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589Revista Sociedade e Estado - Volume 25 Nmero 3 Setembro/Dezembro 2010
de Luc Boltanski
De la Crique: Prcisde Sociologie de lmancipaon(Paris: Gallimard, 2009)
Diogo Silva Corra1
A
convite de Axel Honneth, Luc Boltanski proferiu trs conferncias no Ins-
tuto de pesquisa social de Frankfurt, em Novembro de 2008, fazendo
uma contribuio ao ciclo de Conferncias Adorno. Posteriormente ree-laboradas e ampliadas, cada uma foi dividida em duas partes, formando os seis
segmentos do seu recm publicado livro De la crique: prcis de sociologie de
lmancipaon.Desses, pode-se extrair trs partes. Uma primeira, dedicada
anlise do vnculo existente entre sociologia e crca; uma segunda que, a parr
de uma reexo acerca das instuies, procura pensar a condio de possibili-
dade da avidade crca atravs do que o autor chama de contradio herme-
nuca. Uma terceira, enm, dedicada a problemas polcos atuais que vo de
diferentes modos de dominao (simples ou complexa/gerencial) a um esboo
de uma via para a emancipao.
Pode-se dizer, de um modo geral, que, a despeito das possveis crcas em ra-
zo de seu estado de esboo, essa obra de Luc Boltanski possui, ao menos, dois
mritos indubitveis. Consagra, em primeiro lugar, a temca da crca, talvez a
nica obsesso que tenha verdadeiramente acompanhado toda a sua obra, des-
de os tempos ao lado de Pierre Bourdieu (1964, 1976) at os seus textos mais
recentes escritos na companhia de Laurent Thvenot (1991) e de Eve Chiapello
(1999). Em segundo lugar, nessa obra o autor faz, de modo explcito e delibera-
do, uma espcie de sntese geral de sua prpria trajetria, visando integrao
de dois momentos de sua dmarcheintelectual, que so a do socilogo crco e
a do socilogo pragmco dacrca.
parndo de uma discusso acerca da relao entre saber sociolgico e crca
social que Boltanski inicia o primeiro segmento de seu livro. Ao invs de car
restrito, como antes zera, a um apontamento crco da sociologia de Pierre
Bourdieu, ao contrast-la com as virtudes da sociologiadacrca, o autor faz
um balano honesto em que visa aos vcios e virtudes de ambos os eslos
de se fazer sociologia. Entre os dois, h uma incompabilidade na supercie,
mas, e essa a tese de Boltanski, h uma solidariedade de fundo: se de um ladoh vcio, no outro h virtude. Se a sociologia pragmca da crca soube bem
arrolar instrumentos capazes de dar conta de situaes reversveis e de momen-
1. Doutorando emSociologia pelo IU-PERJ e integrantedo laboratrio depesquisa Sociolo,coordenado peloprofessor FrdricVandenberghe.
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tos em que a realidade se mostra frgil e vulnervel, como nos grandes casos
(2007), o mesmo, contudo, no se pode dizer a respeito de quando assimetrias
durveis so experimentadas por meio de situaes intransponveis. Essas l-
mas, por sua vez, nunca escaparam grade analca da sociologia crca. Ela
soube mostrar, como ningum, a relevncia da temca da dominao e, para
isso, elaborou uma crca polca das relaes de poder vigentes na estrutura
societria. No entanto, ela pagou um alto preo: abandonou abertamente o ide-
al da neutralidade axiolgica e, assumindo para si a tarefa de fazer a crca da
dominao, acabou por reduzir os atores sociais condio de seres alienados
e, alm disso, colonizou-os pela via do passado incorporado. Mas, no s isso,
colonizou tambm o prprio ambiente social, nele depositando e imprimindo
relaes de poder e de violncia simblica.
J a sociologiadacrca soube bem fazer o contrrio. Tornou os atores sociais
dotados de reexividade, capazes, portanto, de juscar e cricar suas aes e
de mobilizar, nas situaes em que o imperavo de juscao se punha, seu
senso de jusa com vistas ao estabelecimento do elo societrio. Isso, entre-
tanto, no a deixou escapar de um preo igualmente alto: a prpria sociologia
perdeu a capacidade de, ela mesma, elaborar uma crca social e tornar a re-
alidade inaceitvel.
