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O SUJEITO DA CIÊNCIA A PARTIR DA POSIÇÃO SUBJETIVA DISCURSIVA PSICANALÍTICA 1 Silvane Maria Marchesini 2 Embasados na proposta metodológica da Transdisciplinaridade sustentada por Basarab Nicolescu 3 , e na Teoria dos Discursos de Jacques Lacan 4 , desenvolvemos uma pesquisa sobre a subjetividade, articulando os campos de estudo da Psicanálise e do Direito. Ainda que considerando a distância dos diferentes campos discursivos, o psicanalítico e o jurídico, a predominância de distintas lógicas (princípio da indeterminação x princípio da razão suficiente) instituídas em cada campo, as diferentes finalidades práticas (inserção no âmbito singular individual e no âmbito social), partimos da operacionalização assimétrica de alguns conceitos-chave a respeito da subjetividade psicanalítica e da subjetividade jurídica, especialmente com relação à identificação do sujeito, visando buscar novos elementos à fundamentação de uma teoria do sujeito de direito e, consequentemente, do sujeito da ciência, visto que a ciência jurídica desde seu lugar de poder instituído organiza as práticas e os conhecimentos de todas as demais disciplinas científicas. A partir de legados jusfilosóficos críticos à lógica da totalidade e à ética universal, análogas da razão moderna, cujos defensores com distintos argumentos vêm contribuindo para uma compreensão da razão fundada no princípio da exterioridade do outro como altero em relação ao ser, buscamos fundamentação e incorporação da lógica e da ética relativa psicanalítica sustentada na singularidade do desejo inconsciente, para estabelecer eventual filiação da organização científica e jurídica em relação à organização edipiana, num processo discursivo juspsicanalítico 5 . 1 Palestra proferida no Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e VIII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental – Belém do Pará – Brasil, em 07 de setembro de 2006. Publicada no site: <http://www.psicopatologiafundamental.org/app/index.php> e <http://www.fun damentalpsychopathology.org/anais2006/4.3.3.2.htm>. 2 Advogada, diplomada pela Universidade Federal do Paraná – Brasil. Psicóloga, Mestre em Psicanálise pela Universidade Tuiuti do Paraná. Psicanalista Clínica. Desde 2012, Doutora em Psicologia, pela Université Nice Sophia Antipolis. E-mail: [email protected]. 3 NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lúcia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999. 4 LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. 5 MARCHESINI, Silvane Maria. O sujeito de direito na transferência – Uma perspectiva transdisciplinar por meio da Teoria Lacaniana dos Discursos. Curitiba: Juruá, 2010.

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Sujeito do Direito, Transdiciplinaridade, Psicanálise.

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O SUJEITO DA CIÊNCIA A PARTIR DA POSIÇÃO SUBJETIVA DISCURSIVA PSICANALÍTICA1

Silvane Maria Marchesini2

Embasados na proposta metodológica da Transdisciplinaridade sustentada

por Basarab Nicolescu3, e na Teoria dos Discursos de Jacques Lacan4, desenvolvemos

uma pesquisa sobre a subjetividade, articulando os campos de estudo da Psicanálise e

do Direito.

Ainda que considerando a distância dos diferentes campos discursivos, o

psicanalítico e o jurídico, a predominância de distintas lógicas (princípio da

indeterminação x princípio da razão suficiente) instituídas em cada campo, as

diferentes finalidades práticas (inserção no âmbito singular individual e no âmbito

social), partimos da operacionalização assimétrica de alguns conceitos-chave a

respeito da subjetividade psicanalítica e da subjetividade jurídica, especialmente com

relação à identificação do sujeito, visando buscar novos elementos à fundamentação

de uma teoria do sujeito de direito e, consequentemente, do sujeito da ciência, visto

que a ciência jurídica desde seu lugar de poder instituído organiza as práticas e os

conhecimentos de todas as demais disciplinas científicas.

A partir de legados jusfilosóficos críticos à lógica da totalidade e à ética

universal, análogas da razão moderna, cujos defensores com distintos argumentos vêm

contribuindo para uma compreensão da razão fundada no princípio da exterioridade

do outro como altero em relação ao ser, buscamos fundamentação e incorporação da

lógica e da ética relativa psicanalítica sustentada na singularidade do desejo

inconsciente, para estabelecer eventual filiação da organização científica e jurídica em

relação à organização edipiana, num processo discursivo juspsicanalítico5.

