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79 14 As eleições de 1975 para as comissões executivas locais e regional: Uma contribuição para a história da democracia em Timor-Leste Manuel Luís Real 1 A chegada do Governador Lemos Pires criou um certo optimismo, pois era um oficial bastante respeitado e distinguia-se por um discurso muito racional e equilibrado. Não ignorando as dificuldades de contexto, Lemos Pires entendia porém que só havia um caminho a seguir. De acordo com as suas próprias palavras, a acção do Governo a que presidia haveria, acima de tudo, que obedecer a duas ideias-chave: A descolonização deve ser feita com o povo de Timor e nunca contra o povo de Timor […] Descolonizar é passar a gestão dos assuntos de Timor para os Timorenses (Pires 1991, 72). O início do processo da reforma administrativa Um dos problemas com que o Governo se confrontava era o da necessidade de extinguir o velho sistema da administração colonial, sem provocar o caos. O assunto começou a ser debatido logo em Dezembro de 1974, coincidindo com uma proposta endereçada por um grupo de cidadãos que se auto-constituiu em Lospalos, no extremo leste do território (Fig. 1). Figura 1 – Mapa do concelho de Lospalos (seg. ProfileofLautemDistrict, March 2002) Era formado por dezasseis personalidades timorenses, que se apresentaram como Comissão Promotora da Reorganização do Município de Lautém (CPRML). Ela surge no contexto da imagem positiva gerada 1 Investigador do CITCEM e do IEM. Este texto é uma síntese da comunicação à conferência internacional ‘The End of the Portuguese Empire in a Comparative Perspective’: ICS-IUL, Lisboa, 20-21 Jun. 2011. As respectivas actas, prestes a publicar, encerram uma descrição mais circunstanciada do processo eleitoral, completada por explicações de contexto e por um relato dos últimos momentos da governação de Lemos Pires e sua tentativa de criar o MUIT, como derradeira esperança para impedir o colapso do processo de descolonização.

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As eleições de 1975 para as comissões executivas locais e regional: Uma contribuição para a história da democracia em Timor-Leste

Manuel Luís Real1

A chegada do Governador Lemos Pires criou um certo optimismo, pois era um oficial bastante respeitado e distinguia-se por um discurso muito racional e equilibrado. Não ignorando as dificuldades de contexto, Lemos Pires entendia porém que só havia um caminho a seguir. De acordo com as suas próprias palavras, a acção do Governo a que presidia haveria, acima de tudo, que obedecer a duas ideias-chave:

A descolonização deve ser feita com o povo de Timor e nunca contra o povo de Timor […] Descolonizar é passar a gestão dos assuntos de Timor para os Timorenses (Pires 1991, 72).

O início do processo da reforma administrativa Um dos problemas com que o Governo se confrontava era o da necessidade de extinguir o velho sistema da administração colonial, sem provocar o caos. O assunto começou a ser debatido logo em Dezembro de 1974, coincidindo com uma proposta endereçada por um grupo de cidadãos que se auto-constituiu em Lospalos, no extremo leste do território (Fig. 1).

!Figura 1 – Mapa do concelho de Lospalos (seg. ProfileofLautemDistrict, March 2002)

!Era formado por dezasseis personalidades timorenses, que se apresentaram como Comissão Promotora da Reorganização do Município de Lautém (CPRML). Ela surge no contexto da imagem positiva gerada !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 Investigador do CITCEM e do IEM. Este texto é uma síntese da comunicação à conferência internacional ‘The End of the Portuguese Empire in a Comparative Perspective’: ICS-IUL, Lisboa, 20-21 Jun. 2011. As respectivas actas, prestes a publicar, encerram uma descrição mais circunstanciada do processo eleitoral, completada por explicações de contexto e por um relato dos últimos momentos da governação de Lemos Pires e sua tentativa de criar o MUIT, como derradeira esperança para impedir o colapso do processo de descolonização.

