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ARTIGOS 175 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 175-180, agosto, 2004 A escrita e prática fonoaudiológica com crianças surdas/ deficientes auditivas Maria Cecília Bonini Trenche * Clay Rienzo Balieiro ** Resumo O objetivo deste estudo é apresentar os resultados de uma pesquisa que investigou, junto a fonoaudiólogos, as principais transformações teórico-metodológicas ocorridas no trabalho com a escrita no atendimento clínico de crianças surdas/deficientes auditivas nos últimos anos. A partir das falas de fonoaudiólogas entrevistadas, as autoras identificaram temas que foram trabalhados em um texto-síntese que reúne elementos de diferentes depoimentos, sob a forma de um discurso coletivo, uma vez que busca dar voz a profissionais que atuam no referido campo. Em seus relatos, os fonoaudiológos revelam que, atualmente, o trabalho com a escrita da criança surda/deficiente auditiva vem se realizando não mais em função das falhas (morfossintáticas) geralmente observadas na escrita dessas crianças, mas em função da necessidade que os fonoaudiólogos identificam de se construir com essas crianças um sistema de referência – uma “memória do que se diz” ou se fala no cotidiano. Abordagem fundamental para que a criança surda/deficiente auditiva possa produzir sentido a partir do que lê e escreve; sentido esse que se constrói na e pela interdiscursividade. Palavras-chave: deficiência auditiva; surdez; escrita; terapia fonoaudiológica. * Professora doutora da Faculdade de Fonoaudiologia PUC-SP; coordenadora da Faculdade de Fonoaudiologia – PUC-SP. ** Professora doutora da Faculdade de Fonoaudiologia PUC-SP; fonoaudióloga da Derdic – PUC-SP. Abstract The aim of this study is to expose the results of a research that investigated the main theoretical – methodological transformations presented in the late years during clinical work on writing with deaf / hearing impaired children. From interviews with speech pathologists, the authors identified themes that were organized on a synthesis, that put together elements of different statements. The speech pathologists related that, nowadays, the writing work with deaf / hearing impaired children is not realized upon failures (morphosyntactic) observed on writing, but over the need that they feel of forming a reference system, so that deaf children can make sense from what they read and write. This sense is built on and by interdiscursivity. Key-words: hearing impairment; deafness; writing; speech pathology therapy.

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    175Distrbios da Comunicao, So Paulo, 16(2): 175-180, agosto, 2004

    A escrita e prtica fonoaudiolgicacom crianas surdas/deficientes auditivas

    Maria Ceclia Bonini Trenche*

    Clay Rienzo Balieiro**

    Resumo

    O objetivo deste estudo apresentar os resultados de uma pesquisa que investigou, junto afonoaudilogos, as principais transformaes terico-metodolgicas ocorridas no trabalho com a escritano atendimento clnico de crianas surdas/deficientes auditivas nos ltimos anos. A partir das falas defonoaudilogas entrevistadas, as autoras identificaram temas que foram trabalhados em um texto-snteseque rene elementos de diferentes depoimentos, sob a forma de um discurso coletivo, uma vez que buscadar voz a profissionais que atuam no referido campo.

    Em seus relatos, os fonoaudiolgos revelam que, atualmente, o trabalho com a escrita da crianasurda/deficiente auditiva vem se realizando no mais em funo das falhas (morfossintticas) geralmenteobservadas na escrita dessas crianas, mas em funo da necessidade que os fonoaudilogos identificamde se construir com essas crianas um sistema de referncia uma memria do que se diz ou se falano cotidiano. Abordagem fundamental para que a criana surda/deficiente auditiva possa produzir sentidoa partir do que l e escreve; sentido esse que se constri na e pela interdiscursividade.

    Palavras-chave: deficincia auditiva; surdez; escrita; terapia fonoaudiolgica.

    * Professora doutora da Faculdade de Fonoaudiologia PUC-SP; coordenadora da Faculdade de Fonoaudiologia PUC-SP.**

    Professora doutora da Faculdade de Fonoaudiologia PUC-SP; fonoaudiloga da Derdic PUC-SP.