1 Palestra proferida no Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e VIII Congresso

Brasileiro de Psicopatologia Fundamental – Belém do Pará – Brasil, em 07 de setembro de 2006. Publicada no site: <http://www.psicopatologiafundamental.org/app/index.php> e <http://www.fun damentalpsychopathology.org/anais2006/4.3.3.2.htm>.

2 Advogada, diplomada pela Universidade Federal do Paraná – Brasil. Psicóloga, Mestre em Psicanálise pela Universidade Tuiuti do Paraná. Psicanalista Clínica. Desde 2012, Doutora em Psicologia, pela Université Nice Sophia Antipolis.

E-mail: [email protected]. 3 NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lúcia Pereira de Souza. São

Paulo: Triom, 1999. 4 LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary

Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. 5 MARCHESINI, Silvane Maria. O sujeito de direito na transferência – Uma perspectiva

transdisciplinar por meio da Teoria Lacaniana dos Discursos. Curitiba: Juruá, 2010.

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Ou seja, sustentada no inconsciente que constitui a parte (enunciação) de um

discurso concreto (enunciado), do qual o sujeito não dispõe, ele exite no non-sens. E,

graças ao método e a interpretação do psicanalista, esta parte inconsciente do discurso

se transforma, sob os efeitos da transferência, em saber e dá acesso ao sujeito falante à

sua posição subjetiva discursiva.

No campo das ciências humanas do Direito e da Psicologia, o qual aqui nos

interessa mais de perto, o paradigma é o inter-subjetivo consciente no qual o discurso

é a instância última de racionalidade. No campo da Psicanálise, cuja preocupação é a

preservação da subjetividade, o paradigma é o Transindividual, ou seja, o sujeito

manifesta-se denotando um saber Real sobre si e sobre as coisas do mundo, no nível

discursivo intra-subjetivo inconsciente.

Portanto, para justificar eticamente o sujeito de direito e da ciência, por meio

da Teoria Lacaniana dos Discursos, é preciso considerar metodologicamente o

fenômeno humano da transferência como experiência dialética na qual ocorre uma

substituição daquilo que resiste ao discurso consciente, ou seja, uma espécie de

projeção de conteúdos subjetivos latentes que uma pessoa manifesta

inconscientemente a outra pessoa, em face de lugar e função desempenhada nas

relações da vida. Uma espécie de dialética referida ao momento de passagem de

poderes do sujeito ao Outro, lugar da fala, virtualmente, lugar da verdade subjetiva.

Neste fenômeno transferencial atualizam-se impressões parentais infantis do

passado, alusivas a concepções de autoridade, proteção, seguridade etc., que atuam na

subjetividade, produzindo efeitos observáveis nas relações socioculturais e jurídicas.

Nesta tese de que a subjetividade deve ser apreciada numa perspectiva

discursiva integradora entre as funções do consciente e do inconsciente, sustentada,

mais especificamente, no Seminário XVII: O avesso da psicanálise6, concluímos que é

possível tomar o giro topológico das quatro estruturas discursivas lacanianas

(discurso do mestre, discurso universitário, discurso histérico e discurso do analista)

para desenvolver uma alteração de três quartos de giro – anunciado por Lacan7 – nas

distintas posições do sujeito barrado nos discursos em relação à verdade, com a

finalidade de contribuir para o desenvolvimento na ciência e no Direito, a partir dessa

aproximação, de uma teoria da personalidade, numa nova prospectiva ética.

6 LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary

Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

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Dessa modificação produzida por três quartos de giro nos discursos,

aproximando-se o Discurso do Mestre, no qual se situa o Discurso Científico e o

Jurídico, do Discurso Psicanalítico, surge um outro estilo de Significante Mestre S1,

que determina, por conseguinte, a alteração da Lei como significante inconsciente na

cultura e no sujeito.

A perspectiva psicanalítica considera um ponto de negatividade simbólico

irredutível, como necessário à estruturação subjetiva e cultural. Esta perda inicial do

gozo absoluto, sob os efeitos do recalcamento originário do significante S1, e

paradoxalmente, da castração, refere-se ao processo institutivo da palavra no humano.