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por Lemos Pires e vinha demonstrar a capacidade de iniciativa por parte de certas forças locais, abertas a um entendimento interpartidário. Na verdade, nesta comissão figuravam simpatizantes da UDT, Fretilin e,até, Apodeti. Esta última, salvo erro, integrava apenas um elemento, chamado Tomé Cristóvão. O responsável local pela UDT era Veríssimo Dias Quintas, liurai de Lospalos, homem pacato e muito respeitado. Da parte da Fretilin, a liderança local estava confiada a Afonso Sávio, cujo equilíbrio e capacidade de diálogo com seus pares fazia um pouco esquecer o radicalismo crescente que se vivia em Díli. Esta harmonia propiciadora, logo expressa no documento que chegou ao Gabinete de Assuntos Políticos (GAP), ficou muito a dever-se às características pessoais e ao sentido de responsabilidade dos líderes partidários de Lautém, qualidades que pudemos confirmar durante as acções no terreno. O Governo não podia desperdiçar tão estimulante oportunidade, tanto mais que ela partia da sociedade timorense e de líderes de opinião numa importante área administrativa do território. Após reuniões preparatórias em Díli, com auscultação da cúpula das principais forças partidárias, o Major Francisco Mota, responsável pelo GAP, deslocou-se a Lospalos logo em Janeiro. Com ele, seguiram também o signatário e representantes do comité central dos três partidos. No seguimento destas diligências foi elaborado um plano para uma experiência piloto, que, a ser bem-sucedida, pudesse servir de modelo para o restante território. Assim, partindo de uma proposta genuinamente local e em diálogo com os partidos, o Governo avançou para um programa de reforma administrativa que abrisse a possibilidade de entregar, por fases, a gestão da colónia aos timorenses. Pretendia-se que esta passagem de poderes se desse de forma sustentada, começando pela administração local. A planificação do programa eleitoral e legislative A concepção deste plano foi, desde logo, reconhecida como um tarefa delicada, que deveria desenvolver-se com o máximo de consenso. Ela envolvia múltiplas questões, como auscultar a opinião dos líderes locais, contactar com a população autóctone, combater a possível desconfiança das administrações cessantes de inspiração colonial, formar novos quadros administrativos, garantir um regime de transição suportado por pessoal técnico-administrativo com experiência do antigo sistema, promover a representação de autarcas locais num órgão consultivo junto do governo central, etc. Da reunião havida em Lospalos, com a Comissão Promotora, ficou a ideia de que havia alguns chefes tradicionais contestados, sendo-nos recomendado que se fizesse uma consulta popular generalizada, seja para relegitimar formalmente os liurais que recebiam apoio da população2, seja para a eleição de outro chefe, por iniciativa da comunidade gentílica. É de referir que esta metodologia foi preconizada pela CPRML, em coordenação com os comités centrais das forças partidárias. O GAP partia, assim, de uma base de auscultação dos próprios líderes timorenses, para construir um modelo de compromisso, que respondesse às exigências do processo autonómico. Do diálogo estabelecido surgiu um conjunto de princípios orientadores, sobre os quais deveria assentar o novo modelo, a saber: •! Preparar a entrega do poder local aos timorenses •! Respeitar a organização tradicional e seguir, o mais possível, a vontade dos representantes locais •! Resolver problemas de contestação de alguns chefes gentílicos •! Aferir a vontade das populações através do voto individual •! Utilizar um sistema de voto já anteriormente praticado na região, por algumas administrações •! Respeitar a hierarquia tradicional, em que os ‘liurai’ são escolhidos por ascendência familiar e mérito

pessoal •! Garantir uma transição, sem sobressalto, das antigas Administrações, para Comissões Executivas

eleitas, que deveriam ser apoiadas tecnicamente por funcionários especializados •! Promover a criação de um Conselho de Governo, a nível regional e central, para garantir a

representatividade das diversas forças políticas

Para além de serem definidas estas bases gerais de actuação, foi aprovado o seguinte calendário de acções: 1.! Experiência piloto no Município de Lautém (Fev.- Ago. 1975)

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!2 Este último aspecto era particularmente importante, tendo em conta que, doravante, para além do poder que lhes era tradicionalmente reconhecido, eles passavam a integrar – pela primeira vez – órgãos da administração estatal. E foi um tema trazido ao GAP pelos próprios timorenses.