    Abstract

    The aim of this study is to expose the results of a research that investigated the main theoretical methodological transformations presented in the late years during clinical work on writing with deaf /hearing impaired children. From interviews with speech pathologists, the authors identified themes thatwere organized on a synthesis, that put together elements of different statements.

    The speech pathologists related that, nowadays, the writing work with deaf / hearing impaired childrenis not realized upon failures (morphosyntactic) observed on writing, but over the need that they feel offorming a reference system, so that deaf children can make sense from what they read and write. Thissense is built on and by interdiscursivity.

    Key-words: hearing impairment; deafness; writing; speech pathology therapy.

  • Maria Ceclia Bonini Trenche, Clay Rienzo BalieiroARTIGOS

    Distrbios da Comunicao, So Paulo, 16(2): 175-180, agosto, 2004176

    Resumen

    El objetivo de este estdio es presentar los resultados de una investigacin que levant junto afonoaudilogos las principales transformaciones terico-metodolgicas ocurridas en el trabajo conescritura en el atendimiento clnico de nios sordos / deficientes auditivos en los ltimos aos. A partirdel discurso de fonoaudilogas entrevistadas, las autoras identificaron temas, que fueron reelaboradosen un texto sntesis. Este texto reune elementos de diferentes depoimientos bajo la forma de un discursocolectivo, una vez que busca dar voz a profesionales que actuan en el referido campo.

    En sus relatos los fonoaudilogos revelan que actualmente el trabajo con la escritura del niosordo / deficientes auditivo no se realiza en funcin de las falhas (morfosintticas) generalmenteobservadas en la escritura de esos nins, pero si en funcin de la necesidad que los fonoaudilogosidentifican de construir con esos nios un sistema de referencia una memoria de lo que se diceo se habla en su cotidiano. Abordaje fundamental para que el nio sordo / deficientes auditivo seacapaz de producir sentido a partir de lo que lee y escribe; sentido ese que se construie en y lainterdiscursividad.

    Palabras clave: deficiencia auditiva; sordera; escritura; terapia; fonoaudiologia.

    Qualquer grupo que vive um projeto... gera aescrita coletiva e individual indispensvel paraas suas prticas: sejam relatrios de reunies,notas informativas, cronogramas de ao, ba-lanos, snteses, sejam contribuies de uns, re-aes de outros, estudos ou anotaes pessoaissobre discusses, momentos de investimento.

    Jean Foucambert

    A escrita na clnica fonoaudiolgica

    Embora a escrita seja sempre referida pelos fo-noaudilogos como uma modalidade de linguagemimportante para o processo teraputico com crian-as surdas, ao revisarmos os estudos sobre surdeze linguagem na perspectiva da clnica fonoaudio-lgica, observamos que a literatura sobre escrita bastante escassa.

    Em uma pesquisa realizada com a colaboraode estudantes da graduao,1 vinte fonoaudilogosforam selecionados para entrevista, devido expe-rincia que possuam no atendimento teraputico comcrianas surdas/deficientes auditivas. Convidados afalar sobre o uso da escrita e o modo como trabalha-vam essa modalidade de linguagem, esses profissio-nais forneceram material para a discusso que apre-sentamos neste artigo.

    Quatro tpicos bsicos orientaram o roteiro dasentrevistas. Os fonoaudilogos falaram sobre: a)sua trajetria profissional no trabalho clnico-tera-putico com crianas surdas/deficientes auditivas;b) o foco dado escrita nesse contexto; c) os desa-fios que esse trabalho impe; d) a relao entre es-crita, escola e o trabalho fonoaudiolgico.