A vertente lacaniana estuda este ordenamento denominando-o de Lei do

Nome do Pai, metáfora estruturante constitutiva subjetiva que em seu poder interdita

o incesto e introduz através das leis da linguagem, uma série de normas reguladoras

das relações familiares e culturais.

A abordagem da subjetividade a partir de referenciais teóricos psicanalíticos e

de subsídios pragmáticos clínicos conduz-nos, então, a pensar a possibilidade de uma

nova ética, a partir da consideração pela ética científica e jurídica universal, de outra

dimensão na qual se situa a ética relativa psicanalítica, como fator genuíno na

compreensão dos temas da legalidade e da obediência e transgressão no âmbito da

justiça, e da culpabilidade como fator gerador de distúrbios psicopatológicos.

No ponto de conectabilidade entre ambos os campos discursivos, o

psicanalítico e o científico e jurídico, trata-se de Estatuto de nomeação subjetiva, ou

seja, da inserção do ser humano no mundo, como indivíduo social e como sujeito de

direitos. Ambos os campos atuam, ainda que distintamente, na lei como significante,

ou seja, na fundação constitutiva do sujeito (sistema normativo interno).

Considerado, então, o paradoxal processo “pré-edipiano e edipiano”

inconsciente de subjetivação, que ocorre de modo singular em relação às questões

superegoicas alusivas à autonomia e heteronomia dos modelos ideais e de interdições

familiares e culturais, do qual decorre que o “significante fálico” para cada sujeito

tem uma significação, mais profunda que os significados conscientes, concluímos que

a abordagem psicanalítica da subjetividade conduz a uma refundação do sujeito

científico e jurídico.

7 LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary

Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 168.

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Portanto, a função normativante científica e jurídica deve ser entendida como

Lei significante, pois, atua como um dos principais fatores determinantes externos da

constituição psíquica do sujeito e da cultura.

Devido a tal complexidade, a Lei em todas as suas nuances, paternal,

patriarcal, estatal ou científica, é de ser pensada como um processo criativo de

realidade social e singularidades subjetivas.

A partir desta visão científica transdisciplinar, os efeitos dos discursos

sociais sobre a construção do sujeito e sobre a evolução da psicopatologia, temas que

interessam tanto ao campo jurídico como ao campo psicológico e medical, atualmente,

vêm sendo estudados em núcleos acadêmicos europeus, problematizando-se,

especificamente, a constituição da subjetividade infantil e adolescente, e as mutações

subjetivas durante toda a vida, em suas implicações biopsicossociais e espirituais.

Assim, uma equipe de pesquisa orientada pelo psicanalista Serge Lesourd,

atualmente na Université Nice Sophia Antipolis, articula Psicologia, Psicopatologia e

clínica com Psicanálise, ciência da construção do sujeito na sua especificidade.

A síntese dos argumentos teóricos que sustentam os eixos da pesquisa

acadêmica em nível de doutorado, orientadas por Lesourd, sobre “as influências

recíprocas das organizações sociais e a psicopatologia individual ou coletiva” bem

esclareceu com relação à “construção da subjetividade como efeito do discurso”, a

importância do lugar e da função da família constituída sobre diferentes modalidades

do desejo:

Desde sua origem a psicanálise, ciência da construção do sujeito na sua especificidade, colocou as questões da origem dos disfuncionamentos do ser humano na sua relação com a sua história familiar (Freud, 1905; Lacan, 1946), com sua cultura (Freud, 1914; Lacan, 1969; Legendre, 1985), e com o que o especifica enquanto ser humano: a linguagem (Freud, 1908; Lacan, 1943). Portanto, o estudo da subjetividade não pode ser concebido independentemente do lugar que o sujeito ocupa na sua família, instituição cujo operador é a filiação e onde ocorrem as primeiras construções da personalidade (Cf. Eixo 1). A família não é um grupo como os outros e nela “os lugares não são cambiáveis” (Thery, 1996), apesar do que insinuam as novas formas de organização dos laços familiares nas leis sociais. As modificações recentes das formas de organização da vida familiar e dos laços de aliança e de filiação influenciam sobre a construção subjetiva das crianças e sobre a maneira como as quais representam os laços afetivos e sociais no mundo que elas descobrem, pois, o papel dos adultos no acolhimento da criança, ser em devir, é de lhe “ensinar o mundo, aquele que começou antes do seu nascimento e que continuará depois de sua morte...” (Arendt, 1956; Lacan, 1938). Os processos de nominações, escolha do pré-nome e do nome, mas, também, lugar no parentesco, lugar filiativo e lugar sexuado, estão, também, no coração dos processos