Parndo desse preciso diagnsco, Boltanski prope uma compabilizao dos
dois programas gerais. Da sociologia crca, retm a posio de exterioridade, a
capacidade de colocar em causa a realidade e de, com isso, fornecer aos atores
sociais informaes sinpcas e instrumentos grcos e analcos de totaliza-
o da ordem social, incluindo a os princpios de equivalncia, que os permi-
tam fazer face fragmentao, atravs da mobilizao coleva. Do programa
pragmco dacrca, conserva a ateno s operaes ordinrias dos acteurs
eux-mmes, alm de incorporar e reconhecer o pluralismo existente (seja ele
valoravo ou relavo aos modos ou regimes de agncia) nos atores e no prprio
mundo social. Existe a proposio, nesse sendo, de uma retroalimentao. De
um lado, a sociologia crca no pode deixar de considerar a, por vezes, resis-
tncia dos atores sociais frente s suas elaboraes tericas, fazendo uso da
fcil soluo de reduo dessas mesmas reaes mera denegao(no sendo
psicanalco); por outro lado, dado que os atores procuram frequentemente
o auxlio de teorias metacrcas, e delas extraem recursos e repertrios mais
ndos e ecazes, a sociologia da crca no deve, ela tambm, se furtar ao tra-
balho de a eles fornecer o que demandam.
Nem a arrogncia do socilogo crco que, tomando para si o monoplio da
crca, v os atores como incapazes, nem a covardia da sociologia pragmcaque, aos atores, deixa todo o trabalho de cricar. Resta sociologia, enquanto
tarefa pblica, uma atude semelhante do bom pai: fornecer os recursos e
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instrumentos necessrios e, nesse mesmo movimento, acreditar (por vezes in-
genuamente, por vezes no) na capacidade dos atores sociais de superar suas
adversidades situadas e buscar, dentro das suas limitaes, para retomar a fa-
mosa expresso de Leibniz, no melhor dos mundos possveis.
Parndo desse preciso diagnsco, Boltanski intenta, nos segmentos trs e qua-
tro do livro, connuar esse trabalho de arculao mtua, reendo a propsito
do que confere realidade seus contornos e o que a coloca em jogo, que so
respecvamente a Instuio e a crca. Sem mais se preocupar com alguma
delidade polca a um dos eslos sociolgicos, Boltanski tenta, mediante o ar-
ranjo das virtudes de cada uma dessas formas, improvisar um modo de tratar
dessas duas espinhosas questes.
assim que na segunda parte do livro, Luc Boltanski deixa de lado o seu to tra-
balhado conceito em obras anteriores (1990, 1991, 1999, 2007), as Cidadelas2,
metasicas morais mobilizadas por atores sociais em situao de conito (sem
o uso da violncia aberta), com a nalidade de dar legimidade s suas preten-
ses de jusa, voltando a sua anlise para o que permite com que, em meio
a uma situao de incerteza e de disputa, ainda assim operem instrumentos
capazes de migar a inquietude e de auxiliar no processo de seu apaziguamen-
to e de manuteno desse estado. A crca se acha juscada pela incerteza
do mundo, assim como a juscao se acha solidicada pelos disposivos que
estabilizam a realidade. Para dar conta disso, Boltanski volta ao problema mais
geral das Instuies. Pois, se a crca se destaca sempre de um fundo do por
bvio (taken for granted), porque existe alguma endade virtual (quer dizer,
real sem ser atual, ideal sem ser abstrata, como dizia Deleuze) que confere
realidade esse pano de fundo sobre o qual a crca pode se assentar. Ao invs de
reduzir a abordagem das Instuies aos seus efeitos de dominao, como a so-
ciologia crca o zera, Boltanski, nesse primeiro momento, as confere um papel
basilar e permanente, qual seja, o de solidicar uma ordem social que, diante
da heterogeneidade de aplicaes concretas que os agentes fazem dos valores
presentes no mundo, necessita de uma endade sem corpo capaz de fazer
face a essa mulplicidade e conferir, assim, realidade uma estabilidade mni-