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2.! Alargamento ao conjunto do território, através da formação rápida de equipas de sensibilização das populações e de preparação dos actos eleitorais (Abr.- Set. 1975)

3.! Criação de um quadro legislativo de suporte à Reforma da Administração concelhia (a partir de Maio 75)

4.! Tomada de posse das Comissões Executivas locais e regionais, assim como do Conselho de Governo (a partir de Ago 75)

Para dar cobertura legal a todo este processo foi necessário produzir vários diplomas, cuja preparação ficou a cargo de um Grupo de Trabalho, com a seguinte composição:

- O Chefe do Gabinete de Assuntos Políticos3 - Dois adjuntos do Gabinete de Assuntos Políticos4 - O Chefe dos Serviços de Administração Civil5 - Um Administrador de Concelho em exercício6 - Um Jurista, já radicado há anos em Timor7 - Um delegado do Comité Central de cada partido político8

A este grupo estava cometida a preparação de três diplomas fundamentais: 1 – Lei sobre a Administração Local e a Regional (para substituir a gestão dos antigos Postos de Concelho e Administrações de Concelho); 2 – Lei sobre a Administração de Dili (cujo governo era muito mais complexo do que nas restantes administrações); 3 – Lei sobre o Conselho de Governo (que passaria a funcionar como o primeiro órgão representativo dos timorenses junto da Administração do Território).

Quando se deu a interrupção do programa, por força do golpe da UDT, o calendário estava a ser cumprido com bastante rigor. Antes de meados de Agosto encontrava-se concluída a experiência-piloto de Lautém. A crise rebentou, precisamente, na madrugada seguinte à tomada de posse da primeira Administração Regional eleita, ou seja, de 10 para 11 de Agosto de 1975. Nessa altura, encontrava-se em fase avançada a auscultação das populações nos restantes concelhos do território, com mais de meia dúzia de casos concluídos, ao nível dos sucos e povoações. E tinham sido já aprovados as principais leis da reforma administrativa.

O desenvolvimento do programa de reformas As reuniões de Díli e Lautém ajudaram a configurar o processo, sendo definidos os objectivos, os requisitos e as metas a atingir. Os dois primeiros tempos foram de planeamento, tendo-se o signatário deslocado mais do que uma vez a Lospalos, para auscultar os representantes locais, definir os detalhes de actuação e preparar a logística para intervenção no terreno.

É de sublinhar que a metodologia encontrada, não partiu do GAP, mas antes de propostas vindas das entidades locais, com a anuência dos delegados partidários. Este aspecto é importante acentuar, dado que, posteriormente, surgiu a crítica de que Portugal havia enveredado por uma consulta de tipo ocidental, sem ter em consideração a realidade timorense. Ora, o que nos foi sugerido como método de auscultação, assentava num uso já existente, a que se recorria para resolver algum diferendo. Utilizavam-se pequenos cestos, devidamente diferenciados, num dos quais seria depositado o sinal da vontade de cada membro da aldeia, chamado a colocar uma pequena pedra. Houve ainda a sugestão – vinda também dos promotores – para salvaguardar uma certa confidencialidade do acto: o uso de um recipiente de maiores dimensões, no qual eram metidos os pequenos cestos, de modo a que se não visse directamente em qual deles era introduzido o testemunho individual9.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Major Francisco Fernandes da Mota. 4 O signatário, acompanhado do alferes Francisco Faria. 5 Intendente Vítor Santa, natural de Timor. 6 Pestana da Silva, um dos mais qualificados administradores de concelho. 7 O advogado António Cascais, que exercia actividade privada na colónia. 8 Foi indicado quem estava a acompanhar o processo no terreno. 9 Chamamos a atenção para este aspecto, pois, encontramos um forte reparo no livro de Nicoll (2002). Apesar de não ser posta em causa a seriedade do GAP, ao enveredar pelo processo eleitoral, o autor questiona o sistema de voto, que, tradicionalmente, não era utilizado pelo povo timorense para a legitimação dos seus chefes. Para o

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A primeira fase da consulta popular iniciou-se ainda em finais de Fevereiro. A comitiva eleitoral deslocou-se aos cinco postos administrativos e à maior parte das sedes de suco (Fig. 2). Além da Comissão Promotora e das autoridades de Lospalos – civil e militar – foi também importante a colaboração dos Administradores de Posto, que trataram da logística local e da convocatória das populações. !

