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Enfoques – Revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia PPGSA/IFCS/UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Reitor:Aloísio Teixeira Vice-Reitora: Sylvia Vargas

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Enfoques – Revista Eletrônica

dos alunos do Programa de

Pós-Graduação em Sociologia

e Antropologia

PPGSA/IFCS/UFRJ

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Reitor:Aloísio Teixeira

Vice-Reitora: Sylvia Vargas

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CFCH/IFCS

Diretor: Franklin Trein

Vice-Diretor: Aquiles Guimarães

PPGSA – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Coordenadora: Bila Sorj

Vice-Coordenadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

ENFOQUES – ONLINE

Editores:

Ana Paula da Silva

Andréa Barbosa Osório

Renata de Sá Gonçalves

Rodrigo Rosistolato

Conselho Editorial

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Prof. Dr. Amir Geiger (UERJ) Prof. Dr. André Botelho (UFRJ) Profª Drª. Bila Sorj (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Carlos Antonio da Costa Ribeito (UERJ) Profª Drª. Elisa Pereira Reis (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Fernando Ponte de Sousa (UFSC) Prof. Dr. Frederico Guilherme Neiburg (Museu Nacional/UFRJ) Profª Drª. Giralda Seyferth (Museu Nacional/UFRJ) Profª Drª. Gláucia Villas Boas (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. José Maurício Domingues (IUPERJ/UCAM) Prof. Dr. José Reginaldo Gonçalves (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. José Ricardo Pereira Ramalho (IFCS/CFCH/UFRJ) Profª Drª. Laura Moutinho (PUC-RIO) Profª Drª. Laura Segatto (ICS/DAN/UNB) Prof. Dr. Leopoldo Waizbort (USP) Prof. Dr. Luiz Antonio Machado da Silva (IFCS/CFCH/UFRJ) Profª Drª. Lygia Sigaud (Museu Nacional) Prof. Dr. Marcílio Dias dos Santos (CFH/GCSO/UFSC) Prof. Dr. Marco Aurélio Santana (UNI-RIO) Prof.ªDrª. Maria Lígia de Oliveira Barbosa (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Michel Misse (IFCS/CFCH/UFRJ) Profª Drª. Mirian Goldenberg (IFCS/CFCH/UFRJ) Profª Drª. Patrícia Birman (UERJ) Prof. Dr. Paulo Tumolo (UFSC) Profª Drª. Patrícia de Farias (Universidade Cândido Mendes) Prof. Dr. Paulo Henrique Freire Vieira (CFH/PPGSP/UFSC) Prof. Dr. Peter Fry (IFCS/CFCH/UFRJ) Prof. Dr. Renan Springer de Freitas (UFMG) Prof. Dr. Roque de Barros Laraia (ICS/DAN/UNB) Prof. Dr. Ruben George Oliven (UFRGS) Profª Drª. Vera Teles (USP) Comissão de Publicação

Angela Moreira Leite Andréa Lucia da Silva de Paiva André Filipe dos Santos Brígida Renoldi Daniel Reis Denise Pereira Eliska Altmann Fernando Antonio da Costa Vieira Gabriela Honorato Karla Régnier Maria Izabel dos Santos Garcia Mariane C. Koslinski Nilton Santos Natalia Gaspar Roberta Guimarães Simone Toji Enfoques On-Line – revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro é uma publicação coordenada e editada pelos

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alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Organização:

Ana Paula da Silva

Andréa Barbosa Osório

Andréa Lucia da Silva de Paiva

Renata de Sá Gonçalves

Rodrigo Rosistolato

Revisão de textos: Malu Resende

(Catalogação na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio de Janeiro)

____________________

ENFOQUES on-line: Revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação

em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências

Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. - V.5, n.1

(mar.2006). - Rio de Janeiro: PPGSA, 2006.

Irregular.

ISSN 1678-1813

1. Sociologia. 2. Antropologia. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de

Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e

Antropologia.

Endereço para correspondência e assinatura:

Mailling address subscriptions

Revista dos alunos do PPGSA – Comissão Editorial

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Largo de São Francisco, nº 1, sala 420.

Centro – Rio de Janeiro – RJ – 20051-070

e-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................6 COTIDIANO OPERÁRIO & COMPLEXO FABRIL: fábrica com vila operária em Paracambi-RJ ...............................................................................................................7 REAÇÃO AO ESTIGMA: O rap em São Paulo............................................................21 HOMENS LIVRES, VIDAS SECAS: violência e latifúndio num romance de Graciliano Ramos ........................................................................................................................46 PODER POLÍTICO E A TEORIA DA TROCA EM PIERRE CLASTRES......................73 CONFERÊNCIA DE ABERTURA da VII Jornada dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia ...................................................................95 PALESTRA proferida por João de Pina Cabral nos Encontros com a Sociologia e a Antropologia..............................................................................................................104

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APRESENTAÇÃO

Este é o quinto número da Revista Enfoques on line – Revista dos alunos do

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal

do Rio de Janeiro. A revista é apresentada em novo formato, mais prático e dinâmico,

para que alunos e profissionais possam ter acesso aos artigos com rapidez e

facilidade.

Nesta edição estamos publicando quatro artigos. Todos são frutos de pesquisas

recentes e contribuem para a intensificação do debate acerca de temas clássicos,

como trabalho, política, poder, violência e juventude.

Paulo Fernandes Keller procura compreender a vida cotidiana do operariado em um

“complexo fábrica com vila operária”. O autor trata de alguns aspectos da cultura

operária, principalmente religião e educação.

Marco Aurélio Paz Tella investiga um fenômeno cultural contemporâneo: o rap. O

autor aborda a consolidação do rap em São Paulo e propõe que esse movimento é

uma resistência a processos de estigmatização, menosprezo, discriminação e racismo,

além de uma forma de reconstrução do passado das populações negras visando ao

combate da “invisibilidade social”.

André Luis Campanha Demarchi discute a trajetória dos homens livres em meio à

violência e à miséria do Brasil rural. Para tal intento, analisa o romance Vidas Secas,

de Graciliano Ramos. O autor destaca no livro o agrarismo e o latifúndio como grandes

empecilhos para a consolidação dos processos de modernização no Brasil.

Adriana Cristina Repelevicz de Albernaz debate sobre o poder político e a teoria da

troca em Pierre Clastres. A autora apresenta a tese da disjunção entre poder político e

chefia política defendida pelo autor e procura compará-la à teoria da

troca/reciprocidade em Lévi-Strauss. Busca, fundamentalmente, as diferenças

existentes nas abordagens dos dois autores.

Além dos artigos, a revista Enfoques on line apresenta uma novidade. Estamos

publicando, na íntegra, a Conferência de Abertura da VII Jornada dos Alunos do

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, realizada pela professora

Drª. Mirian Goldenberg. Nela, a autora fala sobre os bastidores da vida acadêmica de

forma clara e objetiva. A conferência é um convite à reflexão sobre os aspectos mais

humanos da vida intelectual. Por fim, publicamos um resumo da palestra proferida por

João de Pina Cabral nos Encontros com a Sociologia e a Antropologia, promovidos

pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia.

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COTIDIANO OPERÁRIO & COMPLEXO FABRIL: fábrica com vila operária em

Paracambi-RJ

Paulo Fernandes Keller1

RESUMO

Este artigo analisa de forma sucinta a vida cotidiana do operariado têxtil das fábricas

de tecidos da Cidade de Paracambi/RJ, entre o final do século XIX e a primeira

metade do século XX, no momento de “auge” do modelo “fábrica com vila operária”

nessa particular região fluminense.

O artigo busca compreender a vida cotidiana do operariado têxtil dentro do “complexo

fábrica com vila operária” - entendido como um complexo fabril e sociocultural,

desvendando aspectos (particularmente religião e educação) da cultura operária.

Sem dissimular a relação de dominação implícita nesta situação fabril, o trabalho

mostra de que forma tais relações se efetivaram no cotidiano operário. Mas alertando

para o fato de que se as vilas operárias eram propriedade dos industriais, elas também

eram o “lar dos operários”.

ABSTRACT

This paper analyzes briefly the everyday life of the textile workmen of the cloth

factories in the town of Paracambi, State of Rio de Janeiro, during the period of time

between the end of the XIX century and the first half of the XX century, a moment

which was the “height” of the “factories having workmen village” in this particular area

of the State of Rio de Janeiro.

The paper search comprehend the daily life activities of the textile workmen within the

“factory – workmen village complex” - here understood as a factory and socio-cultural

complex - revealing features (mainly religion and education) of the workmen’s culture.

Without disguising the implicit domination relationship in this factory situation, the

paper shows the way in which such relationships became real in daily life and calls the

attention to the fact that although the workmen’s villages were properties of the industry

owners, they were also the “workmen’s homes”.

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Este trabalho pretende desenvolver de forma sucinta algumas questões referentes à

vida cotidiana do operariado nas fábricas de tecidos da cidade de Paracambi,2 estado

do Rio de Janeiro, no período de auge das fábricas com vila operária3 nessa particular

região fluminense, entre o último quartel do século XIX e a primeira metade do século

XX.

Busco investigar de que forma as partes orgânicas da cotidianidade se cruzam,

conforme sugere Heller4, no contexto das fábricas com vila operária no sentido de

desvendar aspectos até então não aprofundados do mundo operário. Além da

heterogeneidade da vida cotidiana, Heller afirma que a sua hierarquia não é eterna e

imutável, mas se modifica de modo específico em função das diferentes estruturas

econômico-sociais (1992:18).

Neste sentido, a cotidianidade nas fábricas com vila operária contém uma ordem

hierárquica específica e determinada historicamente pelo modo de produção

capitalista, no qual a organização do trabalho ocupa posição central na

heterogeneidade deste particular mundo do trabalho5. A hierarquia da fábrica se

sobrepõe e organiza o mundo da vila operária, dando o sentido de sistema ao conjunto

das relações entre o mundo da fábrica (espaço de produção) e o mundo da vila

operária (espaço de reprodução). Os diversos aspectos do mundo operário que

formam a heterogeneidade das fábricas com vila operária - produção, religiosidade,

formas de consumo, lazer, educação - mantêm entre si formas de intercâmbio,

combinando-se hierarquicamente a partir de suas relações com a estrutura de poder

vigente que tem como sua figura central o diretor da fábrica. Leite Lopes, que estudou w xzy|{~}������ ��}��"���d�����H� ��� �"� � ���-�3� ��� ���1�A���V� ����������� �������j�������r�����$�r�3���p�$���3�����������$�����E�-�f������ ¡���j��¢����V�1�£���¤�¥�¦�§£¨ ©�ªA«�¬-­E®-©�¯�°�°²±u«�­�³�«�¨ ­E°�´�¨ µVª�­A¨ ªA°f¯�«j¶�ª1®�¬r·�®-¸ ¹a°�©�¯�«²µ�«j«�©�³"°-©�ª�­A®�º�®-»¼®�µ½¯�·�®�µ3¾�¿�À�­Á¨ ³"®�µ½¯�«Âª1«|³�¨ ¯�°�µ$¹Ã«j°ÄuÅ$ÆVÇ ÈQÉËÊ+Ç Ì�Æ�ÍAÇ Æ�ÉÏÎ�Ð�ÑuÒ�Ì$Ì�É�Ó�ÍEÒ�Ì"Ô3É Õ�Ö�×ÏØ�×dÙ Ú�Û$Ü�Ù Ý Þ�Ü�ß�ÜdÜ¡à�áâ×�ÜËÛ"Ú-ã~×�áEÛ�Ý Ü-Ùi×ÏÜdÜ�Õ�ä1Ý å|Ü\×�ØVäAÜ�æ"ç�Ú�èâ×�á1áEÚ|ß�Ý à�á�Ý Ü¡Ö�×épê�ë"ê�ë"ì�í�ë"ì�î�íVï�ð�ñ�ò ó|êfô-õ¼ö�÷røDö�ùgúuê�û�ü ê�ýKë$ì�î�ï�ñ�ó�ì�ýþñ�õQê�üHî�ï1ô�ÿ-ðEê�����ìjó�ô��Aê|ïâìjô|î�ïVðEôÂê�í�ë$ì�õ3ñrî�ü ó�ê�ó�ô�íì���ô|ð��ð�ü ê�í��� ������ ��������������������! "�$#&%(' *)�����+���,�!�.-� ���#�' /����.' ���0�1�2���435���76"��8:9�' 9$' ���4���,��8.' %(�����0�"���;��6�#;' <�= >�?�@.AB= C0D�EFHG"F < D G�I&J�K = L7= >�D�> FNM�F.J�M$I&O�P = C0DQ>�D�R P&O$S�I = C�D�RT> F A F C�= > J R"UWVXAZY�D�< L F @"A FQF @�C J @"A I D [ R FQF L\D�A5= ]$= >�D�> F D G�F @�D�R^�_,`ba�`�c�d&e�f�g;h i0`�cja�kTlBk.i.h a�m�c�n,`H`$o"l5h p�`rq�`�g�h `Hsut�o�a$h a�`�n,v$^�kQw�m�x5kbc.kQi.w"`�_,`Nsyg&m�z{o�|~}���g&`�c.h ���(o�a�^�cZl(g;h `$�k�o�i.k"g(g;m�^�c�^�`�c�`�l5h �$h a�`�a�k�c{h*o"a$^�cBlBg;h `$h c{o�m:d�h*o"`���a�` a���i0`�a"`�a�k2�"������|� ���$�&�+����� ��+�0�����"�:�"���&���"�(� �0���{�.���¡ $� ¢ �������1�&���;� �7�������,����£�� ¤¦¥�§"¨(©"ª�«"¬B¤¦«�­�® ¯±°*­0ª2§�«2¨(«�²*¥�³0´�«.¬7§�«7§�ª�µ7° ¶�¥�³0©�ª0·¸0¹�ºr»;¼�½�¾;¿ À0Á�¸NÂ$Ã1Ä Å�Æ�Ç�È�É(Ê�Ë*Ì�Í�ÎÏÊ�Ë É(Ð�ѱÍ�Î�Ð"Ì�Ñ�ÐrÈ�ÅHÅ"Ð�Æ�ÅÒÑÓÉ�Í�Ç�Í�Ô*Õ�Í�Ê"È�É5Ð�ÅbÖ�Í�É5Í×Í�Ô Ø"ÎÙÊ�ÍÒÐ�Å�Ú±Ð"É;Í¡Ê�ÍrÖ�É(È�Ê�Æ�Û0Ü�ÈÝßÞ"à�á�áuâ;Þ"ã�ä0åçæ�è é�ê2ë0ì$í�êBî(ï î(ð1ñ�òóé ô�õ�ö�÷�ø ù$ú�û�ü�ý�þ"õjÿ �Tú��7ü�������û5ú��;ú�û(ü ÿ���û�� ü�ý������ ��õ�ô0ø ü�ø �2ÿ��!ÿ�õ���ø ö�ü"ý�þ�õ��{ÿ���ö��Óû���������������������! "#���$��%�&�'��)(������+*�,�'� �-���. ����'��� /���10��32 ��0��40�'-(5�6��0���%87��3����(5 9�9��: ���!��'3���; /���!'��6 ���<0��4�8���6=��������40�'>�?�@ A�B8C�?�D-?�E�F!>?GA3H8@ A�D�D�?�I�J5?�>K�>�L/A�? I-J5A�F!>6I�E�A�F�I+M<N�IGJ�I�E�F�I;N�?.O�L DPF�A3N�A >?�J�>$I�N�Q�B8R�I3N�I3H�A�J5L/F!A�@ SUT�V�W WYX$T�W�Z8[]\^�_�`�a b c�d3e�d.f+d�b g�d.f�h5i�d+c j�h�_�j�d�_�g6kl^ m c�d3_�hni�klh5o�a d�p)^4e�h.j�h#_+q6a b grh3e�d3j�a ^�c�c�d�c _�d�c�c�d3j�^�c�hni+^#k9g�b j�s�a ^�kte�d4i�^�e�klu�he�dve�h�pGb _�^�w�u�h5[yxzb/_�{�^�c|^�_�`�a/b c�d�c}e�h ~����1�5� �+������������� ~���~��������/� ���������$����� � ����/� � �+��� � �����������#���8��� ������ �#���G��� ������� �����<���8�r�3�#�+���#�r ¡�)���G¢#���������3��������G£��#��¤P�5� ����¥��;�#� �-�����8¦��n���������5�l�4������� �#�l�������§���4¢#�P� � ���6�-�¨�©Gª�©�«G¬ ­P¬�¨�¨8¬�®�©#¯�°�±³²#´�µ©¶²�ª�©�¨�©�·�¸�²�¹ ¸�º ¯)©�·�»²Gª�¬ ·�²�¼8½�²Gª�©¶¾�²�¯G­�¹ ©�¿�²À¸�©�µt·�²�»¬ ·�°!Á�³°Ã ÄPÅ#ÆlÅyÇ�ÈÊÉrÅËÅ#Ì�É�Í5ÆlÅ�Î ÏÑÐ�Ò/Ó�ÔÖÕ8×�Ø�Ò/Ó�Ò/Ô�Ù�ÔÛÚ�Ü3Ý�Þàß�áÔ�Ù�Ó�ÝÖÞ Ý�Ó�Ò/Ó�Ô+Ü3â�Ý�Ø!Ý�á6×�ß�ã�Ù�Ý�Ô�ä�ÝåÒ æ8æ+×yæ+×�çèÐUé�á�Ò/×�æ�Ô�æÊê]Ý�Õ+Ø!×�æUÜë+ì�í�î�ï�ð�ñ�ò�ì�ó�ìåô�ñ�ï3ë�ïnî�ï�õ!ï�î6ï4ö�ìn÷�ì ø�ù!ú�û�ü�ýåú4þnÿ�� ��ø�� ������� ��ýný���� ���5ý��6ù���ø�� � �nü�ú4ø�ý�ÿ�ÿ�ý�ÿ4ù�� �]ý�ÿ ü�ú���ù����� ü���ü�ú�������! #"�$&%('�)*��$�+�,�-�. /"0)21�"435.�1�"6/��%�.�1�. "�-�"#78"9��$�+�"�-�. :�"�;���91��<%�$="�>�"�?�@��9'61�"A3. 1�"! #$=.�3 "�1�"BC��)*?�"0:�'�$&'�)!'!�1�'�)D/ "�-�)��DBE"F"�%�.�3 . 1�"�1�'G)D��/.�"�?�). )H%�'�IF"�%�. :�"�1�"�BE�F.�-J%('D$K/,�IL>�. �L'G"� NM0$=.�O�.�/ "�;��� P5Q�R�R�SUTVQ�W�XYZ [ \�]�^�_=` abcadfehg�`�i bAd�j�k�_�]�_=` b�lLadfe8dnm�e8b4\�d�_=e8boj�b�_�pq` aHm�i bf_sr�kA_tk�u�` evk4r�k�w�j�x0p&` a dcy�d4zfm�b�iGj�_(k0g�b�i k�a�k{bad�k�_t| }�dCwd#^�_(kCdLa d#y�wDk0y�pK`�e8k�y�p&d0l~^Hb�w�k�` b � w�kLkJe�m�e8b ������������� kJy�p5_tkLb�_(kfj�_td�r�m�| }�d�r�bF\�d�_=|b�r�kGpK_tb#^�b�i���d�kLd���t��� ���� �{���{���=���f�J� ���f�����������J���A�����t���������  �¡#¢�£�¤�¥C¦�¤0£¨§�¥=¤�©�¦�¢�£*¦�ª�«�¢ ¥K¢�©�¬¤0£*ª�©�­�¢�¥=©�¤�£2­�¤�©�­(®6©�®�£!¥&¢H§Jª ¯L¢0£°�±�²³�´Jµ�¶�· ¸�²º¹�»�¼�½�µ�¸¾½�¸H²º¿�±�À�±0ÁFÂ�½�¶ ·¸0²Ã!¼ÅÄ�¼0²�±ºÆ�»�½�°�¼�ÁF±�½�µ�¼�ÇG³�¼�È=¼Å¼c³�±�È=¶�¸�°�¶ ÉD¼�ÊË0¸Ì³#±�È=ÁC¼�½�±�·±A²�±�½�°�¸Å¼Í=Î�Ï Ð�Ñ Ò�ÓLÔ�Õ�Ö ×�Ð�×�Î&Ø0Ù�ÎÚ�Ð�ÍVÐ�ÑÒ�ÓLÎ�Õ�Û�ÍKÎ8ÐFÍ5Î5Ú�Í=Ó�×�Ô�ÑÒ0ÓL×�ÐFÜtÓ0Í=ÑÐC×�ÎFÛ=ÍKÐ�Ý�Ð�Ï Þ�ÓFÎGÐ8Ú�Í=Ó�×�Ô�Ñ Ò�ÓLß ÐDÚ#Ö�Û�Ð�Ï Ö Ù�Û�Ð à5á�â�â�ãUä�å�å�æ ç

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um caso particular de fábrica com vila operária - o sistema paulista – no estado de

Pernambuco, demonstra a centralização na estrutura de relações subordinando as

demais atividades:

A denominação de “sistema Paulista” (...) aponta para uma estrutura de relações

que se estabelece, no caso da fábrica e da vila operária de Paulista, envolvendo

sob um mesmo controle centralizado a produção fabril, o domínio da moradia e

da cidade, a produção agrícola da retaguarda territorial da fábrica e a circulação

mercantil dos bens de consumo dos operários sob a forma de uma feira

administrada. Além disso, esta estrutura de relações sociais contém a promoção

e administração de atividades médicas, religiosas, recreativas, e também uma

numerosa milícia particular garantindo o “governo local de fato” da companhia

sobre estas múltiplas atividades (1988:21).