ma, mediante o exerccio de sua funo de conrmao. Na clssica triparo
da lingusca dada pela sintaxe, semnca e pragmca, Boltanski, que em sua
fase de ruptura com Bourdieu havia dado excessiva nfase s consequncias
prco-tericas da lma, volta segunda. Nem a sintaxe inconsciente do sim-
bolismo estruturalista de Lvi-Strauss, nem o pragmasmo da ao conngente
e situada, na Frana representado sobretudo pelo grupo de Raisons Praques
(Louis Quer, Daniel Cefa, Isaac Joseph e companhia). Em oposio ao bom
pragmasmo respeitoso do contexto, do situado, do local, em suma, do aqui
e agora, colocam-se os disposivos instucionais pelos quais os atores mantm
2. Optamos pelatraduo do termoCit por Cidadela eno por Cidade, por
trs razes. Primei-ro porque h, nofrancs, um outrocorrespondente dapalavra portuguesaCidade que ville.E, uma vez que aacepo de Citnotem nada a ver comville, a traduo porCidade pode induziro leitor brasileiro aoerro de pensar que
se trata de algumc or r es pondent eda ulma palavra.Em segundo lugar,os autores do con-ceito, Boltanski eThvenot, publica-ram um texto deapresentao dasua teoria para osleitores de lnguainglesa (The So-ciology of Crical
Capacity). Nele, apalavra Cit foi tra-duzida por Worldeno por City, o queindica que o desejodos autores quese privilegie o sen-do em detrimentoda traduo literal.O mesmo se podedizer da traduoalem, cuja opofoi Polise no Stadt,o equivalente diretoda palavra Cidade.Em terceiro lugar,por m, existe umadenio da palavraCidadela, dada pelodicionrio Aurlio,que bem se coadu-na com o signica-do (quer dizer como esprito, e nocom a letra) do queos autores propemcom o conceito: lu-
gar de onde se podeestabelecer umadefesa. Cidadela tambm denida
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sua idendade ao longo das mlplas situaes, fazendo subsisr atributos que
resistem corrupo do tempo. Como o prprio Boltanski aponta,
(...) ns consideramos, com efeito, de um lado, que a crca s ganha sen-do pela relao com a ordem que ela pe em crise, mas tambm, de
outro, que os disposivos que asseguram alguma coisa como a manuten-
o de uma ordem no ganham todo o seu sendo seno se se v que
eles esto apoiados sob a ameaa constante, embora [de modo] desigual
segundo as pocas e as sociedades, que representa a possibilidade da cr-
ca. (p. 92-93)
As Instuies, endades pblicas capazes de produzir um discurso epidco,
so, pelo autor, denidas como orientadas na direo da construo da realida-de por intermdio, notadamente, de operaes de qualicao de seres pes-
soas e objetos e de denio de formatos de prova (p. 13). Nesse sendo, e
retomando uma disno de Castoriadis, a Instuio o que confere realidade
ao mundo, ao passo que o mundo o que permite que essa realidade seja cri-
cada. A realidade o reino das Instuies, onde os elementos, por meio de
provas, so qualicados e tm seus valores relavos denidos. O mundo, lugar
do plano de imanncia e do devir, o que escapa realidade e o que permite
a ocorrncia do procedimento crco, o qual faz usufruto, em geral em regime
metapragmco, quer dizer, no prco e reexivo, do desnvel existente entre
realidade (mundana) e norma (instucional). No mundo, no h seno provas
de fora; na realidade, o que Boltanski chamou em outras obras de provas de
grandeza, a saber: provas cuja eccia depende da mediao de um critrio, de
uma medida, em geral engendradas pelo suporte instucional.
s Instuies, Boltanski associa os rituais. pela ritualizao das prcas ins-
tucionais que, como diz o autor, a realidade se encontra por a conrmada
como sendo no apenas o que ela , mas, indissociavelmente, o que ela deve
ser para ser o que ela e, por conseguinte, como no pode ser diferente do
que (p. 127). O momento do ritual, em suma, aquele por meio do qual oestado de coisas e as representaes simblicas encontram-se sob o estado de
anidade ontolgica.
