1.1. Reflexao Sobre a Vida Na Filosofia-Teologia de Qohelet

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Unida Filosofia Geral e da Religião II 1 REFLEXÃO SOBRE A VIDA NA FILOSOFIA-TEOLOGIA DE QOHELET EC 6,10-7,14 JÚLIO PAULO TAVARES ZABATIERO Introdução A história da Filosofia, como pudemos perceber na primeira parta desta disciplina, é uma história ocidental. Filosofia, costumamos dizer, é uma atividade inventada pelos antigos gregos e desenvolvida no Ocidente. Esta é, porém, apenas parte da verdade. Mesmo que não se use o nome, em várias outras culturas se faz filosofia – reflexão crítica-racional sobre como viver bem. Os judeus antigos também fizeram filosofia – só que o nome que se dá à reflexão filosófica dos judeus antigos é sabedoria. Irônico isto, não é? Você se lembra: a palavra grega filosofia significa, literalmente, amor à sabedoria. Por que, então, dizemos que os gregos fizeram filosofia e os judeus fizeram sabedoria? A resposta é relativamente simples, mas pode ser algo decepcionante. Fez-se essa distinção por razões polêmicas. Durante boa parte da história filosófica, filósofos pensaram a filosofia como o contrário da religião. Como os livros filosóficos dos judeus antigos estavam na Escritura, foram considerados como religião e não como filosofia. Fez-se essa distinção, também, por razões administrativas. O desenvolvimento das Universidades no mundo moderno fez com que fossem criados cursos específicos para representar “ciências” específicas, de modo que a filosofia se tornou uma “disciplina especializada”, técnica, voltada para discutir a Razão, a Verdade, o Argumento (no modo metafísico). Destarte, a antiga polêmica entre religião e filosofia se ampliou e passou a incluir também a Teologia e, mais recentemente, as Ciências da Religião. Não é minha intenção vencer essa tradição polêmica e acadêmica. Mesmo que eu quisesse, é o tipo de coisa que um indivíduo não consegue realizar. Meu objetivo é mais modesto e duplo: (1) em primeiro lugar, refletir com vocês, a partir de um texto filosófico da Bíblia Hebraica, sobre o sentido do viver. Eclesiastes, livro escrito por um

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  • Unida Filosofia Geral e da Religio II 1

    REFLEXO SOBRE A VIDA NA FILOSOFIA-TEOLOGIA DE QOHELET

    EC 6,10-7,14 JLIO PAULO TAVARES ZABATIERO

    Introduo

    A histria da Filosofia, como pudemos perceber na primeira parta desta

    disciplina, uma histria ocidental. Filosofia, costumamos dizer, uma atividade

    inventada pelos antigos gregos e desenvolvida no Ocidente. Esta , porm, apenas

    parte da verdade. Mesmo que no se use o nome, em vrias outras culturas se faz

    filosofia reflexo crtica-racional sobre como viver bem. Os judeus antigos tambm

    fizeram filosofia s que o nome que se d reflexo filosfica dos judeus antigos

    sabedoria. Irnico isto, no ? Voc se lembra: a palavra grega filosofia significa,

    literalmente, amor sabedoria. Por que, ento, dizemos que os gregos fizeram

    filosofia e os judeus fizeram sabedoria?

    A resposta relativamente simples, mas pode ser algo decepcionante. Fez-se

    essa distino por razes polmicas. Durante boa parte da histria filosfica, filsofos

    pensaram a filosofia como o contrrio da religio. Como os livros filosficos dos judeus

    antigos estavam na Escritura, foram considerados como religio e no como filosofia.

    Fez-se essa distino, tambm, por razes administrativas. O desenvolvimento das

    Universidades no mundo moderno fez com que fossem criados cursos especficos para

    representar cincias especficas, de modo que a filosofia se tornou uma disciplina

    especializada, tcnica, voltada para discutir a Razo, a Verdade, o Argumento (no

    modo metafsico). Destarte, a antiga polmica entre religio e filosofia se ampliou e

    passou a incluir tambm a Teologia e, mais recentemente, as Cincias da Religio.