Minha investigação concentra-se na forma como o operariado viveu - cotidianamente -

sua experiência6 nessa situação fabril. Se a classe operária é definida pela própria

classe (autofazer) quando esta vive sua experiência, só podemos entender a formação

social e cultural do operariado têxtil da cidade de Paracambi a partir da compreensão

de sua experiência histórica vivida no complexo fábrica com vila operária. Assim,

procuro investigar o modo de vida e as formas culturais7 do operariado têxtil desde a

sua inserção no complexo fábrica com vila operária.

Ele consiste:

1º . Em um complexo fabril: como uma forma particular de produção capitalista na qual

as vilas operárias surgem como solução para o problema habitacional da força de

trabalho,8 assim como uma forma de o patronato industrial exercer controle sobre a

classe trabalhadora;

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2º. Em um complexo sociocultural:9 como uma constelação de traços socioculturais

presentes nas fábricas com vila operária os quais se configuram nos aparatos

institucionais10 e se intercambiam como expressão das relações sociais que se

estabelecem entre os membros da classe operária e entre a classe operária e o

patronato fabril, seja no espaço da fábrica (organização da produção), seja no espaço

da moradia (vila operária). Estando este último subordinado ao espaço da fábrica na

medida em que esta é a proprietária das casas dos operários, assim como dos

aparatos institucionais. Dessa forma, o operário têxtil, além de ser empregado, é

simultaneamente inquilino do imóvel que pertence à fábrica e usuário da rede de

serviços11 (armazém, armarinho, posto de saúde, farmácia, escola, clube social,

capela) que funciona dentro do complexo fabril, transformando o que seria uma

simples relação patrão/empregado em um relacionamento complexo.

A característica conceitual está na fluidez das relações,12 seja entre os agentes

sociais, com o operariado têxtil e o patronato fabril formando uma relação

simultaneamente de trabalho e pessoal (assim como familiar), seja entre os espaços

fabril e doméstico, na medida em que os agentes sociais circulam entre a fábrica e a

vila de acordo com a função específica de cada um deles na ordem hierárquica. Isto

sem esquecer do intercâmbio das relações que fluem entre cada aparato institucional13

que integra a rede de serviços do espaço doméstico, não havendo um limite rígido

entre ambos.

Com efeito, as fábricas com vila operária tornam-se, a partir dessa perspectiva, um

complexo socioeconômico, cultural e político: a fábrica moderna com o trabalho

assalariado e sua “servidão burguesa”; o paternalismo industrial com formas

específicas de educação (a escola operária), de religiosidade (as capelas com o(a)

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padroeiro(a) dos operários e da fábrica), de consumo (o armarinho, o armazém etc.),

de lazer (o clube social, o futebol de várzea).14

Sobre a fluidez das relações sociais do complexo, um operário da Fábrica de Tecidos

Maria Cândida relata como foi feito seu pedido de uma casa na vila:

Eram feitos diretamente com o gerente. Era um pedido verbal. Você chegava

perto dele e falava e ele atendia. Naquele tempo, não existia também

“carrancismo”, ele era um gerente que atendia você, tanto faz dentro da fábrica

como no pátio da fábrica, como aqui fora, em qualquer lugar que você

encontrasse com ele, ele atendia.

A vida cotidiana do operariado têxtil das fábricas de tecidos da cidade de Paracambi

(RJ) deve ser abordada através do complexo fábrica com vila operária tanto nas suas

formas específicas, em termos de educação nas escolas operárias15, de consumo nos

armazéns e nos armarinhos etc., quanto investigando de que forma o operariado se

apropriou desses aparatos institucionais estabelecendo neles relações sociais próprias

dotadas de sentido.

A cotidianidade não constitui parte estanque do complexo fábrica com vila operária,

mas é uma abordagem que desvenda e aprofunda a própria noção de complexo.

Assim, volto a afirmar, a cotidianidade está inter-relacionada com a noção de

complexo, não sendo possível falar em complexo fabril sem investigar o cotidiano

operário e seus múltiplos significados.

As fábricas de tecidos de algodão implantadas na cidade de Paracambi, desde a

segunda metade do século XIX (primeiro a Companhia Têxtil Brasil Industrial, segundo

a Companhia Tecelagem Santa Luisa, que logo depois se transformou na Fábrica de

Tecidos Maria Cândida) podem ser enquadradas no padrão das fábricas com vila

operária. O período de implantação inicia-se no último quartel do século XIX, com o

momento de auge16 desse tipo de complexo ocorrendo na primeira metade do século

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XX, até que se apresentam os primeiros sinais de declínio17 desse sistema fabril nas

décadas de 1960/70.

A fábrica de tecidos de algodão da Companhia Têxtil Brasil Industrial foi estabelecida

inicialmente em 1870 na Fazenda Ribeirão dos Macacos junto à estação do mesmo

nome da estrada de Ferro D. Pedro II, cujos estatutos foram aprovados pelo Decreto

n.4552, de 23 de julho de 1870.18 Segundo Suzigan, a Brasil Industrial foi a primeira

grande (e até o final da década de 1880 a maior) fábrica de tecidos de algodão do

Brasil (1986:134). A Companhia Tecelagem Santa Luísa foi instalada no povoado da

Cascata, Freguesia de S. Pedro e S. Paulo, Município de Itaguahy, em 1891. O

objetivo da Santa Luísa era a produção de sacos de aniagem sem costura.19 A Fábrica

de Tecidos Maria Cândida foi constituída em 03 e 04 de outubro de 1924, tendo seu

estabelecimento fabril no lugar denominado Cascata, em Paracamby, Município de

Itaguahy, onde anteriormente funcionou a Tecelagem Santa Luísa, incorporando os

bens e parte da estrutura produtiva da antiga fábrica de juta.20

O surgimento dessas fábricas de tecidos se deu em meio a uma economia e a uma

cultura predominantemente agrária, constituindo um fator preponderante para a

formação de um complexo fabril que pudesse atender às necessidades básicas dos

operários, bem como de organização de um aparato institucional de “amparo” e de

enquadramento “físico e moral” dos trabalhadores,21 isto quer dizer que, com o

desenvolvimento de ambas as fábricas houve a necessidade de construir as

chamadas vilas operárias (conhecidas também como plano inglês), bem como as

redes de serviços coletivos que pudessem dar suporte aos operários e a seus

familiares, criando uma forma relativamente autônoma de organização social. No

processo de implantação da Cia. Brasil Industrial esta necessidade foi sentida pelos

diretores ao comentarem a escassez de operários e a disputa das empresas pelo

limitado pessoal disponível:

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(...) quando o operário, como em nosso caso acontece, tem de ser afastado de

sua moradia, para ir trabalhar em paragens destituídas de recursos, sendo que

sobremaneira se agravam as dificuldades.22

A vila operária, com suas casas e sua rede de serviços (capela, escola, armazém,

clube social, farmácia, cemitério, etc.), paradoxalmente, apresentava benefícios

sociais para o operariado têxtil ao mesmo tempo em que era constituída de elementos

legitimadores da dominação do patronato fabril. Contudo, os operários têxteis se

apropriaram destes aparatos institucionais, atribuindo significado e valor às relações e

ao modo de vida que foi construído cotidianamente no interior das capelas, nas salas

de aula das escolas e nas diversas formas de lazer. Comentando a influência do

Metodismo na Classe Operária Inglesa, Thompson (1988b:278) afirma que:

Nenhuma ideologia é inteiramente absorvida por seus partidários: na prática, ela

multiplica-se de diversas maneiras, sob o julgamento dos impulsos e da

experiência. Desta forma a comunidade da classe operária introduziu nas

capelas seus próprios valores de solidariedade, ajuda mútua e boa vizinhança.

No complexo fabril da Companhia Brasil Industrial, o mais importante na região, a

capela católica23 é dedicada à Nossa Senhora da Conceição construída em

homenagem à padroeira da fábrica e dos seus operários. Estes se apropriarem do

catolicismo participando ativamente da construção da capela, estabelecendo relações

sociais em seu interior e atribuindo significado aos atos religiosos ali oficializados,

instituindo de forma autônoma seu padroeiro, São Jorge, no final da primeira metade

do século XX.

Segundo relato dos primeiros diretores da antiga Companhia, a capela foi construída

no final do século XIX por meio de uma iniciativa conjunta:

Tendo o gerente da fábrica, empregados e operários, promovido uma

subscripção entre si e procurado donativos para construção de uma pequena

capella, a Directoria concedeu a área do terreno necessária, para tão justo fim;

no dia 1º. de novembro foi lançada a pedra fundamental e inaugurada à 6 de

Maio de 1880, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição. 24

No complexo fabril da Companhia Brasil Industrial havia, no mês de dezembro,

festejos anuais dedicados à santa padroeira com o patrocínio da Companhia Têxtil e

com grande participação do operariado local. Este folguedo era o maior da localidade

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que reunia toda a comunidade operária assim como a diretoria da fábrica e seus

convidados. A capela de Nossa Senhora da Conceição foi a primeira igreja local no

meio operário têxtil onde se realizavam os serviços religiosos quando não existia uma

Igreja Matriz na região. A presença católica no meio operário fabril tem marcas

profundas de continuidade com o antigo regime de economia patriarcal, muito bem

enfatizado pelo sociólogo francês Roger Bastide (1975:10):

O capitalista moderno manda rezar missas em sua fábrica do mesmo modo que

o senhor dos tempos coloniais mandava celebrá-las na capela de seu engenho.

O padre eleva a hóstia no meio das engrenagens, das bielas, das grandes rodas

que pararam por um momento, renovando entre operários brasileiros, italianos e

alemães, o gesto antigo do capelão oficiando entre senhores brancos e escravos

negros, perpetuando, em pleno século XX, o catolicismo familial do século XVII

(...).

O Dr. Junqueira25, um dos diretores da fábrica Brasil Industrial no período de auge do

sistema, era comunicado de todos os detalhes da organização da festa da padroeira;

segundo sua antiga secretária, ele desejava que fosse feito:

(...) tudo pela fábrica, não tinha, não gostava que saísse lista pro operário

assinar, era tudo pela companhia, Ele achava que a padroeira era Nossa

Senhora, que achava que tinha por obrigação fazer uma festa pra ela, isso ouvia

muito ele dizer, não queria lista. A única coisa que ele pedia era uma prenda,

que ele achava que o operário devia dar um voto pra Nossa Senhora, então dar

uma prenda que quiser.

A prática religiosa do operariado têxtil e do patronato fabril e suas relações no

complexo fábrica com vila operária assumem um aspecto ambíguo e contraditório, na

medida em que tanto legitima a ordem estabelecida quanto são apropriadas pelos

operários tornando-se uma expressão de seus sentimentos e de sua cultura. Elas não

podem, desta forma, ser compreendidas como um simples instrumento de imposição

unilateral do patronato. Quando visitei a capela de N.S. da Conceição, durante meu

trabalho de campo no inicio da década de 1990, descobri a presença de uma imagem

sacra26 de São Jorge, que ficava no interior da Capela perto da escada que conduzia

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ao coral, com uma placa com a seguinte inscrição: Homenagem ao São Jorge,

padroeiro dos operários da Cia. Brasil Industrial, organizada em primeiro de maio de

1945, por Jayme Barboza. Em entrevistas com antigos operários foi-me relatado que a

imagem tinha sido adquirida por um grupo de operários por intermédio da liderança de

Jayme Barboza, conhecido por Seu Dengo, organizador da festa anual do primeiro de

maio, quando se promovia uma procissão dedicada ao popular santo católico. Uma

antiga operária relatou que:

(...) ele fazia a missa dos operários, no dia primeiro de maio, tinha missa na

capela, depois saía à procissão, de manhã cedo,na parte da manhã, depois ele

fazia sorteio, antes dava um santinho a cada um, numerado, e arranjava

prêmios, e quando acabava aquela procissão, aí ia fazer sorteios, a gente ficava

com os santinhos pra ver quem tinha tirado, muita gente tirou muita coisa lá,(...).

Deve ser ressaltado que, apesar de existir uma padroeira oficial dos operários da

fábrica Brasil Industrial, a devoção por eles dedicada a São Jorge no dia Primeiro de

maio foi uma forma peculiar de apropriação da religiosidade católica, assumindo papel

ativo na expressão do seu sentimento e da sua cultura. Se a Festa Anual de Nossa

Senhora da Conceição tinha o patrocínio do patronato fabril e o apoio do operariado

local, a Festa do Primeiro de Maio, com a devoção a São Jorge, nasceu no meio

operariado sem interferência do patronato, através da cooperação e da liderança do

operário Jayme Barboza, um dos primeiros membros da Liga Católica local. É

interessante o fato de que somente em 1955 tenha ocorrido a instituição, pelo Papa

Pio XII, de São José Operário como protetor dos trabalhadores universais, com a

finalidade de dar um sentido cristão à festa do trabalho.27

Sobre o intercâmbio entre o elemento religioso e o educacional no complexo, o relato

de Dona Francisca Silva, uma antiga operária da Companhia Brasil Industrial,

esclarece a participação das crianças da escola operária na procissão católica:

Ah, quando eu era pequena eu via a procissão, via aquela criançada toda com

aquelas bandeirinhas, com aquelas faixinhas, cantando; Ah meu Deus, que

vontade! Mas era só a criançada do colégio só que saía na procissão. Aí quando

se deu oportunidade eu já entrei na fábrica para poder estudar nesse colégio que

pertencia à fábrica, né? Logo naquele ano que eu entrei teve a festa de São

Sebastião e foi até a festa de São Sebastião, não sei o que que houve que não

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fizeram a festa de São Sebastião em janeiro. Quando foi no fim de fevereiro que

fizeram a festa de São Sebastião, e eu já estava trabalhando, já saí na

procissão, logo no começo, nas missas eu comecei a cantar nas missas (...)28

A procissão católica exercia uma atração sobre a menina operária, levando-a,

simultaneamente, para a escola operária e para os rituais católicos, e

conseqüentemente para o trabalho fabril. Como afirma Thompson, a classe operária

também vive sua experiência como sentimento. Outro aspecto do intercâmbio entre os

elementos religioso e educacional era o fato de as professoras das escolas operárias

serem simultaneamente catequistas das capelas das fábricas.

Apesar da forma sucinta, o presente trabalho procurou mostrar aspectos29 da cultura

operária, particularmente do operariado têxtil nas fábricas com vila operária na cidade

de Paracambi. Sem dissimular, contudo, a relação de dominação implícita nesta

situação fabril, que tende a se perpetuar por ser parte fundamental da cultura local. O

trabalho buscou evidenciar de que forma tais relações ambíguas e contraditórias se

efetivaram no cotidiano dos operários, refletindo sobre a conexão e o intercâmbio

entre os aparatos institucionais e para o somatório dos sistemas distintos da

experiência - formas particulares da cultura da fábrica.

O paternalismo industrial presente nas fábricas com vila operária nessa região teve

por base tanto o oferecimento das casas e sua extensa rede de serviços quanto o

sentimento de pertença a uma “grande família” que as relações paternais vigentes

proporcionavam. Mas é preciso enfatizar, os operários têxteis apropriaram-se dos

aparatos institucionais (elementos do complexo fabril) neles colocando seus próprios

sentimentos. Se as fábricas com vila operária eram propriedade dos industriais têxteis,

as vilas eram o lar dos operários. Diferente da Grande Família Paternal, o sentido de

Lar dos Operários implica um espaço onde o operariado e suas famílias construíram,

cotidianamente, relações de amizade e de ajuda mútua, que não se confundiam com o

paternalismo fabril.

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ANEXOS Foto 1 – Complexo Fabril

Foto 2 - Fábrica

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Foto 3 – Trabalhadores

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REAÇÃO AO ESTIGMA: O rap em São Paulo

Marco Aurélio Paz Tella30

RESUMO

O texto aborda um desdobramento da minha pesquisa de mestrado, na qual

desenvolvi um estudo sobre grupos de rap em São Paulo. Procuro analisar como o rap

responde e enfrenta questões como “invisibilidade social”, estereótipos,

comportamentos discriminatórios, revertendo estigmas e produzindo elementos para a

construção de auto-estima positiva nos jovens afro-descendentes que moram em

distritos periféricos. Por meio de práticas culturais, produção musical e no contato de

bandas de rap com o público, o rap torna-se um instrumento para enfrentar as

diversas atitudes cotidianas de estigmatização, menosprezo, discriminação, racismo.

O artigo também analisa o papel do rap na reinvenção do passado para combater a

invisibilidade social.

PALAVRAS-CHAVE: Estigma, Racismo, Identidade, Desigualdade, Jovem.

ABSTRACT

This article informs about my post-graduation research, that was a study about rap

bands in São Paulo. I want to analyze how rap answers and faces questions like

“social invisibility”, stereotypes, discriminated behaviour, modifying stigma and

producing elements for the construction of positive self-respect for black young people

that lives in the peripherycal districts. Through cultural activities, music production and

the contact of rap band with the public, the rap becomes an instrument to face various

quotidian postures of social stigma, despise, discrimination, racism. The article also

analyzes the rap function in reinvention of the past to combat social invisibility.

KEYWORDS: Stigma, Racism, Identity, Unequally, Young People.

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1. O RAP: REAÇÃO AO ESTIGMA

Em entrevista concedida ao documentarista João Salles, em “Notícias de uma guerra

particular”31, o chefe do departamento da Polícia Civil da Baixada Fluminense,

delegado Hélio Luz,32 apresentando as várias facetas e os laços do crime organizado

e do tráfico de drogas em nossa sociedade, destacou a “invisibilidade social” como um

problema da sociedade contemporânea a ser enfrentado. A invisibilidade social não é

determinante, muito pelo contrário. Ela está articulada com outros fatores que indicam

a complexidade da violência nas grandes metrópoles.

A invisibilidade social, segundo Todorov (1996), atinge em cheio a autoconfiança, a

auto-imagem das pessoas. A criança e o jovem, ao crescerem em ambientes

desfavoráveis à sua socialização, podem comprometer seu amadurecimento e sua

formação enquanto sujeito. Ser foco de discriminação devido à origem social ou à cor

da pele e alvo de representações sociais e étnicas carregadas de estigmas inviabiliza

a construção de uma auto-imagem positiva da pessoa e do grupo ao qual pertence. A

criança e o jovem poderão perceber que eles e as pessoas que estão ao seu redor

são desvalorizados, desqualificados, menosprezados. A invisibilidade social, enquanto

problema pessoal que passa a ser social, “é ainda mais dolorosa do que a solidão

física, que pode ser resolvida ou amenizada por diversos meios; é viver entre os

outros sem deles receber qualquer manifestação” (Todorov, 1996:70).

De 20 anos para cá, a parcela da juventude negra que mora em distritos periféricos da

cidade de São Paulo vem escutando, consumindo e produzindo um estilo musical

chamado rap.33 O marco zero para o desenvolvimento dessa nova cultura urbana de

rua em São Paulo foi a estação do metrô de São Bento, reconhecida pelos grupos e

pelas pessoas pertencentes ao hip-hop em todo o Brasil como o berço da cultura hip-

hop nacional. No início de 1989, mais precisamente no dia 25 de janeiro, aniversário

da cidade de São Paulo, foi criado o Movimento Hip-Hop Organizado, o “MH2O”. A

festa de lançamento ocorreu num show em homenagem à cidade de São Paulo, no

Parque Ibirapuera, no qual vários grupos de rap se apresentaram. Idealizado por

Milton Sales,34 o objetivo do MH2O era difundir as artes do hip-hop para os bairros

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periféricos de São Paulo. A partir de sua criação, foram realizados inúmeros shows

nas ruas e em praças públicas, intensificando o aparecimento de diversos grupos de

rap que se espalharam pela metrópole.

Meu interesse na pesquisa de mestrado35 foi investigar o rap (rhythm and poetry) na

cidade de São Paulo, estudando três grupos: Thaíde e DJ Hum, Racionais MC’s e o

DMN. Pesquisei, a partir da análise da biografia de cada grupo e de seus membros,

como eles utilizam a metrópole como inspiração e cenário para a produção deste estilo

musical. O objetivo foi verificar de que forma realizam uma apropriação do passado da

população negra e de símbolos internacionalizados da cultura negra. Também

observei o potencial que esses grupos de rap possuem para construir, em um contexto

de globalização cultural, referências de identificação – referências estas utilizadas por

uma parcela da juventude afro-descendente36 da periferia da cidade de São Paulo que

utiliza o rap como um instrumento de contestação e de construção de novas

representações sobre a realidade social.