Se o terceiro segmento dedicado s Instuies, o quarto desnado s ra-
zes da crca. E aqui, novamente, o socilogo da crca ajuda o socilogo cr-
co. O erte com a semnca no deixa de lado por completo a importncia da
pragmca. As Instuies, essas instncias de conrmao (p. 151), mesmo
detendo relava estabilidade no nvel semnco, connuam dependentes, para
a sua existncia durvel, de aplicaes concretas (i.e., porta-vozes, portanto en-dades corpreas). Ora, se isso verdade, essas jamais cam completamente a
salvo, exceto nos momentos de efervescncia coleva, dos desnveis existentes
no Houaiss comoqualquer centro oureduto que congregaos pardrios mais
fervorosos de umacausa, de uma dou-trina etc. ou, ain-da, como situaofortemente defen-siva, de predomnioe isolamento, sobconnuo ataque,duas denies bemajustadas s propo-sies de Boltanski eThvenot. A palavraCidadela, portanto,
no apenas compre-ende dentro dela apalavra cidade (cit-tadela incorpora apalavra ci), bemcomo a ela confe-re uma ideia extra,que a de fortaleza.Como leitor de Bol-tanski e Thvenot,quando se pensa emCit, deve se pensarmenos na Cidade
anga e no que,pelo logos, alcana-se o conhecimentodo justo ou do injus-to, e mais em umafortaleza moral combase na qual se po-dem assentar suaspretenses de jus-a e pleitear por umreconhecimento delegimidade de umareivindicao.
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entre o seu dever ser e o que elas efevamente so. Da a contradio intrn-
seca, a que Boltanski chama de contradio hermenuca. Essa contradio
expressa nos seguintes termos: a Instuio o que performa a realidade de
sendo (porque nela ns cremos e disso necessitamos) e, ao mesmo tempo,
abre espao para a crca (porque a sabemos ccional e, por vezes, opressiva).
Isso porque a Instuio, em um contexto secular e crco como o nosso, Oci-
dental, abre espao para que se interrogue seu fundamento lmo (dado que
nenhum valor mais absoluto) e, nesse movimento, abre igualmente espao
para o quesonamento do inevitvel desnvel, por vezes intolervel, existente
entre o ideal normavo sobre o qual ela se funda e a realidade concreta a que
se aplicam tais ideais.
Voltamos aqui ao raciocnio bem prximo problemca apresentada no argode 1984, sobre a Denncia Pblica, em que o Boltanski analisava os casos em
que as reivindicaes conseguiam se de-singularizar, que dizer, sair do caso par-
cular e obter xito ao englobar um grande nmero endades (parculares ou
colevas) na causapleiteada. Assim era a estrutura do argumento: uma vez esse
processo bem sucedido, a reivindicao era passvel de apreciao sociolgica,
visto que a reivindicao representaria, de fato, uma causa coleva. Caso contr-
rio, o denunciante era reduzido sua parcularidade, portanto caso de estudo
para a psicologia ou para a psiquiatria, posto que seu senso de normalidade era
posto em jogo. O raciocnio para a contradio hermenuca das Instuies ,portanto, o mesmo, j que toda Instuio , em lma anlise, a expresso de
um valor (uma causa) maior:
() saber se os porta-vozes que permitem a Instuio de se exprimir tra-
duzem bem a vontade desse ser sem corpo ou no fazem seno, sob a
aparncia de lhe emprestar a sua voz, impor sua prpria vontade como de-
sejo escondido de sasfazer seus desejos egostas, seus seres corpreos e,
por conseguinte, interessados e situados, como todos ns somos. (p.133)
seguindo a deteco dessa vulnerabilidade que, em seguida, Boltanski chega temca picamente crca da violncia instucional, que at ento fora evi-
tada com veemncia pelos socilogos da crca. Pois se no falso dizer que a
Instuio capaz de realidade conferir um sendo, por outro lado, bem
verdade que esse sendo guarda em si uma violncia, tanto no que se refere
sua emergncia quanto no que tange sua manuteno. O autor explcito a
