no-vas especialidades. A fragmentação dos estudos tem a ver com a ideia de buscar a profundidade em torno de um tema”, defende o pesquisador.

Marco Antônio exemplifica com o grande boom de pesquisa acerca da vio-lência na década de 2000, quando vários editais da Capes, da Fundação de Am-paro à Pesquisa do Estado do Rio de Ja-neiro (Faperj) e do CNPq foram dedica-dos ao assunto. “Com isso, se engendrou projetos que buscavam compreender o tema em profundidade. Portanto, não sei se a fragmentação é dada pelas agên-cias ou pelo processo social”, analisa o diretor do Ifcs.

Roberto Leher lembra que, depois da II Guerra Mundial, a perspectiva crítica nas Ciências Sociais, particularmente na América Latina, é muito fecunda, chegando, inclusive, a organismos in-ternacionais, como a Comissão Econô-mica para a América Latina e o Caribe (Cepal): “é um momento em que as te-orias da modernização são questiona-das e refutadas por importantes autores como Caio Prado Junior, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Otavio Ianni, entre

agora com a variante do pós-modernismo, que também trabalha com a perspectiva de relativismo epistemológico. É nesse cenário que temos estudos fragmentados e a volta de perspectivas metodológicas que procuram produzir não o que seria a verdade, mas conhecimentos de natureza operacional e que tenham utilidade”, avalia Leher.

outros. Em suma, é um período de pu-jança do pensamento crítico”.

De acordo com o professor, a pers-pectiva crítica na análise da realidade social sofre um refluxo com a queda do muro de Berlim, a dissolução da URSS e a hegemonia neoliberal que se afirma nas décadas seguintes. “É uma espécie de vingança do pensamento neopositivista,

Marco Fernandes

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UFRJJornal da 6 Junho/Julho 2011Comunidade

Vila Residencial

Rafaela Pereira

Quem poderia imagi-nar que na Cidade Universitária existiria

uma vila residencial, com esco-la, igreja, comércio próprio e ruas com nomes de flores? A moradia no campus surgiu antes mesmo da construção da própria universida-de e do aterro que uniu as oito ilhas antes existentes (Fundão, Baiacú, Cabras, Catalão, Pindaí do Ferrei-ra, Pindaí do França, Bom Jesus e Sapucaia).

Por lá moravam pessoas que ajudaram na construção da Ponte Presidente Costa e Silva (Rio-Nite-rói) e, mais tarde, da própria uni-versidade, como Antônio Pereira da Silva (o “seu Tunico”), que veio

a conquista de seu espaçoNem só de vida acadêmica vive a Cidade Universitária da UFRJ. Existe, depois do Parque

Tecnológico, em um terreno próximo à Divisão Gráfica, a Vila Residencial da UFRJ, onde moram

cerca de mil pessoas.

da UFRJ

do Nordeste há 60 anos. “Eu ti-nha amigos que estavam aqui para construir o Hospital Universitário, não existia nada disso e as ilhas es-tavam sendo aterradas. Depois co-mecei a trabalhar na universidade, construí família e fui ficando”, re-lembra o morador.

Tudo começou na época da construção da Ponte Rio-Niterói, quando o local onde hoje está a Vila Residencial era utilizado como canteiro de obras. Com instala-ções provisórias, as casas eram em madeira e ocupavam uma peque-na área. Depois que a Ponte ficou pronta, esse alojamento ficou de-sativado e, logo após, um grupo de funcionários da UFRJ pediu per-

missão para ocupar a área. Havia também, distribuídas pelas ilhas, famílias que usavam a terra para subsistência. Essas foram trans-feridas para onde hoje se conhece como Vila Residencial.

Assim nascia a Vila Residencial. No início, as condições de mora-dia eram precárias. As casas eram de madeira e, até bem pouco tem-po, não existia tratamento de água e esgoto. Os ônibus que servem ao transporte interno da UFRJ lá não circulavam com tanta frequência.

Foi a partir da luta de morado-res e do apoio da Reitoria da que as conquistas foram chegando à área. Em 2009, houve o acolhimento da Vila Residencial na proposta do

Plano Diretor da Cidade Univer-sitária (PD UFRJ 2020), que tem como objetivo a oferta de alterna-tivas de moradia.

Hoje a Vila já possui saneamen-to básico - cujo investimento foi na ordem de R$ 17 bilhões, oriundos de fontes que não são os cofres da UFRJ -, quando chove as ruas não alagam mais e o comércio, que ser-ve também à universidade, vem crescendo. “As obras, a gente con-segue através do Programa de Ex-tensão da Vila, e não pela univer-sidade, institucionalmente. A atual Reitoria, assim como a futura, tem tido uma postura diferente com re-lação à Vila”, aponta Pablo Benetti, professor da Faculdade de Arquite-

Joana Angélica, residente há 33

anos, aponta as melhorias na Vila

Residencial.

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Junho/Julho 2011Junho/Julho 2011 Comunidade

tura e Urbanismo (FAU), membro do Comitê do PD UFRJ 2020 e co-ordenador do Programa de Exten-são da Vila Residencial, vinculado à Pró-reitoria de Extensão (PR-5).

De acordo com Ivan Carmo, atual vice-prefeito da Cidade Uni-versitária, o projeto de urbanização da Vila foi feito pela própria PR-5 e pelo Escritório de Arquitetura FAU. As obras foram realizadas junto com a execução da draga-gem e da despoluição dos canais do Cunha e do Fundão. “O que a gente está fazendo agora é a integração desse sistema com o sistema de sa-neamento. Foi uma intervenção da UFRJ junto ao governo do estado

para começar a promover, pelo me-nos, a higiene básica do local. As-sim, mesmo com a Vila estando em um plano mais baixo em relação à baía da Guanabara, conseguimos recalcar o esgoto e acabar com o problema do retorno”, explica Ivan.

Mais obrasHá ainda a previsão da constru-

ção de uma creche – com custo em torno de R$ 2 milhões e que deve ficar pronta em, aproximadamente, um ano -, e de um Posto de Saúde da Família. “Esse é um projeto que está sendo negociado com a Prefei-tura do Rio e que teve a iniciativa da Faculdade de Medicina (FM),

do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (Iesc) e da Faculdade de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da UFRJ. Ao mesmo tempo, o Co-mitê do PD UFRJ 2020 está nego-ciando a construção de uma Unida-de de Pronto Atendimento (UPA), próxima ao Terminal de Integração Rodoviário”, adianta Pablo Benetti, para atendimento da população da Cidade Universitária.

Para Joana Angélica Pereira, da direção da Associação de Mora-dores da Vila (Amavila), essa foi a realização de um sonho. “Antes a gente não tinha ação do poder pú-blico. Vivemos muitos anos com o retorno de esgoto alagando as nos-

sas casas. E quando solicitávamos uma atuação, recebíamos como resposta que a Vila Residencial es-tava localizada no campus da UFRJ e que era área da União. Apesar de morarmos dentro de uma das maiores universidades do país, a gente vivia em completo abando-no. De 2007 para cá é que a gente percebe as mudanças. E hoje temos a obra de saneamento, uma praça com brinquedos e a regularização fundiária. E será através dessa re-gularização que poderemos cobrar mais do poder público”, aponta Jo-ana, que reside na Vila há 33 anos.Crescimento

Com tantas melhorias, há um aumento na procura por moradias na área e também na valorização das casas. E se antes ela era ape-nas voltada para os funcionários da universidade e suas famílias, hoje não existe mais esse contro-le. “A tendência da Vila é que, nem sempre, os moradores tenham vín-culo com a UFRJ. E é preciso lem-brar que não é uma vila operária, como as construídas pelas fábricas. É claro que o funcionário e o alu-no são os que têm maior interesse no local. O que a gente nota que é ela vem suprir um problema sério de não haver habitação na Cida-de Universitária. Há um servidor novo no Escritório Técnico da Uni-versidade (ETU), engenheiro, que veio de Juiz de Fora (MG), que está alugando uma casa lá. A tendência da Vila é que vire uma área como todas as que existem na cidade”, avalia Pablo Benetti.

E, atualmente, até os estudantes procuram vagas para morar mais perto de faculdade ou escola e não perderem tanto tempo no desloca-mento. “Nossa autoestima cresceu

Tuninho “foi ficando” e formou

família na Vila.

“A relação

agora é de

convivência. É

mais um apoio

do que uma

atuação na

manutenção.”Ivan Carmo

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Junho/Julho 2011UFRJJornal da 8 Junho/Julho 2011Comunidade

e os moradores estão melhorando suas casas para receberem os es-tudantes que moram longe ou que não conseguiram vaga no Aloja-mento Estudantil. Temos uma ca-racterística de cidade do interior, e isso tem atraído às pessoas para cá. Os estudantes agora ajudam a reforçar as nossas reivindicações”, acredita Joana Angélica, da Ama-vila.

Seguindo regras já pré-deter-minadas, os alunos vivem em uma espécie de “república”. Thiago Fei-jó faz licenciatura em Matemática, morava em Guaratiba e optou pela Vila para não perder tempo nos en-garrafamentos: “Queria vir para cá há mais tempo, mas somente agora achei lugar”. Mariana Melo, estu-dante do 3º período de Biofísica, mudou de Itaipuaçu, no município de Maricá, para a Vila, pelo fato de gastar cerca de cinco horas de sua

casa até a Cidade Universitária. “Aqui é mais perto e bem mais ba-rato. Tem boa segurança e, às vezes, ficamos na praça conversando com o pessoal da república que ninguém mexe”, informa Mariana.

Marta Dias é a dona da casa em que Mariana e Thiago estão mo-rando. Segundo ela, mesmo que dê mais trabalho, arrumou “um mon-te de filhos”. Marta avalia que até ganha dinheiro, mas, na verdade, quer ajudar os estudantes de algu-ma forma: “Sempre procuro vagas para estágios. Gostaria que aqui fosse instalada uma biblioteca. Eu sempre penso no bem-estar dos es-tudantes. Eles perdem muito tem-po no trânsito e não conseguem estudar”.

E a UFRJ, ao mesmo tempo em que incentiva o crescimento, fisca-liza. Há uma política de controle de expansão. “Como há a possibi-

lidade de se ampliar as casas em direção ao manguezal, qualquer notificação de nova construção ou ampliação pode ser embargada. E essa conscientização de que não se pode invadir a área de mangue é uma cultura dos próprios morado-res. Porém, sempre aparece um que tenta burlar”, destaca Ivan Carmo.

Inclusão socialEscola de Enfermagem Anna

Nery (EEAN), Faculdade de Me-dicina (FM), Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC), Instituto de Biologia (IB), Escola Politécni-ca (Poli) e Escola de Serviço So-cial (ESS) são alguns dos exemplos da atuação de unidades da UFRJ na Vila Residencial. A EEAN, por exemplo, atua na Vila há cerca de 20 anos levando as campanhas de vacinação para a população local e, por seus estudantes, faz o acom-

panhamento da saúde integral da família. A Faculdade de Medicina tem o ambulatório social, que pres-ta atendimento quinzenal na Ama-vila. “A Escola Politécnica oferece curso de Informática e, agora, tam-bém trabalha com um projeto de inclusão digital através do Conse-lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Outro projeto é a aula de música aos sábados, com o patrocínio da Petrobras. Através dessa articula-ção da PR-5, estão surgindo outros projetos”, revela Joana Pereira.

Outro projeto conta com a par-ticipação da Faculdade de Odon-tologia (Odonto), que vem atender a uma nova demanda da comuni-dade: “Começou quando viemos aqui estabelecer um programa de prevenção oral. Percebemos as ne-cessidades e vamos começar o tra-balho de Assistência Social com vi-sitas domiciliares e programas para idosos e crianças”, explica Márcia Carvalho da Silva, assistente social da Odonto.

Uso do soloDe quem é a responsabilidade

de cuidar da Vila Residencial da UFRJ? De acordo com Pablo Be-netti, o terreno da universidade deve ser usado essencialmente para a função institucional. No caso, a Vila poderia ser caracterizada como um bairro, sem vinculação institucional direta, mesmo que ali morem servidores e estudantes. O fato é que geopoliticamente, o “bairro” pertence à XXª Região Ad-ministrativa da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Ivan Carmo explica que desde 2003 que a universidade não cui-da diretamente da Vila Residencial, uma vez que não é patrimônio da universidade. “A relação agora é de convivência. É mais um apoio do que uma atuação na manutenção. Porém, no passado a gente já fez mais. Na década de 1990, existia até uma Sub-prefeitura lá. Infelizmente demorou-se em caracterizar que essa não era uma tarefa da UFRJ”, declara o futu-ro prefeito da Cidade Universitária.

Benetti explica que, legalmen-te, esse terreno ainda é da UFRJ. Existe o processo de regularização fundiária, mas até ser concluído, a UFRJ é a responsável pelo espaço. “Deixaremos de ser responsáveis quando a Vila passar a ser parte le-gal da cidade do Rio de Janeiro. No momento é um bem da União, que não poderia ter uso habitacional. A política da UFRJ com a Vila sempre foi oscilante. Desde a época em que se criou uma Subprefeitura apenas da área. O problema é que isso não é institucional e, caso não se resol-va, vai sempre depender do ‘humor’ da Administração Central”, explica o professor da FAU.

Mariana Melo destaca o fato de morar perto de seu local de estudos.

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Junho/Julho 2011

Operação que matou

Bin Laden, além de

afrontar regras de

convívio entre as

nações, tem raízes

históricas na doutrina

da “supremacia

divina” dos Estados

Unidos sobre os outros

países, de acordo com

especialistas.

À sombra da lei

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Junho/Julho 2011UFRJJornal da 10 Junho/Julho 2011Internacional

Um ciclo sem fim?

Coryntho Baldez

A operação secreta do governo estadunidense para matar Bin Laden, no dia 1º de maio,

transgrediu as regras mais banais do Direito Internacional. Sem pedir licença, um Estado

invadiu o território de outra nação soberana – o aliado Paquistão – e executou, sem

julgamento, aquele que considerava seu inimigo número um. E mais: admitiu ter praticado

tortura para obter informações sobre o paradeiro do líder da al-Qaeda, apontada como

a maior rede terrorista do mundo e assumidamente responsável pelo ataque, em 11 de

setembro de 2001, às torres gêmeas do World Trade Center (WTC), em Nova Iorque.

Ao comentar a possibilidade de o assassinato de Bin Laden, em vez de estancar, alimentar o ciclo do terror, Arthur Bernar-des do Amaral, pesquisador do Grupo de Acompanhamento e Análise do Terrorismo Internacional do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (Tempo) da UFRJ, afirma que o episódio, na verdade, implicou um duro golpe à rede al-Qaeda. “O saudita era o Emir do grupo, sua principal liderança política, de perfil caris-mático e grande responsável por mobilizar uma ampla rede de apoiadores econômicos à organização. Sua morte significa o fim de uma era para ela, pois gera um vácuo de poder em sua estru-tura que demorará a ser preenchido”, comenta o cientista social.

Segundo ele, em um cenário de fragmentação interna e dis-puta entre diversas lideranças regionais, o critério nessa “corri-da” pelo poder poderá ser quem consegue operar mais ataques contra os inimigos da organização. “Caso ocorram, é mais pro-vável que sejam realizados no médio prazo, pois qualquer ação nesse momento encontraria os governos ocidentais e de países considerados ‘apóstatas’ no Oriente Médio e na Ásia Central com suas “guardas levantadas”, avalia Bernardes.

Embora ressalte que possa haver algumas ações pontuais contra os países mais vulneráveis e próximos às bases da al-Qae-da, como Paquistão, Afeganistão e Arábia Saudita, o pesquisador acredita que ataques contra alvos na Europa e Américas serão, ao menos no curto prazo, menos prováveis.

O episódio é apenas mais um na longa tradição dos Estados Unidos

da América (EUA) de usar a força além de suas fronteiras para resol-ver problemas ligados à sua política externa. Exemplo recente foi a inva-são do Iraque, em 2003, sob o pre-texto de que o governo de Saddam Hussein possuía armas de destrui-ção em massa e era uma ameaça ao mundo – a tese foi desmentida pelos fatos, mas o país prossegue ocupado. Sustentada pela ideologia que invoca a “supremacia divina” dos EUA sobre os outros países, que remonta ao século XIX, essas ações beligerantes do governo – pelo menos em um primeiro mo-mento – acabam recebendo apoio interno. A operação no Paquistão não foge à regra: veio a calhar para recuperar o prestígio eleitoral do presidente Barack Obama e aproxi-má-lo até mesmo de eleitores con-servadores. Afinal, foi o democrata que cumpriu a promessa do repu-blicano George W. Bush de matar Bin Laden.

Um êxito para ObamaDo ponto de vista do país nor-

te-americano, a investida contra o complexo de Abbottabad, onde Bin Laden estava escondido, foi um su-cesso, de acordo com Arthur Ber-nardes do Amaral, do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (Tempo), vinculado ao Departa-mento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ. Ele afirma que a operação foi feita de maneira discreta e ex-tremamente efetiva, conseguindo pôr fim a uma perseguição que já durava aproximadamente uma dé-cada. “Obviamente, o modo como a ‘Operação Lança de Netuno’ foi conduzida gerou reações positivas e negativas, pois os EUA não co-municaram ao governo paquista-nês seus planos, gerando um claro mal estar diplomático entre as duas nações”, ressalta o pesquisador do Tempo.