Percebi que o rap é utilizado como marca e instrumento por uma parcela de jovens

que mora em bairros periféricos, que se identifica com elementos culturais,

internacionalizados ou não, e é composta por afro-descendentes. A idéia central da

pesquisa foi a de que o fenômeno rap, por meio das letras e das práticas culturais, é

capaz de produzir uma leitura crítica da sociedade. Através da denúncia dos

problemas étnicos e sociais e da apropriação seletiva do passado (Halbwachs, 1990;

Pollak, 1989 e 1992) da população afro-descendente, o rap proporciona uma gama de

referenciais para essa juventude, que passa a se constituir, portanto, como grupo

diferenciado. Tais indicações questionam o imaginário social de nossa sociedade,

refletindo-se em novas identificações alicerçadas em três pilares: a cor da pele, a

origem social e o local onde moram. Isto se deve às raízes culturais do rap e também

ao fato de que seus primeiros adeptos pertenceram aos segmentos menos favorecidos

da sociedade.

Explorando as informações colhidas, apresento neste texto um deslocamento na

abordagem das letras de rap dos grupos citados acima, destacando temas que

classifiquei em duas variáveis: auto-imagem e autoconfiança. Estas variáveis estão

nas explicações sobre os problemas enfrentados no dia-a-dia pelos jovens nas

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periferias das grandes cidades, como o desconforto da desqualificação e da

invisibilidade social, sendo focos da abordagem a cor da pele, a origem social e o local

onde moram. Para isso, utilizo as entrevistas feitas com alguns integrantes37 desses

grupos e as análises de algumas letras dos três grupos de rap, Thaíde e DJ Hum,

Racionais MC’s e DMN38. A hipótese que levanto, ao abordar os temas acima citados,

é a de que os grupos de rap pretendem, em primeiro lugar, denunciar e, em segundo,

expor à sociedade os problemas sociais e étnicos específicos de uma parcela da

juventude afro-descendente que habita os bairros mais afastados e degradados da

cidade de São Paulo. Este estilo musical caracteriza-se por ser produzido e consumido

por jovens que moram nas regiões onde as tensões sociais e econômicas são

latentes, fato que se tornou base e ponto de partida para a produção artística dos

grupos de rap.

A seleção dos três grupos foi o resultado de observações realizadas em shows,

eventos e ouvindo os seus raps — não foi, entretanto, uma preferência pessoal,

apesar de admirá-los bastante. Os três grupos eleitos contribuíram, cada um ao seu

estilo, na formação de um discurso crítico, propositivo, que tem como característica

geral a valorização do orgulho da população afro-descendente e da área onde vivem,

denunciando os problemas que afetam essa população e dando ênfase a esse

segmento da periferia da cidade de São Paulo. A seguir, passo a fazer uma breve

apresentação de cada grupo.

O grupo Racionais MC’s é formado por Ice Blue, Mano Brown, Edi Rock e KL Jay —

os dois primeiros da zona sul e os dois últimos da zona norte da cidade de São Paulo.

Desde o início da formação do grupo, na segunda metade da década de 1980,

impressiona pelo conteúdo de suas músicas que retratam, através das letras, o

cotidiano das pessoas que moram na periferia de São Paulo, principalmente da zona

sul da cidade, e denunciam a discriminação contra o jovem afro-descendente e a

miséria. Para o grupo, a miséria está diretamente ligada à violência e ao crime. Ao

mesmo tempo, as músicas relatam histórias, como a riqueza cultural da população

afro-descendente. "O nosso ideal é contar histórias negras que não são contadas nas

escolas”. Mano Brown continua:

Rap é o maior veículo de comunicação. Ele faz o que nenhum outro

veículo faz: conta a verdade como ela é, e aponta soluções. É

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direcionado ao povo negro, apesar de muitos brancos ouvirem. Mas

em sua essência é uma música negra, para negros. Diante do

contexto político, é a nossa história, é a nossa segunda escola,

porque a escola conta a história parcial e nós contamos a real.

Além de ser uma ferramenta de manifestação, o rap tem a característica de ser

propositivo, ou seja, contar histórias não contadas. O grupo passa a ter um papel

importante junto a uma parcela da juventude afro-descendente que mora na periferia.

Afirmam-se como porta-vozes:

É ainda Mano Brown que nos diz:

Eu acho que nós falamos as coisas (nas letras das músicas) que o

pessoal tem vontade de falar, mas não tem oportunidade de

expressar. Tipo, nós somos os porta-vozes do nosso público, que

sofre exatamente as coisas que a gente fala nas letras. Acreditamos

que o nosso público se identifica com a verdade das letras das

músicas. O crédito pelo trabalho vem naturalmente.

Algumas questões podem ser destacadas na entrevista de Mano Brown, como: a

intenção de atingir, em primeiro lugar, o grupo classificado por ele como “negro”;

considerar-se porta-voz ou veículo do público – o afro-descendente – que deseja

alcançar com suas letras. Estas duas questões legitimam-se porque, segundo Mano

Brown, suas explicações sobre os problemas sociais e étnicos da periferia são as

“verdadeiras”, desdenhando e criticando as representações sociais estigmatizadoras,

como também as razões sociológicas e antropológicas.39

Thaíde e DJ Hum, considerados os rappers pioneiros da cultura hip-hop, gravaram os

dois primeiros raps na histórica coletânea “Hip-Hop Cultura de Rua”, produzida pela

gravadora Eldorado em 1988. Os raps compostos e lançados por Thaíde e DJ Hum

foram “Corpo Fechado” e “Homens da Lei”. A coletânea foi o primeiro lançamento em

disco do gênero.40AA dupla tem sua origem no berço da cultura hip-hop nacional: São

Bento, a estação do metrô.

O produtor Milton Sales foi a pessoa que investiu na formação política dos grupos,

inclusive de Thaíde e DJ Hum. Foi no disco “Hip-Hop na Veia”, de 1990, que

apareceram músicas com conteúdos mais politizados. Foi também nesse mesmo ano

que o Racionais MC’s colocou no mercado o disco “Holocausto Urbano”. DJ Hum

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reconhece ter havido, naquele momento, uma influência dos ideais do líder afro-

americano Malcom X e dos grupos Racionais MC’s e DMN, os quais são precursores

de um perfil do rap que tem como objetivo a apropriação do passado da população

afro-descendente. Uma característica da dupla, muitas vezes criticada por alguns que

fazem parte do meio hip-hop, é o discurso moderado. Apesar de ser um discurso

marcado pela crítica social e pelo preconceito racial, Thaíde diz: “[somos] crucificados

por não sermos mais radicais”. Por outro lado, a dupla polemiza com a cultura hip-hop,

principalmente criticando os grupos e o público por não exaltarem o grande herói da

população afro-descendente no Brasil: Zumbi dos Palmares. Na letra do rap “Afro-

Brasileiro”,41 lançado em um single que leva o mesmo nome, o rapper critica o

movimento por usar em camisetas, bonés, buttons apenas inscrições de líderes norte-

americanos, como Martin Luther King, Malcolm X, deixando de lado o herói Zumbi.

Thaíde fala da importância da população afro-descendente: “[é preciso] saber sobre

história mundial, mas se deveria dar mais atenção aos líderes que tivemos aqui, como

Zumbi. Todos falam nos black panthers, em black power, mas da história do país

parece que só se lembram da escravidão”.42

Essas questões marcam diferenças com parte da cultura hip-hop, como o emprego da

expressão “afro-brasileiro”, usada para identificar aquele que tem orgulho da sua cor e

dessa cultura. Expressão diferente, por exemplo, é utilizada pelos Racionais: “Preto

Tipo A”. No entanto, essas variações não abalam a admiração que todo o movimento

– e fora do hip-hop também – possui pela dupla Thaíde e DJ Hum. Em seus shows,

antes de cantar “Afro-Brasileiro”, a dupla pede para o público levantar o braço, com a

mão fechada, e repetir frases contra a violência; pede também para que todos

busquem informação e que repitam que são e que têm orgulho de ser “afro-

brasileiros”.

O grupo DMN foi formado em 1988, em Itaquera, zona leste de São Paulo. Os

integrantes da primeira formação do grupo são: Luís Fernando (L.F.), Slick e Max. Em

1989, Xis (Cohab 2,43 Itaquera) foi convidado a integrar o grupo e, em 1990, Ely

(Cohab 2) completava o grupo. É essa a formação que L.F. considera como a original

do grupo. Na segunda metade da década de 1990, Markão II passa a fazer parte do

grupo e Xis sai do DMN para seguir carreira solo. O primeiro rap gravado pelo grupo

pertence à coletânea “Consciência Black II”, de 1990.

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O DMN foi o primeiro grupo de rap que introduziu na cultura hip-hop, por meio das

letras, as palavras e as expressões traduzidas do movimento e da cultura afro-

americanos, polemizando com ideais defendidos pelos diversos setores do Movimento

Negro brasileiro. De acordo com Xis,44 um dos vocalistas do grupo, o uso da palavra

“preto” no lugar de “negro” é proposital:

Antes de o filme Malcom X entrar em cartaz, a gente teve acesso ao

livro. Vimos que na tradução havia muita contradição entre as duas

palavras, preto e negro. Havia frases que ficavam fora de contexto.

Daí pensamos: branco é branco, vermelho é vermelho, amarelo é

amarelo. Por que negro? Raça só existe uma, que é a raça humana.

Então a palavra negro nos deixa no meio-termo, não cria uma

identidade e abre espaço para mulato, chocolate, moreno. Sabíamos

que íamos comprar uma briga boa com muita gente. Mesmo assim,

decidimos falar mais a palavra preto.

Neste discurso, Xis dá um exemplo de incorporação seletiva da herança cultural,

assumindo possíveis riscos de polemizar com grupos do Movimento Negro no Brasil. A

construção da consciência étnica, segundo L.F.,45 teve um momento crucial: a leitura

do livro que conta a trajetória do líder islâmico norte-americano Malcom X. E é L.F.

que nos informa:

Quando eu li o livro do Malcom X, eu odiava branco, demorou muito, é

muita informação, você fica com muita coisa na cabeça. Sabe, é que

nem aquela coisa quando Malcom conheceu o Islã, é muita coisa, e

você fala: “onde eu tava que eu não conseguia ver aquelas coisas?”.

Outra influência que ele lembra, no início da carreira como rapper e também do grupo

DMN, foi a leitura de uma revista, chamada Realidade, em que os integrantes do DMN

conheceram o grupo político norte-americano black panthers.46 A partir da leitura

dessa reportagem, sempre que eles sobem ao palco, erguem o braço direito com

quatro dedos abertos e saúdam a platéia dizendo “4P”, “Poder Para o Povo Preto”.

Segundo o idealizador, fundador, vocalista e “líder” do DMN, L.F., uma característica

marcante do grupo, desde o seu nascimento, é o discurso contestador.

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Ao ouvir e ao analisar os raps dos grupos apresentados acima, pude observar a

performance e a habilidade verbal dos MC's (Mestre de Cerimônia). Por meio da

oralidade, o MC conta memórias individuais, mas também memórias do grupo, do

bairro, das dificuldades dos jovens afro-descendentes que moram na periferia. Os

MC's abordam fatos do dia-a-dia – além de outros do passado – possibilitando a

identificação de parcela da população afro-descendente da periferia enquanto grupo.

O rap “Fim de Semana no Parque”,47 do grupo Racionais MC’s, é um exemplo disto.

No entanto, percebi que o discurso tornou-se mais enfático quando o tema étnico foi

abordado. As narrativas chamam mais a atenção pela forma e pelo conteúdo. Já na

introdução do disco do Racionais MC’s, Edi Rock apresenta o novo trabalho:

1993, fudidamente voltando. Racionais, usando e abusando de nossa

liberdade de expressão, um dos poucos direitos que o jovem negro

ainda tem nesse país. Você está entrando no mundo da informação,

autoconhecimento, denúncia e diversão. Este é o Raio X do Brasil.

Seja bem-vindo!

Antes de iniciar a primeira música, “Fim de Semana no Parque”, Mano Brown dedica o

disco “a toda a comunidade pobre da zona sul”. Sendo assim, as músicas têm

endereço certo. Elas assinalam limites geográficos, relacionando esse espaço à sua

condição social. Depois da dedicatória, “Fim de Semana no Parque” é tocada. São

sete minutos e dez segundos narrando mais um fim de semana típico de janeiro. Mano

Brown retrata, a partir de um simples dia de verão, as contradições vivenciadas no

cotidiano da periferia, o abismo social existente entre as regiões mais centrais da

cidade e ela. Brown expõe os diferentes estilos de vida dos play-boys e dos jovens

dessa parte mais pobre de São Paulo. Descreve as áreas privadas, às quais o jovem

da periferia não tem acesso, como clubes, piscinas, quadras, cinemas. Logo após,

relata como são as ruas da zona sul:

Chegou fim-de-semana, todos querem diversão / Só alegria, nós

estamos no verão / Mês de janeiro, S.P., zona sul / Todo mundo à

vontade, calor, céu azul / (...) Um, dois, três, carros na calçada, / feliz

e agitada toda a playboyzada. As garagens abertas eles lavam os /

carros, desperdiçam a água, eles fazem a festa. / (...) De

verde/fluorescente, queimada, sorridente, / a mesma vaca loira

circulando como sempre. / Roda a banca dos playboys do Guarujá. /

(...) Me dê quatro bons motivos pra não ser / olha o meu povo nas

favelas e vai perceber. / Daqui eu vejo uma caranga do ano, / toda µ&¶ ·�¸�¹Cº�»�¼�½�¾a¿2½�À ¾+»�º1À Á;¿�»�º�»=Â1¾�Ã>¹»�Ä�Å2·³¸1À »�ÆJº�»AÇ�¾�¸Á2À È É)Ä�È ¸1Ê�Ë�¸�º»�½�ÌÎÍ2Ï>ÏLÐ�Ä�¿�»LÌ9ÑLÒ�ÓAÌ�À È}¿;Ô�¹À ¸�ÁSÕ�½�Ê�º1À º¸�ÁÖ

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equipada e um tiozinho guiando. / Com seus filhos ao lado, estão indo

ao parque. / Eufóricos brinquedos eletrônicos. Automaticamente / eu

imagino a molecada lá da área como é que tá. / Provavelmente

correndo pra lá e pra cá, jogando bola, / descalços nas ruas de terras.

Brincam do jeito que dá. / Gritando palavrão é o jeito deles. / Eles não

têm vídeo-game, às vezes nem televisão. / Mas todos eles têm o São

Cosme e um São Damião, a única proteção...

A intenção do rapper é tornar visíveis problemas sociais que afetam a população

pobre dos bairros periféricos da cidade de São Paulo, particularmente parte da

juventude afro-descendente dessas regiões. A partir da análise das letras dos grupos

acima citados, o rap caminha numa estrada onde há uma bifurcação: numa direção, o

objetivo do discurso do rapper é atingir os jovens afro-descendentes dos bairros

periféricos, chamando-os para a conscientização dos problemas sociais e étnicos

apresentados por eles através de suas letras; na outra direção, o rapper busca

reconhecimento e legitimação junto à sociedade:

Tornar visível uma situação particular, torná-la, como se diz, “digna de

atenção” pressupõe a ação de grupos socialmente interessados em

produzirem uma nova categoria de percepção do mundo social, a fim

de agirem sobre o mesmo (Lenoir, 1998:84).

Em ambas as direções, os grupos de rap tentam legitimar-se como veículos de

“expressões públicas”, tornando públicos os problemas cotidianos que atingem

pessoas e grupos moradores da periferia, transformando-os em problemas sociais

(Lenoir, 1998). O rap é o veículo desse processo e os rappers, os seus legítimos

porta-vozes, em função da sua origem social, por serem afro-descendentes e por

morarem na periferia da cidade. Certamente, se algum grupo de rap não apresentar no

currículo algum desses itens, sua legitimidade será prontamente questionada.

2. O ESTIGMATIZADO CONSTRUINDO REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Um aspecto importante analisado nas letras é a leitura realizada pelos grupos sobre os

fatos da nossa sociedade, sempre a partir do ponto de vista do estigmatizado, que

tanto pode ser o rapper, como um amigo ou um simples conhecido. Os MC's

vivenciam e exprimem o seu sentimento, mas também o de um segmento da

população que mora na periferia. Por isso, muitas vezes são chamados ou se

autodenominam de porta-vozes da periferia. O rap, como uma das artes da cultura do

hip-hop, organiza práticas e comportamentos sociais com o objetivo de expor e buscar

o reconhecimento público em relação aos problemas sociais que os afligem enquanto

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grupo. A auto-representação positiva da imagem de pessoas e de grupos afro-

descendentes é recuperada pela valorização de temas que são tratados de forma

pejorativa pela sociedade. Os grupos de rap destacam problemas que têm origem nas

representações sociais impostas aos jovens afro-descendentes que moram em bairros

degradados, propondo a inversão dos estigmas referentes a determinadas questões,

operando uma “reclassificação simbólica de gerações socialmente desclassificadas”

(Lenoir, 1998:88). Nas minhas análises, percebo ser evidente o objetivo dos grupos de

reverterem o perverso processo de introjeção de elementos negativos na auto-imagem

do jovem afro-descendente da periferia e de eliminarem estigmas construídos pela

sociedade branca visando “enfraquecê-lo e desarmá-lo” (Elias, 2000:24).

Portanto, apesar dos graves problemas dos bairros periféricos, os três grupos de rap

pesquisados neste trabalho têm como proposta transformar em referências positivas

os estigmas atribuídos aos bairros periféricos e à população neles moradora,

eliminando conotações pejorativas construídas sobre esse grupo:

[...] Venha que hoje é sexta, eu vou chamar os refrigerantes e pra

quem gosta, cerveja/Vamos sentar aqui no chão, colocar o boxe do

lado e ouvir o som do GOG/Mano bem pesado, Câmbio Negro e

Racionais, meu irmão/Afinal, o que é bom tem que ser provado/Tanta

coisa boa e você aí parado, acuado, é por isso que insisto/Sou preto

atrevido gosto e gosto quando me chamam de macumbeiro/Toco

atabaque em rodas de capoeira, e toco direito/Minha cultura primeiro,

o meu orgulho é ser um negro verdadeiro afro-brasileiro/ Sabe quem

eu sou? afro-brasileiro/ me diga quem é (4 vezes)/ Somos

descendentes de Zumbi/ Grande guerreiro.48

A conseqüência da postura transmitida nas letras é o estabelecimento de um conflito

com as construções hegemônicas da representação social em relação aos locais onde

moram e àqueles que freqüentam nos momentos de lazer. Em outras palavras,

estabelece-se o conflito com as classificações estigmatizadas que atingem o seu

grupo social, representações sociais que sempre trataram esses bairros como áreas

onde estão os segmentos perigosos da sociedade, em que a violência e a imoralidade

são as principais formas de interlocução social. Nas análises de letras e de

entrevistas, registra-se que os grupos querem construir outras representações sociais

referentes à sua própria realidade, conforme os interesses ideológicos dos grupos de rap.

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A postura apresentada pelos grupos de rap quanto à mobilização, por meio das suas

letras e dos discursos nos shows, é a de evitar prováveis reflexos sobre os estigmas

impostos a essa fração estigmatizada, como o de “surtir um efeito paralisante nos

grupos” (Elias, 2000:27). Uma das formas usadas pelos rappers é a retaliação do

grupo dominante ou, como sugere Norbert Elias (2000), a contra-estigmatização.

Pode-se verificar isso quando, por exemplo, Mano Brown, na música “Fim de Semana

no Parque”, refere-se ao outro grupo como a “playboyzada”, ou diz “vários estilos,

vagabundas”, ou ainda “queimada sorridente,/a mesma vaca loira circulando como

sempre./Roda a banca dos playboys do Guarujá”. Essa retaliação faz parte da

constituição de fronteiras entre os diferentes grupos da sociedade e tem como objetivo

estabelecer “para si um estilo de vida comum e um conjunto de normas” com “certos

padrões e se orgulham disso” (Elias, 2000:25).49 O que está em jogo é a construção

de elementos de identificação que serão fundamentais no fortalecimento da coesão do

grupo, excluindo características “ruins” atribuídas ao outro grupo (Elias, 2000:22).