esse respeito:
() a violncia semnca, operada na textura da linguagem com a nali-
dade de nela xar os usos e nela estabilizar as referncias no sucientepara realizar a conformao das condutas, de modo que preciso sempre,
ou quase, associ-la a uma violncia sica ou, ao menos, sua ameaa
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para estabilizar as interpretaes e, com isso, afastar o risco da dis-
puta aberta. (p.144)
Luc Boltanski, chega, enm, ao problema da dominao. Antes, contudo, con-vm retomar uma breve discusso a respeito das provas (preuves). Elaborado
em obras anteriores, trata-se de um conceito inspirado em Bruno Latour (1984),
cujo objevo denir os momentos em que o estado de coisas deixa de ter
a sua congurao advinda da congurao roneira dos objetos ou das dis-
posies habituais dos corpos e torna-se objeto de reavaliao ou racao;
em outros termos, trata-se do momento em que, mediante o desajuste entre
estado de coisas e representaes simblicas, o valor das endades situadas
colocado prova. A prova escolar, a prova esporva ou o pleito eleitoral seriam
momentos de vericao exemplares, com base nos quais o valor diferencialdas endades envolvidas em uma situao denido. Delas, das provas, resul-
tam vereditos com base nos quais se dene a hierarquia de uma sociedade, pois
a parr delas que emergem o bom aluno, o mau cidado, o atleta olmpico,
etc. A parr desse conceito genrico, Boltanski faz, na presente obra, subdivi-
ses. Mais precisamente na parte dedicada disno entre trs gneros de
prova (p. 156-166), Boltanski faz a disno entre prova de verdade, prova de
realidade e prova existencial. A primeira, Boltanski associa s instncias de
conrmao dotadas de uma funo semnca que, como vimos, exercida
pelas Instuies. As provas de realidade, Boltanski as vincula quelas que ser-vem como substrato das crcas reformistas. Enm, as provas existenciais atu-
ariam no interior das crcas radicais, na medida em que expressam um estado
singular e vivido, no instucionalizado, que visa sua expresso, independente
da totalidade das relaes vigentes. O exemplo dado por Boltanski refere-se ao
caso do sofrimento de um homossexual. Em um primeiro momento, tratar-se-ia
de uma prova existencial. Entretanto, ao longo da histria, os connuos sofri-
mentos referidos a essa condio sofreram um progressivo processo de ins-
tucionalizao que, mediante connuas provas de realidade, entendidas como
agenciamentos que tem por nalidade fundar uma coerncia a parr de ele-mentos dspares, fundou-se uma Instuio (a homofobia, hoje denida em lei
em alguns pases), sobre a qual assentam-se provas de verdade. Assim, enquan-
to as provas de verdade desvelam a realidade em sua completude e coerncia,
a prova de realidade visa aproximao do estado de coisas s representaes
simblicas a que eles deveriam estar ajustados; enm, as provas existenciais
fazem o desvelamento de como, na verdade, a realidade no compreende e
reconhece, nela mesma, todas as expresses singulares no mundo. Assim, ape-
nas os dois primeiros pos de prova estariam umbilicalmente reenviados s e
assentados sobre Instuies.
Voltemos, ento, ao problema da contradio hermenuca. Como vimos, as
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Instuies tm por funo conferir s situaes de prova uma estabilidade se-
mnca; no entanto, em razo de usos e efeitos pragmcos, jamais deixam de
abrir espao para crcas.
Aps vincular a Instuio a uma contradio endgena, ao menos do ponto de
vista conceitual, Boltanski desemboca, no segmento cinco de seu livro, em uma
discusso sobre as diferentes possibilidades de denio de regimes polcos,
segundo o espao que eles acordam ou no ao procedimento crco.
E , em resposta a essa questo, que Boltanski chega ao problema da dominao.
