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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA MESTRADO EM HISTÓRIA KATIUSCIA QUIRINO BARBOSA A imagem do cavaleiro ideal em Avis à época de D. Duarte e D. Afonso V. (1433-1481) NITERÓI 2010

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Cavaleiro medieval

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    MESTRADO EM HISTRIA

    KATIUSCIA QUIRINO BARBOSA

    A imagem do cavaleiro ideal em Avis poca de D.

    Duarte e D. Afonso V. (1433-1481)

    NITERI

    2010

  • 2

    B238 Barbosa, Katiuscia Quirino.

    A imagem do cavaleiro ideal em Avis poca de D. Duarte e D.

    Afonso V (1433-1481) / Katiuscia Quirino Barbosa. 2010.

    160 f. ; il.

    Orientador: Vnia Leite Fres.

    Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento

    de Histria, 2010.

    Bibliografia: f. 154-160.

    1. Portugal - Histria - Sculo XV. I. Fres, Vnia Leite. II.

    Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e

    Filosofia. III. Ttulo.

    CDD 946.902

  • 3

    KATIUSCIA QUIRINO BARBOSA

    A imagem do cavaleiro ideal em Avis poca de D.

    Duarte e D. Afonso V. (1433-1481)

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria da Universidade

    Federal Fluminense, como requisito parcial

    para a obteno do Grau de Mestre. rea de

    concentrao: Histria Social e das Idias

    Orientador: Prof Dr VNIA LEITE FRES

    NITERI

    2010

  • 4

    KATIUSCIA QUIRINO BARBOSA

    A imagem do cavaleiro ideal em Avis poca de D.

    Duarte e D. Afonso V. (1433-1481)

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria da Universidade

    Federal Fluminense, como requisito parcial

    para a obteno do Grau de Mestre. rea de

    concentrao: Histria Social e das Idias

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________________________

    Professora Doutora Vnia Leite Fres Orientadora

    Universidade Federal Fluminense UFF

    ______________________________________________________________________

    Professor Doutor Roberto Godofredo Fabri

    Universidade Federal Fluminense UFF

    ______________________________________________________________________

    Professora Doutora Miriam Cabral Coser

    Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ

    NITERI

    2010

  • 5

    DEDICATRIA Aos meus pais.

    Professora Doutora Vnia Leite Fres, sem a

    qual este trabalho no se concretizaria.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Prof. Dr. Vnia Leite Fres, por seu apoio, carinho e

    principalmente por sua pacincia.

    Ao Professor Doutor Roberto Godofredo Fabri e Professora

    Doutora Miriam Cabral Coser, pelas contribuies dadas no

    exame de qualificao.

    Aos familiares e amigos cujo apoio e compreenso foram

    fundamentais para a realizao deste trabalho.

    CAPES pela concesso da bolsa

  • 7

    AMADIS DE GAULA A D. QUIXOTE DE LA MANCHA

    SONETO

    Tu, que imitaste a chorosa vida

    Que levei ausente e desdenhado sobre

    O gran penhasco da Penha Pobre,

    De alegre a penitncia reduzida.

    Tu, a quem os olhos deram a bebida

    De abundante licor, embora salobra,

    E erguendo-te de prata, estanho e cobre,

    Te deu a terra em terra a comida.

    Vive seguro de que eternamente,

    Em tanto, ao menos, que na quarta esfera

    Seus cavalos excite o ruivo Apolo,

    Ters claro renome de valente;

    Tua ptria ser dentre todas a primeira;

    Teu sbio autor, ao mundo nico e s.

  • 8

    Sumrio

    Resumo ........................................................................................................................... 11

    Abstract ............................................................................................................................ 12

    Introduo ....................................................................................................................... 13

    Parte I ............................................................................................................................... 18

    Captulo 1. Cavalaria, guerra e cruzada no Ocidente Medieval: perspectivas

    historiogrficas e fontes para o estudo em Portugal ............................................. 19 A. Cavalaria Medieval: questes historiogrficas e perspectivas de estudo

    1. A Cavalaria na historiografia 19

    2. Sobre as noes de cavalaria guerra e cruzada em Portugal 23

    B. As fontes trabalhadas

    1. O Amadis de Gaula ........................................................................................ 33

    1.1Montalvo e a primeira edio impressa. .................................................. 35

    1.2. Verso utilizada ...................................................................................... 37

    1.3. Verses em Castelhano ........................................................................... 38

    1.4. O Amadis primitivo ................................................................................. 43

    1.5. O Amadis de Gaula no bojo de disputas nacionalistas.................... 45

    2. A prosa portuguesa no sculo XV: As crnicas e literatura moralstica ......... 50

    3. As crnicas: O cronista de D. Afonso V ........................................................ 51

    3.1. A Crnica de Ceuta ................................................................................ 53

    3.2. A crnica dos feitos e conquistas da Guin ............................................ 55

    3.3. A crnica do Conde D. Pedro de Meneses............................................57

    3.4. A Crnica do Conde D. Duarte de Meneses ......................................... 59

    4. A Literatura moralstica: O livro da Ensinana de bem cavalgar toda

    sela.........................................................................................................................59

    Captulo 2. A Cavalaria e o ideal de cruzada na Baixa Idade Mdia ..................... 61 A cavalaria no Ocidente a partir do sculo XI

    1. A Cavalaria ...................................................................................................... 61

    1.2 A cavalaria na literatura ............................................................................ 63

    2. A guerra na Baixa Idade Mdia.......................................................................66

    3. O declnio da cavalaria....................................................................................71

    B. A cavalaria em Portugal entre os sculos XI e XIII

    1. A composio da classe senhorial Portuguesa............................................... 72

    2. A formao da cavalaria em Portugal ............................................................. 75

    3. Guerra e cruzada em Portugal.........................................................................79

    4. Afonso Henriques e o modelo de rei-guerreiro portugus.............................85

    5. Nobreza guerreira e nobreza de corte em Portugal entre os sculos XII e

    XIV..................................................................................................................................87

    5.1 Corte e cavalaria em Portugal nos sculos XIII e XIV.............................89

    Parte 2

    Captulo 3. Avis e a vocao messinica do reino portugus ............................. 95

  • 9

    1. A ascenso de Avis e a configurao de uma nova estrutura

    social......................................................................................................................95

    2. A expanso portuguesa e a releitura do ideal cruzadista.................................101

    3. O reforo da ideologia cruzadista no reinado de D. Afonso V........................103

    4. O reforo da ideologia cruzadista no reinado de D. Afonso V........................110

    Captulo 4. O cavaleiro dos novos tempos: a construo de um paradigma de cavalaria

    a partir da dinastia de Avis e os modelos do Amadis de Gaula e do Livro da Ensinana

    de bem cavalgar toda sela ............................................................................................ 114

    1. A redefinio do paradigma de cavaleiro: a prosa de D. Duarte e a releitura da

    fico cavaleiresca ..................................................................................................... 114

    2. O modelo cavaleiresco avisino no Amadis de Gaula .........................................118

    3. O cavaleiro de Avis no Livro da ensinana de bem cavalgar toda sela ............. 125

    Captulo 5. O Discurso Cronstico e a exaltao da ideologia cavaleiresca durante

    o reinado de D. Afonso V: Os Meneses e a personificao do cavaleiro Portugus

    avisino...........................................................................................................................135

    1. Zurara e a ideologia cruzadstica avisina .............................................................. 135

    2. Os Meneses e a concretizao do ideal de cavalaria avisino ................................ 138

    2.1. O conde D. Pedro de Meneses ...................................................................... 138

    2.2. O conde D. Duarte de Meneses...................................................................144

    Concluso ..................................................................................................................... 149

    Bibliografia .................................................................................................................. 152

  • 10

    ndice de ilustraes

    FIGURA PGINA TTULO REFERNCIA

    1 40 Capa da edio de

    Sevilha

    Amadis de Gaula.

    Edio digitalizada da

    Biblioteca Nacional de

    Lisboa

    2 56 Capa da edio de 1841.

    Biblioteca Nacional de

    Portugal

    Crnica dos feitos e

    conquistas da Guin.

    Edio digitalizada da

    Biblioteca Nacional de

    Lisboa

  • 11

    Resumo

    Ao assumir o trono portugus a Dinastia de Avis necessitou fundamentar o reino

    a partir de uma concepo capaz de gerar coeso social e de legitimar a prpria

    Dinastia no poder. Progressivamente estruturou-se uma ideologia assente em valores

    caros a cultura portuguesa como a propagao e afirmao da f crist e a honra

    cavaleiresca. Nosso objetivo definir o paradigma de cavalaria em Avis a partir da

    anlise dos modelos expostos no livro da ensinana de bem cavalgar toda sela, nas

    crnicas de Gomes Eanes de Zurara e no Amadis de Gaula.

  • 12

    ABSTRACT

    When Avis Dynasty assumes the Portuguese throne, needs to structure the kingdom

    from a conception able to promote a social cohesion and legitimize itself in the

    power. Progressively it was been structured an ideology based on important values

    to Portuguese culture, for example the expansion and affirmation of Christian faith

    and the knighthoods honor.Our goal is define the knighthood paradigm in Avis,

    using the analysis of the models expose in Livro da ensinana de bem cavalgar toda

    sela, the chronicles of Gomes Eanes de Zurara and Amadis de Gaula.

  • 13

    Introduo

    O Imaginrio Poltico Portugus no final da Idade Mdia um tema que nos

    ltimos anos tem sido largamente estudado nas universidades brasileiras, conquistando

    um espao significativo na nossa produo historiogrfica. luz dessa temtica

    destacam-se os trabalhos referentes legitimao do poder monrquico por parte da

    Dinastia de Avis ao longo dos sculos XIV, XV e XVI. Dentro dessa perspectiva,

    observa-se a proliferao de discusses acerca da construo do Estado portugus,

    considerando, sobretudo, a sua dimenso simblica. O estudo do discurso poltico

    avisino, bem como, das representaes de poder tornaram-se lugar-comum nas

    pesquisas relacionadas ao imaginrio poltico portugus. A prosa de Avis, o que inclui a

    produo cronstica do perodo, vem recebendo tratamento privilegiado no que tange s

    fontes de anlise.

    No Brasil, os estudos sobre o imaginrio rgio portugus baixo medieval tm

    como obra pioneira a tese de doutorado de Vnia Fres, intitulada: Espao e sociedade

    em Gil Vicente: contribuio para um estudo do imaginrio portugus (1502-

    1523)1.Neste trabalho, a autora demonstra como o rei transformou-se em um topos e o

    seu pao em um mecanismo de ordenamento do mundo e do reino2.Tal concluso se d

    a partir da formulao de uma categoria analtica a qual denomina discurso do pao

    A partir desta referncia observa-se o incio das reflexes sobre Imaginrio

    Poltico Portugus no final da Idade Mdia na historiografia brasileira. Grande parte da

    produo acadmica, relativa temtica, est vinculada ao scriptorium, laboratrio de

    estudos medievais e ibricos, coordenado pela historiadora Vnia L. Fres. Nesta

    perspectiva, enquadra-se a presente dissertao.