Outro aspecto abordado é a identificação com a cultura de origem africana. Uma

estratégia desenvolvida pelos grupos de rap aqui selecionados são as menções feitas

ao passado dessa população que busca a afirmação de uma identidade afro-

descendente através das referências ao passado, às histórias, às memórias (não)

contadas. Analisando as letras dos grupos estudados, verificamos que o rap realiza

uma apropriação original dessa cultura, diferente daquela que, por exemplo, o

Movimento Negro faz. Em parte, essa diferenciação é o resultado da tomada de posse

de um patrimônio histórico e simbólico internacionalizado. Foi estabelecida uma

maneira particular de contar histórias. A história produzida e reproduzida pelo status

quo no dia-a-dia, selecionando e projetando as informações que irão compor

representações sociais estigmatizadoras, irá sofrer resistência, porque outras

memórias são também produzidas em veículos não-oficiais, rememorando fatos do

cotidiano e também inventando acontecimentos do passado, com o objetivo de

fortalecerem tradições históricas.

A função de inventar tradições é ter “um conjunto de práticas, normalmente reguladas

por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica

visam inculcar certos valores e normas de comportamento por meio da repetição, o

que implica automaticamente uma continuação em relação ao passado” (Hobsbawn,

1997:9) A utilização do conceito “invenção das tradições” é pertinente, já que a

proposta dos grupos de rap não é somente uma reconstrução ou um resgate da

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história ou da cultura afro-descendente. Acredito que os grupos analisados realizam

também uma recriação ou uma invenção original dessa cultura na cidade de São

Paulo. Recriar referências do passado tornou-se tarefa central para a reflexão sobre o

presente, a fim de que se construam perspectivas para o futuro:

Controlado pelo corpo e a mente/Sempre toda história, toda a nossa

história falha/A pele mais clara escreveu, julgou da sua forma/Com

suas palavras nos reduziu a nada/Deixaram as marcas, botaram as

mágoas no preto/Que não esquece o passado/Que enxerga o

presente [...].50

Por meio das letras, os rappers inserem esse segmento da população numa noção de

tempo, em que passado, presente e futuro passam a fazer parte das representações

imaginárias desses grupos juvenis. A afirmação de uma identidade cultural afro-

descendente pela recriação do passado possibilita a instrumentalização de parcela

dessa juventude para realizar releituras das relações sociais e étnicas em nossa

sociedade. A elaboração de novos símbolos e de novas referências culturais pode

proporcionar a esse segmento da sociedade a denúncia do projeto ideológico da

democracia racial, presente na formação do imaginário social.

As releituras e as memórias são operações dos acontecimentos e das interpretações

do passado que se quer preservar como fonte de fortalecimento da coesão do grupo.

Segundo Pollak, “a memória integra tentativas mais ou menos de definir e de reforçar

sentimentos de pertencimento e de fronteiras sociais e culturais entre coletividades de

tamanhos diferentes...” (Pollack, 1989:9). Além do recurso da contra-estigmatização, o

fortalecimento e a manutenção da coesão do grupo passa também pela promoção de

um passado comum, destacando-o como “diferença de grande peso, tanto para a

constituição interna de cada grupo quanto para a relação entre eles” (Elias, 2000:39).

Pollak dá continuidade ao seu raciocínio:

Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um

fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da

memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação

fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de

identidade (Pollack: 1992:204).

Ao realizar a ligação entre memória e identidade, o grupo utiliza etapas para a

construção de uma consciência étnica: (i) Sentimento de ter fronteiras físicas ou

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fronteiras de pertencimento ao grupo (coesão); (ii) Há a continuidade no tempo

(memória); (iii) Há o sentimento de coerência, ou seja, os diferentes elementos

constitutivos de um indivíduo são efetivamente unificados (identidade).

Não se importam com a real situação dos pretos, descaracterizados /

Esse é o grande motivo pra se considerar o verdadeiro preto / Isso

não é defeito é simplesmente honra / É necessário conhecer o

passado / Considere-se um verdadeiro preto / Há mais de

quatrocentos anos estamos atrasados / Totalmente mal-informados /

Os nossos livros de história foram embranquecidos / Porque estamos

estudando a verdadeira história / Em que todos conheçam a

verdadeira identidade / E entender o porquê do refrão / Considere-se

um verdadeiro preto!51

A (re)construção “imaginária e a identidade étnica”, a compreensão e a exposição dos

problemas da periferia proporcionam conteúdos para uma interpretação crítica dos

grupos de rap a respeito da sociedade, os quais passam a questionar as referências

estigmatizadas do imaginário social. Conceituo o termo imaginário, utilizando-me de

Castoriadis:

Falamos de imaginário quando queremos falar de alguma coisa

“inventada” – quer se trate de uma invenção “absoluta” (“uma história

imaginada em todas as partes”), ou de algum deslizamento, de um

deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos

de outros significados, de outras significações que não suas

significações “normais” canônicas. Nos dois casos é evidente que o

imaginário se separa do real, que pretende colocar-se em seu lugar

(uma mentira) ou que não pretende fazê-lo (um romance) (Castoriadis,

1982:154).

Fica evidente que tais invenções servem para desqualificar e inferiorizar pessoas de

uma determinada etnia ou camada social. Esta “coisa”, citada por Castoriadis, é

construída e institucionalizada, estabelecendo-se como práticas e comportamentos

invariáveis (Hobsbawn, 1997).

Observando as letras dos grupos escolhidos, percebe-se a influência da cultura afro-

americana, principalmente via videoclipes norte-americanos, veiculados desde o início

da década de 1980. Os rappers realizam uma bricolagem cultural, ou seja, sem um

plano pré-concebido (Levi-Strauss, 1976)) esses grupos de rap promovem

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ressignificações das histórias norte-americanas de protesto social, introduzindo nelas

memórias do cotidiano da população afro-descendente das periferias e das favelas da

cidade de São Paulo.

O reflexo disso é a temática étnico/racial, que começou a receber um tratamento

especial e central por parte desses grupos. Por meio das imagens dos videoclipes, o

rap norte-americano entra definitivamente no consumo de música de uma parcela

significativa de jovens afro-descendentes, levando para eles ícones como Malcom X e

Martin Luther King e referências da cultura afro-americana, como o movimento black

power. É por meio desse material que eles se deparam com gestos, estilos de roupas,

símbolos, temas da resistência internacionalizados. Os jovens afro-descendentes não

entendiam o conteúdo das letras, no entanto, as imagens os seduziram. Os

videoclipes tiveram para eles um papel importante nas suas primeiras construções de

identificação, motivando-os a conhecerem tais símbolos.

O discurso enfático e politizado em relação à etnicidade fez parte, a partir desse

momento, do perfil do rap dos anos 90, e o grupo Nova York Public Enemy – citado

pelos integrantes dos grupos de rap analisados – foi a principal referência para muitos

outros em São Paulo. O reflexo disso foi o interesse de muitos grupos de rap recém-

criados nos estudos, nas discussões e nas leituras sobre aqueles ícones que

apareciam nas cenas dos videoclipes. Em depoimentos, alguns colocam que as cenas

mostradas pelos videoclipes do Public Enemy os incentivaram a saber sobre os

símbolos e os líderes que ali apareciam. Essas referências internacionalizadas fizeram

com que muitos jovens ficassem motivados para conhecer também histórias — não

contadas — das lutas e das manifestações culturais da população afro-descendente

no Brasil: "Foi através dos livros americanos que descobrimos a nossa história. Isto

ajudou o hip-hop pra caramba na sua formação".52

O discurso do rap paulistano ficou mais politizado com a apropriação e a valorização

de elementos da cultura afro-descendente, a qual caracterizou toda a cultura hip-hop

dos anos de 90, e influenciou a produção musical de vários grupos.

3. O PROCESSO DE ESTIGMATIZAÇÃO

Nas letras de rap há uma espécie de orientação, dirigida aos jovens afro-

descendentes, de como reagir e enfrentar atos e comportamentos discriminatórios e

estigmatizadores. Elas resgatam elementos históricos afro-brasileiros e experiências

cotidianas percebidas por esses jovens. A privação social passa a ser entendida e

assumida não apenas aplicada aos indivíduos, mas a um segmento social étnico,

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estereotipado, racial, o qual tem como característica histórica a dominação, a

inferiorização, a exclusão, a hierarquização.

[As] desigualdades econômicas e a injustiça social não afetam apenas

pessoas, assentam sobre lógicas de discriminação ou de segregação

que definem os mais frágeis e os mais vulneráveis em termos culturais

geralmente fáceis de naturalizar (Wieviorkia, 2002:55).

Portanto, torna-se essencial desenvolver uma análise articulando aspectos culturais e

questões sociais. O contrário dessa proposta faz com que a análise fique deficiente. A

categorização da associação dos elementos culturais com exclusão social reflete-se

em uma imagem estigmatizada da sociedade sobre o grupo. Os estigmas são criações

sociais que se originam de atitudes carregadas de pré-conceitos de pessoas de um

grupo sobre o outro. Esse cenário torna-se propício à ampliação das diferenças,

reafirmando estereótipos que padronizam conceitos sobre um grupo, intensificando

comportamentos discriminatórios. As experiências cotidianas nos permitem acessos

fáceis aos estereótipos de determinados grupos, o que se dá por meio de expressões,

comentários aleatórios, piadas etc. Isto faz com que as representações sociais

estereotipadas sejam transmitidas e reproduzidas sem nenhuma espécie de reflexão

por parte daqueles que as verbalizam.

Para Fredricksom (2004) e Elias (2000), a construção e a permanência das

representações sociais estigmatizadas do grupo dominante sobre uma minoria ou

sobre outro grupo – no caso específico desse artigo, do branco sobre os afro-

descendentes – fazem parte da correlação de forças em que os grupos dominantes

têm maior acesso ao poder, o que impede o acesso do outro. Os grupos dominantes

constroem uma auto-imagem com a qual se apresentam como “seguramente

superiores a outros grupos interdependentes [...], vêem-se como pessoas ‘melhores’

dotadas de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é

compartilhada por todos os seus membros e que falta aos outros” (Elias, 2000:19-20).

E será no cotidiano que os conflitos, as atitudes discriminatórias, preconceituosas e de

marginalização do outro enquanto grupo, reflexo dos processos de estigmatização,

acontecerão: “há sempre algum fato para provar que o próprio grupo é ‘bom’ e que o

outro é ‘ruim’” (Elias, 2000:23).

Há uma associação de fato dos afro-descendentes – principalmente daqueles

segmentos mais pobres da sociedade – a um modo ou a um estilo de vida distante dos

padrões ditos normativos da sociedade brasileira. Essa associação, elaborada a partir

de estereótipos e estigmas construídos ao longo da história, passa, de modo geral,

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pela combinação de formas de lazer que se caracterizam pelo coletivismo, por práticas

religiosas diferenciadas, pela eficiência profissional, por determinados estilos de

músicas consumidos. Em outras palavras, os comportamentos considerados como

característicos das populações afro-descendentes são tratados de forma pejorativa,

sempre de maneira a desqualificá-los. No entanto, tais características atribuídas pela

sociedade aos afro-descendentes, além de fornecerem elementos para distinguir

segmentos sociais e étnicos na sociedade, passam a ser consideradas inerentes,

naturais, portanto permanentes e hereditárias, próprias daquele grupo. Inicia-se um

processo de racialização desse grupo – colocando ênfase no fenótipo. Os problemas

sociais, associados ao estigma que o grupo dominado carrega, corroboram para uma

relação cotidiana permeada de preconceitos e discriminações.

Características atribuídas são um conjunto de elementos que identificam e diferenciam

um grupo em relação àqueles que as imputam. Nesta perspectiva, os africanos e seus

descendentes tiveram a eles atribuídas algumas identificações. Em outras palavras, ao

afro-descendente foi imposto, ao longo da história, um conjunto de identificações

desqualificadoras, estigmatizadas, estereotipadas. Segundo Wieviorkia (2002), antes

mesmo de o grupo se aperceber enquanto um coletivo com identidade, a sociedade

impõe uma imagem às pessoas que dele fazem parte. Esta identidade imposta passa

pela associação da hierarquia social e da hierarquia racial representada no olhar da

sociedade sobre os afro-descendentes.

A inferiorização, a dominação, a exclusão não se aplicam apenas a

indivíduos enquanto tais. São ainda mais eficazes e temíveis pelo fato

de encerrarem os indivíduos em categorias coletivas mais

susceptíveis que outras de serem subordinadas ou inferiorizadas

(Wieviorka, 2002:55).

A diferença é estabelecida antes mesmo da elaboração de uma consciência ou de

uma identidade desse grupo.

Entretanto, “ser de ascendência africana, pobre e até discriminado não basta, como

tal, para que uma pessoa negra reivindique algum tipo de identidade negra” (Sansone,

2003:22). A diferença coletiva e a construção do próprio grupo de uma identidade

cultural possibilitam aos seus membros manifestarem direitos no âmbito cultural e

social. Portanto, torna-se necessária a incorporação de elementos de identificação

pelas pessoas do grupo, combinando e exaltando valores que o demarcam, e não só

uma identidade estigmatizada, imposta pela sociedade. Por meio de tal processo, esse

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conjunto de pessoas pode organizar ações a partir do momento em que se vê diante

de desafios culturais e sociais.

Os jovens que se organizam, nas suas mais diferentes formas e intensidades,

apropriam-se de uma cultura de origem norte-americana, associando elementos afro-

brasileiros e produzindo outros, tendo em vista a construção de uma diferença, o que

se reflete na afirmação da auto-imagem, dando sentido oposto aos elementos culturais

estigmatizados pela sociedade. A inversão dos estigmas pode ser encarada como

uma das principais características da cultura hip-hop. Nesse processo, o hip-hop

apresenta-se para o in-group e, posteriormente, para o out-group “não apenas na

perspectiva da privação, da exclusão, da desqualificação – mas também como

pessoas capazes de introduzir qualquer coisa de construtivo, de positivo, de

culturalmente valorizado e valorizável” (Wieviorka, 2002:150). A alteração dos

estigmas pode parecer um simples mecanismo de defesa, no entanto, é um processo

complexo que tem dupla ação – simultânea ou sucessiva. A primeira é a

transformação de si próprio, a quem desde a infância foram impostos valores de

rejeição, humilhação, desqualificação. A segunda é o embate com a imagem que ele e

seu grupo representam para a sociedade.

Os grupos de rap pesquisados acreditam e transmitem, por meio das músicas, idéias

de superação dessas questões, defendendo e promovendo o discurso de que os

problemas apresentados não são casos esporádicos, particulares, que afetam apenas

uma pessoa, mas atingem principalmente os jovens afro-descendentes que moram

nos distritos mais distantes. Em outras palavras, não são problemas individualizados,

mas devem ser tratados como questões do grupo, como problemas sociais. O

posicionamento político diante de tais fatos faz com que a luta não aconteça por meio

da violência, mas pela produção cultural que tem como conteúdo a crítica, a

contestação étnica e social, portanto, ideológica. O rap busca visibilidade, legitimidade

e reconhecimento social não só para o grupo, mas também para o sujeito que optou

por se identificar com os elementos culturais do hip-hop.

4. A BUSCA PELO RECONHECIMENTO SOCIAL

O desejo de construir uma imagem positiva para a sociedade, empenho do grupo em

obter reconhecimento público, torna-se incessante. A aceitação de uma pessoa por

outra ou outras é, segundo Todorov, o que caracteriza o ser humano e o diferencia de

outros seres vivos e dos animais.

O reconhecimento de nossa existência, condição preliminar de toda a

coexistência, é o oxigênio do homem: assim como o fato de respirar

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hoje não me concede o ar de amanhã, os reconhecimentos passados

não me são suficientes no presente (Todorov, 1996:69-70).

Podemos identificar dois aspectos importantes nas pessoas e nos grupos que estão

ligados à cultura hip-hop: por um lado, a possibilidade de passarem da invisibilidade

para o reconhecimento social dos seus problemas, como também das suas

qualidades; por outro lado, ao obterem visibilidade, de poderem romper com a imagem

estigmatizada que lhes foi imposta pela sociedade. Os dois aspectos podem refletir-se

de forma importantíssima nas vidas das pessoas que se identificam com a cultura hip-

hop. Os adolescentes e os jovens, ao incorporarem e ao adotarem esta cultura,

conseguem vencer o obstáculo da discriminação por causa da cor da pele, do estigma

imposto ao seu grupo pela sociedade, ou ainda o desprezo étnico e social, e se

tornarão mais seguros e confiantes do que aqueles que não passaram por tais etapas.

Eles defendem sua identidade de grupo sem hesitação, com convicção naquilo em

que acreditam.

Mesmo os dois aspectos colocados tendo sido apresentados separadamente, as

respostas dadas pelos grupos de rap os atingem igualmente. Em letras de rap como

“Afro-Brasileiro” de Thaíde e DJ Hum, do disco “Preste Atenção” de 1996, e “4P” do

disco “Cada Vez Mais Preto” de 1993, já citadas, a luta pelo reconhecimento passa

pelo resgate e pela produção da história e da memória coletiva dos afro-descendentes.

A contestação é a primeira manifestação. Por meio das letras e dos discursos

realizados nos shows, os rappers, nos intervalos das músicas, questionam a

autenticidade da história oficial – a dos vencedores, dos dominadores – principalmente

a forma como o africano e os seus descendentes são retratados e também como

deixam de ser citados. Para esse grupo, o acesso a uma cultura deve estar associado

a uma reivindicação do passado.

O próximo momento é a leitura e a releitura das histórias dos afro-descendentes,

mostrando um passado de segregação, discriminação, dor e sofrimento, mas também

de luta e resistência contra o grupo dominante. Destacam-se, então, marcos históricos

e líderes afro-descendentes. Para Wieviorka, “quando uma identidade coletiva

contesta e, a partir daí, reclama reconhecimento, é também precisamente para pôr em

causa o esquecimento ou a ignorância de que foi historicamente vítima” (2002:203).

Por mais inventada que essa história possa ser, cria-se um sentimento coletivista,

antes ausente, que tem na ascendência africana a sua maior referência. Tal processo

de reconstrução do passado relacionado com as condições do presente torna-se

fundamental à integração e à socialização desses jovens, principalmente no

fortalecimento de uma auto-imagem positiva. No rap “Afro-Brasileiro”, além da

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afirmação da identidade afro-descendente, do orgulho e do valor que dedica à cultura

afro-brasileira, o rapper pede a todos que assumam sua identidade, resgatando Zumbi

como o grande herói e guerreiro. Essa música é um exemplo de como o rap pode ser

um veículo de informação da cultura e do passado da população afro-descendente.

No rap “História do Brasil”, do mesmo disco “Preste Atenção”, Thaíde e DJ Hum

também falam das distorções feitas na história do Brasil sobre o passado e a cultura

da população afro-descendente, distorções feitas por aqueles que menosprezaram,

discriminaram, e ainda o fazem hoje, a história e a cultura desse grupo. A música

começa com a afirmação de que a cultura da população afro-descendente está

deteriorada, faz parte de uma "massa falida de uma antiga estrutura". Esta passagem

exemplifica a desqualificação e a desvalorização que Thaíde sente quando a

sociedade, de forma geral, olha para o afro-descendente.

Com a cultura hip-hop, em particular o rap, a conscientização étnica ganha novas

dimensões e o elemento enriquecedor para os jovens é a associação da identidade

étnica com a posição socioeconômica e com o lugar onde vivem: a periferia. As

identificações "afro-descendente", "pobre", "periferia” contribuem para uma

radicalização do discurso político-social, alicerçado em novas representações

imaginárias diferentes da cultura oficial:

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram

violência policial; a cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras;

nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; a

cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo.

Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.53

Portanto, o hip-hop acrescenta ao discurso de resistência uma agressividade étnico-

social, denunciando, por meio das artes, a violência cultural e física que o jovem afro-

descendente morador da periferia sofre.

Processos de identificação são os primeiros passos para muitos jovens enfrentarem

estigmas enquanto grupo de afro-descendentes pobres que mora na periferia. Pelo

menos para eles, sua invisibilidade social passa a ser golpeada, pois faz parte de um

coletivo que se preocupa com a formação de cada um dentro dos grupos. Estes

últimos têm tal posição como forte característica sua. Por meio das narrativas, os

grupos querem retratar a realidade de quem mora nessa área, partindo da sua própria

vivência e direcionando o discurso para o seu público-alvo: o jovem afro-descendente

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morador da periferia da cidade de São Paulo. O objetivo é construir, por intermédio da

música, uma consciência social e étnica. No seu repertório, é constante o convite que

fazem para a tomada de consciência desses jovens. Procurar informação, ter noção

do contexto em que vivem e orgulho de sua ascendência cultural e tentar reverter a

ausência da auto-estima são as suas metas: "a preta linda que não olha no espelho/

Tem vergonha do nariz, da boca, do cabelo".54

Paralelo a esse engajamento étnico, as letras de rap proporcionam um novo olhar

sobre o cenário periférico no qual estão inseridas. Querem instrumentalizar o maior

número de jovens afro-descendentes para que estes tenham uma visão crítica da sua

realidade social; valorizar as pessoas e o próprio espaço onde moram; tentar reverter

os estigmas e a identidade impostos à periferia e aos seus moradores. Segundo

Pimenta, “no imaginário comum a periferia é sinônimo de tráfico de droga, violência,

criminalidade, prostituição, promiscuidade, pobreza, edificações em ruínas, lugar de

ócio e vadiagem, habitat de negros etc.” (Pimenta, 1998:36). Os grupos dominantes

constroem imagens dos outros enquanto grupo e, segundo Elias, “tendem a vivenciar

seus grupos outsiders (...) como desordeiros que desrespeitam as leis e as normas (as

leis e as normas dos estabelecidos)” (2000:29). O resultado pode ser danoso para

aqueles tachados como inferiores.