!Figura 2 – Chegada a um suco, de jipe, após difícil viagem em época das chuvas

1º plano – Veríssimo Quintas, Domingos Sávio, Pedruco (Administrador), Manuel Real (GAP), Eduardo dos Anjos (Fretilin) e Afonso Sávio; 2º plano–Oliveira (UDT), Albino (motorista)

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A recepção que nos era feita nos sucos tinha um ar festivo (Fig. 3). A comitiva era muito bem recebida pelas populações e existia um singular respeito pela nossa missão. Enquanto responsável pela comitiva e com o auxílio de um tradutor de tétum ou fataluco, dirigíamo-nos à assistência com palavras simples e em nome do Governador, pela tradicional deferência que dele emanava. Explicávamos o momento que se vivia, dando a conhecer que era seu desejo contribuir para o respeito da vontade dos timorenses e criar melhores condições para o desenvolvimento de Timor. A seguir, era ensinado o modo como iria decorrer a consulta acerca da vontade dos habitantes do suco, ora confirmando o seu chefe, ora

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!efeito, serve-se ainda do testemunho da antropóloga australiana Sue Ingram. Sobre esse aspecto, não colocamos em dúvida a afirmação da referida investigadora. Porém, o que no momento estava em causa, não era a reconstituição científica de um procedimento antigo, segundo o olhar da antropologia. Estava-se num processo político, com a sua própria dinâmica. A matriz do procedimento eleitoral estava já enraizada na sociedade timorense. Não se tratava aqui de medir a antiguidade do método, mas de verificar se ele era ou não usado. E se seria aceite para resolver situações de conflito. Para além do mais, ele próprio nos estava a ser recomendado pelos timorenses. É certo que se tratava da sua elite política, mas era com esta que o processo autonómico estava a ser discutido e seria ela, em princípio, que iria liderar a consulta popular para a autodeterminação e tomar as rédeas do futuro do território. Foram, na verdade, os dirigentes das respectivas forças políticas que manifestaram vontade de aproximar das democracias modernas a estrutura político-administrativa de Timor. E o caminho seguido não ultrapassou o mero compromisso entre a estrutura tradicional, a organização administrativa colonial e uma visão contemporânea – pela ‘luneta’ dos partidos políticos timorenses – do Estado democrático. No momento em que se estava a iniciar o processo de construção de um possível Estado independente, a estrutura estatal teria que ser vertebrada e estar regida por princípios claros e regras formais, aceites pela comunidade e publicitadas. O actual desastre da Líbia é precisamente consequência do esvaziamento do Estado, em nome da organização tribal.

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escolhendo um novo, nos casos em que a população estava dividida e aparecia um nome alternativo. Neste último aspecto, a comitiva governamental não se imiscuía no modo como tal nome aparecia. Era suposto que decorreria do costume tradicional de designação de um chefe. Como seria de esperar, a maior parte das vezes tudo se passou pacificamente, sendo confirmado o respectivo liurai (Fig. 4). Houve algumas situações difíceis de resolver, como em Uairoque, Muapitine e, sobretudo, na Tutuala. Em Iliômar, apareceu também um nome alternativo, que foi eleito. Do resultado das votações era sempre lavrado um auto.

!Figura 3 – Recepção festiva no suco de Leuro(exemplo da importância da presença feminina)

!Figura 4 – Chefe da povoação de Raça (substituído nesse dia – 28 Fev. 75 – pelo filho; aparecem ambos ao nosso

lado e, entre outros, também Pedruco, Anjos e Oliveira) !

Será de referir a participação de mais de 50% da população do concelho, apesar do isolamento em que se situavam muitas aldeias. Este número é significativo se atendermos, não só à distância a que ficavam muitas povoações relativamente à sede, mas também à eventualidade de parte dos habitantes estarem ocupados em trabalhos agrícolas ou no serviço militar. Além disso, há ainda que contar com a dificuldade sentida por velhos, grávidas ou certas mães de leite. No que respeita às mulheres, mesmo assim, a sua participação representou 23% dos votos contabilizados. Não ficamos com uma noção exacta da incidência partidária resultante destas eleições para legitimação das chefias tradicionais. Em princípio, uma parte dos sufrágios deveria ser suprapartidária, incarnando a função abrangente da dignidade do chefe. Mas,

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nalguns casos, era visível que a politização se havia imiscuído na vida local. O único exemplo de que nos recordamos, concretamente, foi o da povoação de Maina I (Môro), pela singularidade do respectivo chefe ser simpatizante da Apodeti. Tratava-se de Edmundo da Conceição, um homem que nos pareceu de capacidade superior à mediania e que auferia de grande prestígio entre o seu povo. Mas foi o único caso onde este partido teve algum sucesso. Entre as imagens que melhor retemos desta fase contam-se o carácter ordeiro dos votantes, à espera de vez (Fig. 5), e a dignidade com que os eleitores se apresentavam.