    Nessa perspectiva, nosso trabalho procura delinear os eixos do projeto poltico

    avisino durante o reinado dos primeiros monarcas dessa dinastia. O objetivo geral dessa

    dissertao caracterizar o perfil modelar do cavaleiro portugus do sculo XV a partir

    1 FRES, Vnia leite. Espao e sociedade em Gil Vicente: contribuio para um estudo do

    imaginrio portugus (1502-1523).Tese de doutorado, USP: So Paulo, 1985.APUD. AMARAL ,Clinio.

    A construo de um Infante Santo em Portugal Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao

    em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri: Cpia reprografada, 2004,p. 32. 2 AMARAL, Clinio. A construo de um Infante Santo em Portugal. Dissertao apresentada ao

    programa de ps-graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri: Cpia

    reprografada, 2004. P. 30.

  • 14

    da anlise das imagens da nobreza cavaleiresca veiculadas no Livro da ensinana de

    bem cavalgar escrito pelo rei D. Duarte, na Crnica do Conde D. Pedro de Meneses, na

    Crnica do Conde D. Duarte de Meneses, ambas de autoria de nas crnicas de Gomes

    Eanes de Zurara e na novela de cavalaria Amadis de Gaula.

    Nossa hiptese central a de que durante os reinados de D. Duarte e D. Afonso

    V foram estruturados modelos distintos de cavalaria que se ligam aos diferentes

    propsitos ideolgicos da poltica avisina nesses dois momentos. Nesse sentido,

    analisamos a evoluo do conceito de cavalaria em Portugal e como a Dinastia de Avis

    se apropria desse conceito, integrando-o ao seu projeto poltico.

    O esprito cavaleiresco e cruzadstico, que a partir do sculo XI

    movimentou o cenrio poltico do Ocidente medieval e que h muito j havia se

    perdido, ganhou na Pennsula Ibrica, sobretudo em Portugal, um significado renovado.

    Considera-se que a concepo de cavalaria da segunda metade do sculo XV em

    Portugal relaciona-se com o movimento de expanso que toma maiores propores a

    partir da ascenso de D. Afonso V. Observa-se, ao longo de seu governo, a construo

    de um discurso favorvel expanso, ligado s expectativas daqueles que detinham o

    poder. Discurso esse marcado pela exaltao da nobreza, da vocao guerreira do

    reino, dos feitos de armas e do esprito cavaleiresco cruzadstico.

    Ao assumir o trono D. Afonso V modificou muitos aspectos que caracterizaram

    o projeto poltico avisino nos reinados anteriores, a comear pelos mecanismos

    propagandsticos utilizados pela dinastia. A retomada da guerra contra os mouros na

    frica, na segunda metade do sculo XV, marca o retorno do rei-cavaleiro e cruzado

    que parece anacrnico em meio s novas demandas da sociedade.

    Dessa forma, o modelo de cavalaria que se percebe, sobretudo, na

    produo cronstica diferente do perodo anterior que exaltava os valores cortesos e

    estava claramente relacionado necessidade de educar e mesmo domesticar uma

    nobreza em ascenso. Assim, retoma-se o modelo de cavaleiro cruzado, sem, entretanto

    excluir alguns valores cortesos expostos na literatura tcnica e de fico dos primeiros

    reinados avisinos.

    Quanto estrutura, a dissertao apresenta-se organizada em cinco captulos

    divididos em duas partes. A primeira parte possui dois captulos, nos quais so

    discutidas questes referentes produo historiogrfica sobre a cavalaria, alm da

    anlise da evoluo dessa instituio no Ocidente, enfatizando a sua formao em

    Portugal at a ascenso de Avis.

  • 15

    No primeiro captulo fazemos balano historiogrfico referente s noes de

    Cavalaria, Guerra e Cruzada no Ocidente, alm da apresentao das fontes desta

    pesquisa. O captulo apresenta-se dividido em duas partes.

    A primeira parte dedica-se a discusso da produo historiogrfica sobre os

    temas acima citados. No primeiro ponto apresentamos alguns medievalistas que de

    alguma forma contriburam para o estudo da cavalaria no Ocidente. Dentre os autores

    que desenvolveram obras relevantes sobre a temtica, destacamos aqui, Johan Huzinga,

    Georges Duby, Michel Patoureau, Jean Flori e Franco Cardini. Ainda que resguardemos

    as peculiaridades dos referidos autores, possvel identificar, ao menos, um ponto em

    comum entre eles que o fato de limitarem suas anlises aos modelos de cavalaria

    francesa.

    Por muito tempo os estudos sobre cavalaria medieval estiveram focados no

    modelo francs, que em muitos aspectos, assemelha-se com os modelos ingls,

    germnico e mesmo o portugus. Por esta razo optamos por delinear forma como este

    paradigma trabalhado pela historiografia antes de partimos o caso especfico da

    produo sobre cavalaria em Portugal.

    Nesse sentido, estruturamos o segundo item da primeira parte do captulo em

    torno das peculiaridades do caso portugus. So interessantes as variaes que o

    conceito de cavaleiro ter dentro do reino de Portugal, variaes estas que esto

    intimamente ligadas com as noes de nobreza expressas em diferentes regies do

    reino. Assim destacamos dentre os principais historiadores que escreveram sobre o tema

    em Portugal Jos Mattoso, Joo Marinho, A.H de Oliveira Marques, Nuno Silva

    Campos e Isabel Dias, merecendo destaque na produo brasileira a dissertao de

    Silvio Galvo de Queirs e a tese de Fabiano Fernandes.

    A segunda parte do primeiro captulo dedica-se apresentao das fontes. Quais

    sejam: Crnica de D. Pedro de Meneses e a Crnica de D. Duarte de Meneses, obras de

    autoria de Gomes Eanes de Zurara. Alm destas, tambm utilizamos o Livro da

    Ensinana de Bem cavalgar Toda sela escrito pelo rei D. Duarte e o Amadis de Gaula,

    novela de fico cavalheiresca de autor desconhecido.

    Fazemos a descrio de nosso corpus documental, considerando as

    especificidades das edies utilizadas na pesquisa e as problemticas que envolveram a

    produo desses textos. Desenvolveremos tpicos distintos para a abordagem de cada

    fonte de forma meticulosa

  • 16

    No segundo captulo intitulado, A Cavalaria e o ideal de cruzada na Baixa

    Idade Mdia nosso principal objetivo entender como se constri a ideologia

    cavaleiresca avisina. Abordamos as concepes de guerra e cruzada, destacando a sua

    relao com os ideais da cavalaria, no s em Portugal, mas em todo o Ocidente.

    Trabalhamos a concepo de cavalaria no reino de Portugal durante a dinastia de

    Borgonha, procurando entender como se desenvolveu a instituio cavaleiresca,

    atentando s subdivises no interior na nobreza portuguesa e a relao desse grupo com

    a cavalaria. Delineamos a evoluo da instituio cavaleiresca em Portugal at a

    ascenso de Avis, para ento compreendermos em quais contextos estruturaram-se os

    paradigmas de cavalaria veiculados nos reinados de D. Duarte e D. Afonso V.

    Na segunda parte da dissertao so discutidas questes referentes ao sculo XV

    em Portugal, considerando o projeto poltico avisino e suas relaes com a cavalaria.

    Assim, nos captulos que compem esta parte trabalhamos com a anlise das fontes

    privilegiadas nessa dissertao.

    O terceiro captulo, de carter contextual, aponta a relao do advento da casa de

    Avis com o esforo em renovar os significados da cavalaria e da noo de cruzada e

    como este esforo liga-se necessidade de legitimar a nova dinastia e a nobreza que

    ascende nesse perodo.

    Neste captulo analisamos o fenmeno da expanso e, por conseguinte, da guerra

    externa e a sua repercusso na poltica interna e a influncia da cavalaria nesse contexto.

    Considera-se que a concepo de cavalaria da segunda metade do sculo XV em

    Portugal relaciona-se com o movimento de expanso que toma maiores propores a

    partir da ascenso de D. Afonso V.

    O quarto captulo intitulado O cavaleiro dos novos tempos: a construo de um

    paradigma de cavalaria a partir da dinastia de Avis e os modelos do Amadis de Gaula

    e do Livro da Ensinana de bem cavalgar toda sela tem por finalidade definir o

    paradigma de cavalaria durante o reinado de D. Duarte a partir dos modelos veiculados

    no Amadis de Gaula , novela de fico cavaleiresca que obteve grande voga no pao

    portugus quatrocentista e no Livro da Ensinana de bem cavalgar toda sela, tratado de

    equitao produzido pelo rei D. Duarte. Assim, explicamos de que forma estas obras

    so utilizadas pela Casa de Avis a fim de consolidar um paradigma de nobreza e

    cavalaria

  • 17

    A anlise dessas obras feita dentro do modelo do bom cavaleiro. No que

    concerne ao Amadis, pretendemos demonstrar como ele relido de acordo com o novo

    contexto poltico inaugurado com a ascenso de Avis. Quanto ao livro da ensinana de

    bem cavalgar toda sela apontamos os pontos em que o perfil do cavaleiro nele exposto

    se coaduna e se distancia do modelo representado pelo Amadis.

    O ltimo captulo, intitulado O Discurso Cronstico e a exaltao da ideologia

    cavaleiresca durante o reinado de D. Afonso V: Os Meneses e a personificao do

    cavaleiro Portugus avisino, consiste na anlise do modelo de cavalaria veiculados nas

    crnicas de Gomes Eanes de Zurara. Nossa inteno demonstrar como estes nobres

    so representados pelo cronista como modelos de perfeio cavaleiresca, apontando as

    continuidades e rupturas com o modelo corteso e como eles podem ser identificados

    com o modelo de cavaleiro-cruzado.

    Finalmente, conclumos a partir de um balano dos principais pontos trabalhados

    ao longo dos captulos da dissertao, apontando as possveis contribuies de nosso

    estudo para o estudo da cavalaria em Portugal. Revemos as principais questes

    levantadas ao logo dos captulos da dissertao, relacionando-as com os argumentos

    essenciais a partir da hiptese central da pesquisa.

  • 18

    Parte 1

  • 19

    Captulo 1

    A Cavalaria no Ocidente Medieval: perspectivas historiogrficas e

    fontes para o estudo em Portugal

    A. Cavalaria Medieval: questes historiogrficas e perspectivas de estudo

    1. A Cavalaria na Historiografia europia

    A questo da cavalaria, da prtica das armas e de todo o sistema de valores que

    envolvem o tema, tem sido objeto de extensa produo historiogrfica. Diante disso,

    esse primeiro captulo dedica-se apresentao de alguns dos principais estudos que

    consideramos relevantes sobre o tema, a comear pela apresentao de obras e autores

    que se tornaram referenciais para o estudo da cavalaria no Ocidente Medieval Europeu.