    No minha inteno vencer essa tradio polmica e acadmica. Mesmo que

    eu quisesse, o tipo de coisa que um indivduo no consegue realizar. Meu objetivo

    mais modesto e duplo: (1) em primeiro lugar, refletir com vocs, a partir de um texto

    filosfico da Bblia Hebraica, sobre o sentido do viver. Eclesiastes, livro escrito por um

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    sbio-filsofo judeu reflexo crtica sobre a vida em suas amplas dimenses. Filosofia

    mesmo ou Religio? Ou ambas? Deixo a pergunta para voc quem sabe aps o

    estudo de um trecho de Eclesiastes voc se sinta motivado a respond-la? (2) Em

    seguida, refletir com vocs sobre as relaes entre religio e filosofia, mediante o

    dilogo com dois filsofos ateus, que defendem a superioridade da filosofia sobre a

    religio, embora admitam que se pode aprender com as religies.

    1. Prestando ateno ao texto

    O livro de Eclesiastes notoriamente difcil e complexo. No necessrio ser

    um acadmico da exegese para perceber o quo desafiador este livro. No toa

    que um livro pouco utilizado como base para sermes, estudos bblicos ou obras

    devocionais. Na tradio da pesquisa bblica, chamado de livro sapiencial, pois tem a

    ver com a sabedoria (assim como Provrbios, J e Cantares, e os duterocannicos

    Sabedoria e Eclesistico). Uma das dificuldades do livro tem a ver com o ambiente em

    que ele escrito neste texto trabalho com a hiptese de que o livro foi escrito j no

    perodo da dominao helenstica sobre Jud (em seu incio, provavelmente no III

    sculo a. C.), e que o seu autor dialoga criticamente com as filosofias (sabedorias) do

    mundo grego e tambm do mundo oriental mesopotmico.

    Algumas informaes sobre a forma do livro podem ser teis para nossa tarefa.

    O livro de estruturao complexa, aparentemente h mais de uma lgica estrutural

    regendo o texto: (a) uma lgica potica, que constri estruturalmente o texto a partir

    das assonncias, aliteraes, associaes de vocbulos, similaridades semnticas,

    contrastes, arranjos quisticos, transies abruptas. Mesmo no Texto Massortico (o

    texto hebraico elaborado por escribas, na Idade Mdia, que eram conhecidos como

    Massoretas, e que a base das tradues modernas da Bblia) a orientao estrutural

    (diviso em versos e captulos, notao tnica e rtmica para a leitura, indicaes

    numricas sobre versos e vocbulos) no plenamente satisfatria para se captar os

    sentidos possveis do texto. (b) H outra lgica, filosfica ou teolgica, que atravessa a

    lgica potica, a desloca, se sustenta nela, mas no corresponde ao seu projeto. Uma

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    lgica eivada de contrapontos, tenses e contradies, que obrigam leitores de

    Eclesiastes a exerccios intelectuais desafiadores.

    O trecho que serve de base para nossas reflexes um bom exemplo dessas

    tenses. Seu incio 6,10 e seu final (aparentemente) 7,14. Os massoretas notaram

    que o verso 6,9 est exatamente na metade do livro verso que se encerra com um

    dos refres trgicos do Qohelet: Tambm isto nulidade, e correr atrs do vento,

    como que nos avisando o risco seu, se continuar lendo o autor no se responsabiliza

    por eventuais danos. introduo em 6,10-12 corresponde, quiasticamente, uma

    concluso em 7,13-14 embora na introduo no se mencione Deus (sua identidade

    est oculta nas formas passivas de alguns dos verbos), e na concluso o termo

    relativamente abstrato Elohim (e no YHWH, o nome pessoal do deus dos judeus, que

    no usado no livro) aparea duas vezes. O miolo da percope, porm, pode ser

    analisado de duas maneiras, pelo menos: podemos seguir o uso repetido da frmula

    tov- (Melhor ...), que aparece sete vezes nos versos 1-8 e dividir a seo em duas

    partes (1-8, 9-12), ou, unir o refro trgico isto tambm nulidade do verso 6b com

    o verso 7, e notar uma estruturao tambm quistica do miolo: 1-6a que tm como

    contraponto 8-12, com 6b-7 ocupando o centro estrutural da percope como que nos

    avisando: no h nada melhor do que a sabedoria, mas esta tambm nulidade, os

    sbios tambm enlouquecem e o seu bolso tambm vale mais do que sua razo.

