129_A doçura do alho

9
A doçura do alho Por Tulio Silva Fotos Carol Gherardi Ainda pouco consumido no país – principalmente por preconceito e pouco conhecimento, o alho negro é aliado de chefs na finalização de pratos, acrescentando sabores complexos e diferentes do ingrediente tradicional Não é de hoje que as prateleiras dos supermercados já oferecem certa variedade de marcas de alho negro para o consumidor. O ingrediente, produzido a partir do bulbo fermentado do vegetal, é ideal para a finalização de pratos, uma vez que pode ser consumido cru e não apresenta bom desempenho cozido. Pioneira na produção do alho negro no país, Marisa Ono conta que descobriu o ingrediente muito por acaso. “A minha história com o produto é muito curiosa. Eu fiquei sabendo dele através do chef Carlos Bertolazzi, que visitava o ElBulli na época. Ele me perguntou se eu sabia do que se tratava, isso há mais de seis de anos. Como a maioria das pessoas, nem tinha ideia do que se tratava”, explica Marisa. O desconhecimento, grande inimigo da gastronomia, perdura ainda hoje entre os inúmeros consumidores que rejeitam o produto por não saber como utilizá-lo e por achar feia a sua cor. Diferentemente dessa maioria, Marisa Ono não deixou que isso a impedisse de pesquisar e tentar entender o alho fermentado. “Eu fiquei curiosa para saber o que era e não achava nenhuma referência publicada sobre o assunto. Tive um ligeiro palpite de como ele poderia ser produzido e comecei a fazer pesquisas. Então, um dia, juntando algumas sucatas criei uma estufa e comecei a produção”, conta a pioneira.

Transcript of 129_A doçura do alho

Page 1: 129_A doçura do alho

A doçura do alho

Por Tulio SilvaFotos Carol Gherardi

Ainda pouco consumido no país – principalmente por preconceito e pouco conhecimento, o alho negro é aliado de chefs na finalização de pratos, acrescentando sabores complexos e diferentes do ingrediente tradicional

Não é de hoje que as prateleiras dos supermercados já oferecem certa variedade de marcas de alho negro para o consumidor. O ingrediente, produzido a partir do bulbo fermentado do vegetal, é ideal para a finalização de pratos, uma vez que pode ser consumido cru e não apresenta bom desempenho cozido.

Pioneira na produção do alho negro no país, Marisa Ono conta que descobriu o ingrediente muito por acaso. “A minha história com o produto é muito curiosa. Eu fiquei sabendo dele através do chef Carlos Bertolazzi, que visitava o ElBulli na época. Ele me perguntou se eu sabia do que se tratava, isso há mais de seis de anos. Como a maioria das pessoas, nem tinha ideia do que se tratava”, explica Marisa.

O desconhecimento, grande inimigo da gastronomia, perdura ainda hoje entre os inúmeros consumidores que rejeitam o produto por não saber como utilizá-lo e por achar feia a sua cor. Diferentemente dessa maioria, Marisa Ono não deixou que isso a impedisse de pesquisar e tentar entender o alho fermentado.

“Eu fiquei curiosa para saber o que era e não achava nenhuma referência publicada sobre o assunto. Tive um ligeiro palpite de como ele poderia ser produzido e comecei a fazer pesquisas. Então, um dia, juntando algumas sucatas criei uma estufa e comecei a produção”, conta a pioneira.

Marisa, após se sentir segura com a produção própria, mandou para Bertolazzi e para Alex Atala avaliar se ela estava no caminho certo. “Para você ter uma ideia, eu comecei a fazer o alho e já estava mandando para chefs sem nunca ter provado nenhum”, conta Marisa.

De lá para cá, ela produz atualmente entre 40 e 80 quilos por mês, fornecendo principalmente para a marca Bombay, por não contar com estrutura própria de logística, e mantendo apenas dois endereços com envios frequentes. Um deles, o carioca Bazzar, de Cristiana Beltrão, e o outro, como não poderia deixar de ser, o paulistano Zena Caffé, de Carlos Bertolazzi.