    Esse instrumento de coleta forneceu, comoprevamos, elementos importantes para uma dis-cusso sobre o trabalho com escrita na clnica fo-noaudiolgica, especialmente sobre as abordagensutilizadas pelos entrevistados e sobre as principaismudanas apontadas por eles no foco dado a essamodalidade de linguagem. Aps a transcrio dasentrevistas, foram selecionados trechos de falascompostos de frases, sentenas ou pargrafos emtorno de uma temtica. A unidade de anlise de con-tedo foi se estruturando como categoria temtica,pois os dizeres, perseguindo o sentido original ex-presso pelos entrevistados, eram agrupados quan-do se constituam em modos semelhantes ou anta-gnicos de abordar os elementos temticos (apro-ximaes e contraposies usadas para a constru-o de snteses). Na imerso sobre as temticasconstrudas, buscou-se apoio da literatura para adiscusso das questes conceituais colocadascom vistas a dar estrutura terica ao texto apre-

    1 A pesquisa foi realizada dentro do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica da PUC-SP e teve apoio do CNPq.Participaram da pesquisa os bolsistas Helose Nacarato Santos, Maurcio R. T. de Carvalho, Karen Christyna Formaris Costa eFernanda Cristina Chacon de Castro.

  • A escrita e prtica fonoaudiolgica com crianas surdas/deficientes auditiva

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    177Distrbios da Comunicao, So Paulo, 16(2): 175-180, agosto, 2004

    sentado.2 Nesse sentido, pode-se dizer que ele noepresenta o somatrio dos depoimentos obtidos,mas um registro de questes e problemas aborda-dos por fonoaudilogos que trabalham a escrita comcrianas,3 na perspectiva da escrita coletiva de quenos fala a epgrafe escolhida para iniciarmos o ar-tigo. Reconhecemos, no entanto, nossa integral res-ponsabilidade pela forma como os textos orais eescritos foram articulados uns aos outros, compon-do um texto que acreditamos representar um dis-curso coletivo opo metodolgica para este tra-balho. Acrescentamos s falas referncias da lite-ratura que julgamos harmonizar-se e corroborar asquestes apresentadas pelos entrevistados. Utiliza-mos, ainda, itlico e aspas sempre que foi possvelmanter os enunciados formulados pelos fono-audilogos durante as entrevistas, intercalando as-sim sntese de trechos de fala com recortes da falaoriginal dos participantes da pesquisa.

    Linguagem, surdez e escrita

    A linguagem escrita raramente o motivoda queixa que leva crianas surdas clnica fo-noaudiolgica, mas a surdez, as alteraes nosprocessos de interlocuo da criana surda com oouvinte e as experincias escolares mal-sucedidasdeixam marcas significativas na linguagem, que in-terferem no processo de aquisio da lngua escri-ta e nas prticas de leitura e escrita.

    O problema de audio, a preocupaocom a prtese auditiva, com a fala no sentido daarticulao ou da aquisio da linguagem oralso os motivos mais comuns pelos quais os pais deuma criana surda/deficiente auditiva procuram ofonoaudilogo.

    Como a apreenso da materialidade significan-te da linguagem escrita se d pela viso, essa con-siderada instrumento e material imprescindvel aoprocesso teraputico com crianas surdas/deficien-tes auditivas, principalmente porque o materialescrito traz para dentro da sesso possibilidadesde dilogo, discusso, conhecimento, informao,dando gancho para a relao com a linguagemno aspecto dos sentidos e significados.

    Por no alcanar domnio suficiente de leiturae de escrita para apreender os contedos escolaresmuito antes de a criana surda comear a dar si-nais de que est fracassando em sua escolarida-de, a escrita inserida na terapia fonoaudiolgicapor desempenhar um papel fundamental no pro-cesso geral de aquisio de linguagem dessascrianas.

    Quando introduzida no processo teraputicobem antes da alfabetizao, pelo manuseio de li-vros infantis, na escrita do nome da criana comoforma de identificao de sua produo, a escritaproduz um avano significativo no desenvolvimen-to da linguagem, por se constituir em uma outraforma de comunicao, de interao mais acess-vel que a linguagem oral e mais abrangente, doponto de visto do uso social, possibilitando a en-trada da criana num grupo heterogneo que usa aescrita como linguagem.