    Lgica Potica Lgica

    Filosfica

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    2. Pensar bem para viver bem (Ec 6,10-7,14)

    6:10 A tudo que aconteceu j se lhe deu o nome, e o caminho do ser humano conhecido, e eles no podem contender com quem mais forte. 11 Palavras demais aumentam a nulidade, mas que proveito h nisto para o ser humano? 12 Pois quem sabe o que bom para o ser humano durante os poucos dias da sua vida v, os quais passam como a sombra? Quem pode declarar ao ser humano o que vir depois dele debaixo do sol?

    7:1 Melhor a boa fama do que o unguento precioso, e o dia da morte, melhor do que o dia do nascimento. 2 Melhor ir casa do luto do que casa da festa. Este o fim de todas as pessoas. Quem est vivo, reflita sobre isto. 3 Melhor a angstia do que o riso; o rosto enlutado alarga o corao. 4 O corao da pessoa sbia est na casa do luto, mas o das insensatas, na casa da festividade. 5 Melhor ouvir a repreenso do sbio do que atentar cano do insensato. 6 Pois, qual o crepitar dos espinhos debaixo do caldeiro, tal a risada do insensato.

    Isto tambm nulidade. 7 Ora, a opresso enlouquece a pessoa sbia, e o suborno corrompe a inteligncia.

    8 Melhor o fim das palavras do que o seu princpio; melhor a perseverana do que a arrogncia. 9 No te apresses em irar-te, porque a ira habita no corao dos insensatos. 10 No digas: por que os dias de outrora eram melhores do que os de agora? No sbia essa pergunta. 11 Boa a sabedoria, como a herana, e proveitosa para quem v o sol. 12 A sabedoria sombra em dia ensolarado, assim tambm o dinheiro; todavia, o conhecimento proveitoso, a sabedoria d vida ao seu possuidor.

    13 V a obra de Elohim-Deus, quem poder endireitar o que ele entortou? 14 No dia bom, desfruta do bem; no dia da adversidade, reflete. Elohim-Deus fez tanto este como aquele, a fim de que o ser humano no consiga antecipar o que h de vir depois dele.

    2.1. Pensando contra a nulidade

    Iniciemos com o centro estrutural da percope: Isto tambm nulidade. Ora, a

    opresso enlouquece a pessoa sbia, e o suborno corrompe a inteligncia (v 6c-7).

    Uma leitura universalista, abstrata, definiria o Qohelet como um trgico pessimista

    (um pleonasmo?). Mas o texto s pode ser entendido se perguntarmos pelo seu

    contexto, pelas questes que ele tenta responder. Assim, devemos perguntar: Em

    que condies a reflexo sapiencial , ela tambm, apenas nulidade (nvoa-nada)?

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    Em uma sociedade na qual a opresso e a corrupo, daquela derivada, enlouquecem

    o sbio ntegro e patrocinam o sbio nfimo. Qohelet escreve seu texto nos tempos

    iniciais da dominao de Jud pelos helenistas. Tempo em que Jud experimenta uma

    das mais terrveis crises de sua histria. A opresso poltico-econmica no era nova,

    os judeus j a conheciam e at sabiam como lidar com ela. O problema era outro: uma

    nova cultura se impunha ao povo dominado cultura que anulava a sabedoria dos

    sbios e transtornava a identidade dos entendidos. Esta nova opresso enlouquecia os

    sbios: como refletir andando sobre areia movedia? Como discernir tateando em

    trevas assombrosas? Como manter a integridade da reflexo, se a sbia funo deveria

    ser comprada ao novo patro? Nulidade. Niilismo (palavra de nobre pedigree

    filosfico). Trgicos tempos, trgica vida a vida vivida na ps-modernidade helenista.