Na contramão, a empresa Alho Mel, de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, produz o alho negro e o comercializa para todo o Brasil e tem uma história diretamente relacionada com a de Marisa.

Produzindo atualmente 150 quilos por mês, com potencial para 700, e contando com distribuidores oficiais em Minas Gerais, Santa Catarina e Paraná, ela

Page 2: 129_A doçura do alho

concentra suas atividades comerciais em São Paulo. Quem comanda as atividades na capital paulista é Lorane Letteriello, filha de Rômolo Letteriello, o produtor sul matogrossense.

Olhando os resultados atuais, mal se pode imaginar que Rômolo começou sua produção ao se sentir desafiado por Marisa Ono, como conta Lorane. “Meu pai estava lendo uma matéria sobre o alho negro e se deparou com uma fala de Marisa em que ela dizia que o processo era simples, apenas de fermentação, mas que tinha um segredo que nunca iria revelar. Nessa hora ele percebeu que tinha um desafio em jogo e começou a pesquisar”, diz.

Rômolo, que na época tinha uma empresa de soluções gastronômicas – fornecendo cozinhas industriais, coifas, entre outros equipamentos de cozinha para chefs –, aproveitou um refrigerador antigo para criar uma estufa e começar a trabalhar as primeiras cabeças de alho.

Hoje em dia, com uma estufa feita de alvenaria e vaporizador profissional, é capaz de manter temperatura e umidade controladas, os principais ingredientes para o preparo dos alhos negros. Esses, vendidos em empórios gourmets e enviados diretamente para chefs, caso da banqueteira Angélica Vitali, especialista em gastronomia molecular e grande divulgadora da Alho Mel de Rômolo.

Parceira da empresa desde o começo, quando ainda era pequena, Angélica gosta de utilizar o produto por conta de brincadeiras de textura. “Eu venho da gastronomia molecular, que tem como principal característica a transmutação dos ingredientes para formas não convencionais. O alho negro, ainda que não sofra nenhuma interferência química, é um exemplo de surpresa, quando apresentado em pratos, simulando outros ingredientes”, explica.

Um dos maiores exemplos da personal-chef, o bacalhau (cuja receita pode ser conferida nessa edição) utiliza o alho negro no lugar das azeitonas pretas. “Quando eu lamino o alho e coloco em um preparo com o pescado, eu consigo substituir a azeitona em aparência, e ainda garantir a surpresa do comensal”, conta Angélica.

Famoso por características que em nada lembram o alho tradicional, o alho negro apresenta textura maleável, como a de um caramelo, cor bastante escura, sabor adocicado e aroma complexo e frutado, lembrando o de ameixas com toques de cogumelos. Características essas que conquistaram o personal-chef Gustavo Rigueiral, da empresa Chef-à-Porter, já no primeiro contato. “A primeira vez que tive acesso a um bulbo, eu já conhecia a história do alho negro, mas nunca tinha tido um em mão. Foi espetacular poder estudá-lo, ainda que não preparando nenhuma receita. O sabor adocicado, bastante caramelado, com notas de melado e a textura diferente me conquistaram”, explica.

Gustavo recebera o bulbo de uma amiga e começou a fazer pesquisas exaustivas, uma vez que nunca tinha tido um em mãos. Testando o produto cru, comendo uma fatia fina, ele começou a ter ideias de receitas, e indica esse tipo de relação,

Page 3: 129_A doçura do alho

de criação de intimidade, como a melhor forma para introduzir o alho negro nas mesas brasileiras.

“Acredito que as pessoas têm preconceitos com o produto por total ignorância. Eles veem um alho escuro e pensam que tá podre, sem falar que o desconhecimento e o preço mais elevado que o de um alho comum não o fazem muito atraentes para experimentações”, complementa Gustavo sobre a baixa popularidade do ingrediente.