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identitários e da construção da subjetividade inicialmente durante a primeira infância, depois, durante os remanejamentos subjetivos ao longo de toda a vida (Cf. Eixo 2). A construção da subjetividade impõe-se pelo fato da prematuridade do ser humano, e conduz a uma série de arranjos sucessivos tanto dos modos de organização do pensamento, quanto dos afetos que fazem desse tempo em família a base da organização futura dos laços de um indivíduo com outros e consigo mesmo (Cf. Eixo 3). Os processos de adolescência são, assim, a compreender (Racial, 2000; Gutton, 1996; Lesourd, 2001) como reconstruções e integrações dos processos infantis para o acesso do sujeito a um lugar e a uma função social, ambos considerados como lugar de expressão do sujeito. Assim, o lugar do ambiente familiar na construção do sujeito não pode ser extraído do lugar que uma dada sociedade concede às funções parentais e familiares baseadas nas leis de aliança e de troca entre os sexos (Arent, 1972; Lévi-Strauss, 1997). A psicanálise encontra aí os trabalhos dos antropólogos e dos sociólogos da família. Não existe família fora de um laço social que determine os possíveis e os impossíveis das relações entre os seres humanos. As modificações dos discursos organizadores do laço social influem, então, sobre o lugar que pode tomar o indivíduo na sua relação com os outros e sobre a expressão do mal-estar individual e coletivo na civilização (Cf. Eixo 4).8 [sem grifo no original]

Tais argumentos revelam a família e a filiação como emanações do trabalho

fundamental abstrato sobre a construção do sujeito em suas relações tanto na sua

própria família quanto no seu ambiente social. A psicanálise é a referência teórico-

prática desta linha de pesquisa, cujo objetivo é o de aprofundar o estudo das relações

entre os discursos sociais e as produções psicopatológicas do indivíduo9 no seu

contexto familiar e social. Portanto, é importante observar as forças normativas

sociais, assim como, os processos psíquicos fundamentais em obra na construção dos

laços familiares e de filiações, emanando das funções parentais. Tais forças

normativas familiais e sociais constituem as condições da construção do sujeito-

criança, e elas sofrem remanejamentos ligados a suas próprias transformações.

A psicanálise demonstrou que a psicopatologia é um modo de inscrição

subjetiva nas leis da linguagem. As doenças da alma decorrem em grande parte dos

modos como uma sociedade aceita ou recusa as formas singulares de expressão dos

sujeitos. Observa-se que os modos de expressão psicopatológicos vêm se

transformando, assim como, as normas sociais, científicas e jurídicas a este respeito.

Os códigos de classificação psiquiátrica por sua vez, anotam a transformação do

conceito de normalidade social e da determinação da subjetividade. Compete-nos,

8 LESOURD, S. “L’Equipe de Recherche: Psychanalyse, Psychopathologie et Psychologie clinique.” Atualmente

na Université Nice Sophia Antipolis-FR.

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então, buscar entender, em que tais modificações discursivas, influem no processo de

construção da personalidade na infância e na subjetividade no decurso da vida, pois,

os discursos sociais e científicos induzem modificações da psicopatologia tanto no

plano clínico, como no plano epistemológico.

Para explicar esta inédita mutação no “discurso como forma de laço social”,

Jean Pierre Lebrun10, destacado psicanalista belga, aponta mudanças seculares no

funcionamento coletivo que operam na interseção subjetiva e social e que, são de

importância na construção da subjetividade.

Descreve esta construção em cinco níveis: o nível que Lacan chamou de

humus humain, o nível do social humano, o nível da sociedade concreta, o nível da

família e o nível da realidade psíquica do sujeito.