    Em seguida exporemos as formas com as quais a historiografia trabalha o assunto em

    Portugal.

    Dentre os medievalistas que desenvolveram obras de extremada importncia

    sobre a temtica, destacamos aqui, Johan Huzinga, Marc Bloch, Georges Duby, Michel

    Patoureau, Jacques Le Goff, Jean Flori e Franco Cardini e Jrme Baschet. Ainda que

    resguardemos as peculiaridades dos referidos autores, possvel identificar, ao menos,

    um ponto em comum entre eles que o fato de limitarem suas anlises aos modelos de

    cavalaria francesa. Por muito tempo os estudos sobre cavalaria medieval estiveram

    focados no modelo francs, que serviu como paradigma para os casos ingls, germnico

    e mesmo o portugus. Por esta razo optamos por delinear a forma como este paradigma

    trabalhado pela historiografia, antes de partimos para o caso especfico da produo

    sobre cavalaria em Portugal.

    O historiador neerlands, Johan Huizinga, destaca-se pelo pioneirismo nas

    pesquisas sobre o tema. As obras desse autor caracterizam-se por abordarem aspectos da

    histria da Frana e dos Pases Baixos no final da idade mdia. Na dcada de 20,

    Huizinga publicou o livro O Declnio da idade mdia, Um estudo das formas de vida,

    pensamento e arte em Frana e nos pases baixos3, a obra de imenso relevo, pois

    3 HUIZINGA, Yohan. O Declnio da Idade Mdia. Um estudo das formas de vida, pensamento e

    arte em Frana e nos pases baixos. Traduo: Augusto Abelaira. Lisboa Rio de Janeiro: Editora Ulisseia, 1924.

  • 20

    constitui um dos primeiros estudos de Histria Cultural na Idade Mdia a ser produzido.

    No captulo IV, intitulado A idia de cavalaria, o autor estuda os significados da noo

    de cavalaria na Baixa Idade Mdia, analisando a influncia dos romances de cavalaria

    na percepo da realidade social e poltica. No referido captulo o Huizinga aponta as

    relaes da idia de cavalaria com alguns aspectos polticos e culturais da sociedade,

    dessa forma:

    A concepo de cavalaria como forma sublime de vida secular podia ser

    definida como um ideal esttico revestindo o aspecto de ideal tico (...). Os

    autores desse perodo necessitavam de uma forma para as suas concepes

    polticas e a idia de cavalaria surgiu-lhes ento. Por meio dessa fico

    tradicional conseguiram explicar a si mesmos tanto quanto puderam os

    motivos e o descaso da histria, que foi assim reduzida ao espetculo da

    honra dos prncipes, e das virtudes dos cavaleiros.4

    Na dcada de 30 o clebre historiador francs, Marc Bloch, escreve a

    Sociedade Feudal5 obra extensa onde discorre sobre os principais aspectos da

    estrutura social do feudalismo. No segundo tomo da obra, o autor dedica o primeiro

    livro intitulado as classes anlise das principais categorias sociais da sociedade

    feudal. Assim, ao estudar a nobreza, Bloch aponta para a vocao guerreira que lhe

    atribuda. No captulo II, intitulado A vida nobre, o historiador analisa a cavalaria e seus

    ideais, bem como a concepo de guerra no Ocidente Medieval. Ele procura

    compreender como a cavalaria se tornou sinnimo de nobreza a partir do sculo XII e

    qual era a funo dessa instituio na sociedade feudal.

    Outro medievalista francs que se destaca em relao aos estudos sobre cavalaria

    medieval Georges Duby. Dentre as obras em que o autor trabalha profundamente o

    assunto destacamos aqui O cavaleiro, a mulher e o padre6, a sociedade cavalheiresca

    7 e

    Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo8.

    Em O cavaleiro, a mulher e o Padre, Duby analisa a funo da corte na

    formao do cavaleiro, o papel da mulher nesse processo e a importncia da literatura

    cavaleiresca na consolidao do modelo ideal de cavalaria. Em A sociedade

    cavaleiresca, ele discorre sobre as origens da cavalaria e sua importncia a partir do

    sculo XII considerando o caso especfico da cavalaria na Frana.

    4 Ibidem, pp. 69-70.

    5 BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edies 70, 1987.

    6 DUBY, Georges. O cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1988.

    7 Idem. A sociedade Cavaleiresca. Lisboa: Editorial Teorema,1990.

    8 Idem, Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

  • 21

    Na obra Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo, Duby apresenta

    uma espcie de biografia de Guilherme Marechal utilizando-o como exemplo,

    explicando os pormenores da vida de um cavaleiro no sculo XII, desde a infncia at a

    morte.

    O clebre medievalista francs, Jacques Le Goff, no tem nenhuma obra

    especfica sobre a cavalaria medieval, entretanto, em O imaginrio medieval9 o

    historiador dedica dois captulos para a anlise de alguns modelos de cavalaria nas obras

    de Chretin de Troyes. No captulo intitulado Lvi-Strauss na Brocelindia, o autor faz

    a anlise do romance Yvain ou le Chevalier au lion de Chretin de Troyes. A obra conta

    a histria de Yvain, um cavaleiro da corte de rei Artur que enlouquece aps ser rejeitado

    pela amada e passa a viver na floresta como um selvagem. Como seu objeto de estudo

    o imaginrio medieval, Le Goff discorre brevemente sobre os aspectos psicolgicos

    do romance, aponta tambm a questo da floresta e o significado dela para os homens

    medievais, visto que era o espao da aventura cavaleiresca, ao menos na fico, mas

    tambm era o topos da loucura, nesse caso entendida como selvageria. De acordo com

    Le Goff pelo menos na Inglaterra, na Bretanha a floresta o lugar onde de certo

    modo se rompe a malha feudal. Nessa floresta Yvain no seria um cavaleiro e sim um

    caador-predador10. Assim, o autor aponta para a oposio entre selvagem e corts,

    presente nesta obra de Chretin. Le Goff atenta para os smbolos cristos presentes na

    floresta, com os quais o cavaleiro ir se deparar e s depois de um enfrentamento com o

    mundo diablico que o cavaleiro ir voltar para o mundo da cultura, identificado com

    o mundo cristo e ento se reintegra sociedade.

    No captulo intitulado Cdigo Vestimentar e alimentar em rec et nide, Le

    Goff ir analisar o papel que os cdigos vestimentares desempenhavam na sociedade

    feudal a partir do romance rec e nide, tambm de Chretin de Troyes. Para o autor

    estes cdigos funcionam com particular eficcia na sociedade feudal, pois ocupavam

    uma posio essencial no estatuto social e no sistema de valores11

    .Os dois captulos em

    que o autor faz a anlise de romances do maior escritor de fico cavaleiresca do sculo

    XII, possui em comum o fato de estarem trabalhando com modelos idealizados e

    perpetuados no imaginrio medieval. Nesse sentido, Yvain personifica o perigo que os

    9 LE GOFF, Jacques. O imaginrio medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

    10 Ibidem, p. 176.

    11 Ibidem, p.211.

  • 22

    vcios da paixo podem representar vida de um cavaleiro. Igualmente, o segundo

    romance analisado ir apresentar rec como um cavaleiro que se entrega em demasia ao

    amor esquecendo-se de suas funes e encarando as conseqncias negativas

    decorrentes do seu comportamento desregrado. Nessa obra interessante a questo da

    etiqueta de corte, representada pela postura dos protagonistas, o que inclui tambm o

    cdigo vestimentar , que indica o pertencimento a determinado grupo social.

    Michel Pastoureau, tambm um historiador francs, reconhecido

    academicamente por seus estudos em herldica e iconografia. Entretanto, na dcada de

    80 publicou um estudo de grande relevncia no que tange aos estudos de cavalaria

    medieval. No tempo dos cavaleiros da tvola redonda12

    uma obra que aborda de

    forma panormica os costumes da sociedade cavalheiresca francesa nos sculos XII e

    XIII. Nos primeiros captulos, o autor discorre sobre a forma como os homens

    percebiam o tempo no perodo medieval, apresenta os principais aspectos da sociedade

    feudal e em seguida parte para a anlise dos costumes cavaleirescos. Pastoureau,

    ainda que de forma sucinta, dedica uma seo para falar sobre a questo da guerra na

    sociedade feudal, descreve os principais dduits dos cavaleiros, os torneios e a forma

    como a literatura representava esse grupo.

    Franco Cardini um medievalista italiano que possui relevantes trabalhos sobre

    a guerra e a cruzada na Idade Mdia e a sociedade cavaleiresca. No artigo O guerreiro

    e o cavaleiro13, que integra a coleo O homem medieval dirigida por Jacques Le Goff,

    Cardini apresenta de modo conciso as principais caractersticas da cavalaria medieval e

    alguns aspectos do cotidiano desse grupo. Outro estudo importante do italiano o

    verbete guerra e cruzada do Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval14. Nesse

    artigo, o autor analisa brevemente o papel da cavalaria e concepo de guerra ao longo

    da Idade Mdia, enfatizando a relao da Igreja com a cavalaria e o esforo

    empreendido pela instituio eclesistica desde finais da idade antiga em buscar uma

    justificativa coerente para a noo de guerra de forma que esta se enquadra no

    cristianismo.

    12

    PASTOUREAU, Michel. No tempo dos cavaleiros da tvola redonda. So Paulo: Companhia

    das Letras, 1989. 13

    CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques (dir). O homem medieval.

    Lisboa: Editorial presena, s/d. pp 57-78. 14

    Idem, Guerra e cruzada. In: LE GOFF, Jacques & SCHIMITT, Jean-Claude. Dicionrio

    temtico do ocidente medieval, p.473. Volume I.

  • 23

    O medievalista francs Jean Flori reconhecido por seus estudos sobre cruzada

    e cavalaria na Idade Mdia, no verbete cavalaria do Dicionrio Temtico do Ocidente

    Medieval15

    . Flori expe brevemente os significados e a funo da cavalaria ao longo da

    Idade Mdia, destacando a nfase que as literaturas em lngua verncula atriburam a

    essa instituio a partir do sculo XII, quanto esta questo o autor aponta que:

    Ao longo da Idade Mdia as literaturas em lngua vulgar celebram a cavalaria

    e transformam-na em mitologia. As origens clticas e mticas da matria da

    Bretanha contribuem ainda mais para aumentar a influncia. Os romances

    arturianos, exalam um perturbador perfume de maravilhoso pago que a

    posterior cristianizao de seus temas no dissipa totalmente16

    .