Para ele, o consumidor precisa vencer essas limitações e começar a explorar o alimento. “O alho negro é um ingrediente muito simples, e como uma trufa, gosto de trabalhá-lo na finalização de pratos. Como incentivo ao seu consumo, costumo falar para as pessoas brincarem com ele, experimentar suas diferenças e criar mentalmente possibilidades”, explica Gustavo.

Para que falta de criatividade não seja mais um empecilho à popularização do alho negro, Angélica Vitali e Gustavo Rigueiral apresentam seis pratos, da entrada ao principal, brincando com proteínas diversas e até com a combinação de alho e sorbet de jabuticaba.

RECEITAS

Batata-doce com alho negro, broto de cenoura, couve e ovo pochê1 porção

20 g de manteiga1 batata-doce média1 ovo caipira1 dente de alho negro Brotos de cenoura, de couve mizuna, pimenta-do-reino moída na hora, sal e flor de sal Maldon a gosto

1 Em uma panela, com água fervente e sal, cozinhe a batata doce inteira e com casca, até que fica macia. 2 Corte a batata no formato de um paralelepípedo preservando a casca. 3 Aqueça uma frigideira média com manteiga, tempere a batata com a flor de sal e a pimenta-do-reino e frite cada um de seus lados, até que fiquem dourados e crocantes. 4 Em outra panela com água fervente, mas sem borbulhas, prepare o ovo pochê, com o cuidado de manter sua gema mole. 5 Corte o alho negro em lâminas finas. 6 Em um prato, coloque a batata no centro, o ovo pochê por cima e guarneça com os brotos e as lâminas do alho.

Coalhada seca com cogumelos tostados, flor de abobrinha e raspas de alho negro 1 porção

Prato1 pote de iogurte natural integral 1 cogumelo Portobello médio 1 dente de alho negro 1 flor de abobrinha

Page 4: 129_A doçura do alho

Azeite de oliva extravirgem, pimenta-do-reino moída na hora e flor de sal Maldon a gosto

Massa para empanar100 g de farinha de trigo200 ml de cerveja (Ale) 20 g de bicarbonato de sódio

Massa para empanar1 Em uma tigela, junte a cerveja e acrescente a farinha de trigo aos poucos. 2 Quando a massa se tornar consistente e cremosa, cobrindo os dedos sem escorrer, adicione o bicabornato e mexa rapidamente, reserve.

Prato1 Coloque o iogurte fresco sobre um pano limpo e seco, amarre as pontas do pano e forme uma pequena trouxinha sem deixar que o iogurte escorra. 2 Pendure a trouxinha em um local fresco, deixando-o repousar por 24 horas. 3 Após esse período, retire a coalhada que se formou e reserve em geladeira tampado hermeticamente. 4 Com o auxílio de uma maçarico, toste o cogumelo por fora, até que ganhe coloração escura e aroma levemente defumado, deixe-o esfriar e corte em fatias finas. 5 Aqueça uma panela com óleo até à temperatura de 180 ºC. 6 Empane a flor de abobrinha na massa e frite-a no óleo quente, até que fique dourada e crocante, escorra o excesso de gordura sobre papel absorvente e reserve. 7 Disponha uma colher generosa da coalhada no centro do prato e tempere-a com a flor de sal. 8 Corte o alho negro e o cogumelo em lâminas bem finas e coloque sobre a coalhada. 9 Ao lado, coloque a flor de abobrinha empanada. 10 Finalize com um fio de azeite e o sal Maldon a gosto.