Explica que a entrada no campo da palavra exige do sujeito uma perda de

gozo do ideal de completude e onipotência, perda esta que produz uma marca de

negação a qual serve de fundamento tanto à Lei como ao desejo.

O limite subsumido na negatividade que fundamenta à Lei surge no social

humano sempre representado pelo interdito do incesto, distinguindo o mundo natural e

o da cultura com estabelecimento de lugares para os cidadãos dentro do social.

Cada sociedade concreta organiza suas normas e leis que são desenvolvidas e

transmitidas a partir do interdito fundador. Tais regras têm por função sustentar o

consentimento subjetivo dessa perda de gozo.

A família, por meio da relação com os primeiros outros – geralmente, os pais

– é o meio ambiente no qual o sujeito reencontra esse limite de gozo, organizando-se e

constituindo-se.

Neste mesmo movimento, a criança precisa consentir em renunciar a todo-

gozo – ou seja, renunciar a toda potência infantil assumindo a castração simbólica –

para poder aceder ao desejo.

Nessas bases, Lebrun11 sustenta a tese de que há uma solidariedade de uma

perda necessária a cada nível do dispositivo de construção subjetiva, perda solidária

essa, que estabelece a linha divisória entre o gozo e a língua, transmitida como limite

necessário à especificidade do humus humain.

9 LESOURD, S. La folie ordinaire des discours modernes. Figures de la psychanalyse, 2004, vol. 2,

no 10, p. 105-110. Disponible sur : DOI : 10.3917/fp.010.0105. URL : <www.cairn.info/revue-figures-de-la-psy-2004-2-page-105.htm>.

10 LEBRUN, J.-P. La Perversion ordinaire. Vivre ensemble sans autrui. Paris : Éditions Denoël, 2007. 11 LEBRUN, J.-P. La Perversion ordinaire. Vivre ensemble sans autrui. Paris : Éditions Denoël, 2007.

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Afirma que, esta solidariedade diminuta de perda-de-gozo, atualmente

recolocada em causa, é que poderá nos trazer clareza dessa inédita organização

discursiva social.

Os dois primeiros níveis de construção da subjetividade, quais sejam, o do

humus humain, e o do social humano, Lebrun12 situa-os no que denomina de “núcleo

antropológico duro” no qual os elementos operadores são de ordem simbólica trans-

histórica, distinta da ordem social histórica. Delimita, ainda que de modo iterativo, o

que revela constrangimentos de estrutura, e o que revela uma mera contingência

contextual.

Aponta o sintoma de uma negatividade deslocada, pulverizada, que denota

supressão da “categoria do impossível”. Ou seja, o desaparecimento do limite que

impõe um menos-de-gozo, como consequência da deslegitimação das figuras

representativas de autoridade.

Afirma que está se construindo um outro regime simbólico da vida coletiva,

devido ao fim de um laço social discursivo sistematizado a partir de um “lugar de

exceção”. Afirma, ainda, que o desaparecimento de uma posição de exterioridade

hierárquica, está levando ao descrédito na diferença de lugares e na transcendência

como lógica aceitável. Lebrun observa que está surgindo outro tipo de laço social, este

não mais sendo sustentado pela Incompletude e Consistência, mais, ao contrário,

sustentado pela Completude e Inconsistência. Este novo regime simbólico vem se

organizando por Discursos Imaginários de uma radical organização horizontal

imanente.

Neste novo arranjo do regime simbólico, observamos, no entanto, que

renovadas tendências epistemologias transdisciplinares vêm se articulando com a

Psicanálise e se corporificando em várias áreas de estudo e práticas respectivas,

visando resgatar de modo distinto, a força legitimadora dos referenciais simbólicos

tradicionais por funcionarem como elementos estruturantes da subjetividade.

Um exemplo disso é o movimento que está se produzindo na Medicina e no

Direito, principais áreas científicas organizadoras do poder instituído nas culturas: de

um lado, trata-se da incessante busca de um ethos universalizável racional, ético ou

espiritual, que venha produzir o cimento estético capaz de recobrir o “vazio” do “locus

de exceção” e amalgamá-lo definindo assim a alteridade endo-exógena identitária no

12 LEBRUN, J.-P. La Perversion ordinaire. Vivre ensemble sans autrui. Paris : Éditions Denoël, 2007.

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âmbito singular; mas também, a busca incessante de um ethos que venha produzir no

vazio entre a “pré-história da espécie” e do “indivíduo”, um renovado pater coletivo

menos violento, personificando o pacto dever-ser no contrato social e jurídico, sem o

risco do “assassínio de nossas próprias almas”.