Segundo Bernardes, a ação foi uma vitória política de grande peso do presidente, credenciando-o à

reeleição em 2012. Ele avalia que o êxito de Obama no campo da se-gurança, que tradicionalmente se considera como área de expertise dos republicanos, dá grande cré-dito ao líder democrata. “Com a morte de Bin Laden, Obama teria feito contra a al-Qaeda, em apenas dois anos na Casa Branca, mais do que Bush fizera ao longo de dois mandatos. É razoável pensar que a operação não gera tensões di-plomáticas ou problemas de segu-rança mais profundos para os EUA na Ásia Central, mas, sem dúvida, o evento será elemento importan-te da política interna dos EUA no futuro próximo”, analisa o cientista social.

De acordo com Marco Antonio Scarlecio, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Uni-versidade Católica (PUC-Rio), do ponto de vista da norma do sistema internacional, a ação do serviço se-creto dos Estados Unidos para ma-tar Bin Laden foi “complicada”, pois o Paquistão é um país soberano e os

EUA atuaram lá sem aviso prévio. “Eles entraram, distribuíram tiros, eliminaram pessoas, apossaram-se de informações e saíram sem dar maiores satisfações. Do ponto de vista operacional, tudo isso se deu em função de a liderança do país norte-ame-r i c a n o não con-fiar com-pletamente nos dirigen-tes do Paquistão. É mais um episódio da relação ambí-gua entre os dois países”, afirma o especialista em as-suntos de Defesa.

Destino divino?Ao analisar as raízes da opera-

ção, o professor Luiz Antonio Si-mas, mestre em História Social pela UFRJ, afirma que o proces-so de formação da identidade nacional dos Estados Unidos

“tem como contexto fundamental a expansão territorial do século XIX, com a mítica ‘Marcha para o Oes-te’”. Ele explica que a base ideoló-gica da conquista de territórios foi a doutrina do “Destino Manifesto”, amplamente difundida nos EUA ao

lon-go do século XIX.

Segundo Simas, a dou-trina informa que o povo estadu-nidense é predestinado por Deus para expandir o seu território e levar, além das fronteiras naturais, os princípios fundadores da nação. “O sintetizador da doutrina foi o jornalista John L. O’Sullivan, que a expressou em um famoso ensaio chamado Annexation. Uma das suas passagens, diz o seguinte: ‘O Destino Manifesto é um ideal mo-ral superior que se sobrepõe a ou-tras considerações, incluindo leis e acordos internacionais’. A expan-são, portanto, era o cumprimento de uma missão divina. Isso está tão arraigado na alma dos EUA que não há como não lembrar de Ge-orge W. Bush rezando salmos para definir as estratégias de invasão do Afeganistão e do Iraque”, analisa o professor.

Arthur Bernardes do Amaral lembra que a lógica do “Destino Manifesto” bebe diretamente em alguns mitos fundacionais da na-ção. Entre os principais, cita o mito da “Providência Divina”, segundo

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Junho/Julho 2011Junho/Julho 2011 11UFRJJornal da

Junho/Julho 2011 Internacional

o qual Deus favo-receria os colonos,

protegendo-os dos perigos naturais e das ameaças desco-

nhecidas no novo continente. “Ha-via também o mito da ‘Missão na Natureza Selvagem’, de acordo com o qual os colonos teriam de retri-buir esse favor divino levando a luz às trevas do continente, a ordem ao caos, impondo a sua presença aos vazios. Por fim, havia, também, o mito da ‘Cidade na Colina’, que, com base nos dois mitos anterio-res, afirmava que as colônias na América do Norte seriam como uma cidade na colina, que é obser-vada por todos ao seu redor e que, consequentemente, serve de exem-plo e modelo para todos os demais, que devem copiá-la, já que é ela o exemplo mais perfeito de comuni-dade que atende aos desígnios di-vinos”, assinala o pesquisador do Tempo.

Segundo Bernardes, esses mitos cimentaram a ideia de que os Esta-dos Unidos seriam uma nação ex-cepcional – “não apenas diferente, mas melhor” –, que teria o direito e o dever de atuar sobre o mundo para ativamente transformá-lo e fazê-lo à sua imagem e semelhança. “A noção de que os Estados Unidos são superiores enquanto mode-lo de comunidade política funda-

mentaria o intervencionismo de George W. Bush, ao defender que a exportação da democracia serviria como panaceia universal”, afirma o cientista social da UFRJ.

O inimigo externoContudo, a lógica da supremacia

estadunidense, para Bernardes do Amaral, tem sido relativizada pelo atual governo. “Barack Obama assu-me uma retórica de relativa humilda-de e maior multilateralismo, se com-parado com seu antecessor. Mas até mesmo ele argumenta que, em um mundo permeado por diversas ame-aças, a liderança dos Estados Unidos continua sendo indispensável, muito embora ele não possa liderar sozi-nho”, observa o pesquisador.

Já Marco Antonio Scarlecio acre-dita que o episódio pode ser expli-cado pelo fato de os Estados Unidos ocuparem a posição de mais impor-tante potência capitalista do mundo, não tendo vínculo imediato com a ideologia do “Destino Manifesto”. “Boa parte dos estadunidenses ado-raria não ter seu país engajado dire-tamente em questões mundiais”, ava-lia o professor.

No entanto, para Simas, ao difun-dir a doutrina do “Destino Manifes-to” como um dos fundamentos da nação, os Estados Unidos também vão construir outro poderoso mito de unidade nacional: a ideia de que o sonho americano de expansão da liberdade é constantemente ameaça-do por inimigos externos, contra os quais o povo da América, escolhido

por Deus, deve se unir.Os inimigos externos, segundo

ele, vão se modificando através dos tempos: “De início, foram os índios que viviam há milhares de anos nas terras cobiçadas pelos Estados Uni-dos. Um pouco depois, a ira expan-sionista se voltou contra os latino-americanos. Para lidar com os “cuca-rachas”, o presidente Ted Roosevelt recomendou, em 1903, a utilização de um grande porrete (big stick), que os obrigasse a reconhecer a lideran-ça dos EUA”. Em boa parte do século XX - continua Simas -, durante pelo menos 40 anos, o inimigo foi o comu-nismo – “falo dos tempos da ‘Dou-trina Truman’, base da atuação dos EUA durante a Guerra Fria”. E com a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o ini-migo externo foi redefinido. “A ame-aça maior ao sonho americano nos dias atuais é o terrorismo”, observa o professor.

Para Simas, é emblemático que a recente operação que terminou com a execução de Bin Laden tenha se referido ao “inimigo número um da

América” como “Gerônimo”, chefe apache de meados do século XIX que liderou o combate contra os pionei-ros norte-americanos durante a ex-pansão territorial dos Estados Uni-dos. Ele ressalta que Gerônimo foi considerado um índio renegado pelo governo dos EUA por lutar contra a entrega dos territórios indígenas e o confinamento dos nativos em reser-vas federais. “Há que se considerar que os povos apaches começaram a ocupar as planícies da parte central e do sudoeste da América do Norte por volta do ano de 850. Portanto, cerca de mil anos antes da doutrina do ‘Destino Manifesto’ afirmar que Deus designou aos Estados Unidos o direito de conquistar aqueles territó-rios”, lembra o pesquisador.

É mais impactante ainda per-ceber, de acordo com Simas, que o presidente dos EUA se vangloriou de ter recebido a mensagem cifrada da execução de Bin Laden com a fra-se “Gerônimo morreu em combate”. “O racismo explícito que marcou a postura dos desbravadores do Oes-te e dos governos contra os índios apaches revive na operação autoriza-da pelo presidente negro”, assinala o mestre em História Social.

“Nós contra eles”Arthur Bernardes do Amaral

considera que a figura de um inimi-go externo é uma constante quando olhamos para diversas retóricas de mobilização nacional. “Isso ocorre tanto no caso dos Estados Unidos como no caso de outros países, para os quais os próprios Estados Unidos são esse inimigo externo. Não há inocência nesse tipo de acusação”, afirma o cientista social.

Para ele, a questão principal é o resultado desses discursos. Ao mo-bilizar sentimentos do tipo “nós contra eles”, afirma, os líderes po-líticos podem ser autorizados por seus respectivos públicos eleitores a tomar medidas extremas que não seriam sequer cogitadas em outros momentos.

Isso ocorreu com muita clare-za nos Estados Unidos – lembra Bernardes – quando o presidente Bush chegou a ter 90% de aprova-ção popular pouco mais de uma semana após os atentados de 11 de setembro: “Foi a maior taxa de aprovação da séria histórica que é medida desde 1932 pelo Pew Re-search Center (organização inde-pendente de pesquisa de opinião pública). Foi com base nesse maci-ço apoio popular e em um discur-so que apresentava o terrorismo como uma ameaça que deveria ser combatida a qualquer custo que o governo estadunidenses aprovou o chamado Patriot Act. A medida flexibilizou uma séria de direitos civis em nome do combate ao ter-rorismo e foi renovado por mais quatro anos no final de maio”.

“Eles entraram,

distribuíram

tiros, eliminaram

pessoas,

apossaram-se de

informações e

saíram sem dar

maiores satisfações.

Do ponto de

vista operacional,

tudo isso se deu

em função de a

liderança do país

norte-americano

não confiar

completamente

nos dirigentes do

Paquistão. É mais

um episódio da

relação ambígua

entre os dois

países”

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Junho/Julho 2011UFRJJornal da 12 Junho/Julho 2011Forma & Sentido

Um dos mais influentes pensadores acerca dos estudos literários, o historiador, linguista e ensaísta búlgaro Tzvetan Todorov esteve no Rio de Janeiro, em junho, para participar de um ciclo de palestras, tendo como tema central o lugar da poesia na sociedade contemporânea. O evento “Forma e Sentido”, realizado no teatro Oi Futuro, no Flamengo, reuniu, com o apoio e participação da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, outros intelectuais, como a professora e crítica literária estadunidense

Marjorie Perloff, o poeta francês Michel Déguy e o músico e ensaísta brasileiro José Miguel Wisnik. Com curadoria do poeta, filósofo e ensaísta Antônio Cícero, o encontro procurou discutir a produção literária no ambiente das novas tecnologias e as possibilidades da leitura diante da frenética e veloz vida moderna.

Em entrevista exclusiva ao Jornal da UFRJ, Todorov critica o ensino de Literatura baseado exclusivamente na análise das estruturas internas do texto, sem relação com o contexto mais amplo em que a obra está inserida. O problema, segundo ele, afasta as novas gerações do prazer da leitura, privando-as de “uma das melhores heranças da humanidade”. O pensador, radicado na França desde 1963, também aborda o sentido à existência que os livros são capazes de imprimir e o futuro das obras literárias no cenário das novas tecnologias. Independentemente do suporte, Todorov confia na imaterialidade do texto. “A poesia viverá sempre, ainda que o poema esteja gravado numa rocha. O importante é o espírito humano, e o espírito é imortal”, destaca o historiador, autor de cerca de 30 livros.

Tzvetan Todorov

Marcio Castilho

Jornal da UFRJ: O senhor viveu até o início dos anos 1960 na Bulgária, país do bloco comunista. Até que ponto aquele contexto o influenciou nos pri-meiros estudos em que faz uma aplica-ção direta do estruturalismo no campo da Literatura? Quais as dificuldades de produção literária e cultural naquele país?

Tzvetan Todorov: A vida cultural e a vida intelectual em um país totalitário são diretamente controladas pelo apa-relho do partido. E os estudos literá-rios, assim como a Sociologia, a Filoso-fia, a Economia, as Ciências Humanas e Sociais eram afetados. Dessa forma, a Literatura que nós estudávamos tinha um objetivo preciso: mostrar que ela servia para ilustrar e confirmar a ideo-

A poesia viverá sempre

escapasse da ideologia. Essa parte era a materialidade do texto, ou seja, o ma-terial linguístico. Portanto, eu diria que o contexto teve uma influência muito forte. Nós éramos orientados ou a ilus-trar a ideologia do ambiente ou entrar num tipo de neutralidade que não po-deria ser nada além de formalista. Po-díamos contar as sílabas de um verso e dizer se ele tinha um ritmo dactílico ou iâmbico, observar as figuras retóri-cas que eram empregadas. Evidente-mente, é possível se interessar por esse tipo de estudo, mas não é o principal sentido do estudo de Literatura.

Jornal da UFRJ: O senhor se mudou para Paris, tendo concluído seu dou-torado com Roland Barthes em 1966. Como percebeu a nova realidade em

país democrático e como esse novo con-texto – mais pluralista e sem doutrina-ções ideológicas – afetou sua produção no campo da Literatura?

Tzvetan Todorov: Para quem vivia num país comunista daquela época, o maior sofrimento era o fato de que, nas lojas, não havia nada. As prateleiras estavam sempre vazias. Quando des-cobríamos que as batatas haviam apa-recido numa loja, toda a cidade de Só-fia partia para encher a dispensa com batatas. Num determinado momento, escutávamos que, do outro lado da cidade, havia cebolas, e nós íamos ra-pidamente para lá comprar cebolas. Inevitavelmente, a primeira impressão que se tem quando se chega a um país do Ocidente é que as lojas tinham de

logia oficial, nessa época, o marxismo-leninista. No entanto, essa operação não valia a pena, porque as coisas eram muito simplificadas, muito esquemáti-cas. As obras de Marx não eram lidas nunca. Era um tipo de catecismo que era necessário aprender. Fiz o Ensino Superior em Literatura na Universida-de de Sófia. Para alguém como eu, um jovem comum que amava a Literatura e que queria fazer de seu estudo sua profissão, havia esse grande obstáculo. Tudo o que se podia fazer era reiterar a ideologia corrente e afirmar que o povo é assim, que o capitalismo é da-quele jeito, que a história levava a essa direção, o que não era muito excitante. Um pouco graças ao contato com os li-vros ou com as pessoas, tive a ideia de procurar uma parte da Literatura que

Marco Fernandes

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Junho/Julho 2011Junho/Julho 2011 13UFRJJornal da

Junho/Julho 2011

tuir uma antologia dos textos deles e traduzi-la para o francês. Essa tradu-ção do russo para o francês, ainda que eu fosse búlgaro, foi minha primeira manifestação intelectual. A antologia caiu em um terreno favorável, por-que na França começava a moda do estruturalismo, notavelmente através da obra de Claude Lévi-Strauss, um grande etnólogo que viveu no Brasil, e também de alguns linguistas tradu-zidos, como Jakobson, entre outros. Traduzir os formalistas russos deu a impressão de que agora havia um in-grediente literário. Então essa ideia foi bem acolhida. Fiquei bem visto pelos colegas, por pessoas como Ge-rard Genette, Roland Barthes e outros menos conhecidos, que me encoraja-ram a fazer exatamente esse tipo de estudo. Então, dessa forma, continuei o que eu fazia na Bulgária e em con-dições infinitamente mais favoráveis, porque poderia fazer o que quisesse sem me preocupar com a censura.

Jornal da UFRJ: O senhor dirigiu du-rante muitos anos a revista Poétique. Já havia nesse momento uma preocu-pação sobre a forma pela qual as obras literárias estavam sendo representadas como objeto de linguagem fechado. Po-deria comentar essa fase?

Tzvetan Todorov: Criei essa revista com Gerard Genette. Não queríamos afirmar que a obra literária era um objeto fechado em si mesmo, como diz a questão. Apenas pensávamos que, para ler bem uma obra literária, não bastava reunir informações so-bre o contexto. Era necessário tam-bém ocupar-se muito dessa obra em si. Então, o que nós queríamos era completar o que já existia com um estudo interno da obra e não eliminar tudo o que fosse externo. Para provar, eu diria que, entre os estudos de obras que fiz nessa época, havia alguns que eram mais for-mais e outros que falavam do sentido e da ideologia que esse texto continha. Obras de James, Dostoievski ou de auto-res como Conrad me pareciam revelar melhor seu sentido se eu pudesse levar em conta também a estrutura, a análise interna. Mas era uma coisa e outra. Nos-sos admiradores ou discípulos muito rapidamente sistematiza-ram o que nós fizemos para elabo-rar uma espécie de catecismo estru-turalista que desempenhou, por sua vez, um papel importante, sobretudo no ensino. Eu diria que menos na crítica, mas no ensino isso se tornou uma espécie de receita. Nunca houve a intenção, nem por Genette nem por mim, de obrigar os alunos a aprender as seis funções da linguagem de Jako-bson, os quatro valores de Greimas, as 24 situações dramáticas etc. Isso é um

tipo de redução da Literatura ao estu-do do inventário retórico. Nós pensá-vamos que era necessário melhorar os instrumentos de análise, mas não pen-sávamos substituir o estudo das obras pelo estudo do instrumento.

Jornal da UFRJ: Em seu livro A litera-tura em perigo (Difel, 2009), o senhor escreve que o prazer da leitura teria sido substituído pelo prazer da “engenhosi-dade analítica”, ou seja, um modelo que privilegia o “texto como um mundo à parte”. Como avalia o ensino da Litera-tura hoje?