    Jrme Baschet em A civilizao Feudal17

    dedica uma pequena seo para tratar

    das questes referentes cavalaria. Comea sua anlise, assim como Cardini, Bloch,

    Duby e Flori, na transformao do conceito de cavaleiro e sua identificao com a

    nobreza. Em seguida pondera sobre a formao da tica cavaleiresca e a influncia da

    Igreja na formao de uma ideologia cavaleiresca compatveis com os ideais cristos,

    considerando as cruzadas como elemento de grande relevo nesse processo de

    cristianizao da cavalaria. Por ltimo, o autor aborda a problemtica da cortesia e do

    amor corts.

    2. Sobre as noes de cavalaria, Guerra e Cruzada em Portugal

    Priorizaremos aqui algumas das principais abordagens historiogrficas acerca

    de questes referentes concepo de cavalaria, guerra e cruzada em Portugal durante a

    Idade Media. Destacaremos primeiramente a produo europia, nomeadamente a

    portuguesa e em seguida iremos apontar algumas das principais referncias da

    historiografia brasileira que se ligam direta e indiretamente ao nosso tema.

    Entre o final do sculo XIX e incio do XX foram produzidos em Portugal uma

    srie de estudos que se dedicaram apreciao de temas relativos expanso martima

    no sculo XV. Nesse sentido, observamos a proliferao de obras que ao tratarem da

    15

    FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques & SCHIMTT, Jean-Claude. Dicionrio

    temtico do ocidente medieval. Volume I. 16

    Ibidem, p.196. 17

    BASCHET, Jrme. A civilizao Feudal: do ano 1000 colonizao da Amrica. Traduo

    Marcelo Rede. Prefcio Jacques Le Goff. So Paulo: Globo, 2006.

  • 24

    problemtica da expanso acabam, ainda que de forma indireta, por delinear algumas

    questes referentes aos assuntos que fazem parte de nosso objeto de pesquisa.

    Na dcada de 30, Carl Erdmann, historiador alemo especialista em histria

    poltica medieval portuguesa, publicou um estudo que se tornou referncia no que

    concerne pesquisa sobre guerra e cruzada em Portugal. Na obra intitulada A idia de

    cruzada em Portugal18

    , Erdmann questiona se houve em Portugal o movimento das

    cruzadas. De fato, o autor prope que a discusso sobre o tema deve seguir outro

    caminho. Uma vez que houve inmeros momentos de paz e de convivncia pacfica

    entre cristos e muulmanos, a luta entre os dois povos deve ser considerada dentro de

    uma perspectiva territorial. Assim, a guerra entre esses dois povos era, na verdade, uma

    luta pela hegemonia peninsular. De acordo com esse autor, os reis portugueses nunca

    tomaram parte nas cruzadas, bem como o povo. Exceto as ordens militares, existem

    poucos relatos sobre portugueses nas cruzadas. Erdmann afirma que no sculo XII, os

    portugueses no viam as suas guerras contra os mouros como cruzadas e nem como tais

    agiram. Nesse sentido, justifica-se o porqu dos portugueses no terem recebido nunca

    ou muito poucas vezes as indulgncias da cruzada.

    Na mesma perspectiva que o autor alemo, o historiador portugus Jos Mattoso

    na obra Ricos-Homens, Infanes e Cavaleiros: A Nobreza Medieval Portuguesa nos

    Sculos XI e XII19

    desqualifica a guerra contra os mouros como cruzadas e insiste que

    devemos atentar para o fato de que os significados da guerra se alteraram de acordo com

    as regies do reino. Assim, tratando ainda das regies fronteirias, onde a guerra um

    elemento constante o autor assinala que:

    A guerra era uma atividade econmica fundamental, um aspecto de

    civilizao material e social que no se tornava indispensvel justificar

    ideologicamente. Para os seus praticantes era, sobretudo, impensvel

    transform-la em cruzada. Conceber as algaras e fossados como grandes

    empreendimentos que ultrapassassem o mbito das comunidades locais,

    devia parecer para os cavaleiros da fronteira um propsito que tinha o perigo

    de subverter o equilbrio social e econmico alcanado. A guerra como

    atividade econmica nada tinha a ver com a confrontao total, que s podia

    terminar com o extermnio completo do inimigo.20

    18

    ERDMANN, Carl. A idia de cruzada em Portugal. Coimbra: Instituto Alemo da Universidade

    de Coimbra, 1940. 19

    MATTOSO, Jos. Ricos-Homens, Infanes e Cavaleiros. A Nobreza Medieval Portuguesa nos

    Sculos XI e XII. 2 ed, Lisboa, Guimares Editores (col. Histria e Ensaios, n 2), 1985.

    20

    Ibidem, p.120.

  • 25

    De acordo com Mattoso para os habitantes de regies fronteirias o carter

    cruzadstico da guerra no constitua elemento primordial para que ela se

    desencadeasse, sendo o aspecto material a razo motriz para o seu desenvolvimento.

    Quanto postura da Igreja em relao ao movimento de expulso dos mouros da

    Pennsula Ibrica, Mattoso aponta a presena, em Portugal, de fontes eclesisticas que

    exortam os cristos guerra contra os inimigos da cristandade. Porm, de acordo com o

    autor, interpret-las como sinal de uma conscincia cruzadstica seria um equvoco, uma

    vez que elas esto claramente influenciadas pelos escritos de alm Pireneus.

    No que concerne s concepes de cavalaria em Portugal, na primeira metade o

    sculo XII, ainda observa-se nos textos a utilizao do vocbulo milites em clara

    oposio a indivduos de categorias superiores. De acordo com Jos Mattoso, os

    cavaleiros desse perodo, ainda que o fossem pelo nascimento, constituam a categoria

    inferior da nobreza. A partir disso o autor conclui que a categoria dos cavaleiros inclui

    nobres e no nobres, no sendo, portanto prerrogativa da nobreza. Tal fato constitui um

    primeiro elemento de distino da cavalaria portuguesa em relao cavalaria francesa

    que, como j vimos, apresenta-se como uma corporao de elite dominada pela

    aristocracia. Se na Frana o vocbulo Miles designou desde o sculo XII um elemento

    oriundo da nobreza, em Portugal, tal identificao s comear a ocorrer a partir do

    sculo XIII. Em regies fronteirias como a Beira e a Estremadura observa-se maior

    fluidez social e os critrios de recrutamento de cavaleiros ser, por conseguinte, muito

    distinto do norte do reino, como assinala Jos Mattoso:

    De facto em toda a Beira e Estremadura se verifica uma situao em que os

    senhores necessitam de recrutar homens para as operaes militares mais

    importantes, lhes confiam misses especiais, constituem squitos de gente de sua

    confiana. Estes podem ser parentes de boa estirpe vindos do Norte, filhos de

    amigos do mesmo nvel ou de vassalos nobres, mas tambm podem ser membros

    das milcias urbanas, cavaleiros-vilos ou mesmo marginais sem eira nem beira,

    que se distinguiam pela ousadia no campo de batalha e na organizao de algaras

    e fossados. A este respeito to importante acentuar o carcter de uma certa

    inferioridade que para os nobres consiste em ir combater ao servio de algum,

    como em verificar a indiferenciao do ofcio das armas. Mas a distino

    fundamental do nascimento no se apaga por isso e acabar por se tornar de novo

    fundamental at englobar todos os cavaleiros. Entretanto, ao abrigo das

    necessidades e da porosidade da funo, alguns teriam passado a fronteira do

    nascimento. Talvez no fossem muitos.21

    21

    Ibidem, p.57.

  • 26

    Portanto, o recrutamento nessa regio no obedece, em um primeiro momento, a

    nenhum critrio que privilegie a linhagem, ainda que esta seja valorizada. Dessa forma,

    os cavaleiros oriundos dos grupos mais baixos da sociedade tm a possibilidade real de

    ascenso baixa nobreza. Mattoso destaca o fato de estes cavaleiros poderem alcanar

    status de nobreza atravs da vassalagem. Esta pode ser expressa em relao a um senhor

    ou em relao a um concelho.

    O estudo da produo de Jos Mattoso imprescindvel no que concerne temas

    como a noo de cruzada, como j nos referimos, cavalaria e, sobretudo, nobreza

    portuguesa durante a dinastia de Borgonha, entre os sculos XI e XIV. Desde a dcada

    de 70, Mattoso vem consolidando-se como a grande referncia da historiografia lusitana

    sobre o assunto.

    Em A nobreza medieval portuguesa22

    , o autor apresenta um estudo minucioso

    sobre a formao e composio da nobreza em Portugal, remontando ao condado

    portucalense. Mattoso preocupa-se em apontar como esse grupo se consolidou nas

    diversas regies do reino e a forma como exerciam o poder poltico e simblico,

    considerando, ainda, problemticas referentes estrutura familiar e a sua relao com o

    sistema vigente em Portugal, alm de ponderar acerca da acuidade da produo

    genealgica no somente em Portugal, mas tambm em outras reas da Europa.

    Outro aspecto interessante da obra em apreo, diz respeito importncia dos

    romances de cavalaria e sua relao com a nobreza portuguesa, assim para o autor:

    Os romances de cavalaria desempenhavam a necessria funo social de

    proporcionar a este pblico vido de modelos exemplares e de exortao, os

    seus motivos de ao. Para quem no fossem suficientes os atrativos

    materiais ou orgulho pessoal, ofereciam o ideal de servio desinteressado ou

    mesmo da recompensa mstica.23

    Sobre a estrutura familiar linhagstica de grande valia algumas consideraes

    que o autor faz quanto necessidade de afastamento dos jovens nobres secundognitos

    de sua casa de origem. De acordo com Mattoso, a presso linhagstica era muito

    grande e, visto que a aristocracia concentrava-se em um pequeno territrio, a base

    fundiria no fora capaz de agregar todos os elementos do grupo dominante que se viam

    obrigados a procurar novas terras.

    22

    MATTOSO, Jos. A nobreza medieval portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1980. 23

    Ibidem, p.357

  • 27

    Acerca da nobreza e suas variantes em Portugal, Mattoso, em Histria de

    Portugal: a monarquia feudal24

    , apresenta uma sntese de muitos de seus estudos sobre

    as diversas categorias que constituam a nobreza portuguesa entre os sculos XIV e XV

    e as relaes estabelecidas entre elas, bem como, as variantes semnticas na

    denominao desses grupos no interior do reino. Na seo intitulada A sociedade:

    estruturas, grupos e motivaes, o historiador portugus aponta os significados da

    nobreza no perodo assinalado, considerando os critrios de nobilitao e a sua

    influncia demogrfica, poltica, econmica e social, oferecendo detalhes sobre a

    composio dessa camada social. Sobre os nobres de linhagem o autor afirma que, entre

    os sculos XIV e XV, sobressaem os ricos-homens, grandes, vassalos, bares,

    cavaleiros e escudeiros fidalgos.