Para dar uma breve noção de como o sujeito da ciência vem se

reposicionando a partir da posição subjetiva discursiva psicanalítica, delineamos aqui,

como estas áreas médica e jurídica, principais responsáveis pelo reconhecimento e

inserção do indivíduo na sociedade e na família, vêm ressistematizando seu discurso

científico com fundamentos das teorias interpretativas simbólicas psicanalíticas e

neoantropológicas:

1º) A Medicina partindo metodologicamente das “leis de causa e efeito”,

considera que a causa do psiquismo é biológica, numa visão organicista.

Das distintas áreas medicais, destacamos a Psicopatologia Geral que,

descreve de forma taxológica as doenças mentais.

Por sua vez, a Psicopatologia Fundamental, que vem surgindo

epistemologicamente, busca a compreensão do Pathos humano (dos sofrimentos da

alma), através de vários outros saberes, filosofia, psicologia, psicanálise, antropologia,

baseada no pressuposto da manifestação da subjetividade no discurso.

2º) O Direito, ao incorporar as regras sociais regulamentando as relações

jurídicas e as demais áreas científicas, funciona como instrumento simbólico em

âmbito público e privado, na construção da ficção que sustenta cada sujeito nas

condições necessárias para encontrar o seu lugar na sociedade concreta.

O reconhecimento do sujeito de direito funciona como modo de inserção do

indivíduo na organização coletiva e individual.

Por isso, um Direito distante dessa tarefa construtiva subjetiva não cumpre

com sua função organizadora e nominativa.

O discurso juspsicanalítico vem, no entanto, sendo sistematizado

epistemologicamente, na busca de mediações de saberes, para nova justificação ética

da subjetividade discursiva e das relações jurídicas.

3º) A Psicanálise preocupa-se com a preservação da subjetividade.

“Como” e “em que”, uma sociedade nos seus diferentes níveis, particular e

público, intervém na constituição do aparelho psíquico.

Estuda que leis regem o campo do pensamento, mundo da “alma”,

localizando a causa do psiquismo no “consentimento” inconsciente.

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Ocupa-se de questões etiológicas, da referência simbólica como causa da

subjetividade, a partir, da “categoria do vazio”.

Lacan, em especial, desenvolveu uma teoria localizando a causa do

psiquismo na dimensão inconsciente da linguagem, partindo de uma visão

estruturalista, e, ultrapassando essa perspectiva, acrescentou a concepção do Discurso

como forma de laço social.

Lacan aproximou-se, assim, da ciência em geral, e do Direito, informando

nos Escritos, especificamente, nos textos “A instância da letra no inconsciente...” e “A

metáfora do sujeito”, a teoria dos efeitos do significante distintos do significado em

face das manifestações do inconsciente.

A Teoria dos Discursos13, lacaniana demonstrou, de forma lógica, os

diferentes modos de relação do sujeito com a cadeia significante e com o Real, no

nível inconsciente.

Ao explicar como funciona a cadeia discursiva, Lacan partiu da interpretação

do inconsciente, pela exterioridade do significante mestre S1, primeira marca mnêmica

a partir da qual surge a fala e que, representa o sujeito sempre para outro significante,

o S2, saber inconsciente que vem do lugar do Outro.

Lacan afirma a partir dessa constatação que: “O inconsciente é estruturado

como uma linguagem”. Esse aforismo é indicador de que não existe sujeito que gere a

si mesmo. Que o sujeito surge gerado no campo do Outro e devido ao campo do

Outro.

Portanto, ainda que a teoria psicanalítica demonstre a “verdade parcial” do

desejo inconsciente e se fundamente na falta simbólica como estruturante do ser,

caracterizadora de uma equivocidade na linguagem, apresenta-se, a nosso ver, como

estudo indispensável à identificação do sujeito jurídico, e do sujeito considerado pelas

ciências medicais, visto que discorre sobre o caráter irredutível da subjetividade na

estrutura discursiva, e sobre as distintas posições do sujeito barrado em relação

ambígua com a verdade.