Os efeitos negativos desses personagens interiorizados logo se fazem

sentir no plano coletivo. Algumas minorias raciais têm a maior

dificuldade em escapar dessa engrenagem: são considerados

violentos e assim se tornam. A pobreza que os caracteriza gera o

desprezo dos outros, destruindo a autoconfiança, o que, por sua vez,

condena os membros dessa minoria a afundarem ainda mais na

pobreza – ou a recorrerem ao paliativo da violência (Todorov,

1996:149).

Exemplo de como o estigma é tratado em um rap está em “Um Homem na Estrada”.55

Esta música conta a história de um ex-detento que tenta recomeçar a vida carregando

o estigma de ex-presidiário. O início da música narra o objetivo do homem em querer

nunca mais voltar ao mundo do crime, começando pelas suas lembranças de infância,

que tiveram na FEBEM o seu lado mais negativo.

Um homem na estrada recomeça sua vida, /sua finalidade, a sua

liberdade, /que foi perdida, subtraída e quer provar a si mesmo que

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realmente mudou, /que se recuperou e quer viver em paz/Não olhar

para traz, dizer ao crime nunca mais.

No entanto, explica a opção pelo crime, relatando as dificuldades que a população da

periferia tem de enfrentar, como a fome, a miséria, as moradias extremamente

precárias, traduzindo todo esse cenário em “um pedaço do inferno”. Novamente o rap

nos apresenta uma visão singular e política do fato, sendo o crime e a violência

determinados pela privação social. O rap associa a solução da violência às questões

sociais.

Da metade para o final da música, o líder do grupo, Mano Brown, cita um crime perto

da favela onde este homem mora. Logo incriminam a favela e o acusam, já que seu

antecedente o faz ser visto como um criminoso, estigma carregado pelos que ali

moram e pelos ex-detentos: “Assaltos na redondeza, levantaram suspeitas, /logo

acusaram uma favela para variar”.

O estigma que as áreas periféricas têm do ponto de vista social e geográfico é tratado

como doença pelo grupo, uma doença "incurável", portanto, “te chamarão pra sempre

de ex-presidiário”. Já no fim da música, o homem é morto pela polícia dentro do seu

barraco. Entretanto, o corpo é encontrado numa estrada da extrema zona sul da

capital de São Paulo.

Observando as diversas letras do grupo DMN, fica evidente a proposta de inversão

dos estigmas que muitos jovens afro-descendentes carregam através da busca da

autovalorização, do orgulho, da autoconfiança, da eliminação de sentimentos de

desvalorização e desqualificação:

Ao povo negro têm sido negados esses dois aspectos básicos, ao

longo dos anos, e isso tem dificultado a construção da própria

identidade com base na sua história e cultura. A classe dominante

impôs ao negro, desde o navio negreiro, uma identidade atribuída ao

sabor dos seus interesses. Até hoje os mecanismos utilizados por

essa classe buscam, de forma sutil, manter uma identidade atribuída

ao negro, a qual geralmente acaba sendo assumida internamente

(Chagas, 1996:31).

E é esta “identidade atribuída” que o DMN combate em diversas letras, atingindo

diretamente as bases da ideologia da “democracia racial” e do “Brasil cordial”:

Fui vítima como muitos/ Paga pau da lavagem cerebral de certos

grupos/ Quem olha bem, até hoje eu não sei/Não me valorizei, me

autoviolei (...) Certamente tinha em mente a definição/ De que tudo

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que era branco/ Era lindo e bom/ Ilusão, natural/ E todo preto

ignorante/ E que cai, fazer transparecer/ A todo instante a sua imagem

de integrado/ Mais um irmão, mais então, mais um otário.

Ao falar que foi “vítima como muitos”, o autor da letra remete-se às experiências

pessoais, nas quais muitos fatos que com ele aconteceram foram frutos dos

preconceitos e dos estereótipos existentes no imaginário da sociedade e comuns aos

outros jovens. Essas experiências são muito importantes para a criação de uma visão

crítica para muitos jovens.

O estigma tem a possibilidade de provocar nos estigmatizados uma reação antagônica

àquela existente no imaginário da sociedade:

O que se sabe é que os membros de uma categoria de estigma

particular tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais cujos

membros derivam todos da mesma categoria, estando esses próprios

grupos sujeitos a uma organização que os engloba em maior ou

menor medida (Goffman, 1998:32).

Como diz o autor, como reação à estigmatização há uma “tendência” à aproximação

desses indivíduos estigmatizados, podendo constituir grupos. Saint-Maurice distingue

duas estratégias, a interior e a exterior, de se relacionar com as crenças e os valores

imputados ao seu grupo. A estratégia interior, que se refere estritamente ao indivíduo,

divide-se em algumas possibilidades, como: (i) conscientemente não levar em conta

as agressões sofridas; (ii) absorção dos estigmas, causando paralisia, aceitação da

inferioridade imputada; (iii) revolta transformada em agressividade. As estratégias

exteriores, tanto no âmbito individual como no coletivo, “podem ir da assimilação à

revalorização da sua singularidade”, tendo como probabilidade o desenvolvimento de

ações coletivas com o propósito de defender e valorizar o seu grupo (1997:30). O hip-

hop, como já foi discutido, enquanto coletivo quer legitimar-se como veículo

comunicador dos problemas sociais de parcela dos jovens afro-descendentes

moradores de bairros periféricos da cidade de São Paulo.

4. CONCLUSÃO

As leituras da sociedade realizadas pelos grupos de rap partem do ponto de vista do

grupo dominado. Os rappers vivenciam e exprimem o seu sentimento, mas também

querem materializar sentimentos de um segmento da população que mora na periferia.

É por isso que muitas vezes eles são chamados, ou se autodenominam, de porta-

vozes da periferia.

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A valorização da imagem pessoal e do grupo passa pela inversão dos temas que são

tratados de forma negativa pela sociedade. Os grupos de rap propõem, por um lado, a

inversão dos valores sobre determinadas questões e, por outro lado, como nas

palavras de Norbert Elias (2000), o recurso da “contra-estigmatização” em relação ao

grupo dominante. Apesar dos graves problemas dos bairros periféricos, os três grupos

de rap pesquisados têm como proposta transformar em referências positivas os

estigmas de que esses bairros e a população que neles mora são vítimas. A

conseqüência dessa postura, transmitida nas letras, é o estabelecimento de um

conflito com as construções hegemônicas do imaginário do grupo dominante, que

sempre tratou esses bairros como áreas onde vivem os segmentos perigosos da

sociedade e onde a violência é a principal forma de interlocução social.

Acredito que as letras dos grupos de rap, por um lado, querem dar voz e

reconhecimento social a um segmento da sociedade, revertendo o sentimento de ser

ignorado, o que dá a impressão de paralisia, “aniquilamento” (Todorov, 1996:96); por

outro lado, rompem com visões estigmatizadoras, estabelecendo microconflitos com o

imaginário social oficializado, sempre buscando reconhecimento para o seu grupo,

para a sua cultura. A produção desse conflito estabelece novas formas de

representações para os jovens interpretarem determinados significados e símbolos e

eles instituem novos valores, afirmando uma maneira própria de representação

particular de um grupo, de uma organização, de uma comunidade. O rap é uma

manifestação que salvaguarda um comportamento crítico e propositivo dos problemas

sociais que afligem uma parcela significativa dos jovens afro-descendentes. Os

rappers constroem representações da sua própria realidade e de acordo com os

interesses e as ideologias dos grupos. Eles fazem de sua realidade social, local,

cultural e étnica o ponto de partida para rompimentos éticos, estéticos, simbólicos,

históricos e imaginários da sociedade.

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Hum. ·“Afro-Brasileiro”, do álbum Preste Atenção, de 1996, do grupo Thaíde e DJ Hum. ·“Lei da Rua”, do álbum Cada Vez mais Preto, de 1989, do grupo DMN. ·“H. Aço”, do álbum H. Aço, de 2000, do grupo DMN. ·"Considere-se um verdadeiro preto", do álbum Cada Vez mais Preto, de 1989, do

grupo DMN.

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HOMENS LIVRES, VIDAS SECAS: violência e latifúndio num romance de Gracil iano Ramos56 André Luis Campanha Demarchi57

Lá no sertão quem tem Coragem pra suportar Tem que viver pra ter

Coragem pra suportar Ou então

Vai embora Vai pra longe E deixa tudo

Tudo que é nada Nada pra viver

Nada pra dá Coragem pra suportar

(Gilberto Gil, “Coragem pra suportar”)

RESUMO

O presente trabalho realiza uma análise do romance Vidas Secas, de Graciliano

Ramos, relacionando-o com algumas teses do pensamento social brasileiro, mais

especificamente, as apresentadas por Oliveira Vianna, em Populações Meridionais do

Brasil; e por Maria Sylvia de Carvalho Franco, em Os homens livres na ordem

escravocrata. O estabelecimento destas relações nos permitiu dimensionar o papel da

violência e do latifúndio na formação social brasileira, bem como traçar um paralelo

entre personagens do romance e atores sociais presentes historicamente na

sociedade brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Violência, latifúndio, sociologia da literatura, pensamento social

brasileiro, homens livres.

ABSTRACT

The present paper accomplishes an analysis of the romance Vidas Secas, of

Graciliano Ramos, relating it with some theses of the brazilian social thought, precisely

the ones introduced by Oliveira Vianna, in Populações Meridionais do Brasil; and by

Maria Sylvia de Carvalho Franco, in Os homens livres na ordem escravocrata. The

relationships thus stablished allowed us to dimension the roles of violence and

latifundium in the brazilian social formation, as well as to trace a parallel between the

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characters of the romance and the social actors historically present in the Brazilian

society.

KEY WORDS: Violence, latifundium, sociology of literature, brazilian social thought,

free men.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende discutir, no âmbito da sociologia da literatura, o romance

Vidas Secas,58 de Graciliano Ramos, destacando a questão da trajetória dos “homens

livres” em meio à violência e à miséria do Brasil rural. Nota-se preliminarmente que a

constituição autoral e a trajetória dos personagens deste romance apresentam

aspectos que revelam, de forma esclarecedora, alguns dos argumentos apresentados

para entender o processo de modernização e integração social no Brasil. Este singular

livro de Graciliano Ramos apresenta o agrarismo e o latifúndio como os maiores

empecilhos para tal processo no país. Esta perspectiva também está colocada por

uma tradição de estudos brasileiros, da qual são representantes Oliveira Vianna,

Sérgio Buarque de Holanda, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Maria Isaura de

Queiroz.59

São diferentes as modalidades possíveis de análise sociológica da literatura de ficção.

Dentre as que Antônio Cândido enumera em Literatura e sociedade, por exemplo, este

trabalho compartilha o desafio daquelas “que procuram verificar a medida em que as

obras representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos” (Cândido,

1980:10).60 Assim, privilegiamos a análise dos elementos sociais presentes na obra,

em detrimento dos aspectos formais importantes que todo texto literário possui (Idem,

Ibidem:11). Para o desenvolvimento deste trabalho, no entanto, mais do que a idéia de

“contexto social” foi necessário pensar o “contexto intelectual” a ele relacionado e no

qual Vidas Secas se insere. Ì4Í ÎÊÏ�Ð�Ñ Ò�Ó�Ô+Õ Ö.×1Ø�Ö�Ù4Ö Ø�Ö�Ú�ÛÜÖ�×�Ý_Ö�×�Û)Ö2Ø�Þ�ß�Ý Ú à�Ö8×�Ö�Ø\á�Þ_×�Ö�âã ä å�Ý�×�Ý]æ�Ö�Ú�Ý�×1æPÖç Þ_Ú è ß5Ö.Ø�Þ_å�ÝÂæ;é â�ä Ú�Ý�ê-ëaÖ�×�å Ö9ì3é�íî ï�ð�ñ.ò%ñ�ó�ô�î]õ�ö�ò¬î�òN÷ ó�ø4ö ð�õ�î ù+ú ñ�ò¬û.î�ñ�û ÷ ù%ü�ö9ý�ô)÷ þ7÷ ÿ�î�û�î�� ���������� ð\î���÷7þ ÷ î ó�ö�� ��� ����������������� � � !#"�$�%'&)()$�� *+!�,�-�"�./10325476+8�9:3;�<�<>=?A@ BDCFE CFG�H I�J�KMLNI)OQP�R�STR�U5V�IXW�P�I�J�K Y Z3[�\�]�^�_#[3`�[�aQb�c _d\�]�_�e�^T] \�[gf�]�hji�]�\�_#\�[lk1Z3Z3m Z5npo�aq]dr�[3sQt7o)[�[�Zvuw]�n�]�_x5y7z�{}|A~�|w� y���3��� ����z)xj� ���d��|Ay���� ���q~�{F� x������#�X�Nxj|T����� ����y��Q�j����������|T�7z��5���qx3y7�qy#�����)�Q����x3��� ��y��#�qy�����|}z�� �N���5��y��|T���3� � �X��|T���Q�dz���y � x�y�z��v{�� {}��� �5��y���y7����x5y7z���{F� {}��� ����yd��|Ay���� ���q~X{F� x5�M��y�����{wy7|+�X�q�3y�x3� ��� ��x�y��qyd��|TyX{w����y7z�� ��{w����������q�#������y�� y7����� �7|�� z�{w����|T����y7|T�#�d���q��z�x3� �j��x3� y7z�� �v{+������|Ty���� ����~�{F� x5�M{}�)�Q������x�y�� y�x5�������Ny�|����q��{F|+���7� �5��y#������� F¡)¢�£��¤�5£�¥3¦ £�§ ¨�©7¦ ¥5£��«ª�£­¬�®T¯��3¦ §�¢�£��¤°7¡j¯7¦ �±���­¢����v +¯�¥3¯�²´³'£�¯�°�¡�¦�²¶µ1¯�·�¡�¥5£X¸�¹ ¯�¦ £»º�®T¯�¢�£¼³�½�ª�¦ £7®T¸M¾�§ £�®A���� w¯7ª¾N��®wª�¯�ª�¢����#�#¿� wÀ�Á�¦ £¤Âw¯7ª�ª�¦ÄÃÆÅ�§ Ç�²È¢�¦ �5��£�¸�¢��XÁ)� É �3�±¢����v }¯�¥�¯�®q°�¡���¸Ê��ªj°�¡�¯7ª3 }£¤Ë �)§ £«²���ª�£��#¢�£�¦ �d®T£7²q¯�ª�¥3����¢��ÌÍwÎ�Ï3Ð�Ñ Ð Î�Ò�ÓÕÔ�Î7ÖqÓ�×ÙØ}Ú�Û�ÓÕÜ�Ý�ÍwÒ�Î�ÍTÞXÓßÝÙà�Ð Þ�Î�×­Ú>Ý�Ï�Î�×3á¤Ï5Ó7Ñ Ó�Ï�Î�ÖâÝ�×Fã}Î�×­ä7å)Ý�×vã}æ�ÝX×ç×jÐ ãFå�Î�Þ�Î�×èÒ�ÓÕé�Ñ Î�Ò�ÓêÍwå�ÍAÎ�Ñ ëì�Î�Ï3í�Î�Þ�Ó#Î�×�Î7é�ÍwÝ�×3ÝXÒ�ãwÎ�Ò�Ó#Ï�Ó�Ò3ã'Ýjî�ã}Ódå�Í}ï�Î7Ò)Ó�ðpñòÝ�×vãwÎ�óTÓ7Í}ÖqÎ�ëôÏ�Ó�Ò�óõÐ ö�å�ÍTÎ7Ö ÷ ×3Ý#Ýjî�é�Ñ�Ð Ï3Ð ã}Î�Ö�ÝXÒ�ã+ÝdÞ�å�Î�×�óTÓ7Í}ÖqÎ�×QÞ�ÝÝ�Ò�ã}Ý�Ò�Þ�Ý�Í ÎMÍwÝNÎ7Ñ�Ð Þ�Î�Þ�ÝMï�ÍTÎ�×3Ð�Ñ Ý�Ð ÍTÎ�ëòã+Î7Ò�ã ÓMÒ�ÓMé�Ñ Î�Ò�ÓMÑ Ð ãwÝ�ÍAø�ÍwÐ Ó�ä7å�Î�Ò�ã}ÓMÒ�ÓMé�Ñ Î�Ò�Ó�×5Ó�Ï3Ð Ó�Ñ ùXö�Ð Ï�Ó�ðúwû ü�ýÿþ�������� ý���� �+þ���������ý��������ý���������þ��Xý������ ������� ��ý������ýÿý������� ������ý��� �!������� "��ý$#����%���!�&��'�(� �)����� ��&�� ��� �*+�, -�. /�-�01,�2�34/�5�687 9 0�3�:(6�0;/�:(6�<=/�5?>�3�:�@ ,�2�,�<A/�5)B�C�-�3�:�,D+E,�5)6�F�+�, -�2�9 G�H�3�F�F�,�+�9 6�9 F�IJ0;:(6�K�6 7 L�,�F�M /�3N3�F 0;/�2�6 5O6:(3�7 6�G P�,N3�-�0�:�3�6N,�K�:(6N3�,%>�Q'K�7 9 +�,IA3�F 0;/�2�,�FRM�/�349S-UT�3�FV019 B�6�5W6YX�/�-�G�P�,8>�, 7 @ 0 9 +�6N2�6�FR,�K�:�6�FR3N2�,�F�6 /�0�,�:�3�F�IZ>�, :X�9S5�<[3�FV0;/�2�,�F�T�,�7 0�6�2�,�FY>�6�:(6Y6N9S-�T�3�FE0;9 B�6�G�P�,NL�9 >�,�01\�0;9 +�6Y2�6�F$,:�9 B�3�-�F�<[F�3 . 6�5)2�6N7S9 0�3�:(6�0 /�:!6D3�5OB�3 :(6 7 <JF�3V.16 5]2�32�3�013�:�5�9 -�6�2�,�F^B�C�-�3�:(,�F�_4`�6�:�6a/'5�6a2�3�F�+�:�9 G�P�,)5�6 9 Fb>�,:�5�3�- c�dfe g�h�i�hji�k�lVm�h�lnho�c d�i�h�p�k q�l�r%s�k�dut%v[w�q�i e i�c�rx�y�z{}|~y � xx��

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Procuramos vincular o romance a análises do pensamento social e às sociológicas

propriamente ditas que nos permitissem dimensionar o papel do latifúndio e da

violência na formação social brasileira. Nesse sentido, mobilizamos para a discussão

do romance teses de Oliveira Vianna formuladas em Populações Meridionais do Brasil

– em especial, a do papel do latifúndio na formação da sociedade brasileira – bem

como as de Maria Sylvia de Carvalho Franco, em Homens livres na ordem

escravocrata, sobre o papel da violência na orientação das condutas dos atores

sociais naquele contexto, atores estes nomeados pela autora como “homens livres”,

noção que pode ser assim enunciada: o trabalhador rural pobre que perambulou, e

ainda perambula, pelas terras do Brasil, em meio a relações de dominação pessoal e a

várias manifestações de violência. Esta é a principal questão deste estudo, tal como

foi também no romance de Graciliano Ramos. Deste modo, não nos debruçaremos

sobre as problemáticas das questões enfrentadas pelo fazendeiro ou pelo funcionário

público, outros possíveis candidatos à denominação de “homens livres” (Franco,

1983). Este trabalho está, portanto, centrado na análise das condições sociais vividas

pelos trabalhadores rurais pobres. Condições estas enfrentadas intensamente por

Fabiano e sua família em Vidas Secas.

Por fim, importante ressaltar que a violência é o fio que liga as partes do romance. Em

suas diversas manifestações e em suas dinâmicas dimensões, a violência está

presente no contexto de produção da obra Vidas Secas através da prisão de seu

autor; nas condições que propiciaram a não-fixidez e o caráter dispensável dos

homens livres na sociedade voltada para o mercado externo que se formava no Brasil;

no cotidiano desses homens, por meio de uma ordem costumeira aceita e sancionada

por eles e por seus semelhantes; na pessoalidade característica das instituições

brasileiras; na dominação pessoal, forma extrema de exploração e alienação do

trabalhador rural; por fim, na permanência da temática apresentada por Graciliano

Ramos na década de 1930, mas que continua sendo vivida por outros personagens e

atores sociais da realidade agrária e urbana brasileira.