Se, de um lado, a instuio , ao mesmo tempo, o que congura o sendo da
realidade e abre possibilidade da crca, como ento pensar e denir a noo de
dominao? Ou tudo dominao (como parecia, por vezes, o mundo expressopela sociologia crca) ou tudo jusa (como parecia estar presente nas lo-
soas polcas dos tericos da jusa). Como escapar contradio intrnseca
a dimenso semnca da ordem instucional, sem cair em nenhuma das duas
ciladas? Eis que novamente entra o papel basilar da crca. Entendida como um
processo, e no por uma qualidade substanva, a dominao ganha contornos
em tudo aquilo que visa migar e limitar o espao para a crca. Dominao, nos
termos de Boltanski, no o processo em que a violncia simblica se encontra
ausente; trata-se, antes, da situao em que a realidade ntegra, no dcl e
capaz de alastrar-se a ponto de abafar o mundo e a perncia da crca. Na ca
do autor, a dominao ocorre quando a realidade (instncia dotada de atributos
construdos por meio de disposivos e de representaes simblicas) se sobre-
pe ao mundo (o lugar do devir, o plano de imanncia deleuziano), congurando
uma situao na qual a fora das relaes de poder se superpe mulplicidade
das relaes mundanas. Assim aponta Boltanski: um efeito de dominao pode
ser ento caracterizado por sua capacidade de restringir, em propores mais ou
menos signicavas, o campo da crca ou, o que na prca d no mesmo, lhe
obliterar todo acesso realidade (p. 187).
Boltanski, ento, retoma o que j havia sido desenvolvido emRendre la realitinceptable (2008) e diferencia a dominao simples da dominao complexa.
Cada forma de dominao corresponde a um modo de reprimir (refouler) a con-
tradio hermenuca. Antes de tudo, porm, o autor diferencia a dominao
dos casos em que h opresso, a saber, situaes limites nas quais as pessoas
se acham privadas, em razo de fora sica, de liberdades elementares. Feita a
diferenciao, Boltanski nos aponta o modo de dominao simples. Trata-se, so-
bretudo, das situaes em que as juscaes ociaisno se realizam adequa-
damente nas provas de verdade e as crcas cam presas no estado de ociosas.
Embora possveis, as crcas no se de-singularizam, pois no possuem meiosde ir alm das experincias quodianas e vividas, portanto de se tornarem p-
blicas. As juscaes, por sua vez, no parecem fugir ao regime do faz-de-
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conta, ou seja, pretextos discursivos sem nenhum grau de autencidade veri-
cada pelo estado de coisas. As pessoas, embora detentoras de uma lucidez nte-
gra e de uma capacidade crca operante, caem permanentemente no regime
de impotncia.
Mas em oposio a esse modo de dominao, que Boltanski nos fala da do-
minao picamente moderna, das sociedades capitalistas, a que chama de do-
minao complexa ou gerencial (gesonnaire). Por meio dela, o autor enfaza
a transitoriedade e a reestruturao permanente dos critrios com base nos
quais os indivduos e objetos so avaliados, dando a sua verso para a ques-
to da intensicao e da exibilizao das (lquidas) relaes contemporneas.
Essa dominao, como aponta o autor, se exerce por intermdio da mudana
(p. 191). Como exemplo paradigmco, Boltanski refere-se ao benchmarking,denido com um disposivo por meio do qual uma empresa ca par do de-
sempenho de certa funo de uma outra, visando ao aprendizado ou melhora
do exerccio da mesma funo. Esse processo de troca de informaes constan-
te produz um arranjo sistemco e hierrquico que gera dados que, por si ss,
tanto descrevem quanto incitam a rpida transformao do estado de coisas.
quase como uma pesquisa de opinio de voto, extremamente segmentada,
refeita a todo momento: o candidato que tende a ajustar seu discurso e seu foco
ali onde ele se encontra mais fraco. No s isso, o candidato que est mais bem
colocado tem ajuda para performar a realidade no sendo em que este tendea gozar vantagens, como maior arrecadao para a campanha, mais facilidade
para construir apoios e alianas pardrias, etc., o que acaba por gerar algo
prximo de uma profecia que se autocumpre. Assim, o benchmarking, para
Boltanski, uma espcie de pequeno disposivo capaz de mudar os critrios de
organizao das empresas e de performar a realidade de modo reiterado. Pois,
se, na dcada de 1980, aponta Boltanski, seguindo os trabalhos de Desroisire,
o estasco era capaz de representar a realidade em termos mais objevos e
externos, com o benchmarkinga relao se inverte.