Tzvetan Todorov: Meu ponto de vista hoje é que não há uma ruptura entre a Literatura e o mundo em que vivemos. Ela deve ser vista seriamente e não como um brinquedinho, um pequeno objeto bem construído que nós pode-mos admirar por sua engenhosidade. Ela é muito mais ambiciosa, é um meio de conhecer o ser humano, a sociedade humana, a condição humana. Um meio que não é o da Ciência, da Filosofia e que, por essa razão, não pode ser redu-zido a sentenças, como eu poderia dizer “sim ou não”, “verdadeiro ou falso”, mas que tem forças muito próprias que são as forças da imagem, do discurso, do ritmo, da sonoridade, que nos permitem reve-lar esse mundo que nos permeia melhor que qualquer outro modo. Formulei pouco a pouco a noção de que a Litera-tura é primeira Ciência Humana. Bem antes da Sociologia, da Psicologia ou da História, Homero, os poetas que inven-taram o livro de Jó ou os evangelhos, as tragédias gregas ou a narrativa histórica

já desejavam compreender melhor o humano. Diria que, se a Literatura não tivesse essa ambição, não leríamos mais os autores do passado, não teríamos o prazer de brincar com jogos do século V. Se nós lemos Quixote, Shakespeare ou Guy de Maupassant, é porque nós temos a impressão de que, através das perso-nagens deles, através dessa alteridade, podemos descobrir melhor o que nós mesmos somos, a vida que nos envolve, o nosso mundo.

Jornal da UFRJ: Quais as razões histó-ricas que levaram professores e críticos literários a privilegiar uma visão reducio-nista da Literatura, ou seja, uma visão do ensino da Literatura apenas como forma de acesso aos gêneros literários ou como tentativa de classificação da história da Literatura por períodos, em detrimento da leitura dos textos propriamente ditos?

Tzvetan Todorov: Penso que o leitor comum que não fez estudos literários ou que não vai à universidade lê a Literatura sempre da mesma maneira, e lê para se distrair, para ter prazer. Mas, ainda as-sim, quando lê um grande romance ou um poema – porque isso acontece ainda –, ele tem a impressão de que essa obra fala com ele. Mas você tem razão de per-guntar por que ela teve essa evolução. Na universidade ou na escola, mesmo fora desses espaços, há a concepção de que a Literatura mudou. Apresento em meu livro algumas hipóteses, porém é uma grande questão, e eu não posso garantir que aquelas hipóteses são as melhores. Acho que uma das razões é o impacto do

tudo, o tempo todo. Podia-se dizer que “é uma fraqueza ser tão sensível aos bens materiais e assumir o papel de consumidor” ou que “vivemos nesse maravilhoso país de ideais comunistas e você não deve se queixar porque não há ovos ou manteiga nas lojas”. Acre-dito que esse ponto de vista é muito superficial. Na realidade, era uma hu-milhação cotidiana para a população, que não podia satisfazer suas necessi-dades mais imediatas. Então, essa pri-meira impressão foi um baque. Essas pessoas de quem ouvíamos dizer que sofriam sob o jugo capitalista podiam ir a todas as lojas enquanto nós, que vivíamos no paraíso comunista, não tínhamos nada. A liberdade foi outra coisa que me sensibilizou bastante. Liberdade é uma palavra muito boni-ta, mas na vida cotidiana não se preci-sa dela, somente quando começamos a escrever e a querer publicar – e esse era o meu caso. Terminei os estudos literários e comecei a fazer um pou-co de Jornalismo, alguns estudos li-terários, e eu queria publicar. Nesse momento, me deparei com a censura, que tinha o rosto de um redator-chefe que fazia o papel dele ao dizer: “Isso não é positivo para o Partido Comu-nista. É necessário corrigir”. Essa era uma coisa que me fazia sofrer. Mon-taigne disse, no século XVI, que se amanhã me proibirem de ir a Nantes eu sofrerei fortemente, ainda que eu não tenha intenção alguma de ir a Nantes. A liberdade para o espírito é um tipo de oxigênio. Temos a neces-sidade de dizer: “Eu posso fazer tudo o que eu quero, mesmo que não faça”. Então, o segundo ponto foi descobrir que as pessoas podiam dizer tudo o que queriam e que ninguém tinha temor em falar contra as autoridades. Havia ainda uma terceira diferença: os jovens da minha geração, em sua maioria, tinham convicções comunis-tas, uma visão de que era necessária a construção do comunismo. Como vinha de um país do comunismo real, olhava com grande perplexidade es-ses jovens que eram meus colegas. Comíamos e bebíamos juntos. Corte-jávamos as mesmas garotas. Nós éra-mos muito próximos. Gostava muito deles, mas não compreendia suas po-sições políticas. As coisas das quais eu havia escapado, as que me faziam sen-tir aliviado eram as que eles gostariam de viver. Eu não tenho um caráter bélico, não gosto de fazer polêmicas, portanto, eu não tentava convencê-los e evitava falar desse assunto. Eu havia descoberto nessa época, por causa dos meus estudos anteriores, o que chamam de formalismo russo. Era um grupo de críticos literários de grande talento que tinham escri-to alguns estudos muitos bons sobre Literatura na época da revolução em 1918, em 1925 ou em 1930. Depois, o “Stalinismo” destruiu tudo, mas eram pessoas com muitas ideias originais. E meu primeiro trabalho foi consti-

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individualismo que a Filosofia e a visão de mundo contemporânea apresentam. Acredito que o individualismo deu atenção apenas à questão do conhe-cimento do ser humano e tornou, de certa forma, fútil o questiona-mento acerca do que é o homem. Essa questão está um pouco fora de moda hoje. Nietzsche dizia que não há verdade. O que existe são inter-pretações. Se nós acreditamos que não há mais do que interpretações, pode-se dizer que a verdade não existe. Tudo é relativo, tudo é ar-bitrário. Então, esse conhecimento do humano que a Literatura pode oferecer é o conhecimento dos es-critores, mas não um conhecimen-to verdadeiro. Ela não me acrescen-ta nada de mais. Esse tipo de indi-vidualismo extremo que coloca em questão todos os valores, todas as certezas, é um ingrediente. Outro elemento é que, no século XX – não sei sobre o Brasil, mas acho que in-diretamente vocês receberam essa influência – houve uma espécie de reação contra a dispersão individu-alista e isso deu lugar às ideologias totalitárias. Essas ideologias que-riam executar um tipo de marcha à ré e restabelecer uma sociedade que seria moderna em sua tecnolo-gia, mas antiga em suas estruturas. Todo mundo vigia todo mundo, mas há um chefe da vila e a tudo o que ele diz é necessário obedecer. Há o chefe de Estado e o rei ab-soluto que diz: “O Estado sou eu”. Essas palavras jamais foram mais verdadeiras que nos reinos de Sta-lin ou Hitler. Stalin podia mudar qualquer lei, qualquer regra. Sua vontade era a única coisa que con-tava. Sob essas condições, o sentido da Literatura que nós aprendemos evidentemente recebeu um grande golpe, já que a produção literária provinha da propaganda e não era uma exploração profunda da ver-dade humana. Em oposição, os paí-ses da democracia liberal que se vi-ram numa situação mais ou menos de Guerra Fria passaram a rejeitar violentamente a ideologia. Eu diria que, por uma espécie de lógica do contraste, eles valorizaram o puro formalismo, uma separação entre o mundo da obra e mundo em que vi-vemos. Acredito que todas essas in-fluências ideológicas que são sub-terrâneas e de longa duração agem para nos fazer esquecer o encanto da Literatura. Eu acrescentaria, para terminar, que a ideologia neo-liberal ou ultraliberal – a que domi-na o mundo de hoje, começando na China, indo até o Chile, passando por muitos outros países – nos diz que os valores humanos são com-pletamente submissos aos valores econômicos. E se acreditamos nes-se pensamento, não há muito espa-ço para a Literatura – ela que nos fala do amor, dos sofrimentos do

relacionamento entre pais e filhos, da beleza das obras, das paisagens ou das angústias individuais. Acho que um poema não possui nenhum valor de mercado. Ele não possui nenhum valor além da medida em que ele toca o homem, o leitor. Isso nós não podemos medir. Portanto, não há espaço no mundo de hoje.

Jornal da UFRJ: Quais as consequ-ências desse modelo de ensino para as novas gerações de leitores?

Marco Fernandes

A espécie humana sempre

quis ver mais longe do que a sua existência

imediata. Nunca se

contentou só em se divertir.

Desde a antiguidade,

sempre existiram homens que

fizeram avançar nossa compreensão

do humano e eu acho que isso vai

continuar. Os robôs não vão nos entender.

Tzvetan Todorov: Eu diria mui-to brevemente que se pode com-preender como a privação de uma das melhores heranças de huma-nidade. Depois de três mil anos, acumulamos uma sabedoria, uma compreensão do mundo. Portanto, não há nenhuma razão de privar-nos e nós, que lemos alguns livros e temos contato com os autores do passado, temos o dever de manter essa chama acesa. Ajudar as novas

gerações a alcançar isso não é fá-cil, porque existem, hoje em dia, muitas outras distrações, como a Internet, a televisão, o videogame. Mas não avalio que devamos nos desesperar. A espécie humana sem-pre quis ver mais longe do que a sua existência imediata. Nunca se contentou somente em se divertir. Desde a Antiguidade, sempre exis-tiram homens que fizeram avançar nossa compreensão do humano e eu acho que isso vai continuar. Os robôs não vão nos entender.

Jornal da UFRJ: Como o senhor avalia o futuro do livro no cenário das novas tecnologias e quais as no-vas configurações que a vida digital impõe às obras e aos estudos literá-rios?

Tzvetan Todorov: Acho que o pro-blema é menor para os estudos lite-rários, porque eles estudam o texto, qualquer que seja a forma em que ele é difundido. Quando lemos um romance numa tela, num livro ele-trônico, num livro de bolso ou num

livro de luxo é o mesmo romance. Portanto, os estudos literários po-dem dormir tranquilos e continuar como já fizeram. Mas eu acho que isso vai influenciar, já influencia a Literatura em si mesma e a prática da leitura. Eu mesmo sou comple-tamente formado – ou deformado – pelo mundo no qual existe o ob-jeto livro e não consigo ler com a mesma facilidade um livro eletrônico. Eu gosto de ter o objeto livro, virar as páginas. Isso faz parte do meu prazer, mas eu posso conceber muito bem que meus filhos e os filhos deles passem a esses outros suportes. No entanto, o que gera interesse no livro não é o su-porte, mas o texto. E o texto é imate-rial. Ele pode passar de uma língua a outra, de um suporte a outro. A poesia viverá sempre, ainda que o poema esteja gravado numa rocha. Ainda que a Internet não existisse mais, que as fotocópias não existis-sem mais, que a máquina de escre-ver não mais existisse, usaríamos um martelo para fazer a escrita hie-roglífica. O importante é o espírito humano e o espírito é imortal.

Marco Fernandes

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Junho/Julho 2011 EntrevistaJunho/Julho 2011

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Janice Caiafa

A precariedade dos sistemas de transporte público afeta profundamente a relação dos cidadãos com a cidade. Sobretudo no Rio de Janeiro, as deficiências nos serviços prestados por empresas de ônibus, trens e metrô colaboram para a segregação do espaço público, restringindo o contato com o outro e a possibilidade de experimentação da novidade. Tais análises acerca do papel dos meios de transporte na produção de espaços coletivos e sua importância para os processos de alteridade ocupam lugar central nos estudos etnográficos de Janice Caiafa Pereira e Silva, professora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ. “O transporte coletivo ajuda a realizar a cidade”, afirma a pesquisadora, salientando a função desses meios para a partilha da cidade.

Em entrevista ao Jornal da UFRJ, Janice Caiafa observa como a falta de investimentos na área afeta, particularmente, as populações de baixa renda, que não contam com outras opções para circular no ambiente urbano. A professora também analisa a passagem do direito de uso ao consumo na oferta de serviços de transporte. É o caso da gestão privada do metrô do Rio de Janeiro. “Somos tratados não como alguém que exerce o direito de uso daquele equipamento coletivo de serviço, mas como alguém que compra deslocamento”, relata a docente, que lançará um livro com base nos dados da pesquisa etnográfica sobre o cotidiano do metrô do Rio de Janeiro.

Marco Fernandes

Marco Fernandes

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UFRJJornal da 16 Entrevista Junho/Julho 2011

EntrevistaJanice Caiafa

Pesquisa recente do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ revela que a frota atual de 1,8 milhão de automóveis na cidade do Rio ultrapassará os três milhões até 2020, o que representará um carro para cada dois habitantes. “O veículo coletivo ocupa nove vezes menos espaço por passageiro transportado que um automóvel. O carro particular não poderia estar no futuro das cidades”, afirma a professora, autora dos livros Aventura das cidades: ensaios e etnografias (FGV, 2007) e Jornadas urbanas: exclusão, trabalho subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro (FGV, 2002), entre outras obras.

Doutora em Antropologia pela Universidade de Cornell (EUA), com pós-doutorado pela City University of New York, Janice Caiafa está à frente da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais (Ciec), núcleo de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da ECO. A pesquisadora aponta que as medidas para gerar o “contágio” e a partilha urbana devem ser orientadas sempre em prol do uso coletivo do solo urbano. Nessa entrevista, a professora também reflete sobre a apropriação do Ensino Superior como fonte de rentabilidade para o capital e discute as limitações das novas tecnologias de Comunicação nas relações sociais.

Partilhar a cidade

Márcio Castilho

Jornal da UFRJ: Em que medida a quali-dade dos meios de transporte pode afetar a relação do cidadão com a cidade?Janice Caiafa: O transporte coletivo tem um papel fundamental na relação que es-tabelecemos com a cidade, porque cons-trói acesso. O transporte coletivo distribui a população para longe das vizinhanças, promovendo heterogeneidade e legando a muitos a possibilidade de circular pela ci-dade. Por isso, ele tem uma função desse-gregante em alguma medida. O transporte coletivo ajuda a realizar a cidade. A cidade se constitui historicamente como um meio heterogêneo e diverso. O historiador Lewis Mumford mostra que as funções urbanas somente se desenvolvem quando a cidade começa a atrair desconhecidos — outsi-ders. As cidades, segundo ele, não se cons-tituem somente no quadro de um fenôme-no de sedentarização, mas atraindo gente que vem de fora, seja comerciante ou até um inimigo invasor. Chamei isso de uma “captura atrativa”. É interessante observar, portanto, que, nos inícios das cidades,

existe um movimento, um deslocamento, um nomadismo. Todos nos tornamos um pouco estrangeiros nesse contexto. Desen-volvi essa questão no livro Aventura das cidades: ensaios e etnografias. A cidade ofe-rece um tipo de abertura, um tipo de inser-ção a esses desconhecidos, que não chega a ser, de fato, uma integração, mas é um tipo de pertinência. Claro que em muitos mo-mentos essa potência das cidades, que está presente desde a sua constituição, pode ser neutralizada. Essa diversidade pode não produzir diferença, mas permanece no horizonte das cidades e somente se reali-za com a produção de espaços coletivos. O transporte coletivo, precisamente, é um grande agente dessa dispersão urbana, desse movimento tipicamente urbano de produção de heterogeneidade, porque aju-da a partilhar a cidade e a produzir espa-ços coletivos. Realiza uma dessegregação provisória, que é essa noção que apresentei no livro Jornadas Urbanas. Não supera os códigos sociais, mas constrói esse tipo de dessegregação provisória e local, porque

permite acesso, dá fuga, conduz as pessoas para longe, inclusive para longe do meio familiar. Mesmo no próprio veículo cole-tivo se constitui um meio heterogêneo de contato com desconhecidos, com estra-nhos. Tenho me interessado muito em ex-plorar esse tipo de comunicação que é pos-sível nas cidades, essa comunicação com estranhos. Tenho chamado de “comunica-ção da diferença” em contraste com o re-conhecimento. É uma comunicação mar-cada pela imprevisibilidade dos encontros citadinos em que você se defronta muito mais com a novidade. Então, há um papel importante do transporte coletivo no po-voamento das cidades e na realização da cidade como lugar de heterogeneidade. Esse contato com o outro, tornado possí-vel na rua ou no transporte coletivo, é um grande agente que permite esse tipo de ex-perimentação com a subjetividade, porque justamente nos transforma. Quando nos expomos às descontinuidades no meio diverso das cidades, experimentamos, em algum grau, a novidade. Por isso se pode

falar em renovação dos processos subje-tivos. O transporte coletivo produz um momento particularmente propício para essa experimentação porque ali se produz uma pausa em relação ao movimento da rua. Nele, você se coloca ao lado desses desconhecidos. É uma pausa. Isso permi-te uma chance especialmente interessante para essa experimentação subjetiva, para esse treino ético de conviver com os outros e de entender as necessidades de gente que você não conhece.