    Qohelet faz sua filosofia/teologia em um tempo que decretara o fim das

    metanarrativas tradicionais israelitas. No mais Israel, e, sim, Yehud (forma aramaica

    do nome de Jud na poca do Imprio Persa), no mais os eleitos de YHWH, mas

    meros brbaros que, enfim, receberam a ddiva da verdadeira sabedoria a luz do

    helenismo e sua fatalista (relativamente) filosofia. No mais YHWH somente, criador e

    libertador; mas uma pluralidade de deusas e deuses estranhamente humanos, mpios,

    desconcertantes em sua nsia dominadora ridicularizada pelos sbios saberes, mas

    celebrada pelos podres poderes. No mais justia e solidariedade, a vida passa a ser

    Dominao Cultural

    Dominao Econmica

    Dominao Poltica

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    vivida sob o signo da opresso de governantes dspotas e da corrupo de elites locais

    sedentas de poder. No mundo helenista, cargos eram comprados por dinheiro, desde

    os cargos de escribas almejados pelos sbios, at o cargo de sumo-sacerdote, o

    dirigente maior da nao que tambm seria o chefe da arrecadao de tributos

    religiosos. Em um mundo to estranhamente novo, os marcos de compreenso

    firmados pela tradio j no tinham mais valor. As certezas antigas da instruo de

    YHWH, ao invs de serem relidas e renovadas em seu novo ambiente, eram

    substitudas por novas e helnicas normas e estatutos.

    Isto, sim, isto nulidade, afirmava o Qohelet abandonar nossa histria em

    favor dessa nova moda! Ento Qohelet ressignifica a tradio, a tor: seu texto (v. 7)

    uma releitura de x 23,8 (Tambm suborno no aceitars, porque o suborno cega at

    o perspicaz e perverte as palavras dos justos) e Dt 16,19 (No torcers a justia, no

    fars acepo de pessoas, nem tomars suborno; porquanto o suborno cega os olhos

    dos sbios e subverte a causa dos justos) em sua exegese, ele desloca o contexto

    jurdico de suas fontes e as aplica para o contexto mais amplo da cultura e da poltica.

    Ao fazer isso, Qohelet nos oferece uma pista significativa para a atividade teolgica:

    trata-se de ressignificar a tradio, de efetuar deslocamentos e movimentos ousados,

    para que o antigo tenha no s uma roupagem nova, mas se torne, efetivamente,

    novo! Trata-se de abraar a nulidade niilista e pensar sombra da morte!

    Vida

    Reflexo Morte

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    Em nossos dias comum vermos dois tipos de respostas aos sinais dos tempos:

    (1) respostas conformistas, desanimadas, pessimistas diante dos avanos do

    consumismo, do egosmo, da pseudo-prosperidade. J que tudo vaidade, vamos

    seguir a mar, aceitar a derrota e tocar a vida. Ou, ento, (2) respostas militantistas, j

    que o mundo vai de mal a pior, vamos arregaar as mangas e trabalhar, vamos seguir a

    Bblia de verdade mesmo que faamos pouco, esse pouco ser transformador.

    claro que esta segunda resposta bem mais interessante do que a primeira. Mas, se

    no acompanhada de profunda reflexo e ponderao sobre os caminhos de Deus em

    nossos dias maus, a militncia no passar de ativismo vazio. Quando no sabemos

    bem o que fazer, hora mais do que apropriada para pensar, refletir, para fazer

    teologia. hora de no aceitar a nesciedade da situao, nem a tentao da

    acomodao ao status quo. hora de ser criativo, como diria, talvez, Nietzsche. Hora

    de transvalorar os valores, de transtornar o mundo no com as armas da hiper-ao,

    mas com as da reflexo.