!Figura 5 – Votação no suco de Souro (exemplo de organização muito formal do acto eleitoral)

No decorrer do processo houve contactos por parte de diplomatas estrangeiros. Tiveram particular significado as visitas do 1º Secretário da embaixada australiana em Jacarta, Mr. Allan Taylor, que anos mais tarde viria a ascender ao cargo de Embaixador10. Este diplomata manteve contacto com o Governo e deslocou-se duas vezes a Lospalos. No GAP foram-lhe apresentadas as linhas estratégicas do processo eleitoral e, em Lautém, teve até a oportunidade de assistir a um caso especial, de descontentamento da população face ao respectivo chefe. Foi concretamente no suco de Iliômar. De início, houve um ajuntamento popular, menos ordenado que o costume, pois existia bastante empenho de alguns habitantes do suco em falar com o signatário, na qualidade de delegado do Governo, para testemunhar o seu repúdio ao liurai (Fig. 6). Ladeado pelos representantes partidários e por elementos da comissão promotora, Allan Taylor pôde depois observar a alocução que proferimos e a organização do acto eleitoral (Fig. 7). Houve dois candidatos em disputa e, após a contagem das pedrinhas depositadas em cada cesto, verificou-se que teve maior votação o oponente ao liurai. Por um acaso fortuito, este diplomata testemunhou um acto em que houve mesmo a substituição do chefe, após auscultação da vontade colectiva. No final, quando comentávamos o que se passou, ele acabaria por reconhecer que o processo foi ‘honest and efective’.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!10 Foram visitas muito cordiais e descontraídas, tendo-se estabelecido um diálogo aberto e esclarecedor. Passados estes anos, não podemos deixar de reconhecer a ambiguidade com que a diplomacia australiana tratava, já nessa altura, a questão de Timor.

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Figura 6 – Falando com a população em Iliômar(contestação do liurai, presenciada por Allan Taylor)

!Figura 7 – Votação em Iliômar, onde o chefe foi substituído(em segundo plano, o diplomata australiano,

ladeado pelos representantes da UDT e Fretilin) !

A auscultação dos habitantes dos sucos ficou concluída a 8 de Março. No mês de Abril recebeu-se a indicação de que a Apodeti, doravante, recusaria participar com delegados seus no supervisionamento das eleições. A Indonésia estaria seriamente preocupada pois o processo estava a escapar ao seu controlo.

Apesar deste contratempo, o mês de Abril iria ser preenchido por múltiplas iniciativas relacionadas com o desenvolvimento do projecto:

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1 – Reunião com os Administradores do Concelho, em Díli, preparando-os para o processo em curso; 2 – Deslocação do signatário às restantes sedes de Concelho, para encontros com representantes locais; 3 – Formação das brigadas que iriam encarregar-se da organização dos actos eleitorais, no resto do território.

As brigadas de esclarecimento tiveram uma função logística e instrumental, sendo-lhes vedada qualquer intromissão ideológica. A sua composição era muito reduzida: um Alferes e um Furriel. Foram criadas tantas equipas quantos os concelhos a percorrer. Durante um curso acelerado, foi-lhes prestada informação sobre o modo como surgiu e se estava a desenvolver o projecto. E receberam orientações sobre o modo como se deveriam conduzir, para garantir a dignidade do processo eleitoral.:

- Apresentarem-se em nome do Governador - Apelarem à colaboração de todos, nas eleições - Valorizarem a manifestação da vontade dos timorenses - Realçarem a necessidade de promover o desenvolvimento de Timor - Não entrarem na componente político-partidária - Ensinarem como deveria decorrer o acto eleitoral

A acção das brigadas foi sempre acompanhada por representantes dos dois partidos que se mantiveram fiéis ao projecto inicial. Estavam previstas duas fases: a sensibilização e, numa segunda volta, a eleição. Devido à precipitação dos acontecimentos, a primeira fase foi abruptamente interrompida quando já quase todo o território estava coberto ao nível de sucos.

Esta etapa foi lançada para o terreno durante o mês de Maio, já com a previsão de que o processo estivesse concluído em Outubro seguinte. Em paralelo, iniciaram-se as reuniões do Grupo de Trabalho para a reforma legislativa da administração. Na mesma altura, a Comissão de Descolonização de Timor começou a discutir com os partidos a aplicação da Lei geral para a descolonização do Território.11

Com base num pressuposto de urgência, motivado pela deterioração da atitude da Indonésia, os trabalhos foram prosseguindo. Todavia o mês de Junho foi um período altamente prejudicial para o futuro político do território, devido às desavenças entre a Fretilin e a UDT. Curiosamente, a fragilidade anunciada para o processo político não veio, no imediato, a prejudicar o programa eleitoral. A Apodeti, que tinha recusado participar com delegados do seu comité central, manteve no terreno os representantes locais. Quanto aos elementos da Comissão Promotora e aos delegados da UDT e Fretilin, continuaram empenhados em preservar o entendimento da primeira hora, apesar da tensão existente em Díli.