2. VIDAS SECAS E O LATIFÚNDIO NA FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA

Vidas Secas foi publicado em 1938. O contexto histórico e social de sua produção

remete à tumultuada década de 1930 no cenário político-cultural brasileiro. Esta

década foi marcada, no campo literário, pela emergência dos romances regionalistas

de Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, entre outros (Sussekind,

1984). No campo político foi a década da “revolução” que instaurou o governo

“antioligárquico” de Getúlio Vargas, seguido da ditadura do “Estado Novo” (1937-

1945). No plano socioeconômico configurava-se o alvorecer das primeiras indústrias

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brasileiras, da formação de um proletariado e de uma classe média urbanos. É neste

contexto que se situa a produção de Vidas Secas.

Segundo Alfredo Bosi, podem ser consideradas as décadas de 30 e 40 como a “era do

romance brasileiro” (Bosi, 1994:388). Esse período foi marcado não só pela ficção de

cunho regionalista, mas também pela produção de obras de caráter cosmopolita e

psicológico. Utilizando o esquema proposto por Lucien Goldman em A sociologia do

romance, Alfredo Bosi apresenta quatro categorias para pensar o romance brasileiro

moderno de 1930 para cá, segundo o grau crescente de tensão entre o “herói” e seu

mundo. Para Bosi, a obra de Graciliano Ramos estaria enquadrada na categoria de

romances de tensão crítica, em que “o herói opõe-se e resiste agonicamente às

pressões da natureza e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas o seu

mal-estar permanente” (BOSI, 1994:392).61

Fabiano, o “herói” de Vidas Secas, expressa seus sentimentos diante da natureza e do

meio social justamente nesses termos. A brutalidade e o primitivismo do personagem

são, em alguns momentos, clareados por iluminadoras críticas ao latifúndio e à seca

nordestina, desvendando sua condição de miséria e pobreza. Uma das características

apontadas por Bosi a este tipo de literatura diz respeito ao lugar que os fatos

assumem no decorrer da narrativa, uma vez que “servem para revelar as grandes

lesões que a vida em sociedade produz no tecido da pessoa humana: logram, por

isso, alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profundas”

(Ibidem, Ibidem:393).

As marcas da seca e do meio social podem ser vistas como impressões sobre o

próprio corpo do personagem. As rachaduras da terra árida transplantam-se para o

corpo de Fabiano. Em seu pé encontram-se as mesmas “gretas fundas” que cobrem o

sertão seco. E é neste mesmo pé que o “soldado amarelo” pisa para demonstrar sua

autoridade, fazendo uso do aparato policial para imprimir sobre o corpo do vaqueiro as

injustiças sociais do contexto em que estava encravado como um pé espinhento de

mandacaru (ver o capítulo “O soldado amarelo”).

Antonio Cândido afirma que foi o Modernismo o responsável por abrir caminho para a

constituição deste tipo de narrativa de cunho social no Brasil. O autor apresenta as

contribuições e as aberturas efetuadas por este Movimento no cenário político-cultural

brasileiro.

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Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido amplo de

movimento das idéias, e não apenas das letras) corresponde à

tendência mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro. Nele, e

sobretudo na culminância em que todos os seus frutos amadureceram

(1930-40), fundiram-se a libertação do academicismo, dos recalques

históricos, do oficialismo literário; as tendências de educação política e

reforma social; o ardor de conhecer o país. A sua expansão coincidiu

com a radicalização posterior à crise de 1929, que marcou em todo o

mundo civilizado uma fase nova de inquietação social e ideológica. Em

conseqüência, manifestou-se uma ida ao povo, um V Narod, por toda a

parte e também aqui, onde foi o coroamento natural da pesquisa

localista, da redefinição cultural desencadeada em 1922. A alegria

turbulenta e iconoclástica dos modernistas preparou, no Brasil, os

caminhos para a arte interessada e a investigação histórico-sociológica

do decênio de 30 (Cândido, 1980:124).

Como se pode perceber, o autor não refere a influência do Modernismo apenas ao

campo das letras e das artes em geral. Ao contrário, tal movimento influenciou e abriu

caminho para um vasto desenvolvimento no que diz respeito ao ensaio histórico-

sociológico brasileiro. As obras Casa grande & Senzala e Sobrados & Mucambos, de

Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Evolução Política do

Brasil, de Caio Prado Júnior; Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna,

foram produzidas no bojo do estabelecimento dos caminhos trilhados pelo

Modernismo tomado em seu sentido amplo. Estas obras têm em comum a

peculiaridade de se enquadrarem em um gênero singularmente brasileiro: o ensaio

literário-histórico-sociológico. Este gênero híbrido, que misturava a escrita literária livre

com a apreensão histórica e sociológica da realidade, foi um divisor de águas entre a

literatura propriamente dita e o estabelecimento e a institucionalização das ciências

sociais no país. Daí poderem ser percebidos, como faz Antônio Cândido, elementos do

modernismo em tais obras.

No entanto, Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, pode ser visto como

um caso à parte. Nesta obra, nota-se a crítica às interpretações que afirmavam a

existência de uma estruturação européia da sociedade brasileira. Desde o início, o

autor questiona, através de comparações entre o sistema feudal europeu e o sistema

colonial brasileiro, a pertinência de tal estruturação. Para ele, a mera transferência do

regime feudal europeu para a situação colonial brasileira não explicava as

especificidades e singularidades do país. Com a publicação datada de 1920, a obra,

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ao problematizar esta tese – a ineficiência dos modelos de explicação europeus para a

compreensão da realidade social brasileira, seja no plano político-social, seja no plano

estético – converge para uma agenda de pesquisa tanto para os artistas modernistas

quanto para alguns intelectuais do pensamento social brasileiro. Basta lembrar que a

Semana de Arte Moderna ocorreu em 1922, dois anos depois da publicação da

referida obra.

As idéias de Vianna, apesar dessa abertura, contêm, grosso modo, grande teor

conservador e autoritário. O autor propõe, ao final de seu livro, uma saída autoritária

como resolução para o deterioramento do espaço público na sociedade brasileira.

Através dos conceitos de anarquia branca e espírito de clã, Vianna demonstra como o

domínio público foi moldado e instrumentalizado a partir dos interesses dos grandes

proprietários de terra. O espaço público é privatizado pelos latifundiários com o intuito

de se utilizarem dos instrumentos públicos para permanecerem no poder através das

relações de favor existentes entre eles e seus dominados. A manutenção desse

ordenamento social representa a reprodução do mesmo (Vianna, 1952). Para o autor,

o embaralhamento entre o domínio público e o domínio privado deveria ser combatido.

Somente com uma distinção clara entre público e privado poderia florescer no Brasil

um Estado Nacional nos termos modernos. Como isto não ocorre, devido à situação

viciada em que se encontra aqui caracterizado o espaço público, Oliveira Vianna

afirma taxativo que o sentimento de uma comunidade nacional e a clara distinção

entre público e privado “só serão realizados pela ação lenta e contínua do Estado –

um Estado soberano, incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo o

país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional” (Vianna, 1952:387).

Não é de se espantar que esta tese tenha sido apropriada e praticada pelo governo

getulista que se estabeleceu dez anos após a publicação do livro. Com o discurso de

instauração de um Estado forte e soberano, Getúlio Vargas subia ao poder

prometendo dar fim às oligarquias que se revezaram no governo do país durante toda

a “república velha”. Não é de se espantar também que, com esse discurso e com

essas práticas, se instaurasse no Brasil uma ditadura. Em 1937, respaldado pelas

teses de Oliveira Vianna e apoiado pelos políticos tradicionais das oligarquias que

dissera combater e pelo comando das Forças Armadas, Getúlio Vargas dissolve o

Congresso, cancela as eleições presidenciais e instaura no Brasil a ditadura do Estado

Novo. Como em toda ditadura, a do Estado Novo combatia, através da repressão

policialesca, as idéias e as práticas que não vinham ao encontro das normas

estabelecidas pelo Estado. A literatura e as artes, de maneira geral, são controladas

pelos poderes oficiais. Para retomar o contexto da produção de Vidas Secas, deve-se

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lembrar o fato de que em 1936 Graciliano Ramos é preso como subversivo, fica

praticamente um ano vagando por várias cadeias do país, até que é solto no ano

seguinte.

É interessante notar também que é com base nas teses de Oliveira Vianna que se

forma um governo capaz de efetuar, violentamente, a prisão de Graciliano Ramos

como subversivo. “Em Memórias do cárcere fica evidenciado pela voz do advogado

que a causa da prisão de Graciliano Ramos fora sua narrativa romanesca: com as leis

que fizeram por aí, os seus romances dariam para condená-lo” (Magalhães, 2001,

p.84). Isto demonstra como as idéias de um autor influenciam na obra e na vida de

outros. Estabelece-se assim um diálogo impossível entre um autor que forneceu as

bases teóricas para a formação de um governo autoritário e outro que, através de sua

literatura de alto valor social, combateu e criticou o Estado repressor que se formou.62

Paradoxalmente, constata-se, como será mostrado logo à frente, que algumas idéias

de Oliveira Vianna podem ser utilizadas para o entendimento sociológico das relações

sociais vividas pelas personagens construídas por Graciliano Ramos em seu romance.

Desta forma, a despeito da conformação autoritária e propositiva de Populações

Meridionais do Brasil, pode-se fazer uso de seu valor sociológico para a compreensão

de alguns aspectos fundamentais da obra Vidas Secas de Graciliano Ramos.

Vidas Secas contém em sua estrutura narrativa uma forma cíclica. O autor narra a

saga de Fabiano, de sinha Vitória,63 de seus dois filhos e da cachorra Baleia vagando

pelo sertão nordestino. A história tem como começo e desfecho essa situação social a

que foram relegados os “homens livres” no Brasil. O primeiro capítulo, intitulado

Mudança, apresenta ao leitor a condição itinerante, miserável e violenta em que se

encontram colocados os personagens. Andando pelo sertão, Fabiano e seu pequeno

grupo familiar procuram um lugar à sombra para descansarem da longa jornada em

meio sede, à fome e à aridez. Eis que encontram a sombra de um juazeiro e, logo à

sua frente, uma fazenda abandonada. O narrador conduz os personagens ao local que

representa, para uma corrente do pensamento social brasileiro, o lócus da produção e

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da reprodução das relações sociais que frearam durante séculos a modernização e a

integração social no país, bem como o responsável pela situação dispensável dos

“homens livres”: o latifúndio (Franco, 1983).

Pode-se argumentar, então, que o romance em questão não trata somente das

relações sociais impostas pela seca do sertão, mas apresenta, sobretudo em sua

estrutura narrativa, a configuração de indivíduos diante de um sistema de produção

baseado no latifúndio. Dito de outro modo, Vidas Secas é, ao contrário do que possa

imaginar um leitor desatento, um livro sobre as relações agrárias no Brasil. Apresenta

claramente um conjunto de relações sociais que demonstra a situação a que foi

destinada a sorte dos “homens livres”. A seguir, através das teses de Maria Sylvia de

Carvalho Franco e Oliveira Vianna, apresentar-se-ão as condições sociais que

conformaram a existência dispensável desses personagens singulares da história

social do Brasil também representadas em Vidas Secas.

Para Oliveira Vianna, a função simplificadora do latifúndio, somada à conformação de

uma mão-de-obra escrava produtora de mercadorias para o mercado externo, foi o elo

necessário à configuração da permanente não-fixidez das classes proletárias rurais. O

grande domínio territorial e sua independência econômica em relação ao meio urbano

produziram a simplificação e a precariedade a que foram relegados os centros

urbanos até o início do séc. XX. Além disso, determinou, segundo este autor, a

inexistência de classes comerciais, industriais e, ainda, de corporações urbanas, na

medida em que “na amplíssima área de latifúndios agrícolas, só os grandes senhorios

rurais existem. Fora deles, tudo é rudimentar, fragmentário, informe. São os grandes

domínios como que focos solares: vilas, indústria, comércio, tudo se ofusca diante de

sua claridade poderosa” (Vianna, 1952:181). Assim também ocorre quando o autor

analisa o latifúndio em relação aos grupos sociais que nele habitam. A mão-de-obra

escrava supre praticamente todas as necessidades produtivas do latifúndio, tanto no

que se refere à produção para o mercado, quanto à produção para subsistência do

próprio domínio territorial. Os trabalhadores livres ocupam, desta maneira, somente

alguns cargos especiais que o latifundiário lhes delega. No entanto, como a força

produtiva recai, sobretudo nas costas marcadas dos escravos, as relações de

interdependência e solidariedade existentes entre o operariado rural e seus patrões

“não tem nem permanência, nem estabilidade. São frágeis e frouxas. Não se

constituem solidamente” (Ibidem, Ibidem:182).

Maria Sylvia de Carvalho Franco define em seu estudo, de um modo semelhante ao

de Oliveira Vianna, as condições que permitiram a constituição dos “homens livres”.

Nota-se, porém, uma sutil diferença terminológica e conceitual determinada, talvez,

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pela institucionalização das ciências sociais no Brasil, ocorrida no período de tempo

que separa as duas obras e os dois autores. Segundo a autora:

Esta situação – a propriedade de grandes extensões ocupadas

parcialmente pela agricultura mercantil realizada por escravos –

possibilitou e consolidou a existência de homens destituídos da

propriedade dos meios de produção, mas não de sua posse, e que não

foram plenamente submetidos às pressões econômicas decorrentes

dessa condição, dado que o peso da produção, significativa para o

sistema como um todo, não recaiu sobre seus ombros. Assim, numa

sociedade em que há concentração dos meios de produção, onde

vagarosamente, mas progressivamente, aumentam os mercados,

paralelamente forma-se um conjunto de homens livres e expropriados

que não conheceram os rigores do trabalho forçado e não se

proletarizaram. Formou-se antes uma “ralé” que cresceu e vagou ao

longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos

processos essenciais à sociedade. A agricultura mercantil baseada na

escravidão simultaneamente abria espaço para sua existência e os

deixava sem razão de ser (Franco, 1983:14).

Fabiano e sua família são representantes em potencial dessa “ralé” descrita pela

autora. A condição de desapropriados dos meios de produção, mas não de seu uso, é

vivida intensamente pelo personagem como uma situação que não permite fixidez em

parte alguma. Quando chega na tal fazenda abandonada, Fabiano sonha com a

possibilidade de criar vínculos com a terra.

Ia chover. Bem. A caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao

curral, ele, Fabiano, seria vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de

badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos,

brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria saias de

ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a caatinga ficaria

toda verde [...].

A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer

seria o dono daquele mundo (pp.15–17).

De fato, a fazenda renasceu com a chuva. O fazendeiro apareceu e depois de tentar

se desfazer do “pobre coitado” acabou aceitando-o como empregado. Fabiano, no

entanto, num lapso, toma consciência de sua condição transitória. Sabe que seu

destino é viver em terras alheias cuidando das coisas alheias. Não tem lugar seu, a

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não ser a provisória morada de que se apossara porque não tinha onde cair morto.

Além disso, como nada é seu, como só tem a posse e não a propriedade dos meios de

produção, Fabiano não se sente pertencente ao lugar onde está. Tem a consciência

de que logo, logo, outro entraria em seu lugar: “ao ser contratado, recebera o cavalo

de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro cru, mas ao sair largaria

tudo ao vaqueiro que o substituísse” (p.25).

Não tinha a quem recorrer. Estavam, ele e sua família, isolados numa terra seca.

Sabia que seu destino já estava traçado.

Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele

era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu,

errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de

passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais,

tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro

que os tinha abrigado uma noite (p.20).

A condição dispensável e provisória na qual se encontram Fabiano e sua família não

ocorre somente porque seu patrão não depende deles. O próprio personagem, sem

lugar em toda a narrativa, também não depende, necessariamente, do proprietário

rural invisível. Sabia que podia vencer as dificuldades impostas pela seca e pelos

contornos sociais em que estava inserido. Sempre foi assim na sua permanente saga

pelo sertão, e assim continuaria a ser. Diante das frouxas relações de

interdependência que o ligavam provisoriamente àquele latifúndio e, por extensão, ao

seu proprietário, Fabiano orgulha-se de sua obrigatória autonomia: “isto para ele era

motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara

naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de

palha” (p.20).

Maria Sylvia de Carvalho Franco afirma que a interdependência das relações

existentes entre o “trabalhador rural” e o proprietário de terra ocorre porque os

primeiros vivem sua condição social num sentido oposto ao dos setores da sociedade

que se organizaram para a produção mercantil. Segundo a autora, esta situação de

oposição ao predominantemente estabelecido relegou os “caipiras” a uma posição

marginal no interior da sociedade brasileira. Assim, há que se considerar que “a alta

mobilidade foi a marginalização sofrida por esses homens que fizeram do trânsito seu

estado natural, conservando-os efetivamente como andarilhos. Sem vínculos,

despojados, a nenhum lugar pertenceram e a toda parte se acomodaram” (Franco,

1983:32).

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Tanto Maria Sylvia de Carvalho Franco quanto Oliveira Vianna apontam para o fato de

que a situação de autonomia e alta mobilidade que caracteriza os homens livres é

determinada pela maneira como se configura o latifúndio. O grande domínio territorial,

em sua organização social, econômica e cultural, permitiu ao trabalhador rural um grau

elevado de autonomia, na medida em que possibilitava uma quase desnecessidade de

trabalhar, pois o grosso da produção, como já dito, era efetuado pelo braço escravo.

No entanto, contraditoriamente, a baixa produtividade dessa camada social estava

vinculada a uma situação miserável em que era produzido o “estritamente necessário

para garantir uma sobrevivência pautada em mínimos vitais” (Franco, 1983:33). Assim,

os trabalhadores rurais brasileiros podem garantir sua existência sem dependerem do

amparo patronal do fazendeiro. Em quaisquer lugares em que estejam têm a

possibilidade de garantir o mínimo necessário para viver, mesmo que em uma

situação de subsistência baseada na precariedade dos recursos necessários à

manutenção de sua pobre vida.

Desta forma, também para Oliveira Vianna, “o trabalhador rural que abandona o seu

lote está certo de que encontrará um outro no latifúndio vizinho. Daí a facilidade com

que se desloca, todas as vezes que do solar fazendeiro uma pressão mais forte e

disciplinar baixa sobre sua indolência ou sua altivez” (Vianna, 1952:180). Nota-se

então que os conflitos existentes entre o proprietário de terras e o trabalhador rural

são, na maioria dos casos, resolvidos com a fuga, o que demonstra mais uma vez a

flutuação e a instabilidade das relações de patronagem existentes no campo brasileiro.

Maria Sylvia de Carvalho Franco também aponta para este fato quando analisa as

formas de solidariedade existentes dentro do próprio grupo dos “caipiras”. Ao

demonstrar as condições adversas existentes na constituição do trabalho coletivo e

solidário no interior destes setores, constata que “até o presente observa-se que a

mobilidade lhes aparece como o único recurso contra condições adversas de

existência: problemas com o patrão, salário baixo, trabalho insalubre, desavenças,

desgostos resolvem-se ainda hoje com transferência de domicílio” (Franco, 1983:30).

Esse é o destino de Fabiano e de seu pequeno grupo. Depois de sentir-se expropriado

e roubado pelo patrão e, ainda, de pressentir a chegada da seca, resolve, juntamente

com sinha Vitória, deixar a fazenda que estava novamente morrendo. Partem mais

uma vez abandonando o que nada possuíam e o que já deviam.

Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido,

combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que

possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do

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amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe

restava jogar-se ao mundo, como negro fugido (p.123).

E assim, fecha-se o ciclo das vidas secas que perambulam pelo sertão em busca de

destino certo. Fabiano, em sua nova andança, discute com a mulher as poucas

possibilidades que possuem de se agarrarem a outra terra. Descartam a vida anterior,

querem algo novo. Querem mudar, educar os filhos, fixarem-se definitivamente. Qual

não é a surpresa do leitor quando descobre para onde estão indo os retirantes. Estão

indo rumo à cidade.

Uma grande cidade, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas,

aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos acabando-

se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam

fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida

e civilizada, ficariam presos nela (p.134).

Como se pode perceber, o romance termina como inicia, fecha-se como um ciclo.

Começa com a chegada a um latifúndio abandonado pela morte efetuada pela seca, e

termina com a partida dos retirantes para a cidade, ou seja, abandonando o latifúndio

e seguindo, mais uma vez, seus rumos errantes e seu sonho de se fixarem

concretamente em um lugar. Estavam indo para a cidade e não eram nem os

primeiros nem os últimos, porque “o sertão continuaria a mandar gente para lá. O

sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os

dois meninos" (p.134).

3. FESTAS, CADEIAS E CONTAS: AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA VIOLÊNCIA

Além da situação de “eterno” nomadismo que caracteriza a existência das camadas

menos favorecidas da realidade agrária brasileira, pode-se apresentar ainda a

violência como marca significativa dessa população, especialmente a violência legal e

a violência estabelecida como um código moralmente aceito no interior do próprio

grupo “caipira”. Este elemento socialmente construído está presente em praticamente

todo o sistema social em que estão imersos os “homens livres”. Nas relações de

trabalho, nas situações de lazer, na vida cotidiana, nas relações familiares e de

vizinhança, no próprio contato com o meio natural adverso, lá está a violência com sua

presença constante na vida desses indivíduos.