    Hora para uma reflexo escatolgica no apocalptica, mas niilista. No se trata

    de adivinhar o futuro, ou prever os passos concretos para a realizao da utopia. Trata-

    se, mais simplesmente, de discernir o que Deus est fazendo aqui e agora, de notar a

    sua presena na nvoa-nada do hoje que parece no ter mais fim. Hora de encher de

    densidade o presente vazio da condio ps- ou hiper-moderna. Hora de voltar os

    Niilismo Nulidade

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    olhos para a tradio e ressignific-la luz do presente, abraando a sua nulidade. No

    hora de meramente repetir os acertos do passado ou fugir de seus erros. hora de

    recriar o passado, reinventar o pensamento, renovar a reflexo. hora das pessoas

    sbias e inteligentes no abrirem mo da sabedoria e da inteligncia, no

    abandonarem a coragem de refletir, de pensar, de meditar, de dialogar, de discutir, de

    escrever, de fazer a mente trabalhar intensamente. hora de abraar a nulidade com

    sagacidade. hora de incorporarmos as virtudes de pombas e serpentes, ou seremos

    meras ovelhinhas devoradas por famintos lobos depredadores.

    2.2. Pensando a partir da morte

    Mantenhamos o pensamento em movimento paradoxal. Paradoxos so a alma

    e o esprito do livro do Eclesiastes. So a alma e o esprito da reflexo filosfica e

    teolgica. So o corpo da f e da vida crists. Eis mais um paradoxo a que Qohelet nos

    convida: se queremos compreender a vida, precisamos nos encantar com a morte.

    Devemos evitar uma armadilha terica perigosa: pensar a vida a partir da vida, tentar

    compreender a vida a partir daquilo que podemos ver a respeito da vida ou

    parafraseando Heidegger, no podemos fazer uma teologia da vida se pensarmos com

    meros instrumentos se pensarmos com os critrios da tecnocincia que tem se

    tornado um saber dominador da vida.

    Voltemos novamente nossos olhos ao texto de Eclesiastes: 7:1 Melhor a boa fama do que o unguento precioso, e o dia da morte, melhor do que o dia do nascimento.

    2 Melhor ir casa do luto do que casa da festa. Este o fim de todas as pessoas. Quem est vivo, reflita sobre isto.

    3 MELHOR A ANGSTIA DO QUE O RISO; O ROSTO ENLUTADO ALARGA O CORAO. 4 O corao da pessoa sbia est na casa do luto, mas o das insensatas, na

    casa do prazer. 5 Melhor ouvir a repreenso do sbio do que atentar cano do insensato. 6 Pois, qual o crepitar dos espinhos debaixo do caldeiro, tal a risada do insensato.

    Vejamos novamente o que Qohelet nos ensina, desta vez focando em 7,1-6.

    Apesar de na introduo percope (6,10-12) Qohelet afirmar que ningum sabe, na

    vida, o que bom, neste trecho ele nos confunde com a repetio quntupla do

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    advrbio melhor. Paradoxo, talvez mesmo uma antinomia, uma contradio. Deixemos

    por um pouco em suspenso o paradoxo. Concentremos nossa reflexo no que

    melhor. O trecho quiasticamente organizado. A chave est no verso 3: melhor a

    angstia do que o riso: o rosto entristecido alarga o corao. Dois termos demandam

    nosso trabalho exegtico de forma mais intensa: angstia e corao. A maior parte das

    tradues tem, ao invs de angstia, o termo tristeza. Mas tristeza uma palavra

    pobre demais para dar conta do sentido do texto de Qohelet: estamos na casa do luto,

    em pleno velrio ou j no funeral no momento apenas de tristeza, hora de

    angstia, a hora em que nos defrontamos com a nica realidade efetivamente certa

    da existncia humana, de nosso dasein no mundo, para brincar com Heidegger a

    morte, o fim, a extino, a perda irreparvel. Ficamos tristes quando algo nos

    atrapalha a vida, mas no produz uma condio definitiva. A tristeza pode durar a

    noite toda, mas a alegria vem ao amanhecer, diz um ditado bblico.