    Conjugada ao conhecimento, a escrita propi-cia a retomada ou a acelerao de um processo quefaculta criana surda/deficiente auditiva o uso e acompreenso da linguagem verbal. Tem um papelsignificativo na relao da criana com a lingua-gem, na interao dela com as pessoas, pois ex-posta literatura, tendo acesso aos livros, shistrias em quadrinhos, aos contos de fada, deforma ldica ela vai penetrando nos mistrios daescrita. Conforme vai se apropriando de recursoslingsticos, muda sua relao com a linguageme com o mundo.

    Escrita e compreenso

    As prticas clnicas mostram que as dificul-dades quanto ao sentido, quanto polissemia, tmimplicaes para a atribuio de sentido e uso dalinguagem verbal. Dificuldades essas que afetamas atividades comunicativas, cognitivas e reflexi-vas, uma vez que estas se fazem com e pela lingua-gem verbal.

    Para Bergs e Balbo (1997),

    (...) quaisquer que sejam os mtodos que se te-nha em vista, a linguagem dos sinais, desmuti-

    2 A metodologia usada para analisar as entrevistas, extraindo as idias centrais e/ou ancoragens e seus correspondentes compondoum texto-sntese, apoiou-se no trabalho de Lefvre e Lefvre (2003).3 Os subitens apresentados correspondem aos contedos sistematizados das falas confrontados com as informaes da literaturarelativas aos temas em foco.

  • Maria Ceclia Bonini Trenche, Clay Rienzo BalieiroARTIGOS

    Distrbios da Comunicao, So Paulo, 16(2): 175-180, agosto, 2004178

    zaes diversas, o acesso leitura aparece comouma urgncia absoluta, pois ela se constitui, aoque parece, num fator essencial para permitir aosurdo, na sua linguagem, falar de seu lugar desujeito e superar o que constitui o drama princi-pal do surdo profundo, que a incapacidade de ace-der polissemia da lngua.

    Mesmo oferecendo criana surda/deficienteauditiva maior acesso materialidade da lingua-gem verbal, quando comparado ao processo deaquisio da linguagem oral, o processo de cons-truo da escrita demanda um intenso trabalhode significao. Segundo Benveniste (1991), lin-guagem verbal implica uma significncia de modosemitico, pois o signo deve ser reconhecido, eoutra de modo semntico, pois o discurso deve sercompreendido.

    A compreenso e a produo de textos soalvos importantes a serem alcanados para que acriana surda possa constituir linguagem e consti-tuir-se como sujeito.

    A significncia de modo semntico, de que nosfala Benveniste (ibid.), , pois, o grande desafio aser enfrentado no trabalho com essa modalidadede linguagem com crianas surdas/deficientes au-ditivas, consistindo num trabalho para que elaspossam no s decodificar palavras, mas atingira compreenso da leitura, isto , ler o texto e com-preender efetivamente o que est escrito. Para osurdo que usa sinais e que digitaliza, por meio doalfabeto digital a leitura, quando o texto passa a servisto na sua unidade, mesmo que no consigam apre-ender muitos dos sentidos ali contidos, abandonamessa prtica (de digitalizar), porque a leitura passaa ser conduzida pelos sentidos. um ir muito almda simples decifrao (ou oralizao) do texto.

    A mobilidade semntica, a capacidade de des-locar para novos contextos os enunciados anterior-mente produzidos, uma das principais caractersti-cas da atividade discursiva, esto, na maior partedas vezes, afetadas na linguagem das pessoas sur-das/deficientes auditivas, pois esto relacionadas scondies de aquisio e uso da linguagem. Comu-mente, para essas crianas, a aquisio da lngua orale escrita ocorre num processo semelhante ao da aqui-sio de uma lngua estrangeira, isto , de modo arti-ficial e ensinado. No desenvolvendo essa mobilida-de de referencial, elas acabam por apreender na lei-tura apenas o sentido literal dos enunciados.