A fim de melhor se compreender o processo eleitoral e a estrutura pensada para a fase transitória, apresentamos dois quadros exemplificativos (Figs. 8 e 9).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!11 A referida Lei da República, viria a ser publicada em Diário do Governo, I Série, Núm. 163, de 17 de Julho. Aí se define o calendário processual e se estabelecem quais seriam os órgãos transitórios de representação e de Governo: o Alto-comissário; a equipa governamental, formada por este último e mais quatro Secretários-Adjuntos; e um Conselho de Governo. Tal órgão, de natureza consultiva – ao qual deveriam ser apresentados certos assuntos, com carácter obrigatório – era já um primeiro passo de articulação governamental com as forças locais. E a respectiva composição decorreria, em grande medida do resultado do processo eleitoral em curso. A definição do futuro político de Timor ficaria posteriormente cometida a uma Assembleia Popular representativa do povo do território (Lei nº 7/75, artigos 2º a 4º). O mesmo diploma incluía ainda o Estatuto Orgânico de Timor, que definia a composição e competências de cada Órgão, regulava a administração da justiça e das finanças, e dispunha de cláusulas de enquadramento para os serviços públicos privativos e seu pessoal.

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Figura 8 – Processo eleitoral em cadeia, nos Postos e Concelhos !!!!!! !

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Figura 9 – Governance structure and progressive representation

Como resultado do esforço legislativo em curso, foi ainda promulgada a Lei n.º 7/75, de 17 de Julho. Esta passou a ser o documento estruturante das reformas em curso, com vista ao futuro político do território. No mês de Julho, estavam também já aprovados dois dos diplomas para o enquadramento legal da experiência de Lautém e sua extensão ao resto do território12. O primeiro ficou conhecido por Diploma Legislativo nº 3/75, sendo publicado no Boletim Oficial de Timor, nº 21, de 24 de Maio13. O segundo, sobre a Administração Local e Regional, já tinha sido aprovado e encontrava-se impresso quando se deu !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12 O terceiro diploma, sobe o caso especial de Díli, encontrava-se em estudo avançado quando eclodiu a guerra civil. 13 Acerca deste diploma, Pires (1991, 87) faz confusão com a Lei nº 7/75, ao tratar da reforma administrativa. E nada refere quanto ao seu conteúdo. Também confunde o nome do signatário, que apelida Fernando Real.

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a crise desencadeada pelo golpe da UDT. Porém, nunca chegou a ser distribuído e não conseguimos ficar com cópia do seu articulado.

Munidos desta ferramenta, deslocamo-nos a Lospalos para a conclusão do processo. Na fase final e em momentos sucessivos, compareceram ainda o Major Francisco Mota e o Governador Lemos Pires. O comité central da Fretilin manteve Eduardo dos Anjos. Quanto à UDT, o anterior representante foi substituído por (Vasco?) Senanes. Na ocasião, não atribuímos significado especial a esta mudança, mas ela pode ter estado já relacionada com as movimentações golpistas que vinham a ser organizadas pela cúpula do partido, dado o valor estratégico da Companhia de Lospalos. Apesar de tudo, tal não constituiu qualquer obstáculo para o bom andamento dos trabalhos. E a própria Apodeti não deixou de se fazer representar com seus delegados regionais, um dos quais chegou a ser nomeado para uma Comissão Executiva Local e teve assento no colégio eleitoral para a Comissão Executiva Regional. Sobre o modo como decorreram os trabalhos, começamos por transcrever o nosso depoimento de 1975, inserido no Relatório do Governo de Timor:

A experiência piloto de Lautém conheceu a sua última fase no mês de Agosto. Desloquei-me à Ponta Leste em fins de Julho e aí estive quase quinze dias com membros da Fretilin e UDT e com a Comissão Promotora, a ultimar as eleições preliminares. A primeira Comissão Executiva Local eleita foi a de Iliomar, num acto singelo presidido pelo chefe do GAP, que não pôde esconder a sua emoção ao empossar o primeiro timor escolhido pelos homens da terra para guiar os seus destinos. A tomada de posse da C. E. Regional de Lautém deu-se em 10 de Agosto, com a presença do governador Lemos Pires. Havia grande expectativa, mas todos os que vivemos de perto o processo sentimos quanto imperou o bom senso na escolha dos candidatos, homens novos, com prestígio, de cultura mediana. Manobras, se as houve…, não parecem ter logrado efeito. Basta dizer que a lista proposta pela Comissão Promotora saiu vencida. O povo de Timor mostrava-se adulto e disposto a ser senhor do seu futuro [...] (Pires 1991, 88).

Não ficamos com dados sobre as duas listas em confronto para a Comissão Executiva. Cada uma delas aparentava reunir pessoas de mais que uma sensibilidade política, sendo de admitir que houvesse também elementos que poderíamos considerar independentes. Em qualquer dos casos, nunca o concelho – doravante chamado ‘Região’, para desaparecer a terminologia de tradição colonial e raiz latino-romana - ficaria a ser regido por uma única cor partidária. Mas o mais significativo de tudo, é que saiu perdedora a lista promovida pela própria CPRML, que tinha sido a inspiradora e liderara a experiência-piloto de Lautém. A vitória da lista alternativa não era para nós expectável, nem conseguimos apurar quais as razões inerentes ao aparecimento de duas listas e qual o jogo de forças em confronto, que levou à vitória da lista B. Mas tal só demonstra a independência e seriedade com que decorreu o acto eleitoral. Conclusão Na altura em que era dada posse administrativa à Comissão Executiva Regional de Lospalos, decorria em Díli uma greve geral dos serviços públicos. Por ironia do destino, mas cirurgicamente controlado pelos serviços secretos indonésios, o golpe da UDT dá-se na madrugada seguinte à conclusão do programa eleitoral de Lautém. Decorridos quarenta anos sobre tal acontecimento, não restam dúvidas a quem aproveitaria o colapso da reforma administrativa em Timor Leste. Importa reiterar a seriedade com que o processo foi conduzido, tanto pelo Governo de Lemos Pires, como pelos membros da Comissão Promotora da Reorganização do Município de Lautém. E, acima de tudo, realçar a esperança sentida pelas populações locais, de que algo estava mesmo a mudar. Impressionou-nos vivamente a dignidade com que as pessoas participaram no acto eleitoral. O dia das eleições seria para elas como que um momento de comunhão e de festa colectiva, pois houve danças e mata-bicho. Uma parte dos eleitores vinha, inclusive, de aldeias mais ou menos distantes, mobilizados pelo seu Liurai e pelo Administrador de Posto, em coordenação com a CPRML. O ambiente era, regra geral, muito sereno e ordenado. Como dissemos acima, foram raras as situações de divisão ou conflito interno. Mesmo assim, também nestas imperou a disciplina. Ainda hoje recordamos a hospitalidade com que eramos recebido, a ordem com que se formavam as filas de votantes e a nobre postura individual, com realce para os elementos do grupo feminino, de traje festivo e, regra geral, apresentando-se em separado dos homens. É com a imagem de DIGNIDADE que encerramos este nosso testemunho, ou seja, com o mesmo qualificativo que sensibilizou o Professor Doutor José Mattoso, ao fazer a história da

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Resistência e ao recordar a figura de Konis Santana. Foi com gosto que aceitamos prestar este exercício de memória, o qual dedicamos à Juventude timorense. As novas gerações, apesar de não terem vivido os acontecimentos acabados de relatar, podem bem sentir-se orgulhosas desta primeira experiência democrática em Timor-Leste. É com o mesmo sentimento que fazemos votos de que essa mesma Juventude – estimulada pelo exemplo daqueles que tombaram no campo de batalha, em defesa de um futuro livre e digno para a sua pátria – seja portadora de uma mensagem de esperança e se dedique a concretizar, com seriedade e altruísmo, o sonho dos seus Heróis, alguns dos quais aqui nomeados, pois foram também protagonistas das eleições democráticas de 1975. Bibliográficas Nicoll, Bill 2002, Timor: A nation reborn, Equinox Publishing, Jakarta. Pires, Mário Lemos 1991, Descolonização de Timor: Missão impossível?, Círculo de Leitores; Publicações D.

Quixote, Lisboa.