    No primeiro volume da obra chamada Identificao de um pas25

    , Mattoso

    apresenta um trabalho meticuloso sobre as oposies regionais no reino de Portugal,

    apontando as diferenas nas concepes sociais entre o norte e o sul do pas e a forma

    como o sistema feudal vigorou em cada regio, bem como, a maneira como os grupos

    sociais se organizam e se relacionam nos diferentes espaos lusitanos.

    Outra importante produo de Jos Mattoso, que destacamos aqui, se intitula

    Fragmentos de uma composio medieval26

    . No ltimo captulo da obra, dedicado

    crise decorrente do interregno em 1383, o autor aborda de forma diferenciada a postura

    da nobreza em relao aos acontecimentos que marcaram o perodo e tambm discorre

    brevemente acerca das mudanas na realizao de guerras a partir do sculo XIV.

    No livro intitulado Portugal na crise dos sculos XIV e XV,27

    A. H. de Oliveira

    Marques, historiador portugus, dedica uma seo para abordar a questo da cavalaria

    no perodo assinalado. O autor aponta para a forma como esse grupo era percebido em

    Portugal, as suas principais atividades, a funo militar que exerciam e o tipo de

    armamento que utilizavam.

    Na dcada de 90, destacamos aqui trs obras de grande relevo para a

    compreenso da guerra e da cavalaria em Portugal no final da Idade Mdia e incio da

    24

    Idem. Histria de Portugal: a monarquia feudal. Lisboa: editorial Estampa, 1993. Volume 2. 25

    Idem. Identificao de um pas: ensaio sobre as origens de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa,

    1985. Volume 1. 26

    Idem. Fragmentos de uma Composio Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. 27

    MARQUES, A. H. de Oliveira. Portugal na crise dos sculos XIV e XV. Lisboa: Editorial

    Presena, 1987.

  • 28

    era Moderna, quais sejam: A arte de ser bom cavaleiro28

    de Isabel Dias, A guerra em

    Portugal no final a idade mdia 29

    de Joo Gouveia Monteiro, e A guerra e as Guerras

    na Expanso portuguesa: Sculos XV e XVI30

    , escrita pelo historiador portugus Joo

    Marinho dos Santos.

    Na primeira obra, a autora estuda a importncia da prosa portuguesa na

    instruo da cavalaria atravs da anlise do Livro da ensinana de bem cavalga toda

    sela, composto pelo rei D. Duarte. Isabel Dias concentra seu exame na estrutura textual

    da obra, considerando, ainda a importncia da literatura tcnica em Portugal no perodo

    anterior a D. Duarte. Avaliando as caractersticas pedaggica, sociais e at mesmo

    poltica da obra, Dias conclui e afirma que o objetivo principal do rei ao compor tal

    obra, foi o de reconduzir os cavaleiros a uma dignidade perdida.

    Em A Guerra em Portugal no final a idade mdia, Joo Gouveia Monteiro

    realiza um estudo primoroso sobre a concepo e consecuo da guerra no reino

    portugus entre o final da primeira Dinastia e durante o governo Avisino. O autor

    analisa as guerras empreendidas pela realeza, caracterstica do perodo que solapa as

    guerras privadas concentrando cada vez mais a autoridade militar nas mos da

    monarquia. A documentao utilizada pelo autor deveras extensa compreendendo

    crnicas, e uma gama de documentos jurdicos e administrativos. A inteno de

    Monteiro a configurao da histria militar portuguesa no final da idade mdia. Na

    primeira parte da obra o autor preocupa-se em analisar como se efetuava o recrutamento

    militar, quais os elementos que compunham a hoste rgia, qual expresso numrica que

    pode ter tido um exrcito no final da idade mdia portuguesa e como se processava o

    enquadramento, o abastecimento e o financiamento das campanhas levadas a cabo pela

    realeza. Em seguida, Monteiro ir concentrar sua anlise na maneira como se

    executavam as guerras, considerando conhecimentos tericos sobre a arte militar, a

    forma como o exrcito se locomovia e atuava em diferentes espaos como na batalha

    campal, nos assdios de cidades e de fortalezas ou em operaes de menor envergadura.

    Por ltimo, o autor analisa os movimentos de treino militar.

    28

    DIAS, Isabel. A arte de ser bom cavalheiro. Lisboa: Editorial Estampa 1997 29

    MONTEIRO, Joo Gouveia. A guerra em Portugal no Final da Idade Mdia. Lisboa: Editorial

    Notcias, 1998. 30

    SANTOS, Joo Marinho dos. A guerra e as Guerras na Expanso portuguesa: Sculos XV e

    XVI. Edio: Grupo de trabalho do ministrio da Educao pra as Comemoraes dos Descobrimentos

    Portugueses, 1998

  • 29

    Joo Marinho dos Santos analisa, em A guerra e as Guerras na Expanso

    portuguesa: Sculos XV e XVI, a funo da guerra e da cavalaria portuguesa nos

    primeiros anos de expanso. A hiptese principal de Marinho de que a guerra externa

    e sua assimilao como cruzada converteu-se em um meio de fomentar a identidade

    nacional pautada na vocao guerreira e na misso evangelizadora a qual estariam

    destinados o povo portugus.

    Como j dissemos, os estudos sobre o imaginrio rgio portugus baixo

    medieval no brasil tm como obra pioneira a tese de doutorado de Vnia Fres,

    intitulada: Espao e sociedade em Gil Vicente: contribuio para um estudo do

    imaginrio portugus (1502-1523)31

    . Neste trabalho, a autora demonstra como o rei

    transformou-se em um topos e o seu pao em um mecanismo de ordenamento do

    mundo e do reino32

    . Tal concluso se d a partir da formulao de uma categoria

    analtica a qual denomina discurso do pao, tomando por base o seguinte pressuposto:

    O pao corresponde a uma espcie de eixo ordenador, referncia de um certo

    padro de conduta e de uma cosmologia determinada. A distncia e a

    proximidade do pao definem uma hierarquia de temos, lugares e pessoas (...) por excelncia a (...) ordem alm do tempo e que paira acima do Alm-

    tejo e da Estremadura: o pao no tem localizao especfica, estendendo-se como um referencial de conduta urbana que se ope rusticidade do campo e que se reproduz em outras cidades, vilas e aldeias.

    33

    A partir desta referncia observa-se o incio das reflexes sobre Imaginrio

    Poltico Portugus no final da Idade Mdia na historiografia brasileira. Grande parte da

    produo acadmica, relativa temtica, est vinculada ao Scriptorium, Laboratrio de

    estudos medievais e ibricos, coordenado pela historiadora Vnia L. Fres.

    Nesse sentido, destacamos aqui algumas obras produzidas pelo referido

    laboratrio que se relacionam com a nossa pesquisa, so estas: Pera Espelho de

    Todollos Uivos: A imagem do Infante D. Henrique na Crnica da Tomada de Ceuta34

    ,

    31

    FRES, Vnia leite. Espao e sociedade em Gil Vicente: contribuio para um estudo do

    imaginrio portugus (1502-1523).Tese de doutorado, USP: So Paulo, 1985.APUD. AMARAL, Clinio.

    A construo de um Infante Santo em Portugal Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao

    em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri: Cpia reprografada, 2004. p. 32. 32

    AMARAL, Clinio. A construo de um Infante Santo em Portugal. Dissertao apresentada ao

    programa de ps-graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri: Cpia

    reprografada, 2004, p. 30. 33

    FRES, Vnia leite, op. Cit. Apud, Amaral, Clinio, op. Cit, p.32. 34

    QUEIRS, Silvio Galvo de. Pera espelho de todollos Uiuos: A imagem do infante D. Henrique na Crnica da tomada de Ceuta. Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao em

    Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri: Cpia reprografada, 1997. 267 f.

  • 30

    de Slvio Galvo de Queirz, Construo de um Infante Santo em Portugal 35

    de Clinio

    Amaral, Do azambujeiro bravo mansa oliveira portuguesa: A prosa civilizadora da

    Corte do rei D.Duarte (1412-1438)36

    de Paulo Accorsi jnior, O Papel do maravilhoso

    na Formao da Identidade Nacional Portuguesa - Anlise do Mito Afonsino - Sculos

    XIII XV37 de Roberto Godofredo Fabri Ferreira e A Cruz do Santo Lenho do

    Marmelar 38

    de Ricardo Luis Silveira da Costa.

    Em sua dissertao, Slvio Galvo de Queirz analisa a figura do Infante D.

    Henrique a partir da perspectiva de Zurara relacionando esta com o projeto poltico de

    Avis. O autor toma como base a Crnica da Tomada de Ceuta, entretanto, utiliza

    largamente outras obras do cronista, demonstrando como o Infante foi apresentado na

    obra como paradigma de cavaleiro perfeito, atendendo assim as demandas do perodo

    Afonsino e eternizando a imagem do dito prncipe como o grande heri da expanso em

    frica.

    Na dissertao de Clinio Amaral, o autor busca em Zurara as especificidades do

    discurso cronstico em relao sacralizao da monarquia avisina. Para Amaral a

    segunda metade do sculo XV, em Portugal, foi um momento em que havia uma

    demanda pela santidade de um membro da dinastia.

    O trabalho de Paulo Accorsi Jnior constitui um estudo de parte da prosa da

    Dinastia de Avis, produzida durante o reinado de D. Duarte e sob seu patrocnio. O

    autor procura analisar as relaes entre o carter civilizador do discurso desta prosa.

    Assim, Accorsi apresenta uma anlise detalhada da nobreza portuguesa nos velhos

    tempos e dos novos tempos.

    J Roberto Godofredo Fabri Ferreira analisa a construo de uma imagem

    guerreira de Afonso Henriques, enfatizando na relao da imagem de protetor do reino

    consubstanciada na representao quatrocentista do primeiro monarca lusitano com as

    imagens veiculadas nas primeiras crnicas avisinas que, de acordo com o autor,

    apontam para a construo de uma imagem sagrada do rei portugus.

    35

    AMARAL, Clinio, op. Cit. 36

    ACCORSI, Paulo. Do Azambujeiro Bravo Mansa Oliveira Portuguesa. A Prosa Civilizadora

    da Corte do Rei D. Duarte (1412 -1438). Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao em

    Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri: Cpia reprografada, 1997. 37

    FERREIRA, Roberto Godofredo Fabri. O Papel do Maravilhoso na Construo da Identidade

    Nacional Portuguesa: Anlise do Mito Afonsino (Sculo XIII - XV). Dissertao apresentada ao Programa

    de ps-graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri: Cpia reprografada, 1997. 38

    COSTA, Ricardo Lus Ferreira da. A Cruz do Santo Lenho do Marmelar. Dissertao

    apresentada ao Programa de ps-graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri:

    Cpia reprografada, 1997.

  • 31

    Em A Cruz do Santo Lenho do Marmelar, Ricardo Lus Silveira da Costa faz um

    estudo do imaginrio cavaleiresco portugus e da noo de cruzada em Portugal durante

    o processo de reconquista. interessante a perspectiva do autor sobre a guerra na

    Pennsula Ibrica, entendida por ele como fenmeno de psicologia social que ocasionou

    um processo catalisador de coeso interna.