Jornal da UFRJ: Analisando especifica-mente o caso da cidade do Rio de Janeiro, como a precariedade do transporte coletivo pode também refletir uma segregação do es-paço público?Janice Caiafa: É interessante pensar como a precarização do transporte coletivo numa cidade inibe nossos movimentos, impede essa partilha da cidade e contribui para in-viabilizar essa experiência das diferenças. Isso é particularmente cruel com os po-bres, que, em geral, não têm outras opções

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Junho/ Julho 2011 Entrevista

de transporte. Não poder se mover numa cidade ou se mover a duras penas é uma enorme limitação. Segmentos inteiros de uma população podem ser condenados, fadados a uma imobilidade e, portanto, à exclusão. Essa é uma forma violenta de ex-clusão. Portanto, a precarização do trans-porte coletivo contribui muito para produ-zir segregação na cidade. Recentemente, em Ipanema, quando da inauguração da estação General Osório, houve um clamor entre algumas pessoas contra a chegada do metrô. Em Higienópolis, em São Paulo, bairro de alta renda, há quem se preocupe, também, com o projeto do metroviário. Tais pessoas querem justamente evitar essa partilha. Anos atrás, durante o governo de Leonel Brizola, a introdução dos ônibus “Padron” para ligar a Zona Norte à Zona Sul também gerou um clamor contra a im-plantação desses coletivos. Tudo isso diz respeito a partilhar ou não partilhar a cida-de. No Rio de Janeiro, os ônibus são tradi-cionalmente precários. Os motoristas são extremamente explorados, correm como loucos. Os veículos têm problemas de ma-nutenção estruturais. Tive oportunidade de conhecer bem essa situação na pesquisa sobre as viagens de ônibus que resultou no livro Jornadas urbanas. Os trens, que fun-cionam no modelo privado, também são precaríssimos. O metrô é, em geral, mais confiável, mas sofreu um abalo recente-mente e as condições de viagem pioraram. Há o problema da relação do Estado com as concessionárias, nesse contexto. Em todos esses casos, a gestão é privada e, no caso dos ônibus, a propriedade também é privada. Esse regime de propriedade e ges-tão privadas mobiliza uma fórmula de po-der em que os rodoviários são submetidos a um esquema muito apertado de explora-ção. Num modelo privado, o que se obser-va é que muitas vezes os próprios usuários são anexados ou colocados para produzir em alguma medida. A cidade inteira, de certa forma, é anexada. Há o problema também do subsídio ao automóvel priva-do. É uma figura da privatização do espaço urbano e da segregação das cidades. Tudo isso faz parte do quadro de precarização do transporte coletivo.

Jornal da UFRJ: Uma estatística pode aprofundar a discussão sobre a relação en-tre transporte individual e perda do espaço público coletivo: nos últimos dez anos, a frota de veículos particulares em circula-ção na cidade do Rio de Janeiro registrou um aumento de 29,54%. Nesse período, a população carioca cresceu 7%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Es-tatística (IBGE). A Coppe-UFRJ revela que a frota atual de 1,8 milhão de automóveis ultrapassará os três milhões até 2020, o que representará um carro para cada dois mo-radores.Janice Caiafa: A primeira questão é que o automóvel particular realiza uma ocu-pação privada da via pública. O veículo coletivo ocupa nove vezes menos espaço por passageiro transportado que um auto-móvel particular. A ênfase na construção de viadutos e rodovias numa cidade e a preocupação com o escoamento de um

tráfego cada vez mais congestionado são uma tentativa de viabilizar o transporte em automóvel particular. O mesmo ocorre com os estacionamentos. O estacionamen-to é uma forma de preservação da pro-priedade privada. Ele é sempre pago. Não existe, a rigor, estacionamento gratuito. A sociedade paga para o motorista de carro particular ocupar a via pública. O carro particular não poderia estar no futuro das cidades. Não apenas as administrações lo-cais estimulam o automóvel particular. Re-centemente o governo federal estimulou a compra em massa de automóvel privado com a redução de impostos. Há também a questão da desejabilidade do automóvel, uma situação laboriosamente construída no contexto do capitalismo contemporâ-neo. O carro é um bem de consumo muito almejado. Os anúncios publicitários ex-ploram a sensação de poder que muitas pessoas parecem ter com a posse de um carro. Claro que para o motorista de carro particular vai ficando mais difícil circular nas cidades, mas justamente por culpa do excesso de veículos. Não são os ônibus os responsáveis pelos congestiona-mentos. Ao con-trário, eles contri-buem para esvaziar as ruas por sua alta capacidade de car-regamento.

Jornal da UFRJ: Em sua pesquisa sobre o metrô, a senho-ra problematiza as “virtudes do negócio privado”. Escreve que “a aposta nas virtudes da priva-tização em suas várias modalidades é uma conclusão apressada. Não que se possa extrair daí também alguma qualidade, mas não nos pode escapar os novos problemas que se colocam”. Quais os problemas do transporte metroviário no Rio de Janeiro, especialmente após a priva-tização?Janice Caiafa: Como mostram os dados da pesquisa, que deve resultar também em livro, é possível também perceber no metrô esse atrito entre o serviço e o negó-cio. É interessante observar, por exemplo, como somos tratados como clientes e não como usuários. Somos tratados não como alguém que exerce o direito de uso daque-le equipamento coletivo de serviço, mas como alguém que compra deslocamento. Esse tratamento muda tudo na operação de um equipamento coletivo de serviço. O próprio Estado trata o usuário como con-sumidor, porque ele é supostamente pro-tegido pela legislação de proteção ao con-sumo. Isso é curioso, pois não é o direito de uso que é levado em consideração. Em geral, diria que ainda não se considerou o suficiente essa fricção entre serviço e negó-cio. Se observarmos as interpelações dos

anúncios empresariais, perceberemos que ali se busca, antes de tudo, fazer crer que se está comprando um bom produto. Isso parece se tornar mais importante do que fornecer um bom transporte. É assim com a publicidade em geral, mas quando está em jogo o fornecimento de um serviço, o problema se coloca mais fortemente. É importante, antes de tudo, observar como o tratamento ao usuário e do espaço do equipamento coletivo muda nesse contex-to. Por exemplo, no caso da exploração do espaço do metrô para anúncios de outras empresas. No contexto da gestão privada do metrô do Rio de Janeiro, há essa ten-tativa de exaurir esse espaço, de explorá-lo ao máximo para extrair lucro também daí. Tanto nas gestões públicas quanto nas privadas, os anúncios são, de fato, uma renda alternativa a que muito frequente-mente os metrôs do mundo recorrem. O desejável, por outro lado, é que essa renda alternativa seja utilizada em prol da mo-dicidade da tarifa. Esse é um princípio do transporte coletivo reconhecido pelo direi-

to administrativo brasileiro. Acredito que, no contexto de uma gestão pú-blica, pode haver mais chance de que isso se dê. Não está garantido, mas temos mais chan-ces no contexto de uma gestão em que o imperativo do negócio não toma precedência sobre o aspecto do uso no equipamento cole-tivo de serviço.

Jornal da UFRJ: O que está por trás da relação entre Estado e iniciativa privada na gestão de serviços públicos? Por que o Estado abdica desse

papel?Janice Caiafa: Trata-se de um fenômeno do capitalismo contemporâneo. É uma figura das mutações que o capital vem so-frendo, porque cada vez mais as atividades vão passando para os domínios do lucro privado. Esse processo começou a se agra-var no pós-guerra e, mais ainda, nos anos 1980, com uma série de privatizações. O Brasil acompanhou isso. Tipicamente, nes-sa nova fórmula de poder do capitalismo contemporâneo, o Estado tende a recuar e a figura da empresa ganha proeminência. O Estado assume então esse papel de via-bilizar o negócio. As atividades que antes eram preservadas das ambições do negó-cio vão passando para os circuitos do lucro privado. A Constituição brasileira tem a fi-gura da concessão do serviço público, por exemplo, mas diz que o Estado continua responsável pelo fornecimento do serviço, embora isso possa não ter muitas reper-cussões práticas.

Jornal da UFRJ: É possível refletir o uso e

o consumo em outras instâncias? A Educa-ção, por exemplo, em diferentes níveis tam-bém é apropriada como fonte de rentabili-dade para o capital?Janice Caiafa: É possível perceber, sim, essa questão do direito de uso, do consu-mo e da presença da empresa em outros setores, que não o do transporte. Nas ins-tituições privadas de Ensino Superior, o estudante também costuma ser tratado como cliente, como consumidor. É inte-ressante observar que, nesse contexto, a produção de conhecimento não vinga. Há algumas instituições privadas que conse-guem algum êxito, mas podemos observar que, em geral, isso ocorre com a ajuda do Estado, quando o imperativo do lucro não se impõe tão peremptoriamente. Temos outro problema mais insidioso: é quan-do aspectos da gestão privada atingem a universidade pública. Gilles Deleuze, escrevendo sobre essa fórmula de poder, sobre as novas mutações do capitalismo, observa como há uma onipresença da fi-gura da empresa em todas as instâncias. É característico dessa nova lógica do capital na contemporaneidade. Deleuze diz que a empresa é um gás, nós a respiramos. Ain-da nesse contexto, temos o imperativo do novo e a confusão entre o novo e o recente. Na indústria, há a questão, por exemplo, da obsolescência programada. Os objetos são programados para incorrer em obsoles-cência. Não apenas objetos industriais, mas também atividades e práticas. Esse aspecto da obsolescência se agrava particularmen-te no contexto do capitalismo a partir do pós 2ª Guerra Mundial. Todos querem ser portadores do novo, o novo como um va-lor em si. É um “dinamismo” que se tenta imprimir à empresa e que pode contagiar administrações públicas. É preciso mudar a qualquer preço. Se prestarmos atenção, a questão dos dividendos em curto prazo vem ocorrendo na universidade pública. Um exemplo concreto são os professores cada vez mais submetidos a uma avaliação de cunho quantitativo. Eles são estimula-dos a produzir num ritmo que evoca essa questão dos dividendos em curto prazo. É claro que o professor pesquisador tem que escrever sempre e publicar constan-temente para dialogar com seus colegas, com seus alunos e leitores. O problema se coloca quando o imperativo da quantida-de predomina. Os próprios estudantes de pós-graduação também enfrentam isso, hoje. É preciso apresentar resultados pre-cocemente, mas o pensamento precisa de maturação, de duração. Há outros apare-cimentos da figura da empresa se pensar-mos nos pacotes do governo, seja criando bolsas nas instituições privadas em nível de graduação, seja estimulando um tipo de expansão que também se baseia em dividendos, em metas, e muitas vezes sem garantia de contrapartida orçamentária suficiente. São todos casos, me parece, des-se funcionamento empresarial.

Jornal da UFRJ: A relação da universidade com o mercado em vários campos de conhe-cimento também pode ser problemática?Janice Caiafa: Também. Há outras figuras: especializações pagas, chamadas lato sen-

Marco Fernandes

“As novas tecnologias nos trazem coisas que realmente precisamos conhecer e explorar.

Acho que o passo inicial para essa

aprendizagem é que nós sejamos mais

modestos e sóbrios ao utilizarmos esses novos recursos e ao

falar sobre eles”.

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su, tão comuns hoje na universidade públi-ca. É um contágio com a fórmula empresa-rial. Há associações e parcerias, que a gente encontra muitas vezes na figura do apoio. As empresas investem hoje, cada vez mais, na imagem da marca. Pode interessar a uma empresa se associar à produção de conhecimento ou mesmo aparentar que ela mesma produz conhecimento. É preci-so, então, colocar seu logo nesse tipo de re-alização. Há ganhos financeiros e também políticos.

Jornal da UFRJ: Em prejuízo da autono-mia do professor...Janice Caiafa: Exatamente. Isso pode cus-tar caro à autonomia de pensamento, que tradicionalmente se cultivou e se cultiva na universidade pública brasileira. Mas claro que essa entrada não está tão franqueada assim. Há vários casos de recusa. Algumas pessoas percebem o risco, mas é um pro-blema que enfrentamos. A privatização das universidades públicas não ocorre de uma vez por todas. Ela é paulatina e são práticas privatizantes que vão sendo introduzidas aos poucos.

Jornal da UFRJ: As novas tecnologias de co-municação apresentam que tipo de configu-ração nos processos de alteridade?Janice Caiafa: Há muitas possibilidades que essas novas máquinas informático-cibernéticas, emblemáticas do nosso tem-po, sobretudo a Internet, nos trazem. Acho que ainda é preciso aprender a explorá-las. Uma coisa que impede essa aprendizagem é a adesão imediata sobre os benefícios da comunicação por computador, que é, de fato, bastante frequente. A partir de Foucault, Giorgio Agamben ressalta que todo dispositivo de poder se produz por “assujeitamento”. É preciso produzir um sujeito contemporâneo ao dispositivo que se produz com ele. Caso contrário, seria um mero processo de violência. Portanto, o mais difícil é se descolar do dispositivo ou criticá-lo. Nesse contexto, é importante perguntar que tipo de relação é essa que estabelecemos na rede que poderia mere-cer um status tão privilegiado de substituir os encontros face a face, por exemplo? O laço social somente se estabelece na rela-ção com o outro. Deleuze escreve que, na experiência ordinária, a figura de outrem nos traz mundos possíveis. Ele afirma que o papel de outrem na vida social é a expressão de um mundo possível. O que eu não vejo ou o que eu desconheço me é trazido como possibilidade pela presença de outrem. A presença de outrem garante, poderíamos dizer, um engajamento. Ela é um tipo de engajamento sem o qual a vida social não se produz. Qual o tipo de enga-jamento que ocorre nas relações na rede? Ao nos envolvermos com esses outros, com quem dialogamos nessas relações, na rede, podemos fazer uma série de ma-nobras. Podemos nos colocar de forma a esvaziar as discussões, multiplicando os comentários até a exaustão, ou cessando de postar ou enviar qualquer coisa, pode-mos construir um perfil falso etc. De fato, pode não haver, a rigor, um engajamento. Muitos usam esse tipo de presença para

não correr riscos. No mundo do trabalho, por exemplo, é comum pessoas que ocu-pam posições de comando usarem esses recursos para esvaziar discussões, contro-lar o movimento, para desmobilizar. Pode acontecer que, de fato, não entremos em relação com o outro, permanecendo em torno de nós mesmos. Pode ser diferente, mas não está garantido. O engajamento - político propriamente e também esse que está na base do laço social - envolve expo-sição à alteridade, à diferença, funciona in-troduzindo risco.

Jornal da UFRJ: Para além das limitações da rede como promotor de laços sociais, como a senhora avalia a possibilidade de as novas tecnologias de comunicação cum-prirem um papel de agente de democracia, abrindo os fluxos da comunicação especial-mente em países com forte restrição às liber-dades individuais?Janice Caiafa: Podemos pensar no enga-jamento político, no sentido mais comum. Existe um tipo de interferência que você faz com um clique: “clique aqui para re-solver esse ou aquele problema”. Nesse caso, há a ilusão de que você participou. Podemos ficar satisfeitos com isso. Claro que há um poder convocatório extraordi-nário, imenso e que pode levar as pesso-as a agir. Avalio, porém, que elas somente agirão para uma causa importante a partir da convocação na rede se elas já estiverem engajadas e mobilizadas para aquilo, se fi-zeram alguma militância ou leram algum livro, por exemplo. Se convocadas, elas se engajarão mais ainda. Mas elas têm um en-

gajamento prévio. Em outros casos, vão se mobilizar para fazer pequenas coisas. Por vezes, coisas expressivas podem aconte-cer. Sabemos de boicotes a empresas. Isso traz algum prejuízo para os capitalistas. As novas tecnologias nos trazem coisas que realmente precisamos conhecer e explorar. Acho que o passo inicial para essa apren-dizagem é que nós sejamos mais modestos e sóbrios ao utilizarmos esses novos re-cursos e ao falar sobre eles. Teríamos mais sucesso em descobrir suas possibilidades criadoras sem essa adesão impensada.

Jornal da UFRJ: Quais as alternativas para produção do coletivo e possibilidades de “contágio”?Janice Caiafa: Há uma série de medidas concretas que podem ser tomadas pelas administrações das cidades. Tais medidas serão sempre em prol do uso coletivo do solo urbano: fornecer um bom transporte coletivo e priorizar a construção de espa-ços públicos, nesse caso, preocupando-se com todos os detalhes, inclusive estéticos. É preciso torná-los habitáveis para que as pessoas possam desejar ocupá-los. Outras medidas incluem levar o desenvolvimen-to urbano no Rio de Janeiro, por exemplo, para regiões e vizinhanças que hoje são tão negligenciadas, como a Zona Norte e a Zona Oeste – e não apenas aquelas que recebem a denominação de favelas. É pre-ciso ainda levar adiante a urbanização para além da privilegiada Zona Sul, descentra-lizando esse processo de urbanização. O transporte coletivo pode ser um grande agente desse processo de descentralização,

levando desenvolvimento para essas regi-ões. Especialmente o metrô, que admira-velmente constrói acesso. Ele promove os lugares, coloca as regiões no mapa da cidade. Ele não faz isso sozinho, mas fará uma grande parte. É desejável que o trans-porte metroviário seja o principal meio de transporte na cidade e que os ônibus sejam complementares. No Rio de Janeiro, temos o contrário. O metrô é quase complemen-tar às integrações de tanto que predomina a opção rodoviária. É crucial proporcio-nar um transporte coletivo bom, confiá-vel, eficiente e que se preste a essa função dessegregadora, que se ofereça como lugar de experimentação. Para a produção des-se transporte coletivo eficiente, é preciso preservar o seu caráter de serviço público e não deixar que se imponham os inte-resses privados. Para promover esse uso coletivo do espaço das cidades, pode ser preciso tomar outro tipo de medida – não a medida que proporciona, mas que limita, forçando a partilha. Colocar-se ao lado do usuário do transporte coletivo e ao lado do pedestre – em geral, eles coincidem. Medidas que limitam, por exemplo, não oferecendo as ruas para que se estacionem carros. Também pode ser interessante para algumas cidades limitar o acesso de carros particulares a certas regiões, em alguns ho-rários, para forçar a partilha. Isso não se faz facilmente e pode ser necessário introdu-zir uma regra. Se não houve uma apren-dizagem ética, pode ser preciso colocar regra. Claro que somente é possível tomar essas medidas limitadoras quando tam-bém se proporciona. Para limitar o uso do carro, tem que fornecer um bom transporte coletivo. As medidas que proporcionam en-tão são, de fato, as mais importantes. Com algumas medidas concretas a favor do uso coletivo do espaço das cidades, as pessoas vão ser atraídas para ocupá-las e vão realizar a cidade. É a presença das pessoas que rea-liza a cidade. É preciso atraí-las para ocupá-la. Por isso, o transporte tem que ser bom e o espaço público, confortável e bonito, para atrair as pessoas a ocupá-lo.