Em Vidas Secas, a violência está entranhada nas diversas dimensões que compõem a

vida social e a trajetória itinerante de Fabiano, sinha Vitória, os dois meninos e até da

cachorra Baleia. Na festa, no desafio do “soldado amarelo”, na cadeia, nas contas

“erradas” do patrão, na secura agreste do meio geográfico, ela aparece desenhada em

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sua multiplicidade de formas e sentidos. Ora como grande acontecimento narrativo

(como no caso da surra que Fabiano leva em praça pública), ora como pequeno

detalhe escondido nas entrelinhas do texto (como quando Fabiano, ao questionar-se

sobre sua humanidade, conclui com orgulho que é bicho), a violência está ali como

elemento constante na miserável vida dos retirantes da seca e do latifúndio. Neste

capítulo, demonstraremos, através de alguns trechos do romance, como a violência

aparece, travestida em múltiplos significados, nos diversos aspectos da vida dos

“homens livres” e, ainda, como aparece instituída como um código de conduta

praticado não só pelos homens livres, mas também pelos representantes da ordem

legal.

4. FESTA: O CÓDIGO DA VIOLÊNCIA À MOSTRA

O capítulo Festa apresenta, com grande eloqüência, a violência instituída como um

código de conduta dos caipiras. Fabiano e sua família vão à cidade para os festejos de

natal. Vestem-se adequadamente para a ocasião e seguem caminhando para a

pequena vila. Já nas primeiras linhas do capítulo, pode-se notar um dos elementos

que definem a violência enquanto norma social que deve ser seguida: a desconfiança.

Fabiano tinha comprado tecido e dado a sinha Terta para fazer a roupa dele e dos

filhos. No entanto, a mulher disse ao vaqueiro que o tecido era pouco. Este, por sua

vez fez-se de desentendido, achando que a velha lhe roubaria os retalhos.

Conseqüência: as roupas saíram curtas, estreitas e cheias de emendas.

Neste simples trecho, aparentemente nada violento, pode-se perceber um dos

elementos fundamentais para o entendimento das relações de violência entre os

“homens livres”. Este elemento é a miséria a que estes homens estão submetidos. Por

viver na condição de pobreza constante, Fabiano desconfia da velha. E não desconfia

só dela, pensa que todos os outros estão lhe passando para trás. A desconfiança de

Fabiano é o resultado não só da miséria, mas também da situação de “caipira” em

contraste com os homens da cidade.64 Mal-arrumado em sua roupa estreita e curta em

conseqüência de sua pobreza, o personagem olha com desconfiança os homens que

o observam e os que o exploram.

Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por

isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e

evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa.

Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão

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realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Todos lhe davam

prejuízo. O caixeiro, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro,

e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar na rua,

tropeçando (p.81).

A desconfiança, proveniente de sua condição miserável, é um traço marcante das

relações de violência tanto no interior quanto no exterior do grupo dos homens livres.

A partir dela pode-se iniciar uma briga ou alguma discussão com desfecho trágico. Se

a escassez dos recursos de sobrevivência serviu, em alguns casos, para estreitar os

laços de comunidade, na maioria das vezes foi um estímulo à competição e ao

conflito, resolvido sempre a partir de práticas violentas. Segundo Maria Sylvia de

Carvalho Franco, “a mesma, condição objetiva que leva a uma complementaridade

das relações de vizinhança – isto é, uma cultura fundada em mínimos vitais – conduz

também necessariamente a uma expansão das áreas de atrito e a um agravamento

das pendências daí resultantes” (Franco, 1983:26).

No entanto, como no caso aqui citado, Fabiano não desconfia de sinha Terta por ela

estar disputando com ele meios de subsistência. Ao contrário, o vaqueiro desconfia do

roubo de uns meros retalhos. Isto aponta para o fato de que a pobreza não é a única

força que move a violência dos caipiras. Em muitos momentos os conflitos são

atiçados por acontecimentos irrelevantes. Um olhar esquisito, uma palavra irônica,

uma risada, um gracejo, uns meros retalhos podem ser os ingredientes necessários ao

desandar de um processo violento.

Esses gestos insignificantes tornam-se carregados de tensão quando esbarram no

código de honra que define os sentimentos e as práticas do trabalhador rural pobre.

Tal código está baseado, sobretudo, na coragem, na afirmação e na defesa da própria

pessoa. Os homens livres desenvolveram uma práxis violenta ao unirem as

características das condições objetivas a que estavam submetidos (pobreza das

técnicas de exploração da natureza, limites estreitos das possibilidades de

aproveitamento do trabalho e a conseqüente escassez dos recursos de sobrevivência)

a uma subjetividade que tem como elementos tradicionalmente formados a coragem e

a honra.

Nas relações lúdicas, essa práxis torna-se mais evidente. Na festa, após um surto de

indignação e alguns copos de cachaça, Fabiano desafia todos os presentes,

demonstrando com sua conduta a coragem que deve ter um homem pobre. Pouco a

pouco ficou sem-vergonha.

- Festa é festa.

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Bebeu ainda mais uma vez e empertigou-se, olhou as pessoas

desafiando-as. Estava resolvido a fazer uma asneira. Se topasse o

soldado amarelo, esbodegava com ele. Andou entre as barracas,

emproado, atirando coices no chão, insensível às esfoladuras dos pés.

Queria era desgraçar-se, dar um pano de amostra àquele safado. Não

ligava importância à mulher e aos filhos, que o seguiam.

- Apareça um homem! Berrou (p.82).

Para a sorte do personagem, nenhum homem apareceu. Se tivesse aparecido algum,

seu destino poderia ser o mesmo dos inúmeros indivíduos mortos em situações

semelhantes narradas por Maria Sylvia de Carvalho Franco. Para esta autora, “o

significado da festa como contexto social que favorece as relações antagônicas torna-

se mais nítido quando se observa que ela é o cenário conveniente às afirmações de

supremacia e destemor: é a oportunidade para a realização de façanhas perante

audiência numerosa e que tem em alta conta o valor pessoal” (Franco, 1983:38). Nota-

se, assim, que é na festa e nas relações lúdicas que a expressão dessa práxis violenta

torna-se mais evidente aos olhos do pesquisador. Ela é também um momento

privilegiado para se perceber que a violência enquanto código de conduta é

sancionada pelos outros membros da comunidade.

Em um acontecimento público como a festa, qualquer ofensa dirigida a alguém tem o

revide como única resposta socialmente aceita. Se a retribuição violenta não ocorrer

por parte do ofendido, este terá os seus atributos pessoais colocados em dúvida pelo

restante dos membros da comunidade. Nos termos deste código, um caipira ofendido

por outro não deve “baixar a crista” diante dos seus iguais. Depois de desferido o

primeiro golpe, o comportamento esperado pelos integrantes da comunidade é a

retribuição com um outro golpe por parte do ofendido. A violência está correlacionada

a um sistema de valores centrado na coragem pessoal. A bravura, o destemor, a

coragem e a honra são os elementos que compõem o quadro desse sistema

socialmente sancionado pelos demais integrantes da comunidade.

Em muitas ocasiões, depois de ter matado ou ferido gravemente seu inimigo, o

indivíduo permanece no local divertindo-se, sem a intervenção de qualquer outro

participante da festa. A opção de não tomar parte nos conflitos alheios ressalta o

caráter socialmente válido e aceito da violência como uma ordem costumeira. A

violência está, assim, legitimada como um código que rege as relações sociais

existentes no interior e no exterior do grupo caipira.

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Outros elementos vinculados a este código também podem ser percebidos. É o caso

dos instrumentos de trabalho utilizados pelo trabalhador rural que sempre

apresentaram uma conotação ambígua. A enxada, a foice, o machado, além de

servirem como instrumentos de trabalho, podem servir também como arma em uma

disputa contra algum inimigo (Coli, 2002:04). A mesma faca que pica o fumo,

proporcionando um dos raros momentos de prazer ao trabalhador, é freqüentemente

utilizada, violentamente, como instrumento de defesa e ataque. Em Vidas Secas,

Fabiano usa a mesma espingarda – que serviu para lhe garantir alimento

exterminando as arribações – para matar a tiros Baleia, cachorra que era quase um

“membro da família”.

A educação dos filhos também aparece como modo de reprodução deste código

violento. Os dois meninos filhos do casal são tratados a cocorotes e cascudos. Tanto

sinha Vitória quanto Fabiano reproduzem o código da violência na educação dos

filhos, pois têm que prepará-los para enfrentar o também violento mundo da seca e do

latifúndio. Ao chegarem à festa, os meninos demonstram que, apesar da curta idade,

já estão familiarizados com esse modo de conduta: “com certeza os homens iriam

brigar. Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles andassem entre as

barracas? Estavam acostumados a agüentar cascudos e puxões de orelha” (p.78).

A violência na educação dos filhos é apresentada pela própria dificuldade de

comunicação de Fabiano. O personagem, por viver uma realidade na qual até sua voz

é reprimida, acaba por não saber lidar com as pessoas. Sua brutalidade é muitas

vezes direcionada aos meninos e à cachorra Baleia. A linguagem torna-se também um

meio de expressão deste código violento. A opressão sentida por Fabiano é expressa

em sua dificuldade de falar com os homens. Estes estão sempre a lhe roubar alguma

coisa. Preferia calar a se misturar com possíveis inimigos. Qualquer agrupamento de

pessoas é visto com desconfiança pelo personagem. Sua pobre educação e sua

linguagem bruta poderiam ser mal-interpretadas.

Levantou-se, foi até a porta de uma bodega, com vontade de beber

cachaça. Como havia muitas pessoas encostadas no balcão, recuou.

Não gostava de se ver no meio do povo. Falta de costume. Às vezes

dizia uma coisa sem intenção de ofender, entendiam outra, e lá viam

questões. Perigoso entrar na bodega (p.104).

O mesmo Fabiano que desafia todos na festa sente, em seguida, medo de entrar

numa bodega. O personagem conhecia o código da violência e atuava nele da

maneira como convinha. Se estava arreliado como na festa, desafiava e ofendia as

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pessoas. Se estava cabreiro, evitava-as. Sua linguagem de bruto poderia ser mal-

entendida e a violência estancaria ali mesmo. Fabiano sabe que vive num mundo onde

a ordem costumeira está baseada na coragem e que “a capacidade de preservar a

própria pessoa contra qualquer violação aparece como a única maneira de ser:

conservar intocada a independência e ter a coragem necessária para defendê-la são

condições de que o caipira não pode abrir mão, sob pena de perder-se. A valentia

constitui-se, pois, como o valor maior de suas vidas” (Franco, 1983:59).

Em meio a esse código de conduta sancionado e legitimado por ele e por seus

semelhantes, Fabiano segue seu caminho. Mal sabe que encontrará à sua frente um

“soldado amarelo” que lhe mostrará que a violência não é privilégio dos homens

pobres e sem autoridade.

5. CADEIA: A PESSOALIDADE DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

No capítulo Cadeia, o narrador apresenta a violência das autoridades para com o

homem simples do sertão. Após chegar à cidade e comprar os mantimentos

necessários à sua pobre subsistência (feijão, sal, farinha e rapadura) e alguns outros

bens “dispensáveis” (querosene e um corte de chita vermelha para a mulher), Fabiano

é desafiado pelo “soldado amarelo” a jogar um trinta-e-um na bodega de seu Inácio.

Constrangido pela autoridade, procurava as palavras que sempre desapareciam

quando lidava com seres humanos. No final das contas, aceita o convite (ou a ordem?)

em meio ao embaralhamento de palavras contraditórias.

- Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É

conforme.

Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e

mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância,

mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia (p.29).

Fabiano entra acompanhado do soldado. Rapidamente perde o dinheiro que havia

reservado para as mercadorias “dispensáveis”. Sai do recinto furioso, trombudo.

Depois de pegar as mercadorias com seu Inácio, ganha a rua e fica matutando, à

sombra de um juazeiro, qual a desculpa que daria para a mulher por não ter comprado

o querosene e o pedaço de chita que ela tinha requisitado. De repente, recebe um

empurrão, estremece, mas continua matutando. Em seguida, outro empurrão. Vira-se,

era novamente o soldado a desafiá-lo agora para a briga. Neste momento da narrativa,

o narrador descreve em um parágrafo a vida cotidiana da cidadezinha do interior,

enfatizando as autoridades locais alheias ao desafio e à desavença que faiscavam

debaixo do juazeiro:

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A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminação trepando

numa escada acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por

cima da torre da igreja; o Doutor Juiz de Direito foi brilhar na porta da

farmácia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com talões de

recibo debaixo do braço; a carroça de lixo rolou na praça recolhendo

cascas de fruta; seu Vigário saiu de casa e abriu o guarda-chuva por

causa do sereno; Sinha Rita Louceira retirou-se (p.31).

Estavam ali presentes, na praça, todos os representantes das autoridades legítimas de

uma cidadezinha do interior do Brasil. O Juiz de Direito brilhava representando o poder

legal, a dimensão jurídica; o cobrador da prefeitura, a ordem econômica, e seus

reluzentes talões de cobrança a dívida, muitas vezes eterna, a que os trabalhadores

rurais estiveram algumas vezes submetidos; o seu Vigário, a Igreja que no Brasil

demorou (ou demora?) a se desvincular do poder dos grandes proprietários de terra.

Para completar, há de se lembrar também da presença do aparato policial

representado “solenemente” pelo soldado amarelo e seu destacamento. Com todas as

autoridades ali presentes, quem daria crédito às parcas e confusas palavras de um

miserável? Ninguém. E assim aconteceu. Fabiano, sem motivo razoável, foi surrado

em praça pública e depois atirado, com um safanão, “nas profundezas do cárcere”.

Notam-se nesta sucinta descrição da prisão e do espancamento de Fabiano pelo

menos duas manifestações da violência, além da clara e óbvia expressão da violência

física. A primeira diz respeito ao desafio. Maria Sylvia de Carvalho Franco já chamou a

atenção para o fato de que a situação de desafio faz “o elo entre diversão e agressão”

(Franco, 1983:39) num sistema social que tem a violência como código de honra. A

história narrada situa-se justamente entre estes dois aspectos. Num primeiro

momento, Fabiano é desafiado a jogar, em seguida, é desafiado a brigar pelo

representante da autoridade legal. O desafio pode ser compreendido como uma

técnica de controle social carregada de tensões, uma vez que Fabiano é colocado e

provocado, neste contexto, pela autoridade. O desafiado, vendo-se humilhado diante

de seus pares, ainda tenta esquivar-se da briga, porém, provocado ainda mais uma

vez, não resiste e ofende verbalmente o soldado.

Nota-se também o caráter totalmente pessoal da situação de desafio e,

conseqüentemente, da violência. Fabiano não foi desafiado, surrado e preso pelo

soldado amarelo e seu destacamento por infringir alguma lei ou atentar contra o

Estado. Foi desafiado simplesmente porque “tinha deixado a bodega sem se

despedir”. O soldado amarelo, usando de suas prerrogativas legais, impõe sua

autoridade enquanto membro do Estado para punir Fabiano porque ele “agiu de má fé”

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contra a sua pessoa. A violência toma, assim, um caráter estritamente pessoal e

apresenta-se como código de conduta incentivado pelo próprio representante do

Estado.

A segunda manifestação da violência, relacionada intimamente com a primeira, diz

respeito ao descaso com que se colocam em face da situação os membros do poder

institucional. O Juiz de Direito, o cobrador, o Vigário estão ali presentes e não fazem

nenhum esforço para intervir na situação. Nem poderiam, porque estão imersos num

conjunto de relações sociais que os distancia da vida do caipira. Como afirma Maria

Sylvia de Carvalho Franco, “o soldado, o padre, a autoridade pública estiveram

sempre referidos a instituições alheias ao mundo caipira” (Franco, 1983:32). Fabiano,

embora não tenha clareza dessa distância, quando está na cadeia sofrendo das

diversas violências a que foi submetido, reflete sobre esta questão:

E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo

fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O

soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava

na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia

consentir tão grande safadeza (p.35).

Fabiano vê com estranheza a personificação do Estado no soldado amarelo, mas

como também não consegue distingui-los, restringe-se ao estranhamento e ao vago

desejo de um governo justo, abstrato, perfeito (e distante). No entanto, está inserido

na dura realidade agrária brasileira na qual o Estado, não tão distante quanto imagina,

é dominado pelas relações pessoais e pelo clientelismo. A violência, marcada em seu

corpo a golpes de facão, é exercida por este Estado viciado em que se embaralham o

poder público e o privado, a autoridade e a pessoa, o governo e o mando. As

autoridades públicas ali presentes estão, provavelmente, vinculadas aos latifundiários,

grandes representantes do mandonismo local. A violência é apresentada, ao mesmo

tempo como institucional e pessoal, uma vez que estas dimensões não estão

claramente distinguidas na constituição e formação do Estado brasileiro.

Fabiano sofre, portanto, a violência exercida em suas duas dimensões, a pessoal e a

institucional. Não pode recorrer à instituição porque ela é governada com base nas

relações de pessoalidade. O soldado amarelo, fraco e ruim, além das grades, ou seja,

fraco e ruim enquanto pessoa, é sim membro de um governo que está longe de

representar seus interesses. É violentado porque é brasileiro pobre, sem poder nem

“conceito”, sujeito que “não pode ter questão” com autoridade porque as autoridades

estão a favor das elites agrárias e Fabiano está longe de pertencer a tal segmento.

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Resta ao personagem o desejo de um grito de ódio contra estas duas manifestações

de violência a que está sendo submetido. Desejo de fúria que demonstra, mais uma

vez, a exploração e o abandono a que estão sujeitos os seres nessa condição

dispensável.

Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao Doutor Juiz de

Direito, ao delegado, a seu Vigário e aos cobradores da prefeitura que ali

dentro [da cadeia] ninguém prestava para nada. Ele, os homens

acocorados, o bêbado, a mulher das pulgas, tudo era uma lástima, só

servia para agüentar facão. Era o que ele queria dizer (p.39).

Apenas queria. Nem esse desejo pode realizar. Sua voz não chegaria ao ouvido de

tais autoridades. Sua voz estava destinada ao silêncio, sua boca estava fechada pela

violência a que estava submetido. Pelas regras do sertão, quem não tem não pode

falar. Quem é expropriado dos meios de produção, mas não de seu uso, tem que

calar, tem que ter coragem pra suportar ou então fugir.

6. CONTAS: A NEGAÇÃO DA DOMINAÇÃO PESSOAL

Cabe neste momento esclarecer alguns conceitos já utilizados no decorrer do trabalho,

mas não sistematicamente problematizados e explicitados. Estamos nos referindo ao

conceito de homens livres e ao conceito de liberdade que o acompanha. Nos termos

aqui propostos, sabe-se que os “homens livres” só são livres porque estão inseridos

numa relação de mercado. Esta liberdade significa uma habilitação ao direito de

propriedade e igualdade jurídica. No entanto, a igualdade, em seu sentido jurídico,

compreende apenas aspectos do direito formal, como regras e códigos estabelecidos.

Para um entendimento complexo deste conceito de liberdade, deve-se compreendê-lo,

sobretudo, em relação ao direito vivido pelos indivíduos no contexto social em que

estão inseridos. No caso aqui analisado, os indivíduos que se enfrentam na relação de

mercado estão inseridos em um contexto social no qual se configura um forte sistema

de dominação e violência.

Desta forma, tal conceito de liberdade – fundado no princípio da propriedade privada –

só terá valor sociológico se entendido de acordo com o sistema de dominação

estabelecido neste contexto social. O conceito de liberdade apresenta-se, nos termos

colocados por Maria Sylvia de Carvalho Franco, como uma “unidade contraditória”,

uma vez que contém em seu significado um aspecto de igualdade e um aspecto de

dominação. Reforça-se então que uma situação de igualdade não está desvinculada

de hierarquias, ao contrário, somente a análise destas duas dimensões do conceito de

liberdade permitirá a compreensão sociológica de tal fenômeno (Franco, 1983).

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No capítulo Contas, Fabiano sente na pele, ou melhor, na barriga e no bolso, a

exploração e a violência a que está submetido. A primeira forma de violência que se

apresenta é a condição, vivida pelo personagem, de não-proprietário dos meios de

produção. Como já foi demonstrado, esta característica é constitutiva do modo de vida

dos “homens livres” e de como se inserem no sistema social. Com seus precários

meios de subsistência – meia dúzia de pés de feijão e milho – Fabiano era obrigado a

recorrer ao bolso do patrão para satisfazer o restante de suas necessidades básicas.