Os mais bem colocados no ranking, construdos sobre a base dos indica-
dores estascos codicados, visando traduo de todas as diferenas
qualitavas em diferenas quantavas que podem nesse sendo dar lu-
gar comparaes, constuem formas de descrio cujo objevo explcito
e reivindicado o de incitar os atores a mudar seu comportamento de
modo a opmizar sua posio hierrquica no ranking, segundo a lgica
que a da maximizao do indicador. (p. 208)
Concorrncia e a mobilidade no so mais consequncia de um conjunto de
provas cujos critrios podem ser previamente denidos e circunscritos em umespao delimitado (como a prova escolar), mas se tornam um dos critrios
com base nos quais as endades tm seu valor diferencial extrado, o que j se
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encontrava expresso na Cidadela por projetos, de O Novo Esprito do Capitalis-
mo.Muito dessa lma parte do livro parece ecoar a referida obra escrita por
Boltanski em companhia de Eve Chiapello.
Nele, os autores apresentam como, de modo disnto dcada de sessenta,
onde a crca arsca encontrava-se armada e todo vapor, na dcada seguin-
te, o capitalismo incorpora, mediante a crise que nda com o estado de bem
estar social e abre espao para a intromisso ideolgica do neoliberalismo, essa
mesma crca e produz a valorizao de uma mudana connua que pe em
xeque as angas provas com base nas quais a sociedade se estruturava (um dos
exemplos mencionados a escola, que deixa de ter a centralidade que denha
na sociedade para a qual se dirigiram as primeiras crcas de Bourdieu). Ao ca-
pitalismo baseado na gura do diretor e da grande empresa (da qual a IBM oexemplo maior) existente entre as dcadas de trinta e sessenta, ope-se o capi-
talismo das dcadas de setenta noventa, onde entra em vigncia o fenmeno
da globalizao (ou mundializao, como preferem os franceses), caracterizado
sobretudo por seus connuos deslocamentos e por empresas em formato no
mais piramidal, mas recular, cujas tarefas so estabelecidas por objevos espe-
ccos, sempre fragmentados e transitrios. Nesse novo enquadramento, a as-
censo dentro da escala societria no pode mais ser garanda, como o foi mais
fortemente outrora, pelo bom desempenho escolar, medida que o capitalismo
agora vive de uma connua e permanente modicao dos critrios de prova.
dentro dessa lgica que, segundo Boltanski, h um connuo desarmamento
da crca nas sociedades capitalistas e democrcas. Nesse mundo mvel, cada
vez mais fragmentado e individualizado, a crca no consegue se de-singulari-
zar e os sofrimentos tendem a permanecer encerrados nas provas existenciais.
Delas, um caso parcular no consegue se destacar de seu fundo privado e to-
mar uma forma coleva. Por isso, a sensao mais frequente, diferentemente da
dcadas anteriores em que o movimento operrio era forte, o senmento de
impotncia, de ausncia de alternavas. Ademais, frequentemente operada
uma fatalidade do provvel, a qual raca uma inevitabilidade de leis impes-
soais em favor das quais os especialistas (em geral, economistas) atestam a sua
omnipotncia. Com esse excesso de fragmentao e mobilidade, o sofrimento
e as injusas, expressas em termos de provas existenciais, cam, em geral,
em estado privado, no conseguindo exprimir-se em termos mais colevos e
gerais, como era o caso quando a crca social encontrava-se em pleno vigor.
Os economistas neoliberais fazem o que Boltanski chama, mediante a criao
de um neologismo, de mond&ral, cuja funo dar conta dessa fuso entre
realidade e mundo tratada como irrefragvel, encerrada nas leis do mercado,
obliterando as vias de acesso para outras possibilidades de formas de vida, para
outros mundos possveis.
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Seguindo na lgica de um mundo cuja viscosidade parece se dissipar, Boltanski
nos aponta para a existncia de uma elite cada vez mais heterognea e no mais
passvel de ser denida por uma educao similar, dado que os seus membros
agora viriam de lugares e contextos nacionais disntos, logo seria portadora de
uma ideologia educacional bastante dspare e no uniforme. Por essa razo,
um habituscomum no teria como dela ser derivado. Haveria, portanto, o sur-
gimento de nova classe dominante, criada em uma nova cultura internacional
que se calca na economia e no management, mas que nem por isso pode de ser
denida por meio de pertencimentos a um grupo ou a uma ideologia comum.