Prospectamos, então, que esta nova mediação de conhecimentos científicos,

Psicanálise/Direito/Medicina, configura um enlaçamento Real/ Simbólico/Imaginário

sobredeterminante de novas identificações.

13 LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary

Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

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Tendo Lacan definido que “o inconsciente é o social” e que “o discurso é

uma forma de laço social”, coloco para reflexão sobre as consequências na construção

da subjetividade do deslocamento dos discursos sociais e do sentido de poder,

sustentado anteriormente numa lógica vertical que vem se horizontalizando, algumas

constatações:

A transcendência, como ponto lógico necessário à organização do

pensamento, significa a aposta na possibilidade de surgimento de um novo estilo de

Significante Mestre S1.

É a partir da Teoria dos Discursos lacaniana que surge a possibilidade de um

novo estilo de discurso de mestria científica, campo discursivo no qual se situam,

especialmente, a Medicina e o Direito, após a passagem por um tempo de

transcendência pelo discurso Psicanalítico.

Para justificar essa questão, cito Lacan, que discorrendo sobre a Impotência

da verdade, afirma:

Chegamos enfim ao nível do discurso do analista. Naturalmente, ninguém assinalou – é muito curioso que o que ele produz nada mais seja do que o discurso do mestre, já que S1, é o que vem no lugar da produção. E, como eu dizia da última vez, quando deixei Vincennes, talvez seja do discurso do analista, se fizermos esses três quartos de giro, que possa surgir um outro estilo de significante-mestre.14 [sem grifo no original]

Nesta postura de pesquisa científica, valoriza-se a estética e a ética na

produção real de boas obras de arte, assim como, outras áreas das tradições sapienciais

as quais podem vir a funcionar de modo mais efetivo, como vias de comunicação e

ponte, digamos assim, possibilitando a Medicina e ao Direito encontrarem um novo

estilo de significante científico, em decorrência da passagem pela posição discursiva

psicanalítica, processo subjetivo que gera produções mais criativas.

Em consequência da coerência alcançada pela elaboração e retificação de

referenciais, e também, devido ao estado subjetivo de sublimação produzido no

processo psicanalítico, surge como efeito inscrição do Real/Imaginário no campo

Simbólico pelo instrumento do fenômeno humano da Transferência nas experiências

dialéticas.

14 LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary

Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 168.

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Prospectamos, então, a partir do enunciado por Lacan15 – três quartos de giro

discursivo a partir do discurso do analista –, a possibilidade de surgimento de uma

nova ciência e um novo sujeito, que se sustente na passagem pela posição analítica.

Uma produção acadêmica realizada por sujeitos analíticos que busquem em seus

processos de elaboração pulsional, convergir a marca distintiva de sua subjetividade

com a causa de sua divisão (saber que está sob a barra do recalque).

Trata-se de aposta numa racionalidade produzida por sujeitos com palavra

autorizada a partir de um mínimo ético irredutível e hierarquizante, que pressupõe a

diferença de lugares e de posições discursivas, como indispensável à singularidade e

liberdade subjetiva. Ou seja, a prospecção de um novo estilo de lugar de exceção,

ocupado por quem esteja em ordem com sua Lei psíquica.

Uma construção Real/Simbólico/Imaginária que possibilite decisão,

autoridade e poder, mais legitimados, numa construção sem ultrapassagem radical da

heteronomia, na qual a subjetividade se sustente de forma a ocupar um lugar novo de

exterioridade.

Uma nova forma de hierarquia, com representantes legitimados de maneira

mais credível, numa articulação de decisão/autoridade/poder geradora de efetivo laço

social.

Uma renovada prospecção científica através do discurso psicanalítico,

levando a que as decisões, no âmbito particular ou público, sejam tomadas a partir de

um “pacto inconsciente” hierárquico e subjetivante. Instituições familiares e sociais

que se estabeleçam de modo mais sadio devido a consideração da dimensão do Real, e

do ponto de censura entre os distintos lugares subjetivos discursivos.

BIBLIOGRAFIA

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