    Para Bergs e Balbo (1997), a criana surdaque aprende a dizer pela linguagem articulada so-

    noramente ou pela escrita enfrenta geralmente oproblema da polissemia, sobretudo quando o m-todo utilizado para tanto leva a criana a tomar apalavra pela coisa. Segundo esses autores, crian-as que aprendem a falar, ler e escrever desse modocorrem o risco de ficar fora da linguagem.

    A importncia da aquisioda lngua materna para

    a construo da escrita

    O processo de letramento implica, de certamaneira, o domnio de uma lngua que faa a inter-mediao at o momento em que a escrita possaser incorporada como um simbolismo de primeiraordem (Vigotsky, 1979). Esse tem sido considera-do um dos principais obstculos que crianassurdas precisam ultrapassar para alcanaremmaior domnio e fluncia na escrita.

    A criana ouvinte, durante o processo de letra-mento, utiliza-se da linguagem oral, em um traba-lho de confronto/aproximao de aspectos entre asmodalidades (oral/escrita) que fazem parte de ummesmo sistema lingstico (verbal). A linguagemoral possibilita a atribuio de sentidos escrita,alm de favorecer o falar sobre a escrita. Constitudana/pela sua participao ativa em uma srie de in-tercmbios verbais orais desde seu nascimento, essalinguagem fornece referncia para a interpretaoe a compreenso de suas experincias.

    Diferentemente, a criana surda/deficiente au-ditiva, ao iniciar o processo de aquisio da escri-ta, geralmente, ainda no possui uma lngua sufi-cientemente sistematizada. Dispe, na maior partedas vezes, de vrios recursos comunicativos e sualinguagem composta, geralmente, de gestos e vo-cbulos cujos sentidos esto relacionados a si-tuaes partilhadas no contexto familiar, carre-gada de privacidade. O trabalho com a escritaj comea com aquela defasagem porque ela [acriana surda] no tem ainda nenhuma lnguade verdade, mesmo para as crianas quedominam melhor a lngua de sinais, como a estrutu-ra completamente diferente do portugus, sua aqui-sio comparvel aquisio de uma segunda ln-gua e para alguns fonoaudilogos como lngua es-trangeira. Sem poder utilizar-se plenamente da ca-pacidade de pensar verbalmente, proporcionada pelouso da lngua, o processo de aquisio da escri-ta freqentemente vivido pela criana como umlongo e rduo trabalho.

  • A escrita e prtica fonoaudiolgica com crianas surdas/deficientes auditiva

    ARTIGOS

    179Distrbios da Comunicao, So Paulo, 16(2): 175-180, agosto, 2004

    A questo da aquisio da lngua materna pelacriana surda/deficiente auditiva, filha de pais ou-vintes, um assunto polmico e complexo. A di-vergncia em relao ao uso da lngua oral ou desinais como primeira lngua, apontada pela litera-tura especializada, envolve no apenas questes re-ferentes a aspectos lingsticos, mas tambm as-pectos psquicos, socioculturais, antropolgicos,polticos e educacionais.4

    Do ponto de vista clnico, o que se observa que quando h obstculos de ordem orgnica, asquestes da ordem da subjetividade, conseqente-mente da linguagem, so geralmente afetadas, po-dendo acarretar sintomas cognoscitivos, ou seja deaprendizagem.5

    A famlia e a escola: a crianasurda/deficiente auditivae a escrita

    As atitudes dos pais influenciam, sobremanei-ra, a relao da criana com a linguagem/escrita,que pode ser inibida ou potencializada, dependen-do do modo como os laos simblicos so manti-dos e desenvolvidos (ou no) nas relaes com seusfamiliares.

    O mesmo pode ser dito em relao experin-cia propiciada pela escola, uma vez que os entre-vistados observam que crianas surdas acumulam,muitas vezes, experincias negativas com leitura eescrita tanto na escola como em casa o que difi-culta sua relao com o objeto escrita. A rejeio

    leitura interpretada como, geralmente, relaciona-da ao fato de que suas produes so marcadas porsituaes de hipercorreo e cobrana.