    Fora da produo do Scriptorium, destacamos aqui as obras de Fabiano

    Fernandes e Jacqueline Herman. Na tese de Fernandes intitulada O Reino de Deus e a

    Espada do Rei: A Formao do Poder Eclesistico da Ordem de Cristo nas Comendas

    de Ega, Soure, Redinha e Pombal na Primeira Metade do Sculo XIV39

    , o autor analisa

    a formao do poder eclesistico da Ordem de Cristo na primeira metade do sculo

    XIV. No segundo captulo de sua tese, intitulado O desenvolvimento das comendas de

    Ega, Soure, Redinha e Pombal e as relaes estabelecidas com o poder papal nos

    sculos XII e XIII, Fernandes dedica uma seo para tratar dos problemas concernentes

    guerra e a cruzada em Portugal nos sculos assinalados. Avaliando como a guerra de

    reconquista constituiu uma preocupao comum entre o papado e o monarca

    portugus assim, o autor assinala que:

    Na Pennsula Ibrica, a guerra era o esforo primeiro de toda a sociedade.

    Era justificada por todo um conjunto de situaes e motivaes concretas. A

    sociedade portuguesa no sculo XII no assimilou o esprito de cruzada tal

    qual os cluniacenses e as ordens militares propagaram na Pennsula. Mesmo

    quando, eventualmente, o ideal de cruzada era referido, ocorrida uma

    adaptao aos imperativos da vida cotidiana e da construo do reino.40

    Corrobora, portanto, com alguns autores j citados aqui, pois entende a guerra

    interna no como uma guerra santa, mas sim dentro de uma conjuntura especfica.

    Considera, contudo, que essa idia foi difundida a partir do final do sculo XII pela

    cria papal e pelas ordens militares que atuavam em Portugal.

    Jacqueline Herman em O reino do desejado: a construo do sebastianismo em

    Portugal-sculos XVI e XVII41

    , analisa as especificidades da sacralidade monrquica

    portuguesa. Seu objetivo compreender o fenmeno do sebastianismo no sculo XVI,

    39

    FERNANDES, Fabiano. O Reino de Deus e a Espada do Rei: A Formao do Poder

    Eclesistico da Ordem de Cristo nas Comendas de Ega, Soure, Redinha e Pombal na Primeira Metade do

    Sculo XIV. 2 volumes. Tese. Rio de Janeiro: Instituto de Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, 2005. 40

    Ibidem, p. 127. 41

    HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construo do sebastianismo em Portugal nos

    sculos XVI e XVII. So Paulo: Companhia das Letras, 1997.

  • 32

    por isso retoma a algumas questes medievais, apontando que a sacralidade em Portugal

    relaciona-se com a prpria noo de rei-cruzado, o ideal messinico que comea a ser

    propagado a partir da ascenso de Avis, retomando o mito de Ourique que relido no

    perodo avisino.

    Finalmente, concluindo essa seo do captulo, entendemos que estamos longe

    de explorar totalmente a produo sobre a cavalaria em Portugal, o que pretendemos

    aqui era apresentar algumas das principais linhas que analisaram o tema. Assim,

    passamos agora para a tipologia das fontes dessa pesquisa.

    B. As fontes trabalhadas

    A anlise do material emprico utilizado na pesquisa no poder ser feita sem

    antes chamarmos a ateno para trs importantes questes: a primeira o carter

    singular em que devemos pensar as relaes literatura-histria na Idade Mdia. Depois

    as fluidas relaes entre o oral e o escrito neste universo. Uma terceira questo refere-se

    ao carter exemplar e poltico dos textos utilizados, vivamente comprometidos com o

    surgimento de uma identidade nacional e um projeto poltico.

    No primeiro caso, convm lembrar que os nossos propsitos afinam-se com a

    idia de fonte histrica e no de documento-monumento. Sendo assim, o carter

    ficcional das narrativas e crnicas so valiosos para a anlise das variaes das

    representaes e do imaginrio de cavalaria.

    Na segunda questo, destaca-se a idia de que, em grande parte, este material,

    destinado corte e nobreza, s no final do XV e incio do XVI foi fixado pela

    imprensa. Mesmo o material impresso em grande parte utilizado na leitura em voz

    alta. Lia-se tambm e muito com os ouvidos.

    Quanto ao terceiro caso necessrio assinalar a importncia dada pela Dinastia

    de Avis ao texto escrito e literatura moralstica. Crnicas e narrativas que compem

    um projeto poltico maior.

    1. O Amadis de Gaula

    O Amadis de Gaula uma obra literria medieval produzida na Pennsula

    Ibrica cujos primeiros manuscritos datam do final do sculo XIV. Trata-se de uma

  • 33

    novela de cavalaria cuja autoria e a nacionalidade so ainda hoje desconhecidas. A

    originalidade da obra, porm, indiscutvel, o que se deve ao fato de ser uma novela de

    cavalaria legitimamente ibrica, construda indubitavelmente a partir do ciclo

    romanesco conhecido como matria da Bretanha. Grandes partes dos elementos

    constitutivos do Amadis remetem ao imaginrio cavaleiresco francs do sculo XII. Os

    cenrios da novela so a Gr-Bretanha, Dinamarca e Alemanha, tal como os cenrios da

    Matria da Bretanha.

    A multiplicidade de temas abordados no Amadis de Gaula, assim como a

    extenso da obra, so caractersticas importantes a serem destacadas para seu estudo.

    Outro ponto a ser ressaltado o marco que o Amadis representa para a literatura

    peninsular, embora siga uma tradio literria surgida na Frana no sculo XII, o

    Amadis a primeira grande obra em prosa escrita na Pennsula42

    .

    A verso completa mais antiga que se tem conhecimento hoje a edio de 1508

    de Garc Rodrigues Montalvo. A obra, estruturada em quatro volumes dispostos em

    cento e trinta e trs captulos, narra a trajetria de Amadis, um cavaleiro que cresceu

    sem saber sua verdadeira linhagem e que ainda muito jovem se apaixona por Oriana, a

    sem par, uma princesa com todas as virtudes esperadas de uma mulher.

    A histria comea no reino da pequena Bretanha quando Perin, rei de Gaula

    hospeda-se na casa do rei Garinter e conhece sua filha, a princesa Elisena. Perin e

    Elisena se apaixonam e passam a se encontrar clandestinamente. Amadis o fruto do

    romance dos dois nobres amantes. Quando nasceu foi lanado ao mar em uma arca que

    continha a espada de seu pai desembainhada, um anel e um pergaminho coberto de cera

    que informava seu nome e que se tratava de um filho de rei.

    A arca foi encontrada por um cavaleiro escocs chamado Gandales que o

    entregou aos cuidados de sua esposa para que fosse criado juntamente com seu filho

    Gandalim. Apelidado de Donzel do Mar, Amadis foi criado por Gandales e sua esposa

    at os sete anos de idade quando se hospedaram no castelo de Gandales, o rei Languines

    da Esccia e sua esposa. A rainha ficou maravilhada com a formosura e coragem do

    jovem Donzel do Mar. Igualmente encantado ficou o rei Languines e prontamente levou

    Amadis e Gandalim para sua corte.

    42

    LOPES, Oscar & SARAIVA, Antonio Jos. Histria da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, 1975, p.91.

  • 34

    Um dia Lisuarte, genro do rei da Dinamarca, passa pelo reino da Esccia para ir

    ocupar o trono da Gr-bretanha que se encontrava vago devido morte de seu irmo.

    Lisuarte pediu ao rei Languines que abrigasse sua filha Oriana, a sem par, em sua corte.

    O rei Languines encarrega a Amadis, que na poca contava doze anos, a guarda da

    pequena Oriana, de apenas dez anos. Doravante tem incio a histria de amor que

    permeia toda a histria.

    Aos quinze anos Amadis deseja ser armado cavaleiro e nessa altura encontrava-

    se na corte do rei Languines, o rei Perin de Gaula. Perin fora at a Gr-Bretanha em

    busca de auxlio contra o rei Abies da Irlanda. A pedido da donzela Oriana, Perin arma

    Amadis, seu prprio filho, cavaleiro. Armado cavaleiro, Amadis parte do reino da

    Esccia em busca de aventuras tendo sempre ao seu lado o escudeiro Gandalim. Sua

    primeira grande aventura ser justamente ao lado de seu pai na guerra contra o rei Abies

    da Irlanda. Amadis se destaca agregando todas as virtudes que se espera de um bom

    cavaleiro. Sua primeira provao a luta contra o terrvel rei da Irlanda a quem vence e

    mata. Terminada a guerra, Amadis conhece sua me a rainha Elisena de Gaula e

    descobre sua verdadeira origem.

    interessante notar logo no incio da obra a caracterizao do personagem

    principal. Desde criana, Amadis chama a ateno por sua beleza e coragem. Suas

    atitudes sempre refletiram o comportamento esperado de algum da mais alta nobreza.

    Mesmo antes de ter conhecimento sobre sua verdadeira origem j agia de forma digna e

    condizente honra e ao grau de sua nobreza e de sua linhagem. Ainda criana se

    apaixona por Oriana a quem no ousa amar por julgar ser de linhagem muito inferior

    de sua amada. Aos quinze anos armado cavaleiro e apresenta uma postura e

    maturidade um tanto incoerentes com a sua idade. Sempre muito firme e viril para um

    homem to jovem. O fato de ser armado cavaleiro por seu prprio pai indica o elevado

    grau de sua dignidade. No qualquer cavaleiro que o arma. um rei de virtude

    conhecidssima, famoso por sua justia e valentia, sempre apontado como um dos

    melhores cavaleiros do mundo. Este rei conjuga em si as funes de rei e de cavaleiro e

    as desempenha de forma magnfica. deste ilustre personagem que descende Amadis,

    que como o pai ser um grande cavaleiro e um grande rei.

    Ao longo da obra, Amadis ir passar por uma srie de aventuras das mais

    diversas que sempre colocaro prova a sua honra e valentia assim como a capacidade

    de reunir em torno de si um sqito de cavaleiros de alta linhagem e grande dignidade.

  • 35

    O maior desafio para Amadis o amor que sente por Oriana, que por diversas

    razes ser impedido de se concretizar. Esse amor atormenta o protagonista durante

    quase toda a obra, e por conta dele, Amadis se envolve em inmeras aventuras e coloca

    em dvida sua prpria sanidade. Entretanto, o amor por Oriana no faz em nenhum

    momento com que Amadis falte com a honra de sua linhagem. Sua virtude

    incontestvel e ao longo de toda a obra ela exaltada e fortalecida.