Pato com manteiga de ora-pro-nóbis, sorbet de jabuticaba e alho negro1 porção

Sorbet de jabuticaba500 ml de suco fresco de jabuticaba100 g de gelo-seco triturado1 clara de ovo

Manteiga de ora-pro-nóbis50 g de manteiga6 folhas médias de ora-pro-nóbis

Pato1/2 peito de pato50 g de manteiga de ora-pro-nóbisPimenta-do-reino moída na hora e flor de sal Maldon a gosto

Montagem1 alho negroPimenta-do-reino moída na hora e flor de sal Maldon a gosto

Page 5: 129_A doçura do alho

1 folha média de ora-pro-nóbis

Sorbet de jabuticaba1 Em uma batedeira planetária, misture em velocidade média o suco de jabuticaba e a clara do ovo com o batedor de massas médias. 2 Quando a mistura estiver leve e aerada, acrescente o gelo-seco triturado e bata bem, até que a massa ganhe uma textura cremosa e macia, sem cristais de gelo. 3 Retire o sorbet da batedeira e reserve em um recipiente com tampa no freezer.

Dica de chefCaso os cristais de gelo se formem na massa, basta batê-la rapidamente na batedeira.

Manteiga de ora-pro-nóbis1 Em uma panela média, derreta a manteiga lentamente, retirando toda a espuma branca que se formar na superfície. 2 Depois de limpa, desligue o fogo e adicione as folhas de ora-pro-nóbis. 3 Deixe esfriar, retire as folhas e reserve.

Pato1 Aqueça uma frigideira antiaderente média até que fique bem quente. 2 Tempere o peito do pato com a flor de sal e a pimenta-do-reino moída na hora. 3 Sele o lado da gordura do peito na frigideira, até que fique dourado e crocante. 4 Vire o peito, acrescente a manteiga de ora-pro-nóbis e regue a carne, deixando-a completamente glaceada. 5 Leve a carne ao forno por cinco minutos, até que fique crocante por fora e suculenta por dentro.

Montagem1 Disponha o peito do pato no centro de um prato, acrescente o sorbet de jabuticaba ao lado e guarneça com o alho negro inteiro e a folha de ora-pro-nóbis.

Receitas do personal-chef Gustavo Rigueiral, do Chef-à-Porter; chefaporter.com.br

Penne ao alho negro e dendê4 porções

500 g de penne100 g de bacon picado500 ml de creme de leite fresco250 ml de leite de coco10 ml de azeite de dendê2 colheres (sopa) de azeite de oliva8 dentes de alho negro picados1/2 cebola picadaSal a gosto

1 Cozinhe o penne de acordo com a embalagem e reserve. 2 Doure a cebola e o bacon no azeite de olive, acrescente o creme de leite, o leite de coco e o dendê

Page 6: 129_A doçura do alho

mexendo bem. 3 Adicione o alho negro e deixe cozinhar por cinco minutos. 4 Incorpore a massa ao molho e sirva a seguir.

Filé-mignon ao molho de alho negro6 porções

200 g de cream-cheese100 g de alho de negro picados120 ml de leite6 medalhões de filé-mignon2 dentes de alho picados1/2 cebola picadaSal e pimenta-do-reino a gosto

1 Tempere os medalhões com sal e pimenta e reserve. 2 Em uma panela, doure a cebola o alho comum picado e acrescente o leite. 3 Adicione o cream-cheese e mexa constantemente por cinco minutos. 4 Adicione o alho negro, cozinhando por mais três minutos, acerte o sal e a pimenta e reserve. 5 Frite os medalhões em outra panela e sirva com o molho sobre eles.

Bacalhau com alho negro4 porções

500 g de purê de batata-doce (receita preferida)200 g de alho negro em lâminas 150 g de aspargos4 postas de bacalhau dessalgado Azeite, sal e pimenta-do-reino a gosto

1 Branqueie as postas de bacalhau rapidamente e reserve. 2 Doure os aspargos e reserve. 3 Em uma frigideira com bastante azeite, doure as postas de bacalhau. 4 No centro de um prato, adicione o purê de batata-doce, sobre ele a posta do bacalhau, os aspargos e espalhe as lâminas de alho negro.

Receitas da personal-chef Angelica Vitali; angelicavitali.com