    Para mudar a imagem negativa que a crianatenha criado a partir dessas experincias, os fonoau-dilogos procuram lhe oferecer usos funcionais(sociais) da escrita, relacionados a experinciaspositivas, prazerosas, significativas e articula-das com o seu cotidiano.

    A escrita na clnica: distancia-seda escrita na escola

    Ao mesmo tempo em que as prticas discursi-vas se fundamentam no querer dizer/entender dacriana, o terapeuta assume posies de escriba ede leitor, disponibilizando recursos lingsticos emcontextos enunciativos.

    O sentido da escrita posto no prazer de com-preender e de poder falar sobre acontecimen-tos singulares que afetam direta ou indiretamente avida da criana, levando a um movimento cons-tante de articulao entre passagens do texto escri-to e de outros discursos (orais ou sinalizados).

    Trabalhar seguindo essa diretriz faz com que aleitura nos processos teraputicos seja feita a par-tir de textos, relacionados diretamente com a ex-perincia e as preocupaes da criana, retiradosda escrita social (literatura, artigo de revista,entrevista, carta, convite) ou escritos pela pr-pria fonoaudiloga, na posio de escriba dacriana para produzir histrias, dirios, bilhetes.

    4 Ver Bueno (1999).5 A psicanalista Francoise Dolto (1998) discute a questo do isolamento sensorial que marca a trajetria de vida de crianas surdasou deficientes auditivas e ressalta a importncia de uma ajuda clnica aos pais quando estes tomam conhecimento do problemaauditivo. Segundo a autora, quando a ao mdica fica centrada na doena, a criana fica com o drama vivido pelos pais e com oseu, o de ser de repente apanhada num diagnstico, cujo sentido no compreende e que muda substancialmente o comportamentode seus pais. Inseguros e desorientados, estes podem passar a considerar a criana no como um sujeito da linguagem, mas comoum objeto que deve ser consertado. Apontando, especificamente, o problema de comunicao da criana surda, a autora ressalta aimportncia de ela vir a se enquadrar plenamente na linguagem, na comunicao com seus pais. Adverte que, sem elementoslinguageiros que garantam a mediao entre o passado e o presente de sua vida, a criana pode tornar-se absolutamente incapazpara a vida de comunicao-mmica, gestual ou linguageira com o mundo exterior, sem procurar mais o que ou quem lhecomplemente desejos. A autora ressalta que pela funo simblica que a criana descobre as necessidades que lhe so vitais paraa sobrevivncia fsica e o prazer psicoafetivo que se distingue como desejo a predominncia da funo simblica ligada suamemria faz com que todas as suas percepes se liguem inicialmente s suas necessidades, s modalidades fsicas e afetivas desatisfao, que se tornam simblicas, linguagem de presena de um outrem, assegurante ou no.. Por isso, a vida em simbioseprolongada com um ou outro membro, sem contatos sociais e sempre em corpo-a-corpo, pode criar gravssima neurose fusional.

  • Maria Ceclia Bonini Trenche, Clay Rienzo BalieiroARTIGOS

    Distrbios da Comunicao, So Paulo, 16(2): 175-180, agosto, 2004180

    Nem forma, nem contedo:os princpios metodolgicosdo trabalho de produoda leitura e de escrita

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    Foucambert (1994) diz que ler uma negocia-o entre o conhecido, que est na nossa cabea, eo desconhecido que est no papel; entre o que estatrs e o que est diante dos olhos. Mas fazer comque a criana tenha essa relao de descobertacom o texto escrito um desafio porque o traba-lho, na maioria das vezes, implica quebrar resis-tncias enraizadas no sentimento de um desempe-nho considerado deficiente e posturas adquiri-das de tentar apreender o sentido de um texto, tra-balhando palavra por palavra e interrompendo aleitura por desconhecer o vocabulrio.