    1.1. Montalvo e a primeira edio impressa

    Apesar das histrias do mui honrado e virtuosssimo cavaleiro Amadis de

    Gaula ser conhecida nos crculos cortesos pelo menos desde o sculo XIV, a primeira

    verso impressa completa foi publicada em 1508 em quatro volumes. Atribui-se esta

    edio a Garc Rodrigues de Montalvo. Acerca de Montalvo sabemos que era oriundo

    da cidade aragonesa de Medina del Campo e que foi dirigente da mesma. No se sabe o

    motivo, mas em algumas edies do Amadis seu nome aparece alterado ora por

    Gutirrez Montalvo ora por Ordoes Montalvo.

    A edio do Amadis em 1508 foi resultado de um longo trabalho de compilao

    e seleo de textos manuscritos anteriores. Infelizmente no se sabe as causas que

    levaram Montalvo a enveredar nesta rdua tarefa e se o fez a mando de outrem.

    Montalvo faleceu em 1504, portanto, quatro anos antes da publicao da primeira

    edio impressa do Amadis de Gaula. Acredita-se que por volta de 1492, Montalvo j

    havia terminado a compilao da obra.

    Segundo Edwin B. Place provvel que a edio de 1508 no tenha sido a

    primeira e sim uma edio publicada na cidade de Sevilha em 149643

    . O que corrobora

    para tal suposio do autor o fato dessa verso ser citada por Maximilian Pfeiffer em

    um estudo denominado Amadis study, publicado em 1905. Por seu turno, Pfeiffer no

    teria consultado diretamente a obra e sim um manuscrito intitulado Sammlungen ber

    den Amadis, datado em sete de julho de 1818, produzido por um certo Ebert, o qual,

    Pfeiffer no aponta mais informaes44

    . impossvel aferir a existncia dessa edio

    43

    PLACE, Edwin B. Introduo. In: Amadis de Gaula. Edio de. Madrid: Consejo Superior de

    Investigaciones Cientificas; Instituto Miguel de Cervantes, 1965, p. 21.3v. 44

    Ibidem, p.13.

  • 36

    uma vez que as referncias sobre a mesma so vagas no h nenhuma pista sobre o

    seu provvel paradeiro.

    Alguns relatos datados do incio do sculo XV apontam para a existncia do

    Amadis de Gaula em trs volumes. Como a edio de Montalvo possui quatro volumes

    acreditou-se por muitos sculos que o autor havia compilado os trs tomos anteriores e

    acrescentado o quarto volume, sendo este de sua prpria autoria. Pesquisas feitas no

    incio do sculo XX revelam que na verdade o quarto volume no uma criao

    original de Montalvo e sim o resultado das ampliaes feitas ao longo de toda a obra45

    .

    Cabe Montalvo a autoria do quinto livro intitulado Las sergas de

    Esplandin. Esta obra narra a histria das aventuras de Esplandin filho primognito

    de Amadis e Oriana. Las sergas de Esplandin encerra o chamado ciclo dos

    Amadises46

    .

    Em 1508, publicado em Zaragoza, cidade situada no noroeste da Espanha

    dentro dos limites do reino de Arago, Los quatro libros del virtuoso caballero

    Amadis de Gaula. Assim, foi intitulada a primeira edio impressa conhecida do

    Amadis de Gaula. A verso do Amadis, de 1508, foi publicada pela casa tipogrfica de

    George Cocci47

    e obteve grande repercusso na Europa quinhetista servindo de modelo

    para as muitas edies publicadas ao longo do sculo XVI. Esta edio possui capa de

    madeira onde se destaca a imagem de um cavaleiro montado e armado brandindo sua

    espada. Quanto aos detalhes formais, a obra conta com 302 flios sendo que os quatro

    ltimos no esto numerados, impressa em letra gtica e se apresenta dividida em

    duas colunas. O nico exemplar hoje conhecido encontra-se no museu britnico.

    1.2.Verso utilizada

    A verso do Amadis de Gaula utilizada no presente trabalho foi elaborada pelo

    hispanista norte-americano, Edwin B. Place, e publicada em Madri pelo Consejo

    45 MARQUES, F. Costa . Seleo, traduo e argumento. In: Amadis de Gaula. Clssicos

    portugueses, trechos escolhidos-sculos XIII a XV- Prosa. Lisboa: Livraria clssica editora, 1942, p. 08. 46

    Ibidem, p.22 47

    Tipgrafo alemo que comea atuar em Zaragoza no ano de 1504.

  • 37

    Superior de Investigaciones Cientficas do Instituto Miguel de Cervantes em 1965.

    Esta edio o resultado de uma parte da vasta pesquisa iniciada por Place no ano de

    1959 e finalizada em 1969.

    A edio de Place consiste em trs volumes. No terceiro volume, o autor anuncia

    a impresso de um quarto volume que completaria a obra. Os trs volumes possuem

    estudos literrios e anotaes especficas. Place inicia cada tomo com uma nota

    preliminar onde concede aos leitores informaes sobre a forma como o estruturou. O

    autor reproduz o texto de Garc Rodrigues de Montalvo baseado na primeira edio

    conhecida do Amadis de Gaula (Zaragoza, Cocci, 1508), mantendo a ortografia da

    verso original, fazendo alteraes no sentido de regularizar a pontuao, as letras

    maisculas e os acentos de acordo com o uso moderno da lngua espanhola. No incio

    de cada volume, o autor coloca uma errata com correes de algumas palavras e

    expresses, dessa forma, no se fazem necessrias utilizao de notas no rodap das

    pginas.

    A nota preliminar do primeiro volume concede informaes mais generalizantes

    considerando no somente o tomo em questo, mas a obra como um todo. Place insere

    neste volume um estudo crtico da obra apontando brevemente as principais questes

    acerca do Amadis primitivo e do Amadis de Montalvo.

    O autor faz um levantamento das edies, e tradues do Amadis de Gaula e

    apresenta uma bibliografia descritiva com essas informaes. Place faz uma espcie de

    catlogo e identifica as edies por letras especificas. Primeiramente, ele apresenta este

    catlogo das edies antigas escritas em castelhano e baseadas na verso de

    Montalvo. Em seguida, faz um esquema grfico com os cdigos que atribuiu a cada

    edio. Na bibliografia descritiva, o autor reserva uma parte para um conciso estudo

    crtico de cada edio. Por fim, ele enumera as tradues do Amadis de Gaula feitas at

    o momento de sua pesquisa.

    Ao final do segundo volume, Place coloca um estudo crtico sobre a linguagem

    no primeiro e no segundo livro. Nesse estudo, ele considera elementos como a fontica,

    a fontica sinttica, morfologia, sintaxe e semntica. Seguem, a esse estudo, as notas

    explicativas dos livros I e II. Ao final, Place anexa bibliografia utilizada para o estudo

    do Amadis de Gaula e os aspectos lingsticos da obra.

    No terceiro tomo, hispanista norte-americano apresenta um estudo literrio sobre

    os trs volumes. Neste momento, ele faz um balano sobre os estudos feitos acerca da

  • 38

    obra, apontando suas principais problemticas e os principais temas abordados ao longo

    do Amadis. Por fim, Place anexa notas explicativas.

    1.3.Verses em castelhano

    Aps a publicao da primeira verso impressa, o Amadis alcanou uma enorme

    popularidade, notvel no s na Pennsula Ibrica. As diversas edies e tradues que

    circularam na Europa a partir do sculo XVI so testemunhos da notoriedade da obra.

    Outro fato que merece destaque a rapidez com que a obra se difundiu na Europa.

    Somente no sculo XVI foram produzidas verses do Amadis em ingls, francs,

    alemo, holands, hebraico e italiano.

    Uma descrio das edies em castelhano do Amadis de Gaula, publicadas no

    sculo XVI, far com que possamos compreender melhor a disseminao da Obra

    impressa no contexto hispnico. Aqui sero consideradas apenas as edies cujas

    autenticidades sejam indiscutveis.

    Em 1511, foi publicada, em Sevilha, uma verso de do Amadis de Gaula

    possivelmente impressa na casa tipogrfica de Cromberger. No prlogo do livro, o

    sobrenome de Montalvo est grafado como Ordoes. a primeira vez que o nome de

    Montalvo aparece alterado. Esta edio constaria na coleo de Fernando Coln,

    contudo, o exemplar de Coln desapareceu. O que temos hoje de concreto sobre essa

    edio uma verso fac-similada reproduzida por A. M. Huntington em 1905. Esta

    verso encontra-se na Hispanic Society of America em Nova York.

    Uma verso da obra, datada de 1519, gera polmica quanto cidade em que foi

    publicada. O editor Antnio Carlos de Salamanca e a cidade em que teria sido

    publicada Roma. Segundo Edwin B. Place, os motivos para duvidar que a obra fora

    publicada em Roma so:

    1) Se suprime en ella toda mencin del lugar de impresin, as como toda

    marca del impresor; 2) Con una sola excepcin, no contiene erratas

    italianizantes; 3)Era cosa corriente en el Renacimiento disfrazar ediciones

    con portadas licencias nuevas; 4)Lleva los mismos grabados, grandes y

    pequeos, que los empleados por la casa Cromberger.48

    48

    MONTALVO, Garci Rodrigues. Amadis de Gaula. Edio de Edwin B. Place, op. Cit, p. 23.

  • 39

    A capa feita em madeira e possui imagens de um cavaleiro montado a cavalo e,

    ao seu lado, um escudeiro carregando uma lana. frente deles, um ano carregando

    um machado e um criado levando uma lana. Em cima, o ttulo, Amadis de Gaula. Essa

    estampa reproduzida no incio de cada tomo da obra. A verso apresenta 284 flios,

    escrita em letra gtica e dividida em duas colunas. Existe um exemplar na Biblioteca

    Nacional de Paris, no Museu Britnico e na Biblioteca da Sociedade Hispnica de Nova

    York.

    A casa tipogrfica de George Cocci publicou mais uma edio do Amadis de

    Gaula no ano de 1521. Essa edio possui pouqussimas diferenas em relao

    primeira. Ela, assim como a edio de 1508, organizada por Montalvo, possui 298

    flios mais trs no numerados e escrita em letra gtica. Na capa a figura central um

    cavaleiro montado e armado. Em volta dele esto agrupados muitos cavaleiros armados

    e com lanas em cima, o ttulo Amadis de Gaula.

    A cidade de Sevilha foi o local onde mais se publicaram edies do Amadis. A

    maioria das publicaes foi responsabilidade da casa tipogrfica de Cromberger. A

    primeira edio publicada pela imprensa de Cromberger datada em vinte de abril de

    1526. No centro da capa destaca-se a imagem de um cavaleiro barbado, armado e

    montado, seguido por outros dois cavaleiros montados e de um pajem (ou ano) a p.

    No fundo da imagem figura um castelo. Em cima da gravura o ttulo Amadis de

    Gaula. Na parte de baixo da capa encontra-se a seguinte frase: Los quatro libros de

    Amadis de Gaula nueuamente impressos y hystoriados em Sevilla.