Jornal da UFRJ: O Rio de Janeiro passa por uma década de transformações urbanísticas em razão da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Como avalia essas mu-danças?Janice Caiafa: O importante é que toda essa mobilização seja orientada para tornar a cidade mais habitável. Antes de tudo, uma cidade precisa ser hospitaleira para seus habitantes para ambicionar receber outros. Frequentemente, durante a preparação da cidade para esses grandes eventos interna-cionais, os equipamentos construídos caem em desuso, fazendo com que a população aproveite muito pouco. A preocupação tem que ser a de tornar a cidade mais hospitaleira para os que vêm de fora, mas torná-la também acolhedora para todos, inclusive para seus habitantes, que vão se tornar um pouco estrangeiros na mistura urbana, nesse contágio. Acho que todas as medidas tomadas deveriam contribuir para tornar a cidade hospi-taleira e habitável e o que for mobilizado possa ser usado pelas pessoas depois da

Marco Fernandes

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@dos, porém controlados

Pedro Barreto

Conect

O ritmo frenético de crescimento das redes sociais, no entanto, dificulta a análise dos números. Estima-se que o MySpace, site de relacionamentos com enfoque na música, ganhe cer-ca de 300 mil novos usuários por dia em todo o mundo, tornando caduca qualquer estatística de mais de uma semana. Já o YouTube, página virtual de compartilhamento de vídeos, rece-be aproximadamente 100 milhões de

visitantes por dia e exibe cerca de 70 mil vídeos por minuto.

Considerando o ainda precário acesso do brasileiro à Internet, dado o alto custo da conexão de banda lar-ga para a grande parte da população, qual o motivo de tamanha adesão? De acordo com Henrique Antoun, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, o crescimento des-sa forma de sociabilidade é um fato

natural. “As redes sociais estão sendo utilizadas para fazer de modo mais horizontal aquilo que o público bra-sileiro já faz: conversar, ‘azarar’, fazer grupos para essa ou aquela causa”, analisa o docente, pesquisador do fu-turo da democracia na cibercultura. Segundo ele, “em vez de pensar a so-ciedade do alto para baixo, a partir de hierarquias e movimentos de terror, de medo, que é o que está na essência

de pensadores como Hobbes, agora você pode pensar uma formação so-cial que venha num plano de socia-bilidade, de relações e interações em que cada indivíduo intervém e que cria uma tessitura”.

Antoun recorre ao pensador fran-cês Michel Foucault, para analisar o fenômeno das redes sociais. “O con-ceito de ‘Biopolítica’ inverte a impor-tância das relações sociais, fazendo

Conectar-se ou não conectar-se, eis a questão. As redes sociais estão ganhando cada vez mais adeptos no Brasil. De acordo com estatísticas da transnacional ComScore – empresa estadunidense, com filial em São Paulo, especializada em estatísticas na Internet - divulgadas em fevereiro deste ano, existem 40 milhões de brasileiros conectados à Internet. Desses, 32 milhões acessam o site de relacionamentos Orkut. Em segundo lugar, aparece o Facebook, que computa 18 milhões de usuários. Outros dispositivos como Messenger, MySpace (com cerca de 100 milhões de cadastros em todo o mundo), YouTube, Twitter e Foursquare também ganham.força no país quando o assunto é conectar e dar visibilidade aos usuários da rede mundial de computadores

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com que as relações de amizade e afe-tividade tenham maior preponderân-cia do que as verticais de hierarquia, de comando, de dominação”, afirma o acadêmico, segundo quem Foucault restabelece a visão de cultura como “algo que cai do céu e se abate sobre os homens, em nome de um simbóli-co que ninguém sabe direito de onde vem”, para uma noção de “luta social”. Na análise do pesquisador, “a Biopo-lítica vem exatamente mostrar que as pessoas agora reivindicam um poder sobre a sua própria subjetividade”.

Já para Paula Sibilia, professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Univer-sidade Federal Fluminense (UFF), as redes sociais não são a causa, mas, sim, um sintoma “da mudança na subjetividade contemporânea”. Em sua tese de doutoramento, O show do eu: a intimidade como espetáculo (ECO-UFRJ, 2008), que foi transfor-mada em livro pela Nova Fronteira, a antropóloga analisa o surgimento dos blogs. Segundo a pesquisadora quan-do foram lançados, os blogs eram uma espécie de diários íntimos de pessoas anônimas, mas se disseminaram ra-pidamente e, hoje, funcionam como ferramentas corporativas de grandes empresas, sites noticiosos etc. Em sua pesquisa, a Sibilia aponta que a cada dois segundos, três novos blogs são criados.

Sociedade do controleO show do eu analisa o desejo de

exposição do sujeito na esfera con-

temporânea, “que estimula a hiper-trofia do eu até o paroxismo, que enal-tece e premia o desejo de ‘ser diferen-te’ e ‘querer sempre mais’”. De acordo com Paula Sibilia, o flaneur do século XIX, que se perdia na multidão, deu lugar a um sujeito ávido por exibir-se. Tal mudança relaciona-se com a pas-sagem da “Sociedade Disciplinar”, de Foucault, para a “Sociedade do Con-trole”, de Deleuze. “Há o desejo de se conectar, e esta vontade, dos sujeitos desta época, é muito complexa. Senti-mos-nos cada vez mais presos. Pode-se saber onde você está, que compras está fazendo etc”, aponta a professora do Instituto de Artes e Comunicação Social (Iacs) da UFF.

Em sua obra, Sibilia aponta indí-cios de como a “Sociedade do Con-trole” atua sobre os indivíduos na constituição de uma nova subjetivida-de. “Uma organização social ancora-da no capitalismo mais desenvolvido da atualidade, que se caracteriza pela superprodução e pelo consumo exa-cerbado, no qual vigoram os serviços e os fluxos de finanças globais. Um sistema articulado pelo marketing e pela publicidade, mas também pela criatividade alegremente estimulada, ‘democratizada’ e recompensada em termos monetários”, explica a pesqui-sadora.

Sibilia refuta a tese de “servidão voluntária”, conceito de La Boétie, filósofo francês do século XVI, se-gundo quem, grosso modo, os po-vos subjugados buscam sua própria dominação. “Não seríamos escravos. É um tipo de prazer mais complica-

Comportamento

do. Ninguém te obriga. Fazemos por prazer. Eu acho que é um problema de outro tipo de li-berdade. Cada vez é mais di-fícil não nos conectarmos. É voluntário sim, mas não como servidão. Há uma pressão por nos conectarmos no mundo. Não é somente o mercado, tem a ver com o projeto de vida que escolhemos”, explica a professora. Para ela, essa mudança na sociabilidade, “o modo como nos cons-tituímos como sujeitos do mundo contemporâneo”, teve início nos últimos 50 anos. “A visibilidade foi crescendo ao longo do século XX. Há uma demanda por vi-sibilidade e conexão. As redes sociais não são a causa desse dese-jo, ele é anterior e foi reforçado pelas novas tecnologias”, completa Sibilia.

Henrique Antoun concorda que estejamos vivendo em meio a “So-ciedade do Controle”. No entanto, o pesquisador faz questão de distinguir os mecanismos pelos quais a discipli-na e o controle são exercidos: “Todos esses mecanismos das redes sociais são mecanismos de controle, mas o controle não funciona como a disci-plina. O controle é mais sutil, mais terrível, mais abusivo, implica meca-nismos diferenciados. Você investigar a vida de um trabalhador para fins de conceder-lhe empréstimo financeiro, isso é controle. Porque você ‘detona’ o salário do ‘cara’ e o faz trabalhar cada vez mais para pagar os empréstimos”.

Para Antoun, a diferença fun-

d a m e n t a l está em notar que, no mundo contemporâneo, não há mais a “submissão” – voluntária ou não – presente na sociedade disciplinar. “A luta é muito mais sutil, muito mais balanceada. Não há dúvidas de que são instrumentos de poder, sim, e são ligados ao novo capitalismo: cogni-tivo, financeiro, a todos esses novos mecanismos imperiais, a formação do mundo atual”, completa o profes-sor da ECO.

ResistênciaSegundo Antoun,

entretanto, o perigo m a i o r

Marco Fernandes

Para Paula Sibilia, as redes sociais não são a causa, mas, sim, um sintoma “da mudança na subjetividade contemporânea”.

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Tecno-apartheidEm O show do eu, Paula Sibilia

chama a atenção para um curioso paradoxo. Se for verdade que au-menta, a cada instante, o número de usuários de redes sociais em todo o planeta, este contingente não re-presenta sequer 20% da população mundial. “Hoje, por exemplo, ape-nas um bilhão dos habitantes de todo o planeta possui uma linha de telefone fixo; desse total, menos de 1/5 têm acesso à Internet por essa via. Outras modalidades de cone-xão ampliam esses números, mas, de todo o modo, continuam fican-do fora da rede pelo menos cinco bilhões pessoas. O que não chega a causar espanto se for considera-do que 40% da população mundial, quase três bilhões de pessoas, tam-pouco dispõem de uma tecnologia bem mais antiga e reconhecida-mente mais básica: o vaso sanitário”, ilustra a autora.

Sibilia denomina tecno-apar-theid o fato de 43% das senhas de acesso à Internet em todo o mundo estarem localizadas na América do Norte, enquanto apenas 4% estão na América Latina, pouco mais de 1% no Oriente Médio e menos ain-da na África. Nascida na Argentina e radicada no Brasil, a professora do Instituto de Artes e Comunica-

ção Social (Iacs) da UFF compara os dois países no quesito conexão à Internet. Se nosso país é o líder em números absolutos no Continente Latino-americano (40 milhões de pessoas com acesso à Internet), em termos proporcionais de conexões/número de habitantes, caímos para o quarto lugar na América Latina e ficamos no 62º posto em escala glo-bal. “Dessa quantidade, apenas 3/4 dispõem de conexões residenciais, e, de fato, são apenas 20 milhões os que se consideram “usuários ati-vos”; ou seja, aqueles que se conec-

na contemporaneidade não está nas redes sociais, mas, sim, em um velho conhecido meio de comunicação de massa, ainda muito presente na vida. “Estou submetido à tevê porque ela me invade. Eu não compro o apare-lho, mas ela está em todo lugar. A tevê gera demandas das mais diversas, ide-ológicas, sociais, que, de repente, vi-ram a ordem do dia e, se você não está vendo, pode se assustar”, exemplifica o docente.

Nas redes sociais, Antoun admite que possa haver tentativas de contro-le, mas percebe um potencial maior de resistência social. O professor compara as recentes insurreições no Irã e no Egito, quando os manifestan-tes utilizaram as redes sociais para a mobilização e a articulação de ações de campanha: “O controle ainda tem uma abertura que faz com que ele não esteja totalmente subsumido sob as formas antigas de poder. Então,

taram pelo menos uma vez no últi-mo mês”, esmiúça a pesquisadora, chamando a atenção, ainda, para o fato de que 120 milhões de brasilei-ros ainda não têm nenhum tipo de acesso à rede, o que corresponde a 80% da população.

Já na Argentina, os 15 milhões de usuários conectados represen-tam 42% da população do país. “Po-rém as conexões residenciais não passam de 3 milhões; a maior parte dos argentinos acessa esporadica-mente a rede, a partir de cybercafés ou lan houses. Quase 2/3 desse total se concentram na cidade ou na pro-víncia de Buenos Aires; enquanto nessas áreas as conexões de banda larga têm uma penetração de 30%, nas regiões mais pobres do norte do país essa opção não atinge sequer 1%”, esclarece Sibilia.

A pesquisadora, assim, destaca a relevância de observarmos como a exposição exacerbada dos indivídu-os conectados à rede, em oposição àqueles que não estão representados neste ambiente, ou seja, excluídos até virtualmente: “Apenas uma por-ção das classes média e alta da popu-lação mundial marca o ritmo dessa ‘revolução’ de você e eu. Um grupo humano distribuído pelos diversos países do nosso planeta globaliza-do, que, embora não constitua em absoluto a maioria numérica, exerce uma influência muito vigorosa na fisionomia da cultura global. Para isso, conta com o inestimável apoio da mídia em escala planetária, bem como do mercado que valoriza seus integrantes (e somente eles) ao de-fini-los como consumidores - tanto da Web 2.0 como de tudo o mais. É precisamente esse grupo que tem li-derado as metamorfoses do que sig-nifica ser alguém - e, logo, ser eu ou você — ao longo da nossa história recente”.

ele proporciona meios de resistência e tem sido usado amplamente desta for-ma, mas o tempo inteiro é ambivalen-te. Tanto o Facebook como o Twitter tentam minimizar as áreas de resis-tência onde não interessam e maxi-mizá-la nas áreas de seus interesses. Então, se você está lutando contra a ditadura iraniana, isso toma um in-fluxo que não tem tamanho. Mas se é para combater o governo egípcio, começa a apanhar, porque não in-teressa ao Departamento de Defesa dos EUA, a Praça Tahir abarrotada de gente pra derrubar Mubarak”.

O docente cita o caso brasileiro para demonstrar como os tradicio-nais veículos de comunicação não detêm tanto poder como antes. An-toun lembra a reeleição de Luiz Iná-cio Lula da Silva, em 2006, após os jornais e emissoras de tevê veicula-rem incansavelmente matérias acer-

ca do episódio que passou a ser co-nhecido como “mensalão”, que,

mesmo assim, não impediu a vitória do candidato

Partido da Social Democracia Bra-sileira (PSDB) contra Dilma Rous-seff (PT). “Eleger o sucessor era coisa que não acontecia na nossa República há 60 ou 80 anos. Acho que o último sucessor que foi eleito foi Washington Luiz. A eleição de Dilma contou com momentos difí-ceis em que a mídia distribuída teve papel decisivo”, opina Antoun.

Paula Sibilia recorda ainda o re-cente episódio da professora Aman-da Gurgel, da rede pública de Ensi-no do Rio Grande do Norte, cujo ví-deo reivindicando melhores salários para a categoria ganhou destaque nacional, ocupando espaço mesmo nos veículos de mídia convencional no Brasil e no exterior. No entanto, a professora do Iacs da UFF relati-viza essa forma de resistência. “Evi-

dente que existem possibilidades de resistência, mas questiono esse termo (resistência). Cresce de for-ma incrível o número de usuários de Facebook, do Twitter, do YouTu-be. Está no auge essa forma de se relacionar. Mas não é aí que vamos encontrar resistência. O corpo dócil e útil é aquele hiperconectado”, ar-gumenta a pesquisadora. Para ela, ainda não descobrimos uma nova forma de liberdade que não aquela que nos é apresentada. “O que é li-berdade? Obviamente, somos mui-to livres como sujeitos históricos. Nunca fomos tão livres. Mas há uma liberdade que não temos? Talvez as redes sociais estejam obscurecendo, por exemplo, a liberdade de não nos conectarmos, algo que nós não co-nhecemos”, aponta Paula Sibilia.

Comportamento

do Partido dos Trabalhadores (PT) no pleito à Presidência da Repúbli-ca. “Lula ter se reeleito não marca o sucesso de uma política econômica, porque isso sempre foi insuficiente para eleger alguém. Mas, sim, o su-cesso dos vazamentos que essa mí-dia social, distribuída, porque, em uníssono, os quatro grandes veícu-los de comunicação do país batiam na tecla da falência total do governo e da corrupção do governo do PT”, recorda o pesquisador.

O mesmo aconteceu na eleição de 2010 quando, de acordo com o professor da ECO, a mídia conven-

cional apoiou o candi-dato José Serra, do

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No início deste ano, a Secretaria de Estado de Educação (Seeduc)

do Rio de Janeiro divulgou o Pla-nejamento Estratégico da Educa-ção para o estado. Dentro do esco-po do planejamento desenvolvido pela Seeduc, foi criado o Progra-ma de Bonificação por Resulta-dos (Resolução Seeduc nº 4.669 de 04/02/2011) que visa à gratificação dos servidores que trabalhem nas escolas e nas diretorias regionais. O bônus será concedido ao trabalho em equipe que alcance ou supere as metas propostas pela secretaria, que promete aporte de recursos fi-nanceiros chegando a R$ 140 mi-lhões, e que o professor que atingir as metas pode receber até três salá-rios a mais por ano.