    Para reduzir o espao do que ainda desconhe-cido da criana prefervel conversar sobre o as-sunto do que trabalhar aspectos formais descontex-tualizados. importante sempre incentivar a crianaa buscar no prprio texto suas dvidas, mobilizar oque j sabe, o que pode ser construdo por meio deoutras leituras e conversas com o terapeuta.

    No se trata de memorizar palavras com senti-dos fixos, mas de diferenciar as palavras e sua or-ganizao em uma sintaxe que d aos enunciadosum sentido prprio ao contexto em que elas soproduzidas. O conhecimento do sistema da escri-ta se aperfeioa com a experincia da criana comoleitora e produtora de textos escritos. A memria,quando pensada em relao ao discurso, tratadacomo interdiscurso, o que se chama de memriadiscursiva o saber discursivo que torna possveltodo o dizer, o j-dito que sustenta cada tomada depalavra (Orlandi, 2001).

    Consideraes finais

    Ao construir um texto coletivo dos fonoaudi-logos sobre a escrita no trabalho clnico-fonoaudi-olgico, voltado a crianas surdas/deficientes au-ditivas, buscou-se descrever a viso terico-meto-dolgica de um grupo de fonoaudilogos.

    Na anlise e na discusso dos contedos dasfalas desse fonoaudilogos com base nos referen-ciais tericos da literatura, pode-se depreender que:

    1) o foco do trabalho no incide sobre as tcnicasde leitura relacionadas a atividades de ensino dalngua ou treino do uso dos sinais grficos, pontua-o e acentuao, mas, est 2) em como possibili-tar condies para que a criana possa, pouco apouco, vivenciar a escrita como uma prtica queamplia a reflexo sobre si e sobre o mundo; 3) emlev-la a usar a experincia que desenvolveu nocontato com diversos portadores de texto para pro-duzir sua prpria escrita; 4) em construir uma me-mria do dizer, trabalhando na e pela interdiscursi-vidade6; 5) indo, dessa forma, muito alm das preo-cupaes exclusivas com a grafia e a ortografia.

    De fato, os diversos discursos produzidosrevelam que, atualmente, o trabalho com a escritada criana surda/deficiente auditiva vem se reali-zando mais em funo da necessidade que os fo-noaudilogos identificam de se construir com es-sas crianas um sistema de referncia memriado que se diz ou do que se fala no cotidiano tomando a escrita como parte integrante do traba-lho na e com a linguagem.

    Referncias

    Benveniste E. Problemas de lingstica geral. 3.ed.Campinas(SP): Pontes/UNICAMP; 1991.Berges J, Balbo G. A psicanlise e a criana. 2.ed. Porto Alegre:Artes Mdicas; 1997.Brando HHN. Introduo Anlise do Discurso. 5. ed.Campinas (SP): Ed. Unicamp; 1996.Bueno JGS. Diversidade, deficincia e educao. Espao1999;12:3-12. Dolto F. Solido. So Paulo: Martin Fontes; 1998.Lefvre F, Lefvre AMC. Discurso do sujeito coletivo: um novoenfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias doSul (RS): EDUCS; 2003.Foucambert J. A leitura em questo. Porto Alegre: ArtesMdicas; 1994.Orlandi EP. Anlise do Discurso: princpios e procedimentos.3 ed. Campinas (SP): Pontes; 2001.Vigotsky LS. Pensamento e linguagem. Lisboa: Antdoto; 1979.

    Recebido em maio/04; aprovado em agosto/04.

    Endereo para correspondnciaClay Rienzo BalieiroRua Georgia, 183, ap. 32, So Paulo, CEP 04559-010

    E-mail: [email protected]

    6 O interdiscurso a relao de um discurso com outros discursos; ela constitutiva de todo discurso, ou seja todo discurso nasce de umtrabalho sobre outros discursos aquilo que se fala antes em outro lugar, independentemente (Brando, 1996; Orlandi, 2001).