  • 40

    Ilustrao 1- Capa da edio de Sevilha. Biblioteca Nacional de Portugal

    A publicao atribuda a Juan Cromberger e Jacobo Cromberger. O livro conta

    com 302 flios escritos em letra gtica. Na epgrafe o sobrenome de Montalvo est

    grafado como Ordoes de Montalvo. A Biblioteca do Arsenal de Paris possui um

    exemplar.

    Outra publicao da casa Cromberger datada em vinte e dois de junho de 1531.

    A capa idntica anterior. A publicao atribuda somente a Juan Cromberger. O

    livro apresenta 298 flios, quatro a menos do que o publicado em 1526. A Biblioteca

    Nacional de Madrid possui um exemplar e o outro se encontra no Museu Britnico. Em

    1535, Juan Cromberger publica no dia vinte e dois de junho mais uma verso do

    Amadis na cidade de Sevilha. A capa no possui alteraes em relao s anteriores. O

    livro conta com 300 flios e no h nenhum exemplar conservado hoje. Outra

  • 41

    publicao da casa Cromberger data de 1547. Esta edio atribuda a Jacobo

    Cromberger e no possui nenhuma alterao em relao edio de 1535. A Biblioteca

    Nacional de Paris possui um exemplar dessa edio. J a ltima edio atribuda a casa

    Cromberger datada de 1552 e seu paradeiro desconhecido.

    Outra edio publicada na cidade de Sevilha a de Alonso de La Barrera, datada

    de 1575. Acerca dos detalhes formais dessa edio sabemos que ela est em flios (no

    sabemos a quantidade) e em letra de Tortis. Sua localizao atual desconhecida. A

    ltima publicao do Amadis de Gaula na cidade de Sevilha, no sculo XVI, foi

    realizada em dezembro de 1586 por Fernando Daz. Los quatro libros de Amadis de

    Gaula nuevamene corregidos com licencia del Consejo Real. En Sevilla por Fernando

    diaz /Ao 1586. A costa de Alonso de Mata mercader de libros. Estas inscries esto

    presentes na capa da obra abaixo da estampa que mostra um cavaleiro montado

    precedido de um escudeiro carregando uma lana. Essa edio contm 307 flios

    escritos em letra gtica. Existem hoje dois exemplares da Biblioteca Nacional de Madri,

    um na Biblioteca Nacional de Paris, um no Museu Britnico e outro na Sociedade

    Hispnica de Nova York.

    No ano de 1575, a imprensa de Lucas de Junta, localizada na cidade de

    Salamanca, publica trs edies do Amadis, que apresentam distines muito sutis. A

    primeira edio tem incio com o seguinte texto: Aqui comienam los quatro libros

    primeros del invencible cavallero Amadis de Gaula, en los quales se tratan de sus altos

    hechos de armas y cavakkerias, nuevamente impressos em Salamanca, com licencia del

    consejo Real de su Magestad. A costa de Lucas de Junta, Ao de M.D.L.XXV. A

    segunda edio idntica primeira, salvo o fato da confeco do livro ter sido

    financiada por Vicencio Portonariis e no por Lucas de Junta. A licena do Conselho

    Real para a impresso da obra concedida a Lucas de Junta. Esta licena descrita no

    verso da capa e autoriza a impresso dos livros de Amadis de Gaula, historiados e

    impressos em Sevilha. A partir disso, deduz-se que as edies da impressa de Junta

    tratam-se de reimpresses de alguma edio publicada pela casa Cromberger. A terceira

    edio apresenta alteraes na epgrafe do primeiro livro e no final da obra onde se

    aferiu que o livro fora publicado em Salamanca pela casa de Pedro Lasso, livreiro. O

    paradeiro desta ultima edio desconhecido. A primeira edio de Junta pode ser

    encontrada na Biblioteca Nacional de Madrid, na Biblioteca de Palacio (Madri) e no

    Museu Britnico. A segunda edio encontra-se na Biblioteca da Sociedad Hispnica

  • 42

    de Nova York e na Biblioteca Naciona de Paris. As trs edies possuem 307 flios e

    foram impressas em letra gtica.

    A impressa de Juan Antonio de Sabia, localizada na cidade de Veneza, publicou

    em 1533, uma edio do Amadis de Gaula. Essa edio foi produzida custa de Juan

    Batista Pedrazano. Francisco Delicado foi o editor corretor dessa edio e substituiu o

    prlogo de Montalvo por um seu, intitulado Prohemio del corrigidor de las letras mal

    endereadas. epgrafe de Montalvo, delicado acrescenta o seguinte texto: animando

    los coraones gentiles de manzebos belicosos que com grandissimo affecto abrazan el

    arte de la milcia corporal animando la imortal memria del arte de cavalleria no

    menos honestssimo que glorioso. O livro possui 350 flios e est impressa em letra

    redonda. A Biblioteca Nacional de Madrid possui trs exemplares, a Biblioteca

    Mazarine de Paris possui um, o Museu Britnico possui trs e existe outro na Biblioteca

    Pblica de Boston.

    No dia primeiro de dezembro de 1545, o Amadis foi publicado na cidade de

    Medina del Campo tendo por impressores Joan de Villaquiran e Pedro de Castro. Esta

    edio possui 307 flios e foi escrita em letra gtica. O nico exemplar conhecido

    encontra-se na Biblioteca Nacional de Paris.

    A casa de Servacio Sasseno publicou custa de Arnoldo Byrckmenno uma

    edio do Amadis na cidade Louvaina, datada em vinte de outubro de 1551. Essa edio

    possui quatro tomos, letra gtica, e apresenta 348 flios. A Biblioteca Nacional de

    Madrid possui trs exemplares e outro exemplar se encontra no museu Britnico.

    Em Burgos, Pedro de Santilhana publicou uma edio do Amadis no ano de

    1563. A epgrafe do Tomo I a de Montalvo. A edio possui 300 flios e letra gtica.

    A Biblioteca Nacional de Madrid possui um exemplar.

    Outra edio em castelhano do Amadis de Gaula foi publicada na cidade de

    Geraldo Alcal de Henares no ano de 1580. Tal publicao foi feita custa de Ivan

    Gutierrez mercador de livros. A licena para a publicao foi concedida a Ivan

    Gutierrez. A edio possui 286 flios e letra gtica. A Biblioteca Nacional de Paris

    possui um exemplar. Ouro exemplar pode ser encontrado na biblioteca da Universidade

    de Valladolid.

  • 43

    1.4. O Amadis primitivo

    No prlogo, Montalvo faz alguns esclarecimentos aos leitores sobre a forma

    como estruturou a obra:

    corrigiendo estos tres libros de Amadis que por falta de los malos escritores componedores muy corruptos viciosos se leiam, y transladando y

    emmendando el libro cuarto No incio do primeiro livro, dizia ainda que o corrigira de los antiguos originales que estabam corruptos compuestos en antiguo estilo por falta de los diferentes esciptores quitando muchos palabras

    suprfluos, poniendo otras de mas polido y elegante estilo, torantes la

    caballeria e actos de ella 49..

    Ao fazer tais ressalvas, o autor-compilador, aponta para um ponto importante

    que o fato de haver antes de sua interveno a existncia do Amadis de Gaula em trs

    volumes. Montalvo afirma ter feito algumas correes na obra com intuito de torn-la

    mais adequada s necessidades de seu tempo. Essas interpolaes eram marcantes na

    literatura e no se limitam s pocas antiga e medieval sendo notveis ainda nos

    primrdios da contemporaneidade.

    Considerando aqui os casos especficos das literaturas antiga e medieval que se

    reproduzem em sociedades majoritariamente analfabetas, constatamos que elas possuem

    aspectos formais conscientemente propcios memorizao e reproduo oral. Dessa

    forma, nos deparamos com textos escritos para serem contados e recontados e no

    somente lidos e relidos. Trata-se de uma literatura que no se d somente por intermdio

    da escrita, mas tambm claras caractersticas de oralidade.

    Assim, encontramos histrias irremediavelmente alteradas pela oralizao.

    Muitos relatos s existiam na tradio oral sendo, em alguns casos, redigidos sculos

    depois de sua composio. Como acontece na Bretanha, no sculo XII, quando a regio

    dominada pelos normandos e diversos contos da tradio oral cltica foram postos por

    escrito a mando de chefes locais com intuito de manter as antigas tradies.

    A oralizao abre espao para subjetivismos. O narrador impregna a narrativa

    com suas prprias impresses interpolando-a de acordo com seus valores estticos e

    morais. Por vezes, as interpolaes transformam o narrador em autor. Dessa forma,

    chega-se a uma questo que merece ateno neste trabalho: a autoria.

    49

    MONTALVO, Garci Rodrigues. Amadis de Gaula. Edio de Edwin B. Place, op. Cit, p. 08.

  • 44

    Determinar a autoria de uma obra literria medieval praticamente impossvel.

    Isso se deve s condies que as obras eram reproduzidas e transmitidas ao pblico.

    Antes da inveno da imprensa, o acesso a textos escritos era muito limitado. Somando-

    se ao fato da maior parte da populao ser iletrada, a difuso literria ocorria

    essencialmente a partir da tradio oral. Dessa forma, o nome do autor primitivo se

    perdia no tempo e por vezes poderia ser confundido. Na verdade, a questo da autoria

    no parece constar entre as preocupaes dos escritores medievais. Entretanto, em

    alguns casos figurar enquanto problemtica para os crticos da posteridade, como

    ocorre com o Amadis de Gaula.

    praticamente impossvel saber at que ponto as interpolaes de Montalvo

    modificaram o Amadis. No parece absurdo afirmar que suas correes foram

    suficientes para transform-lo em autor de um Amadis moderno que destoa do Amadis

    primitivo, do qual se tem notcias desde o sculo XIV. Entretanto, a ausncia de uma

    verso completa da obra anterior ao texto de 1508, torna praticamente impossvel saber

    at que ponto as interpolaes de Montalvo modificaram a obra.

    Como j foi dito, o Amadis de Gaula era conhecido at o sculo XVI em uma

    verso dividida em trs volumes. Por esse motivo acreditou-se, por sculos, que a maior

    alterao feita por Montalvo ao Amadis primitivo seria a composio de um quarto livro

    onde se narra os feitos de Esplandin, filho primognito de Amadis e Oriana.

    Em 1953, a pesquisadora argentina, Maria Rosa Lida de Malkiel,50

    publicou um

    estudo onde levanta a hiptese de que o Amadis primitivo comearia com o nascimento

    do protagonista e terminaria com a morte deste em uma luta com seu filho

    desconhecido, Esplandin51

    , remetendo, portanto o Amadis de Gaula s histrias do

    lendrio rei Artur. A anlise de Malkiel foi baseada somente na leitura do Amadis de

    Montalvo. Uma leitura pormenorizada e extremam