O programa de avaliação e bo-nificação em função do desempe-nho da escola, contudo, não agra-dou aos professores. Para Quincas Rodriguez de Souza, professor de História da rede pública estadual, o plano de metas da Seeduc está inserido numa lógica empresarial e produtivista da educação. “Nes-sa concepção, o professor é visto como uma ferramenta e o proble-ma da educação (que é muito am-plo) se transforma, simplesmente, em um problema de gestão”, desta-ca o docente.

A medida, no entanto, não é propriamente nova. Ela vem sen-do adotada por países estrangeiros, como os Estados Unidos da Améri-

Programa de Bonificação por Resultados

Prêmio ou punição?Os índices de avaliação do governo federal revelam que a

qualidade do ensino público na Educação Básica do país

vai mal. Mas o que fazer para melhorá-lo? Os desafios

são muitos. No Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de

Educação lançou o Planejamento Estratégico da Educação,

que vem causando polêmica em função das metas

propostas.

Vanessa Sol

ca (EUA), e, no Brasil, não apenas o governo estadual do Rio de Janeiro utiliza o sistema. Em São Paulo, a bonificação vinculada ao rendi-mento das escolas já vem sendo utilizada, assim como na Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.

Márcio da Costa, professor da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ, explica que a utilização des-se tipo de política visa a criar res-ponsabilidade para todos aqueles que participam do processo edu-cacional. “A adoção desse tipo de política, que pode ser chamada ge-nericamente de responsabilização, é crescente no mundo inteiro. O prêmio seria uma das possibilida-des de investir na responsabilidade dos atores envolvidos no processo educacional, a fim de que eles, de alguma maneira, respondam por suas escolhas, decisões e procedi-mentos”, avalia o especialista em Política Educacional.

Márcio da Costa destaca, ainda, que essa política pode utilizar vari-áveis distintas, mas a que vem sen-do adotada é a de recompensar a partir da medição de determinados indicadores, considerados como de desempenho escolar. Contudo, o professor explica que a adoção desse tipo de política pode envol-ver um conjunto de problemas e ar-madilhas. “Sou a favor da política de responsabilização, mas a quan-tidade de possíveis consequências não intencionais, efeitos perver-

sos, possibilidades de dribles que podem ser dados nela, em suma, a eventualidade de ser nebulosa e vulnerável a ingerência política é grande, de tal forma que em deter-minados contextos é preferível não adotá-la”, enfatiza o pesquisador.

Ana Maria Monteiro, professo-ra e diretora da Faculdade de FE, alerta ainda para o discurso que acompanha o sistema de avaliação implantado, no qual os problemas do sistema educacional brasileiro são atribuídos ao professor. “Quan-do o sistema de avaliação é apli-cado à Educação Básica, ele vem acompanhado de um discurso mui-to intenso de denúncia sobre a má formação do professor. Essas ideias ficam associadas e cria-se um con-senso de que a educação brasilei-ra vai mal, com resultados baixos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) - avaliação instituída pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacio-nais Anísio Teixeira do Ministério de Educação (Inep) do Ministério da Educação -, porque a culpa é do professor e que ele está mal for-mado. Não podemos jogar a culpa somente no professor”, ressalta pes-quisadora do Ensino de História.

Alvo erradoHá vários fatores envolvidos

na questão da baixa qualidade da Educação Básica pública do país e a possível má formação de profes-sores não é, em definitivo, o fator mais importante nessa questão. A desvalorização dos profissionais de educação e os baixos salários a eles pagos; a falta de uma política de maior vínculo do profissional com a escola; a falta de infraestrutura e de melhores instalações físicas; a violência que assola as instituições em regiões de alto risco social; en-tre várias outras situações, interfe-rem no desenvolvimento e nas prá-ticas de ensino.

Na opinião de Ana Maria Mon-teiro, pelo fato de o sistema ser fa-lho, surge a necessidade de avaliá-lo. Entretanto, da forma como ela é implantada e realizada, torna-se uma punição para os professores, que, na verdade, continuam a ser uma das vítimas do sistema. “Ava-liar uma instituição pública é cor-

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23UFRJJornal da

reto, porque é um investimento público

realizado com os impostos, verifica-se como os recursos são

utilizados para custear o funciona-mento da instituição. Nessa lógica, seriam detectadas as fragilidades do sistema a fim de solucioná-las. Realizada dessa maneira, a avalia-ção não é ruim. Porém, quando se cria uma avaliação e se atribui uma gratificação em função de resulta-dos (em condições desfavoráveis ao ensino), ela acaba virando puni-ção”, destaca a professora.

Para Quincas Rodriguez, a im-plantação do Programa de Bonifi-cação por Resultados afeta toda a comunidade escolar. Em sua opi-nião, a medida impossibilita a ges-tão democrática da escola assim como a autonomia de seus projetos político-pedagógicos. “Os profes-sores agora devem seguir cartilhas e manuais e aplicar avaliações pa-dronizadas. A isso eu denomino de ‘neotecnicismo’. Sem o reconheci-mento do seu saber, o professor é transformado em um repetidor de fórmulas e modelos, eliminando da sala de aula a possibilidade da construção de um espaço de re-

flexão crítica e de conhecimento”, aponta o docente.

Índices e metasPara a Seeduc, o Planejamento

Estratégico da Educação tem como objetivo melhorar a qualidade do Ensino Médio da rede pública es-tadual que, de acordo com o resul-tado do último Ideb, não atingiu as metas almejadas pelo Ministério da Educação.

O Ideb é considerado um indi-cador de acompanhamento das me-tas de qualidade do Plano de De-senvolvimento da Educação (PDE) para a Educação Básica, que com-preende os ensinos Fundamental e Médio. Desde 2005, o Ideb mensu-ra a qualidade das escolas da rede pública de todo país. O cálculo é feito com base na taxa de rendi-mento escolar e no desempenho dos estudantes no Sistema Nacio-nal de Avaliação da Educação Bási-ca (Saeb) e na Prova Brasil.

Para isso, foram estabelecidas metas bianuais de desempenho para cada rede pública de ensino e, também, para cada escola. A fim de que tais metas sejam alcança-das, o ministério pretende oferecer

apoio técnico e recursos financei-ros para os estados e municípios que apresentarem fragilidades em seu sistema de ensino. Até 2022, o Ministério da Educação deseja que o Ideb brasileiro seja 6,0. A média é compatível com um sistema educa-cional de qualidade, comparável ao de países desenvolvidos.

Contudo, o Rio de Janeiro apre-sentou o segundo pior desempenho entre os estados da Federação, es-tando à frente apenas do Piauí. Na avaliação realizada em 2009, cujo

resultado foi divulgado em 2010, as escolas estaduais do Rio de

Janeiro obtiveram 2,8 pon-tos, quando a meta proje-tada era 2,9. Para o exame a ser realizado em 2011, a meta projetada é de 3,1.

Para André Jorge Mari-nho, que também é professor da

rede pública estadual de Ensino do Rio de Janeiro, esse tipo de avalia-ção não ajuda a construir uma po-lítica educacional de qualidade: “A avaliação é um ‘calcanhar de Aqui-les’, pois esse modelo leva em con-

sideração apenas a nota do aluno e tem pouca capacidade de avaliar, por exemplo, o desenvolvimento cognitivo do estudante, a socializa-ção e outras questões”.

Necessidade de mudançaA educação está ligada intima-

mente ao desenvolvimento de um país e muitos investimentos preci-sam ser realizados para que esta área dê um salto de qualidade. Quincas Rodriguez acredita que haja dificul-dades de mudanças no atual estágio de nossa escola. Para ele, a real mu-dança passa, necessariamente, por repensar a escola pública e seu pa-pel na sociedade: “Devemos pensar a escola como um espaço de cons-trução coletiva e democrática, que envolva a comunidade. Uma escola de horário integral, na qual o alu-no possa desenvolver todas as suas potencialidades. Um professor com dedicação exclusiva e bem remune-rado, para que conheça de fato seus alunos e desenvolva projetos de acordo com a realidade educacional da escola”.

Ana Maria Monteiro ressalta, ainda, que a escola vai desempenhar bem seu papel quando for respeita-da, quando for entendida como um ambiente colaborativo, onde profes-sores e estudantes se sintam apoia-dos e amparados. Para ela, a transfor-mação do atual cenário deve passar por mudanças profundas. “Hoje, há a convicção de que a questão da educa-ção no Brasil é estrutural e que preci-sa ser melhorada a fim de que quem passe pela escola consiga desenvolver a capacidade de leitura, escrita e domínio dos conhecimentos fun-damentais para a cidadania”, fina-liza a diretora da FE-UFRJ.

“Avaliar uma instituição pública é correto, porque

é um investimento público realizado

com os impostos, verifica-se como

os recursos são utilizados para custear o funcionamento

da instituição. (...) Porém, quando se cria uma avaliação e se atribui uma gratificação em

função de resultados (em condições

desfavoráveis ao ensino), ela acaba virando punição”

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Junho/Julho 2011UFRJJornal da 24 Junho/Julho 2011

Nós pega o peixe”. Essa foi uma das frases mais comentadas pela gran-de mídia nas últimas

semanas. Provocou uma avalanche de críticas e comentários que demonstra-ram que certos setores da sociedade brasileira, que utilizam os meios de co-municação como caixa de ressonância, permanecem com posturas conservado-ras quando o assunto é o uso popular da Língua Portuguesa.

A oração em questão consta do li-vro Por uma vida melhor, da professora Heloisa Ramos, publicado pela editora Global (2011) e sugerido pelo Ministério da Educação para os programas de alfa-betização de jovens e adultos.

No primeiro capítulo, intitulado “Es-crever é diferente de falar”, a autora pon-tua as diferenças entre a língua falada e a escrita, destacando a existência de uma série de variantes, baseadas em aspectos regionais e sociais. O livro aponta que construções como a do início desta ma-téria não condizem com a norma culta e alerta que, ao falar assim, o aluno poderá ser vítima de preconceito linguístico. “A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela

Aline Durães

A língua do

preconceitomaioria dos brasileiros”, afirma a autora num trecho da página 12 do livro.

Ao reconhecer que a língua falada não segue a Gramáticas e ao colocar nas mãos dos estudantes a decisão so-bre qual das variantes — a culta ou a popular — eles devem usar em cada situação, o livro passou a ser demoni-zado pela grande mídia. A acusação principal era a de que ele induziria os alunos a falarem errado. Críticas surgiram de todos os lugares. A Aca-demia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, em nota oficial, julgou o li-vro didático “inadequado” e afirmou estranhar “certas posições teóricas dos autores”.

Para muitos linguistas e educado-res, entretanto, esse episódio apenas mostrou como o preconceito contra a fala popular continua vivo nas cama-das mais escolarizadas da população. “Causa imensa surpresa o fato de ver pessoas especializadas em áreas do conhecimento ligadas à Economia, à Política, entre outras, se sentirem tão à vontade para discutir o trabalho de um especialista em Linguística e Língua Portuguesa. Você pode imaginar o senti-mento de um aluno que, ao ingressar na escola, leia e ouça críticas ao seu modo de falar?”, questiona Eugenia Duarte, professora da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ.

Na opinião de Marcos Bagno, escri-tor e professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), a for-ma como o livro didático Por uma vida melhor aborda a temática da variação linguística cria um ambiente de apren-dizagem acolhedor a jovens e adultos já carregados de estigmas contra sua ma-neira de falar. “O livro afeta para melhor a qualidade do ensino. O tratamento da variação linguística estimula a dis-posição das pessoas a incorporarem outras maneiras de falar e, principal-mente, a de se apoderarem da tecno-logia da escrita. Somente a ignorância generalizada sobre o que é uma língua e o que significa ensiná-la pode justi-ficar a ideia, patética, de que o livro é uma afronta à Língua Portuguesa”, pontua o professor, que é doutor em Filologia.

Língua: poder e preconceitoA questão linguística é bem mais

complexa do que parece. O domínio da língua implica poder. Ao longo da história, vários povos invasores im-punham seu próprio idioma aos dos territórios ocupados, combatendo as línguas nativas como forma de am-pliar seu controle.

No Timor Leste, por exemplo, a Língua Portuguesa é usada por muitos cidadãos como afirmação de sua iden-

tidade. A ex-colônia de Portugal luta contra a dominação da Indonésia, que invadiu a ilha em 1975, sufocou os mo-vimentos de independência e a anexou a seu território. A manutenção do Portu-guês é, para os timorenses, uma das prá-ticas de resistência à opressão.

Por outro lado, a língua se configura em um campo no qual também atuam desigualdades e formas de discrimina-ção. Por ser uma capacidade cognitiva afetada em grande medida pelo social, ela passa constantemente por pro-cessos dinâmicos de transformação. Isso explica por que palavras passam a ser utilizadas com maior frequên-cia enquanto outras caem em desu-so. Essas mudanças, entretanto, não são homogêneas e lineares: algumas são aceitas, outras renegadas. “Cer-tas variantes são socialmente aceitas quando se generalizam numa co-munidade de fala. Outras, por se-rem mais notadas na fala de grupos menos prestigiados socialmente, são estigmatizadas. É exatamente o caso da concordância verbal e nominal”, observa Dinah Callou, professora emérita da FL-UFRJ. Mais uma vez, a influência das camadas dominan-tes se manifesta na língua. “O pre-conceito linguístico é mais um dos muitos preconceitos que existem em nossa sociedade. Quem tem poder pode

Zope

Supostos erros de concordância em livro

sugerido pelo Ministério da Educação causam

polêmica e evidenciam que ainda há muito

preconceito contra o uso popular da Língua

Portuguesa.

o peixe pega Nós pega o peixe pega Nós pega o

Sócio-Linguística

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Junho/Julho 2011Junho/Julho 2011 25UFRJJornal da

Junho/Julho 2011

falar como quiser. Quem não o tem, não pode”, pondera Marcos Bagno.

Para Ludmila Thomé, do Laborató-rio de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (Leduc) da Faculda-de de Educação (FE) da UFRJ, a intole-rância diante das diferentes formas de falar o Português requer especial atenção dos professores encarregados do ensino das camadas sociais mais favorecidas: “O que mais me impressionou em toda essa discussão acerca do livro didático do Mi-nistério da Educação foi constatar como as elites desse país pensam nosso povo, nossa fala, nossa cultura popular. Veio à tona uma visão de língua que pertence a um tempo no qual a escola servia a uma nata da sociedade, na qual se ensinava apenas a Cultura com ‘C’ maiúsculo, a cultura erudita, e, com o que, se desme-recia a cultura popular”.

A educadora lembra que, durante as aulas de Literatura, por exemplo, a maior parte dos estudantes lê escritores como Guimarães Rosa e Machado de Assis, que trazem em seus textos vozes, confli-tos sociais e regionais distintos. O conta-to com esses personagens deveria prepa-rá-los para aceitar melhor as diferenças na fala. “A escola na qual se formam nos-sas elites deveria focar uma visão mais política acerca da sociedade, o que não acontece. Muitas vezes, o ensino privado reafirma a diferença e os estudantes são treinados para ser elite, mesmo”, critica Ludmila Thomé.

Assunto novo?A presença de variações linguísticas

em livros didáticos não é algo recente. Desde 1996, com a elaboração dos Pa-râmetros Curriculares Nacionais (PCN), o Ministério da Educação estimula os alunos da rede pública de ensino a terem contato com elas. Segundo os PCN, “a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma ‘certa’ de falar, a que parece com a escrita; e o de que a escrita é o espelho da fala”.

Antes disso, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo publicou, em 1978, um documento no qual já sugeria uma série de inovações para o ensino de Língua Portuguesa. “Nem de longe esse livro (Por uma vida melhor) é o primeiro a fazer isso. Hoje em dia, todos os livros didáticos de Português disponíveis no mercado e adquiridos pelo Ministério da Educação trazem um capítulo, uma unidade ou um módulo sobre a variação linguística”, informa Marcos Bagno.

Se o assunto não é novo, como ex-plicar o alvoroço em torno dele justo agora? Para Célia Lopes, professora da FL-UFRJ, os capítulos de variação lin-guística dos livros didáticos limitam-se a tratar apenas das diferenças regionais. “Não se notam observações sobre fenô-menos sintáticos característicos das fa-las culta e popular, como a preferência por ‘ter’ existencial em vez ‘haver’; o uso inexpressivo do pronome oblíquo “o” e do pronome “se” para indeterminar o

Livro didático: apoio ao professor

Um dos argumentos mais recorren-tes contra o livro Por uma vida melhor era o de que ele seria incapaz de ensinar a língua portuguesa a jovens e adultos. Para Ludmila Thomé, essas críticas pe-cam não apenas por tratar as variantes linguísticas como erros de Português, mas também por destituir do professor o papel de protagonista do ensino.