A essa elite, Boltanski imputa a responsabilidade por performar o mundo tal
qual (p. 216) e, por isso mesmo, de ter uma espcie de relavismo frente s
regras, as quais, embora necessrias, so contornadas, deturpadas quando se
faz preciso. A esses seria permido e assim eles fazem um connuadousufruto transgressor dos formatos de prova, cujo respeito assduo e integral
dos mesmos caria restrito aos outros, quer dizer, aos dominados. Banquei-
ros, industriais, especialistas e homens de estado, malgrado suas diferenas,
teriam por similaridade uma viso secularizada das regras. Nas palavras de Bol-
tanski, pertencer a uma classe dominante , antes de tudo, estar convencido
que pode-se transgredir a letrada regra, sem trair seu esprito. Mas esse gnero
de crena no vem mente seno dos que pensam poder encarnar a regra, pela
boa razo que eles a fazem (p. 219).
Tendo explicitamente (re)incorporado as questes da sociologia crca como,
por exemplo, o problema de um novo po de dominao, a que o autor cha-
ma de gerencial, Boltanski pergunta-se, no lmo e sexto segmento do livro,
de que modo a sociologia pragmca da crca poderia ajudar na elaborao
de um projeto de emancipao. verdade, trata-se a da parte mais, digamos,
improvisada (apenas as treze pginas nais) do livro, em que v-se um terico
debatendo-se publicamente para esboar uma resposta a essa espinhosa ques-
to. Pode-se dizer que no convence, mas no deixa de ser, por isso, menos
louvvel o esforo.
Dois so os caminhos interinamente delineados. Uma das vias possveis seria
um retorno s classes sociais, voltando para a velha questo da preeminncia
metasica dos colevos sobre os parculares; a outra seria expressar de modo
aberto a contradio hermenuca intrnseca s Instuies, no mais com um
objevo meramente denunciatrio, o que levaria ao mesmo impasse da socio-
logia crca. Ao invs de um projeto negavo, essa insistncia na contradio
teria, por escopo, a abertura para outras alternavas de mundos possveis, de
modo a manter ntegro e duradouro o imperavo da crca. Esta lma sen-
do a via por meio da qual possvel recongurar, ao menos potencialmente, a
prpria realidade e abrir, portanto, a possibilidade para novos agenciamentos
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(objevos) e conguraes (discursivas). Ao saber sociolgico caberia a postura
de alimentar essa atude, a qual visaria ao incenvo do que Boltanski chama
de eterno caminho da revolta. No, no se trata a de incenvar a anarquia
generalizada, mas do encorajamento democrazao da relao secularizada
com as regras, visando ao connuo e salutar desequilbrio entre o processo de
estabilizao instucional e a dinmica de desestabilizao da crca. Sem a l-
ma, a sim, teramos, enm, a dominao tomando conta de tudo (p. 236).
Bom, fecha-se o livro e ca a mensagem do autor referente ao papel basilar
que a sociologia teria para com a crca social e vice-versa. Consagrando seu
leitmov, com Boltanski podemos dizer que enquanto houver crca estaremos
seguros de que a realidade (do ser) no se sobrepor ao mundo (do devir) e,
mais do que isso, que as relaes de poder no sero capazes de subsumir as re-laes de sendo. verdade, parece pouco para quem esperava os contornos de
uma nova teoria crca da sociedade contempornea. Mas, apesar dos pesares,
trata-se de um grande desao, aberto pela lucidez de um terico que, ao lon-
go de sua trajetria, no se deixou reduzir s brigas instucionais da academia
francesa e soube, em sua maturidade, ter a modsa de retornar s temcas
fundamentais que, ao menos para os pragmastas e interacionistas mais ferre-
nhos que pararam em De la juscaon, esqueceram a funo polca do saber
sociolgico. Anal, como diz a epgrafe do seu livro, que faz meno ao, por ns
brasileiros, h muito conhecido, Diadorim de Guimares Rosa: uma coisa pridias arranjadas, outra lidar com pas de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-
tantas misrias. Tanta gente d susto de saber e nenhum se sossega: todos nas-
cendo, crescendo, se casando, querendo colocao de emprego, comida, sade,
riqueza, ser importante, querendo chuva e negcios bons.
1. Referncias
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