    No este o caso aqui. Trata-se efetivamente de angstia1 da sorge

    heideggeriana trata-se do momento mais declaradamente niilista da vida: a morte,

    1 Isto nos obriga a focar corretamente a questo, e no nos perdermos em uma intil discusso sobre a tristeza versus a alegria. No Eclesiastes, e na Bblia em geral, a alegria apresentada como sentimento positivo, como fora de vida, at mesmo como fruto do Esprito, segundo Paulo. No se trata, ento, de contrapor alegria e angstia, mas de situar essas paixes adequadamente. Abraar a angstia, o vazio

    Angstia Corao Viver Bem

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    que produz uma perda irreparvel, irrecupervel. O termo hebraico, s[;K;, ocorre

    poucas vezes na Escritura: oito, para ser exato (se as concordncias estiverem certas!).

    Em algumas vezes, se traduz por ira, pois, nesses textos, a palavra se refere ao que

    provoca a ira seja de Deus, seja de pessoas da o dever de pensarmos a relao

    entra angstia e ira, talvez a ira como a angstia despejada sobre a causa dela mesma.

    Mas os textos que nos interessam apontam mais claramente para a noo de angstia:

    O filho insensato angstia para o pai e amargura para quem o deu luz (Pv 17:25);

    Porque na muita sabedoria h muita angstia; e quem aumenta cincia aumenta

    desiluso (Ec 1:18); e Remove, pois, do teu corao a angstia e remove da tua carne

    o mal, porque a juventude e a primavera da vida so vaidade (Ec 11:10).

    A outra palavra importante aqui corao. Para ns, corao tem a ver com

    sentimento, paixo, amor, amizade, etc. Para os antigos hebreus, porm, o corao

    metfora para o pensamento, no para o sentimento. As metforas corpreas para

    sentimento so os rins, os intestinos, estmago, as entranhas. O corao na Escritura

    judaica intelecto, pensamento, reflexo, meditao. Da a juno entre angstia e

    inteligncia: quem medita sobre a morte alarga o conhecimento, a viso intelectual da

    realidade. E, continuando com o paradoxo, s com as lgrimas do luto que o

    intelecto se humaniza. Habermas, grande intelectual da razo moderna, vez por outra

    se lembra da religio e da f, e afirma: a religio tem o potencial que nada mais tem na

    modernidade, o potencial de nos fazer levar a srio o fracasso, a vida malograda. Ou,

    na linguagem bblica, a lgrima nasce quando o clamor de quem sofre nos atinge o

    ouvido e o corao. Isto a modernidade racional sufocou e ns precisamos trazer de

    volta ao centro da teologia: a lgrima e a orao.

    No se trata, claro, de masoquismo, muito menos de sadismo. Trata-se de

    colocar as situaes da vida em seu devido lugar: o riso importante, mas no pode

    ser mais importante do que a lgrima na busca do sentido do existir humano no

    mundo criado por Deus. Viver um direito inalienvel, mas s entendemos a vida a

    partir da morte que no um mero cessar de viver. A morte no um vazio-vazio,

    existencial, indispensvel para se compreender a vida. To indispensvel quanto a alegria para se viver intensamente a vida.

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    um vazio-cheio, presena, talvez a nica onipresena que efetivamente exista. Mas a

    morte, aqui, evocao de solidariedade, de lgrimas identificadas com a dor do outro

    que morreu. O luto o enfrentamento da morte, sem neg-la, mas abraando-a como

    parte da vida. Abraar a morte nos faz pensar. Abra-la nos faz entender a condio

    humana somos criaturas, mortais, finitos. Abraar a morte sinnimo de abraar a

    angstia que conduz ao cuidado de si mesmo e do prximo, e este um abrao que

    liberta, liberta do auto-engano egocntrico para o cuidado do prximo.

    Concluso

    Vida contra a morte? Vida para a morte? Vida sem a morte? Vida e morte so

    temas fundamentais da reflexo filosfica e Qohelet nos faz um convite para a reflexo

    sobre a vida a partir da morte, a favor do viver bem. Este convite tambm nos

    encaminha para os prximos temas de nosso curso: (a) nesta semana, as relaes

    entre religio e filosofia na busca do viver bem; e (b) na prxima semana, as relaes

    entre filosofia e teologia, na busca do conhecer bem para viver bem.