O livro didático não tem a função de, sozinho, ensinar alguém. Ele serve ao educador também como material com-plementar. “O papel do livro didático foi sempre muito questionado. Ele não substitui o professor. É um complemen-to e deve estar em uma perspectiva de escolha do próprio profissional; o profes-

sujeito, a preferência pela próclise, entre outros. Se esses fatos são ignorados, o que dizer da concordância?”, questiona a docente, organizadora da obra A norma brasileira em construção: fatos lingüísticos em cartas pessoais do século XIX (FA-PERJ/UFRJ, 2005). Por uma vida melhor se diferenciou exatamente por abordar a fala popular.

Marcos Bagno pontua, entretanto, que a enxurrada de críticas à obra de Heloisa Ramos evidencia o compro-misso da grande mídia com a elite bra-sileira: “Um pequeno grupo que reina há mais de 500 anos sobre os destinos da Nação. Por isso, qualquer mínimo pretexto para disparar contra o governo é aproveitado com grande alarde pela imprensa”.

sor decide com qual livro trabalhará. Isso não significa que ele determinará como serão todas as aulas. Será mais um apoio, assim como livros não didáticos, filmes etc”, destaca Ludmila Thomé.

Ludmila Thomé, que já participou de comissões do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ministério da Educação, conta que a seleção de li-vros sugeridos pelo órgão é criteriosa e movimenta especialistas de diversas universidades. “Há uma guerra entre as editoras para suas obras se encaixarem no padrão estabelecido”, ressalta a pro-fessora. “Ele não foi adquirido de forma leviana. Apenas quem nunca participou desses processos é capaz de imaginar que ele é simples e mecânico”, complementa o escritor Marcos Bagno.

o peixe pega Nós pega o peixe pega Nós pega o

Você pode

imaginar o

sentimento

de um

aluno

que, ao

ingressar

na escola,

leia e ouça

críticas ao

seu modo

de falar?”

Sócio-Linguística

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Junho/Julho 2011UFRJJornal da 26 Junho/Julho 2011Saúde

João Resende

Inovação para

o cuidado do

Um novo biofármaco produzido pelo Laboratório

de Biotecnologia Farmacêutica (BiotecFar)

da UFRJ pode ser uma saída para o tratamento

do diabetes. Baseado no sistema de liberação

continuada da amilina humana, ele oferece aos

diabéticos um melhorcontrole da glicemia

Rafaela Pereira

Atualmente o tratamento para o diabetes é via oral – para o tipo 1 – e aplica-

ção de doses de insulina – para o tipo 2 da doença. Foi na tentativa de me-lhorar a qualidade de vida dos porta-dores e de proporcionar melhor equi-líbrio da glicemia no organismo que a equipe do professor Luis Maurício Lima, farmacêutico, professor da Fa-culdade de Farmácia e coordenador do projeto no Laboratório de Biotec-nologia Farmacêutica (BiotecFar) da UFRJ, começou em 2009 a pesquisar a ação de outros hormônios, como a amilina.

Cossecretado com a insulina, a amilina é produzida naturalmente no pâncreas, mas até a sua descober-ta não era tão percebida. “O perfil de liberação desse hormônio é muito semelhante ao da insulina. Indivídu-os normais secretam os dois conco-mitantemente, inclusive no estágio de jejum. Já nos pacientes diabéticos, nos quais a secreção da insulina é comprometida, a de amilina também assim o é. E mesmo quem faz uso da insulina possui dificuldade em con-trolar os níveis de glicose no sangue”, explica o professor.

Mas o que tem esse hormônio de tão especial? É ele o responsável pela modulação da glicemia e pela inibi-ção da secreção de insulina. Controla também o esvaziamento gástrico e o metabolismo renal. “Mesmo com a insulina, o controle glicêmico é com-plicado. Estudos mostram que com a amilina esse controle é muito mais preciso. Contudo, seus benefícios não são vistos imediatamente, diferente-mente da insulina. Porém, uma não vem para substituir a outra, mas para serem usadas de forma concomitan-te”, alerta o pesquisador.

Cenário mundialSe hoje em dia a produção de me-

dicamentos à base de insulina é feita facilmente e em grande escala, o mes-mo não acontece ainda com a amilina. Para a reposição desse hormônio há certa dificuldade no desenvolvimen-to, uma vez que a amilina humana é insolúvel, diferentemente da insulina, que é possível de ser encontrada em farmácias. “A amilina é encontrada em solução aquosa, mas forma fibra e tem problema de agregação proteica. Não é uma saída tecnológica farma-cêutica viável”, avalia Luis Maurício.

A saída encontrada, explica o co-ordenador do BiotecFar, foi encontrar um análogo desse hormônio que fos-se solúvel. E desde meados de 2005 começou-se a fabricar, nos EUA e no Canadá, o Pramlintide, licenciado como Symlin. “Esse, sim, é solúvel em água e tem seu uso recomendado como auxiliar de insulina, sendo in-

jetado conjuntamente nos momen-tos das refeições. Porém, no final das contas não está sendo reposta a amili-na humana, e sim um análogo”, expli-ca Luis Maurício.

Outro problema detectado pelo grupo de estudo é a administração da droga. O professor explica que atualmente o diabético deve aplicar a insulina e a amilina separadamen-te. Diante desse cenário, a equipe do BiotecFar recorreu à Nanotecnologia Farmacêutica para produzir um me-dicamento que fosse capaz de liberar a amilina humana de forma contro-lada. “Encapsulamos nanopartículas de amilina humana em partículas biocompatíveis. Pelo tamanho redu-zido, são facilmente administradas por injeção subcutânea ou intramus-cular. Apesar de continuarem insolú-veis, formam um depósito que vai se degradando aos poucos no local de aplicação e pode ser liberada na fase

rápida e na fase lenta, para repor os níveis basais”, explica o professor.

Atualmente, esses trabalhos estão submetidos a publicações e já foi fei-to o depósito no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). “A patente ainda não foi concedida, esse trâmite demora, mas já nos permite o desenvolvimento. Ainda não estamos protegidos internacionalmente, pelo fato de a UFRJ não fazer pedido de patente internacional. Agora busca-mos parceiros industriais ou gover-namentais de fomento para estender esse estudo”, aposta Luis Maurício.

Apoio e investimentosE para a produção deste medica-

mento, o grupo contou com o apoio dos governos federal e estadual, via agências de fomento como o Con-selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de

dIabetes

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Junho/Julho 2011Junho/Julho 2011 27UFRJJornal da

Junho/Julho 2011 Saúde

Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Fundação de Apoio à Pesquisa do Es-tado do Rio de Janeiro (Faperj). Bus-cou-se também parceria com a agên-cia Financiadora de Estudos e Proje-tos (Finep), mas, de acordo com Luis Maurício, o projeto não foi aprovado e um recurso já foi impetrado. “Uma das críticas feitas foi porque parte do investimento seria disponibilizado para a importação de substâncias que não têm fabricação nacional. Mas isso foi um comentário inocente, porque essa prática é feita no mundo inteiro e quase todos os insumos farmacêu-ticos são importados”, explica o pro-fessor.

Além do apoio do setor público, segundo Luís Maurício, atualmente há a possibilidade de uma parceria com uma empresa privada: “Acade-micamente paramos por aqui, preci-samos dessas parcerias para seguir em frente e conseguirmos que o produto comece a ser comercializado. Tem uma empresa interessada, que pediu uma proposta na qual detalhássemos quais são os próximos passos para a fabricação do remédio. Mas ainda não houve nada de concreto”.

Números que avançamConsiderado desde 2007 pelas

Organizações das Nações Unidas (ONU) um problema de saúde pú-blica, hoje o diabetes é tido como a epidemia do século, afetando cerca de 250 milhões de pessoas em todo o mundo. De acordo com a Federação Internacional de Diabetes (IDF), o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de países com o maior número de por-tadores da doença.

Segundo dados obtidos do Siste-ma Vigitel, utilizado pelo Ministério da Saúde para monitorar a frequên-cia e a distribuição de fatores de risco e proteção para as doenças crônicas não transmissíveis, são quase nove milhões de brasileiros já portadores do diabetes. E a pesquisa, realizada em 2010, estima que 30% da popula-ção desconhecem ter a doença.

Os resultados da pesquisa tam-bém mostram que, no conjunto da população adulta das 27 cidades estu-dadas (capitais estaduais e Brasília), a frequência do diagnóstico médico prévio do diabetes foi de 5,8%, para a população com idade igual a ou maior de 18 anos, sendo semelhante em ambos os sexos. O diagnóstico se torna, em ambos os sexos, mais co-mum com a idade, alcançando me-nos de 1% dos indivíduos entre 18 e 24 anos de idade e mais de 20% após os 65 anos. “São quase 11 milhões de diabéticos no Brasil e o Vigitel apon-ta ainda crescimento de 1% ao ano. Por esses números é que o diabetes tem sido, nos últimos quatro anos, uma das prioridades do Ministério da Saúde (MS)”, explica Rosa Maria Sampaio Viana, coordenadora geral de Hipertensão e Diabetes do MS.

Um dos fatores para o aumento de diabetes no País é a obesidade. Recente pesquisa também do Mi-nistério da Saúde mostra que quase metade da população adulta (48,1%) está acima do peso e 15% são obesos. “Isso é um fator que contribui para o aumento do diabetes. Mas não po-demos esquecer o componente ge-nético e nem que essa é uma doença multifatorial. O diabetes satisfaz to-dos os critérios de um problema que exige ação da saúde pública, princi-palmente por apresentar uma grande prevalência na população mundial”, analisa a nutricionista Daniella Mo-raes Mizurini, doutoranda do Insti-tuto de Bioquímica Médica (IBMq) da UFRJ.

E para reverter a situação e me-lhorar a saúde da população, é pre-ciso adotar medidas como manter um estilo de alimentação saudável - consumindo todos os grupos ali-mentares, com moderação e varieda-de – e aumentar o consumo de ali-mentos ricos em fibras como frutas e verduras, além de evitar exageros e praticar atividade física. “A orien-tação dietética individualiza-da e intensiva melhora consideravelmente o controle da glice-mia em pacientes com diabetes tipo 2. Os diabéticos devem priorizar o consumo de ali-mentos naturais em detrimento dos indus-trializados e aumentar o consumo de vegetais. E a alimentação deve ser fracionada em diversas re-feições a fim de evitar o con-sumo excessivo de alimentos em determinadas refeições ou o jejum prolongado”, ensina a nu-tricionista, explicando, ainda, que o acompanhamento dietético é uma ferramenta importante para a redu-ção dos sintomas e controle da do-ença.

Ações ministeriaisO Ministério da Saúde tem bus-

cado programar diversas estratégias de saúde pública para prevenir o dia-betes e suas complicações. De acor-do com Rosa Maria Sampaio Viana, uma das linhas de ações é o cadas-tro de acompanhamento informati-zado. “Ao chegar à rede de saúde, o paciente gera, de forma voluntária, os dados. Hoje temos cerca de 30% dos portadores de diabetes do país cadastrados. Esse sistema está sendo

250 milhões 5º lugar

“São quase 11

milhões de

diabéticos no Brasil

e o Vigitel aponta

ainda crescimento

de 1% ao ano. Por

esses números é

que o diabetes tem

sido, nos últimos

quatro anos, uma

das prioridades

do Ministério da

Saúde (MS)”

no ranking de países com o maior número de portadores da doença

implementado pelo DataSUS e será agregado ao Cartão SUS”, explica a Rosa Maria coordenadora.

Outra ação é a assistência far-macêutica, que disponibiliza medi-camentos e insumos considerados essenciais para os portadores de dia-betes e também de outras doenças. De acordo com a coordenadora geral de Hipertensão e Diabetes do Minis-tério da Saúde, essa é uma determi-nação para cumprir uma lei federal de 2006, que coloca o SUS como responsável por essa distribuição: “E essa ação é agregada ao programa de Farmácia Popular. Os medicamentos são muito caros, é uma doença crô-nica que vai durar a vida toda. Essas

ações são uma conquista do país em política pública”.

de pessoas em todo omundo têm diabetes

30% da população

desconhecem

ter a doença

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Junho/Julho 2011UFRJJornal da 28 Junho/Julho 2011Cidadania

União estável entre

No início de maio, os minis-tros do Supremo Tribunal Federal (STF) aprovaram,

em sessão histórica e por unanimida-de, a união estável homoafetiva. Com a decisão, casais homossexuais, que antes não possuíam qualquer legitimi-dade perante a lei, passam a desfrutar dos mesmos direitos concedidos a parceiros heterossexuais.

A partir de agora, lésbicas e gays, bem como travestis e transexuais, podem solicitar pensão alimentícia, quando houver separação judicial, recebem pensão em caso de morte dos companheiros e já podem incluir seus parceiros como dependentes em planos de saúde e na declaração do Imposto de Renda. Além disso, têm direito também à licença-gala, afas-tamento trabalhista de até nove dias após a oficialização da união em car-tório.

As diferenças com o casamento praticamente inexistem: “Os direitos e os deveres são os mesmos; a diferen-ça é que o casamento tem um papel — a certidão de registro civil — com um carimbo do Estado. Ele consegue ser comprovado. A união estável não, se constitui no decurso do tempo. A Constituição Federal diz que a união estável pode ser convertida em casa-mento. Então, ao menos o direito de pedir a conversão da união em casa-mento, os casais gays também têm”, ressalta Maria Berenice Dias, presi-dente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Fa-mília (IBDF).

Para o Murilo Mota, sociólogo da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, a conquista representa “uma virada histórica contra a intolerân-cia, a intransigência e o preconceito”. Pesquisador da temática “Homosse-xualidade e Velhice”, Murilo explica que muitos homens analisados em seu trabalho sofreram com a falta de reconhecimento de direitos: “Fo-ram marcados pela epidemia de Aids quando ela era uma sentença de mor-te. Há narrativas impressionantes sobre a perda de parceiros, mas tais uniões eram invisíveis aos olhos da sociedade. Esses homens são de um

tempo em que a homossexualidade era uma patologia; o desejo estava sempre coberto pelo medo, vergonha, injúria e difamação e a falta de respal-do dos direitos sociais e civis deixou marcas profundas em suas trajetórias de vida”.

Atualmente, graças aos avanços na interpretação da lei, casais homos-sexuais podem recorrer a qualquer cartório do país para registrarem sua união. “Tabeliães e juízes não podem mais se negar a validar a parceria homossexual. Convicções pessoais, comprometimentos religiosos devem ser deixados de lado. Nós vivemos em uma democracia, na qual existe a vontade de todos e não somente a da maioria. Há segmentos minoritá-rios que têm seus direi-tos e devem ser respei-tados. Se esses grupos são aceitos na socie-dade ou não, se são alvo de preconceitos religiosos ou não, isso não deve invalidar o reconhecimento de sua cidadania”, destaca a advogada Maria Berenice Dias, da OAB.

Uma nova entidade familiarAo incorporar uma série de direi-

tos civis à população LGBT (lésbi-cas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros), o Supremo reco-nheceu a união homoafetiva como uma nova entidade familiar, pro-blematizando o con-ceito tradicional de família.

Assim como tantas outras ins-tituições, a família também é uma construção histórica. E vem mu-dando nas últimas décadas. São cada vez mais numerosas aquelas que, fugindo do paradigma mono-nuclear urbano - pai, mãe e filhos -, são chefiadas por mães ou pais sol-teiros ou por avós e tios que criam netos e sobrinhos.

A união homossexual é apenas mais um novo arranjo. “É preci-so entender que a família vem se transformando há muito tempo. Como instituição, é impactada pe-las transformações radicais da divi-são social do trabalho, pelo nível de

Aline Durães

autonomia e individualidade nas grandes metrópoles, nas relações de gênero e, principalmente, na es-fera da sexualidade que aponta para novos estilos de vida. Nesse sentido, a discussão da parceria civil entre pes-soas do mesmo sexo vem apimentar o debate”, explica Murilo Mota.

Para Denílson Lopes, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ e superintendente do Fórum de Ciência e Cultura (FCC), a aprovação da união estável não pode, entretanto,

forçar os homossexuais a se encaixa-rem em um modelo único. “Há mui-tas pessoas que não querem ser en-caradas como família ou como casal, que desejam ter outro tipo de confi-guração afetiva. É importante pensar que há uma diversidade de forma de relacionamentos, sem cairmos em moralismos. Não podemos achar que os gays devem se ater a um modelo único e já ultrapassado de família. O casamento não deve ser a única forma de se pensar família”, pontua o profes-

pacto contra a intolerância

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Junho/Julho 2011Junho/Julho 2011 29UFRJJornal da

Junho/Julho 2011 Cidadania

Aprovação da união estável entre homossexuais problematiza o conceito de família e abre caminho para o reconhecimento de direitos dos grupos LGBT

sor, que estuda gêneros, no que diz respeito a gays e transgêneros.

A caminho de direitosNa visão dos militantes do movi-

mento organizado LGBT, o momen-to atual é propício para expor outras reivindicações. Entre elas, a mais im-portante é a criminalização da homo-fobia.

Segundo o relatório organizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 260 pessoas foram assassinadas no Brasil

em 2010 em função da sua orienta-ção sexual, 62 a mais do que no ano anterior. Ao longo de cinco anos, os números da violência cresceram cer-ca de 113%, fazendo do Brasil o cam-peão mundial de assassinatos de ho-mossexuais.

Mais de 60% de gays e lésbicas en-trevistados para um estudo (“Política, Direitos, Violência e Homossexuali-dade”), do antropólogo Sérgio Luís Carrara, do Centro Latino-America-no em Sexualidade e Direitos Huma-

nos (Clam) e professor do programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), disseram sofrer agres-são e discriminação. Destes, 33,5% apontaram como agressores amigos e vizinhos, 27% para o ambiente familiar, 26,8% são agredidos nas escolas ou em faculdades e 20,6% em ambiente reli-gioso. Há ainda dados que apontam os homossexuais como o grupo de pessoas que mais sofre violência no Brasil.

Para frear os crimes de ódio, transi-ta no Senado Federal o Projeto de Lei nº 122 (PL 122/2006). Essa legislação enu-mera as diferentes formas de discrimina-ção e prevê punições específicas a cada uma delas. Mas encontra resistência, principalmente por parte das bancadas religiosas. O principal argumento desses segmentos é que essa lei, ao criminalizar a homofobia, estaria ferindo a liberdade de expressão daqueles que não simpati-zam com as causas homossexuais.

Na opinião de especialistas, entretan-to, a discussão sobre a homofobia deve estar no mesmo patamar do debate con-tra o racismo e contra a violência à mu-lher. “Não há qualquer voz social pública que reivindique, por exemplo, o direito de verbalizar o racismo. A pessoa pode até ser racista, mas não vai exigir fazer esse tipo de discussão em público”, ob-serva Denílson Lopes.

O PL 122 vem alterar a Lei nº 7.716, de 1989, que pune a discriminação em função de raça, cor, etnia e procedência nacional. “Queremos inserir aí a orienta-ção sexual. Mas as lideranças religiosas

manipulam o preconceito das pes-soas para vincular esse debate com

o de liberdade de expressão. Quando o assunto é homossexualidade, elas bri-gam pelo direito de se expressar contra. Pode falar mal de negro? Não! Pode fa-lar mal de homossexual? Também não!”, afirma Maria Berenice Dias.

Para Murilo Mota, a luta pela cidada-nia LGBT passa por debates e reflexões acerca da intolerância. O pesquisador afirma que os direitos de liberdade reli-giosa não podem ser utilizados para es-tigmatizar e violar a imagem dos homos-sexuais. “Eles não querem ser ‘curados’; não querem ser ‘salvos’, já que não se per-cebem em desvio; não querem ser iguais nas relações afetivas dentro da norma

heterossexual; não querem inventar novos direitos, somente querem garan-tias dos direitos humanos já percebidos como universais”, defende o sociólogo.

No fim, a consolidação da democracia

Mesmo depois de mais de 20 anos do fim da ditadura militar e da reabertura política, a democracia brasileira ainda está em construção. Passa por processos de aprimoramento constantes para que, cada vez mais, os cidadãos brasileiros te-nham acesso pleno a seus direitos.

De acordo com os especialistas, a promoção da cidadania LGBT é um dos passos indispensáveis à consolidação de uma democracia real no Brasil. Para Mu-rilo Mota, “a democracia de fato é aquela em que se luta contra as diferenças econômicas e desigualdades sociais, mas se garanta também o direito à diferença individual reconhecendo que todos podem ser o que querem no princípio da cidadania”.

Denílson Lopes lembra que a “questão homossexual” está inserida em um debate mais amplo, o dos di-reitos humanos. O professor enfatiza que a discussão acerca da tolerância às afetividades não-heterossexuais contribui, em última instância, para a construção de uma sociedade me-lhor. “As pessoas precisam discutir a sexualidade que, afinal, é uma dimensão da experiência humana. Nós nos compreendemos pelo que somos, mas também pelo que não somos. Quanto maior a diversidade e o nosso contato com o diferente, maior será o nosso enriquecimen-to”.

A mudança passa também pela universidade. A Comissão de Di-versidade Sexual da OAB está or-ganizando um estatuto a ser envia-do para as esferas legislativas, que prevê, entre outras, a adequação na grade curricular dos cursos de Direito. “Um dos efeitos da decisão do Supremo foi o de divulgar que a população LGBT tem direitos e deve buscá-los. Isso exige uma qua-lificação dos advogados. Eles pre-cisam estar prontos para trabalhar com esse que eu considero um novo ramo do Direito”, conclui Maria Berenice Dias, que é ex-desembargadora.

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Escola deBelas Artes

Fabio Portugal

A história de criação da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ se con-

funde, de certa maneira, com a pró-pria história do Brasil pós-colonial. Nascida, em 12 de agosto de 1816, com o nome de Escola Real de Ci-ências, Artes e Ofícios, ela surge junto à preocupação de D. João VI com o desenvolvimento cultural da sede da corte. Com a chegada da Missão Artística Francesa - grupo de artistas e artífices organizados e liderados por Joaquim Le Breton, do qual faziam parte pintores, es-cultores, desenhistas e arquitetos cujas obras seguiam o estilo Neo-clássico -, há um forte desenvolvi-mento das Belas Artes no país, o que o elevou, no campo do ensino superior acadêmico, a um patamar até mesmo superior a alguns países europeus. O pioneirismo do ensino artístico foi apenas uma das impor-tantes ações realizadas pela família real, que havia chegado ao Brasil em 1808.

Não há dúvida de que o legado da primeira escola de arte do país pode ser visto até hoje. Ao longo de seus 195 anos, antes mesmo de pertencer à UFRJ, ela adotou dife-rentes denominações e passou por diferentes moradas na capital. Em 1827, era conhecida como Acade-mia Imperial de Belas Artes, nome adotado até o fim do Segundo Im-

celebra seus 195 anosVanessa Sol

pério. Nessa época, ela se instalou no prédio de estética neoclássica projetado por Grandjean de Mon-tigny, no centro do Rio.

Com a proclamação da Repú-blica, em 15 de novembro de 1889, a Academia Imperial de Belas Ar-tes (ENBA) desaparece e um ano depois ressurge como Escola Na-cional de Belas Artes. Em 1931, a ENBA passa a integrar a Universi-dade do Rio de Janeiro e, em 1937, a Universidade do Brasil, permane-cendo assim até 1966, quando, en-tão, se torna a Escola de Belas Ar-tes da UFRJ. Em 1975, a unidade é transferida para a Cidade Universi-tária. Nas novas instalações, divide o espaço com a Faculdade de Ar-quitetura e Urbanismo (FAU), com o Instituto de Pesquisa e Planeja-mento Urbano e Regional (Ippur) e com a Reitoria.

Carlos Gonçalves Terra, pro-fessor e diretor da EBA, avalia que a escola cresceu muito desde sua criação e que formou, e forma, ar-tistas e profissionais que estão no mercado, “nomes reconhecidos em todas as áreas”. Para ele, a EBA “é uma riqueza muito grande para o ensino da Arte”, no Brasil.

A EBA de hoje e de amanhãAtualmente, a EBA oferece di-

versas formações profissionais e artísticas. São 11 cursos, dos quais

Universidade

Visitantes e expositores na “Quinzena de Gravura”, evento realizado por alunos do

ateliê do curso de Gravura, da Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ).

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Fabio Portugal

Uma das tarefas de Carlos Terra, diretor da EBA, será a de construir um centro cultural no terreno doado por Belmiro de Abreu.

Marco Fernandes

Pintura, Escultura e Gravura fo-ram os pioneiros. Há também os de Composição Paisagística; Com-posição de Interiores; Desenho In-dustrial (Projeto de Produto); Co-municação Visual – Design; Artes Cênicas (com duas habilitações: Indumentária e Cenografia); His-tória da Arte; Restauração de Bens Culturais Móveis e Licenciaturas em Educação Artística (com duas habilitações: Artes Plásticas e De-senho).

No passado, o curso de Arquite-tura também fazia parte da Escola de Belas Artes. Porém, o curso se emancipou em 1945, dando origem a Faculdade Nacional de Arquite-tura e, posteriormente, recebeu a denominação de Faculdade de Ar-quitetura e Urbanismo da UFRJ.

A escola cresceu muito ao lon-go de sua trajetória, ampliando a oferta de cursos e possibilidades de formações diferentes. Com a ex-pansão, a EBA ganhou o primeiro módulo que está sendo construído atrás do prédio da Reitoria e que abrigará parte de seus cursos. De acordo Carlos Terra, o novo prédio tem uma especificação de pé direi-to para abrigar grandes esculturas, e a previsão é que as obras sejam concluídas em novembro de 2012. “Nós ganhamos o primeiro módulo e acredito que com o prédio novo parte dos problemas de espaço se-jam solucionados. No escopo do Plano Diretor 2020, teremos mais dois ou três módulos o que permite toda a escola ficar bem alocada em termos de espaço físico”, destaca o diretor.

Pensando na melhoria de aces-so à informação, a atual direção colocou computadores com acesso à Internet à disposição dos alunos nos corredores da EBA. Hoje, já são cinco terminais entre o sexto e o sétimo andares. A intenção é colocar outros setes em pontos da escola, inclusive, no atelier, apeli-dado de Pamplonão – no qual os estudantes participam das aulas de Pintura. “Essa ideia de ter o aces-so rápido à Internet por meio de terminais de computador me fas-cinou. Vi isso em uma universida-de e, assim que pude, implantei-a aqui. Com os terminais, os alunos podem ter acesso a e-mail, podem fazer a inscrição no Sistema Inte-grado de Gestão Acadêmica (Siga), entre outras possibilidades”, enfati-za Carlos Terra.

Centro CulturalA Escola de Belas Artes pretende

no futuro construir um centro cul-tural no terreno que foi doado, em testamento, por Belmiro de Abreu, localizado na Avenida Mem de Sá, no bairro da Lapa, Rio de Janeiro. Para obter a posse do terreno, a UFRJ enfrentou anos de batalha ju-

dicial, uma vez que o mesmo estava ocupado e vinha sendo explorado como estacionamento de veículos.

De acordo com Carlos Terra, no testamento de doação, há a explí-cita vontade de Belmiro de Abreu que no terreno fosse construído um centro de Artes com espaço desti-nado à exposição de jovens artis-tas. “Tentando atender a vonta-de do doador, a EBA construirá um centro cul-tural com três pavimentos, no qual o primeiro será uma galeria para exposição de estudantes e jovens artistas; no segundo ha-verá um pequeno teatro e, no ter-ceiro, salas para cursos de Exten-são voltados à comunidade do entorno”, afirma o professor.

No momen-to, a EBA espera que a Prefeitura do Rio de Janei-ro conceda o alvará de construção, pois já existe verba alocada para o início das obras. O diretor explica que vem trabalhando pela liberação do mesmo o quanto antes: “desde que assumi a direção da escola, no ano passado, estou lutando pela li-beração do alvará de construção”.

Museu D. João VI: aliado no ensino

A Escola de Belas Artes conta com importante instrumento para

a preservação de sua memória e também para o ensino e a pesquisa. É o Museu D. João VI, fundado em 1979. Seu acervo está ligado à pró-pria criação da EBA, quando ainda era Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. Grande parte da coleção ficou sob a guarda do Museu Na-

cional de Belas Artes, quando foi criado, em 1937. Contudo, as peças de in-teresse acadê-mico passaram a compor o Museu D. João VI, em 1979.

S e g u n d o Carla Dias, professora da EBA e coorde-nadora do Mu-seu D. João VI, as peças disper-sas pela EBA não haviam sido olhadas como um patri-mônio da esco-la. “Esse olhar para a consti-tuição de um patrimônio e a notação desses

títulos para o tombamento se deu a partir da gestão de Almir Paredes Cunha, então diretor da EBA. Foi ele que decidiu criar o museu para preservar esses objetos que fazem parte da história da escola”, destaca a coordenadora.

Ao todo são cerca de 6.600 peças, dentre as quais 800 são gravuras, 837 desenhos, 480 pinturas, além de esculturas, fotografias, vitrais, 4 mil livros que fazem parte da Biblioteca de Obras Raras, plantas e desenhos

arquitetônicos. Muitas dessas peças foram doadas, como é o caso da co-leção Ferreira das Neves.

Há ainda uma coleção didática, que são peças resultantes de ativida-des pedagógicas realizadas ao lon-go dos anos na EBA. São desenhos, exercícios feitos por estudantes du-rante as aulas, estudos de modelo vivo, esboços, entre outros.

Em 2005, o museu passou por uma revitalização através do projeto coordenado por Sonia Gomes Pe-reira que foi contemplado pelo Pro-grama Petrobras Cultural. Com a revitalização, o D. João VI assumiu um novo conceito. Além de preser-var a memória da EBA e do ensino artístico no Brasil, hoje, assume um padrão compatível com as necessi-dades de estudo da História da Arte dos últimos dois séculos.

Atualmente, todo acervo está disponível ao público e peças estão dispostas em trainéis deslizantes, estantes e mapotecas. Assim, o vi-sitante pode fazer seu próprio per-curso. Na opinião de Carla Dias, ao invés de ter uma exposição per-manente ou temporária e um acer-vo guardado, optou-se por abri-lo completamente: “todas as peças do museu estão expostas. Isso é um novo paradigma museográfico. Tanto que outros museus vêm nos visitar para ver como funciona”.

A possibilidade de escolha do per-curso também faz parte da proposta. Cada visitante, estudante ou pesqui-sador elaborará um caminho dife-rente e cada visita será única. Carla Dias explica que, dessa maneira, não há um percurso definido, em-bora existam áreas de interesse pré-definidas. “O visitante é um agente. Ele percorre os espaços e constrói sua própria visita”, finaliza a pro-fessora.

“todas as

peças do

museu estão

expostas.

Isso é

um novo

paradigma

museográfico.”

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“Passou um versinho voando, ou foi uma gaivota?” É essa a concepção perecível de po-esia de Antônio Carlos de Brito, considera-do o ícone da poesia marginal brasileira, nascido na cidade mineira de Uberaba, em 1944. Eternizado pelo apelido “Caca-so”, mudou-se para o Rio de Janeiro aos 11 anos e, logo depois, por seu talento para o desenho, publicou caricaturas de políticos na imprensa carioca. Já a poesia veio antes dos 20, por suas letras para músicas dos amigos Elton Medeiros e Maurício Tapajós.

Cacaso lecionou na Pontifícia Universidade Ca-tólica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), nos anos 1960 e 1970. Colaborador das revistas Movimento e Opi-nião, lançou sua primeira obra poética, A palavra cerzida, em 1967. É partir de então que se dá seu engajamento político-social e a consolidação de sua poesia crítica, livre e irônica - no pós-modernismo poético conhecido por “geração mimeógrafo”, pelo qual a poesia marginal se consolidou.

No sufocoEm plena ditadura militar, com a falta de espa-

ço em editoras tradicionais para suas poesias, Cacaso e outros intelectuais, como Chacal e Ana Cristina Ce-sar, passam a difundir seus escritos através de cópias mimeografadas. É em 1976, com a antologia 26 poetas hoje, de Heloísa Buarque de Hollanda, que passam a ser divulgados e destacados os “poetas perecíveis”: “Des-de 1968, a gente era mais ou menos um grupo coeso e começamos a nos interessar juntos pela poesia margi-nal, como uma forma de resistência ao golpe de 1964”, afirma Heloísa Buarque, que é professora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), do Fó-rum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ.

Inserido no que Heloísa Buarque denomina de “a geração do sufoco”, que permaneceu no Brasil depois

Cacaso

Guido Arosa

do Ato Institucional número 5 (AI-5), Cacaso ministrava aulas, clandestinamente, de po-esia, no subterrâneo do Parque Lage. “Naquele momento, Cacaso era off, não parecia pretender a eternidade com sua poesia e, daí, atualmen-te, ele ser adotado em provas de vestibular”, relembra a professora.

ReferênciasPara Teresa Cristina Meireles de Oliveira, professora

da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, Cacaso é produto de diversas correntes da poesia, unindo o tradicional aos movimentos de vanguarda. “Em Cacaso se manifestam a herança iconoclasta de Drummond, o lirismo cotidiano de Bandeira, o humor sintético de Oswald de Andrade. É por essas leituras que passa a sua poesia, que também viu os experimentalismos do Concretismo e do Neocon-cretismo”, ressalta a docente.

Segundo Heloisa Buarque, Cacaso fez parte de uma geração “comprometida com a espontaneidade da lin-guagem”, trazendo aos anos 1970, segundo Teresa Cristi-

na, a “atualização da palavra poética, em que se podem perceber traços da influência da mass media e da tradição e renovação da letra da música popular”.

Parcerias de pesoÉ na Música Popular Brasileira (MPB), além de sua

contribuição à poesia e ao magistério, que Cacaso foi uma das peças fundamentais. Teve como parceiros João Bosco, Aldir Blanc, Toquinho, Miúcha, Chico Buarque e outros. Uma de suas principais composições foi “Dentro de mim mora um anjo”, interpretada, em 1975, por Sueli Costa, foi trilha da novela “Bravo” (1975 – 1976), da Rede Globo, regravada na voz de Fafá de Belém.

Morto em 1987, Cacaso ressurgiu nos anos 2000 com a coletânea de sua obra completa, Lero-lero (Cosac & Naify, 2002), e com nova edição de seu livro Na corda bamba (Bem-Te-Vi, 2004).

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