Com isso, os bezerros e as cabras a que tinha direito na hora da partilha iam, pouco a

pouco, sendo marcados pelo ferro do latifundiário. Na hora de fazer as contas, quase

nada restava. Fabiano injuriava-se, ficava nervoso diante do “roubo” que estava

sofrendo, queria ir embora, abandonar a fazenda e seu proprietário. No entanto, ao

pensar na seca e nas dificuldades vividas até chegar ali, logo desistia. Necessitava,

mesmo que de maneira transitória, estar vinculado ao grande proprietário de terras.

Fabiano vivia em condições semelhantes à do tropeiro descrito por Maria Sylvia de

Carvalho Franco em seu já referido estudo. Segundo a autora,

O que importa ressaltar é o fato de que, para subsistir e alcançar os seus

objetivos, o tropeiro supõe a existência do senhor de terras. Embora

itinerante e submetido circunstancialmente a proprietários diferentes,

haverá sempre um senhor, sob cuja égide se encontrará e de cuja mercê

dependerá o êxito de seu trabalho (Franco, 1983:64).

Seus serviços estavam sempre delegados a outrem. Sua pessoa era, também,

propriedade de outro. Assim tinha sido com seu pai, com seu avô e assim permanecia

a situação diante dele. Apesar de ter consciência do valor de seu trabalho e da

condição violenta de exploração a que estava submetido, nada fazia. Permanecia

imóvel naquela condição de expropriação. A imobilidade que caracterizava Fabiano

naquele momento era necessária à contínua reprodução dos elementos sociais que

mantêm o latifúndio. Sem a constante exploração da mão-de-obra de sua categoria os

latifúndios não existiriam mais.

É interessante notar que em outro momento do texto Fabiano compara-se à bolandeira

de seu Tomás. A bolandeira é uma grande roda que transmite o movimento às mós do

engenho. Fabiano era o movimento que não fazia parar a estrutura das relações

sociais que o fixavam no latifúndio. As relações de poder no latifúndio eram tão

violentas que Fabiano se compara à engrenagem de um engenho. O latifúndio,

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mantém a estrutura das relações de exploração em um nível próximo do

humanamente insuportável, reproduzindo homens e mulheres da mesma

forma que reproduz animais, isto é, tentando tirar-lhes a capacidade de

serem seres sociais que refletem sobre a objetividade e procuram

respostas para seus males. Para manter essa situação é necessário o

constante uso da força, por isso o braço armado do latifúndio e um nível

de violência desmedida são fundamentais, tornando quaisquer reações

um risco de vida (Magalhães, 2001:84)

Desta forma, além da violência da expropriação dos meios de produção, há também a

violência da alienação a que estão sujeitos os indivíduos numa relação tão explícita de

dominação. Maria Sylvia de Carvalho Franco apresenta as relações de dominação

pessoal como uma situação em que a consciência política dos dominados ligada à sua

condição de exploração é mutilada pela pretensa igualdade, respaldada pelo

reconhecimento da pessoalidade dos indivíduos imersos nessa relação. Numa relação

de dominação pessoal, o reconhecimento da dimensão da pessoalidade se faz

necessária, porque é também necessária a manutenção de vínculos de aparente

nivelamento. No estudo da autora, esta questão fica clara quando se debruça na

análise das relações entre o grande proprietário de terras e o sitiante. Através do

mecanismo do compadrio, esses dois seres, tão hierarquicamente distantes, tornam-

se próximos, uma vez que “o compadrio é uma instituição que permite esta aparente

quebra das barreiras sociais entre as pessoas por ela ligadas” (Franco, 1983:78). No

entanto, por trás da aparente igualdade descortina-se o outro lado da relação, a

dominação pessoal que se exerce através de assistência prestada pelo fazendeiro ao

sitiante e da retribuição deste por meio da filiação política.

Sabe-se que este não é o caso de Fabiano, pois já demonstramos que sua situação

aproxima-se, com mais clareza, da posição do tropeiro. Porém, o contraste entre estes

dois tipos será útil para demonstrar alguns liames sociais existentes entre Fabiano e

seu patrão. Maria Sylvia de Carvalho Franco afirma que as relações de dominação

pessoal entre o sitiante e o fazendeiro foram possíveis porque estavam calcadas numa

certa durabilidade de seus vínculos. Mantinham-se porque ambos eram proprietários

de terras e tinham seus interesses referidos a essa propriedade (Franco, 1983:81).

Como já foi mostrado, esta também não é a situação em que se encontra Fabiano e

sua família, ao contrário, estão destituídos de qualquer bem mais valioso e durável.

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Outra característica apontada pela autora na relação de dominação pessoal existente

entre o sitiante e o fazendeiro diz respeito à condição de asfixia da consciência política

a que está submetido o primeiro. A submissão ao poder do fazendeiro permite ao

sitiante uma visão muito parcelada da realidade social, o que o impede de se integrar

e de participar conscientemente da vida pública. A dominação pessoal concede a ele

ver “apenas os segmentos iluminados pela vontade dominadora” (Franco, 1983:83).

Assim, a mesma condição de pessoalidade que estabelece o vínculo entre esses dois

indivíduos é negada porque o sitiante está impedido – pelas relações de fidelidade e

lealdade estabelecidas entre ele e o fazendeiro – da possibilidade de uma existência e

de uma consciência política autônomas. Neste sentido,

a admissão do dependente como pessoa é essencial para sua integração

a uma ordem social que aniquila seus predicados de ser humano. Vê-se

por aí a brutalidade da alienação a que está exposto. Esta dominação

implantada através da lealdade, do respeito e da veneração estiola no

dependente até mesmo a consciência de suas condições mais imediatas

de existência social, visto que suas relações com o senhor apresentam-

se como um consenso e uma complementaridade, onde a proteção

natural do mais forte tem como retribuição honrosa o serviço, e resulta na

aceitação voluntária de uma autoridade que, consensualmente, é

exercida para o bem (Franco, 1983:88).

Na condição em que Fabiano se encontra, não há nos termos estabelecidos acima a

configuração de uma relação de dominação pessoal existente entre ele e seu patrão.

Apesar de estar subjugado ao punho do proprietário, Fabiano não o venera

cegamente, nem tem total desconhecimento de sua condição social. Ao contrário, tem

clareza de sua condição de expropriação e desconfia que há algo de errado nas

contas do patrão. Sente, com alguma potência, a dureza do tratamento ao qual o

latifundiário o submete e sabe que sua condição social não é nem um pouco igualável

a do grande proprietário de terras.

O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à

fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava,

o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural.

Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as

descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-

se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada,

porque estava tudo em ordem e o amo só queria mostrar autoridade,

gritar que era dono. Quem tinha dúvida? (p.24).

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Fabiano não tinha dúvidas. Diferentemente do sitiante, caso extremo de dominação

pessoal, o vaqueiro tinha o conflito como dado claro e estabelecido em sua relação

com o patrão. Obedecia às ordens, mas por dentro sentia ódio. Chegava até a discutir

com o amo, mas diante da situação paupérrima em que se encontrava, “baixava a

crista” e desculpava-se. No capítulo dedicado a este personagem, o narrador põe em

questão, por diversas vezes, a existência da humanidade de Fabiano. Este se

compara em inúmeros momentos aos bichos de que toma conta. O personagem vive

intensamente este conflito. No decorrer da narrativa, vai tomando consciência da sua

condição de pessoa, de ser humano que sobrevive em extremada condição de

violência.

Maria Sylvia de Carvalho Franco compara a situação de alienação do sitiante a do

escravo. Segundo a autora, o primeiro, por viver num mundo formalmente livre, não

tem capacidade de perceber que sua vontade está presa a do superior, porque não

existem marcas objetivas do sistema de dominação a que está confinado. Neste

sentido, não há meios deste sujeito obter autoconsciência, pois entende o processo de

dominação como natural e espontâneo. Torna-se, portanto, uma criatura domesticada,

tendo como destino certo o imobilismo e o conformismo. Já o escravo, embora passe

por um processo extremado de negação de sua pessoa, na medida em que é

transformado em coisa, mera propriedade, está sujeito a uma condição de tamanha

violência que possibilita um vago desejo de liberdade. “Liberdade impossível, mas pelo

menos desejada, o que devolve ao escravo, embora apenas como projeção individual,

um sentido de humanidade” (Franco, 1983:88).

Fabiano, sente em sua relação com o fazendeiro esse vago sentimento de liberdade.

Em vários momentos do romance, ele se refere à sua pessoa como “negro fugido”.

Quando vai acertar o salário, o vaqueiro dirige as seguintes palavras para o patrão:

“Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada!

Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!” (p.98.).

A comparação com a situação de escravidão devolve a Fabiano a consciência de sua

condição de explorado e, em conseqüência, o sentimento de sua humanidade. Era

explorado, mas também era de carne e osso, tinha desejos, sentia vontade de fumar,

apreciava a beleza de sinhá Vitória em frente à trempe, com a saia de ramagens no

meio das pernas. O vaqueiro, apesar de estar inserido num contexto de dominação,

não o vivencia em toda a sua intensidade, ou seja, em toda a potencialidade de

alienação que a relação de dominação pessoal carrega em seu sentido. Como o

escravo, sente raiva, ódio, ira. Deseja sair daquela situação de exploração a que está

submetido.

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No entanto, o que há de mais violento nesse sistema é que a única escapatória para

sair da condição de submissão, de eterna exploração é a revolta de cada indivíduo,

rebelião solitária contra a ordem estabelecida. No máximo, o assassinato de um

coronel, uma tocaia armada para o soldado amarelo ou a entrada para o cangaço.

Nada disso, porém, transformaria efetivamente a realidade social a que esses

indivíduos estão submetidos. Fabiano preferiu a fuga. Não matou ninguém, não armou

tocaia, não entrou para o cangaço, não se reduziu ao que dele esperavam os

latifundiários. Realizou seu desejo humano de liberdade fugindo. Negou a dominação

pessoal, preferindo a violência da seca: pelo menos nesta poderia se virar.

7. OUTROS PERSONAGENS: A VIOLÊNCIA E A ANDANÇA PERMANECEM?

As condições sociais vividas por Fabiano e sua família no romance Vidas Secas, de

Graciliano Ramos, não estão desvinculadas da realidade de outros trabalhadores

pobres do Brasil. Ao contrário, como demonstrado nas linhas acima, tal romance tem

como característica marcante seu duro tom de denúncia social. Seu êxito maior está

no fato de que denuncia a situação miserável e dispensável dos retirantes da seca

sem deixar de ter grande valor literário. Graciliano Ramos conseguiu unir em seu

romance o problema geográfico e social com a elevada qualidade artística.

No entanto, a questão que se coloca após a leitura que fizemos do romance é se seus

personagens ainda podem ser encontrados nos sertões e nas grandes cidades.

Seriam os personagens de Vidas Secas homólogos a outros personagens da

realidade agrária brasileira? Teriam os possíveis descendentes de Fabiano e sinha

Vitória conseguido negar as relações de dominação pessoal, presentes

constantemente nas relações agrárias do Brasil, a inércia e o imobilismo? Seriam eles

os antepassados dos que conseguiram se unir, apesar de todas as adversidades, não-

solidariedades, desconfianças e violências, e fundaram um Movimento (o MST) para

lutarem, com um mínimo de dignidade, pelos seus direitos de pequenos proprietários

rurais?

Como sabemos, a saga de Fabiano, de sinha Vitória e de seus dois filhos encerra-se

com eles caminhando rumo ao sonho da cidade grande. Nós nos perguntamos então

(extrapolando os limites do romance) qual teria sido o fim desses personagens nas

grandes cidades do sul? Teriam se tornado “mendigos”, “indigentes” como outras

figuras que perambulam de esquina em esquina nas grandes cidades e têm como

único bem o próprio corpo violentado pelas mazelas a que estão submetidos? Ou

teriam, ao contrário, “vencido na vida”, ao colocarem os “meninos na escola,

aprendendo coisas difíceis e necessárias” (p.134), conseguindo trabalho, moradia e

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saúde? Qual foi, enfim, o destino de Fabiano e de sua família? Teria sido o mesmo

desses outros personagens do campo e da cidade presentes em nosso cotidiano?

Para todas essas perguntas não temos resposta. Graciliano Ramos, com a precisão

de sua escritura, deixou-os no meio do caminho; e este trabalho, no sentido em que foi

proposto, buscou mapear tal caminho, levantando as questões sociais presentes no

romance. Entre a miséria tradicional do campo e as novas (im)possibilidades que a

cidade poderia lhes garantir, os personagens optaram pela segunda, mas na trama

textual, como na realidade, seu fim é estar sempre andando.

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8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Leonardo. Opressores e oprimidos: uma análise de Vidas Secas. Usina de

letras. Belo Horizonte, vol. 4, n. 1, 2002. Disponível em: http:// www.usinadeletras.com.br.

Acessado em: 25-07-2005.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Ed. Cultrix, 1994.

CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história li terária.

São Paulo: Ed. Nacional, 1980.

_________________, Ficção e confissão: ensaio sobre a obra de Gracil iano

Ramos. Rio de Janeiro: Ed. José Olímpio, 1956.

COLI, Jorge. A violência e o caipira. In: Estudos Históricos: arte e história. Rio de

Janeiro: CPDOC/ FGV, n. 30, 2002.

FRANCO, Maria Sylvia C. Os homens livres na Ordem escravocrata. São Paulo:

Ed. Kairós, 1983.

MAGALHÃES, Belmira. Vidas Secas: os desejos de Sinha Vitória. Curitiba: HD

Editora, 2001.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1977.

SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua

história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Ed. Achiamé, 1984.

VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil : história, organização e

psicologia. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1952, vol. 1.

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PODER POLÍTICO E A TEORIA DA TROCA EM PIERRE CLASTRES

Adriana Cristina Repelevicz de Albernaz65

RESUMO

Pierre Clastres discute e amplia o conceito de poder político, apresentando um debate

que abrange formas de organização e concepção política diferentes da ocidental.

Apresento sua tese da disjunção entre poder político e chefia política nas sociedades

das Terras Baixas da América do Sul, que fundamenta uma visão geral da

organização social e conceitual dessas sociedades, com vistas a localizar e a

compreender sua influência e crítica à teoria da troca/reciprocidade de Lévi-Strauss.

Pretendo demonstrar as diferenças de foco entre estes dois autores e, ao retomar o

Ensaio Sobre a Dádiva... de Marcel Mauss, além de outros teóricos que o aprofundam,

poder continuar vendo coerência na tese de Pierre Clastres sobre estratégias

construídas por essas sociedades visando manter o político sob seu controle.

PALAVRAS-CHAVE: poder político, chefia política, sociedades indígenas, teoria da

troca, migrações Tupi-Guarani.

ABSTRACT

Pierre Clastres discusses and enlarge the political power’s concept, presenting a

debate that includes ways of political organizations and conceptions different from the

western. I present his thesis of separation between political power and political

leadership in the societies of Lowlands of South America, that founded a general view

of social and concept organization of these societies, aiming to locate and to

understand his influence and review of exchange’s theory of Lévi-Strauss. I intend to

show the differences of focus between these two authors, and that resuming The

Essay About the Gift… of Marcel Mauss, beyond of others theoretical that deepen their

knowledge about him, we can continue looking coherence in the Pierre Clastres’s

thesis, of strategies built up by these societies for keeping the political under its control.

KEY WORDS: political power, political leadership, indigenous societies, exchange’s

theory, Tupi-Guarani migration.

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1. INTRODUÇÃO

Neste texto66 desenvolverei alguns pontos a respeito do trabalho do etnólogo francês

Pierre Clastres sobre as sociedades indígenas das TBAS (Terras Baixas da América

do Sul67). A discussão que apresento aqui gira em torno da crítica feita por Pierre

Clastres à teoria da troca/reciprocidade de Lévi-Strauss, que embora analise as

relações entre a chefia e a sociedade por meio deste viés, afirma que a teoria da

troca/reciprocidade não explica em todos os termos essas relações, porque elas não

são recíprocas.

Pierre Clastres traz à discussão etnológica, dados e reflexões tanto sobre os povos

nativos da floresta Amazônica, quanto sobre os grupos indígenas do sul e sudoeste do

Brasil, e sobre os Guayaki68 do Paraguai. É assim um autor de grande importância

para a etnologia sul-americana pelo material etnográfico que apresenta e pela

discussão teórica a respeito dessas populações indígenas (com destaque para os

Guarani), continuando a ser referência na medida em que aborda temas centrais para

o conhecimento de tais populações, entre eles, a instituição da guerra e do

canibalismo, as relações de parentesco e os temas mitológicos e cosmológicos.

Entretanto, a discussão mais representativa de sua produção intelectual refere-se à

constituição do poder político nessas sociedades, o que faz segundo a tese da

disjunção entre poder político e chefia política e da opção feita por essas mesmas

sociedades de permanecerem sem um poder político coercitivo, autônomo e

centralizado, portanto, intencionalmente “contra o Estado”.

Sua tese contempla a explicação para os deslocamentos regidos pela procura da

Terra Sem Mal que, segundo ele, é um fenômeno anterior à chegada dos europeus.

Tais deslocamentos teriam sido provocados pelo crescimento demográfico autóctone,

especialmente dos grupos Tupi-Guarani. Conforme argumentou, esse crescimento

demográfico foi o responsável por uma incipiente centralização política entre os Tupi-

Guarani. Porém, essas sociedades tinham como princípio estrutural uma organização

igualitária e democrática e seguiam, predominantemente, a orientação religiosa, pois

priorizavam a religião, a cosmologia ou, nos termos de Viveiros de Castro (1986), o

conceitual. Por esta razão, segundo Pierre Clastres, resistiam ao político como

instância coercitiva e centralizada, característica que os fez seguirem os profetas Karai

– profetas da selva que proclamavam as belas palavras – em busca de um lugar onde

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se manteriam de acordo com as boas formas de viver, em que as regras sociais

estariam abolidas, e não haveria sequer a distinção entre o humano e o divino.

Portanto, Pierre Clastres explica os deslocamentos das populações Tupi-Guarani,

anteriores à chegada dos europeus, através da resistência à política e da opção de

permanecerem guiados pelos ideais de igualdade e solidariedade presentes em sua

cosmologia.

2. SOCIEDADES “ CONTRA O ESTADO”

Pierre Clastres defende que o fato de o poder político não se encontrar nas

sociedades das TBAS, conforme pensado e exercido no Ocidente - segundo uma

caracterização do poder político como o poder exercido pelo homem sobre outros

homens, através do Estado, legitimamente capaz de usar a força física (violência) para

o controle de conflitos e da manutenção da ordem – não justifica a afirmação de sua

inexistência. Pela concepção ocidental de Estado Moderno, conforme Max Weber, “há

de se entender uma empresa institucional de caráter político onde o aparelho

administrativo leva avante (...) a pretensão do monopólio da legítima coerção física,

com vistas ao cumprimento das leis” (I, 53 apud Bobbio, 1995:956), ou seja, um poder

legitimamente coercitivo e coativo. Temos também constatado, desde as proposições

de Maquiavel e da análise racionalista de Weber, que a política e a moral no Ocidente

distanciam-se até a sua total separação, o que aparece claramente no discurso

político (o bem comum), que não se reflete na prática política motivada pelo interesse

de grupos (Cf. Verbetes: política e moral em Abbagnano, 2003).

Pierre Clastres afirma que para a consideração do poder político como universal (o

que para ele é possível, dado que o político é inerente ao social) é necessário uma

concepção que abarque a existência de um poder político não-coercitivo. Ressaltamos

que o autor não se refere a um significado que poderíamos chamar de “reduzido” de

poder político, como pensado pela filosofia política clássica e moderna e que o

relaciona diretamente a um governo centralizado (seja o de uma República ou o de um

Estado autoritário). Esta concepção está presente, por exemplo, na forma com que

Hobbes relaciona a passagem do “Estado de Natureza”69 para o “Estado de Cultura”,

com a abdicação da autonomia e do poder pessoal em prol de um representante

responsável por manter a coesão social através da coação, compromissado em evitar

a “guerra de todos contra todos” (Bobbio, 1995:956).

O político é entendido aqui a partir do sentido amplo que deriva da palavra grega

“Politikós, que significa tudo o que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é

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urbano, civil, público e até mesmo sociável e social” (Bobbio, 1995:954), portanto,

voltado para as relações públicas, exterior ao âmbito familiar e que representa grupos

(mesmo que sejam famílias ou linhagens, desde que estas formem grupos, o que

vemos na instituição Guarani da parentela. Cf. Pereira, 1999), e tendo como sentido

último uma proposta de “bem geral” para a sociedade. Afirma, então, que a política se

encontra universalmente dividida entre poder político coercitivo, nas sociedades com

Estado e históricas – as que são movidas pela idéia de busca incessante de

mudanças (Cf. Lévi-Strauss, 1996) – e não-coercitivo, nas sociedades sem Estado e

a-históricas – as que não são regidas pela idéia de busca de mudanças, mas sim pela

idéia da repetição e da concepção de um tempo cíclico (Cf. Lévi-Strauss, Idem).

Vemos que, ao contrário do que queria o modelo evolucionista, Pierre Clastres afirma

que o formato das sociedades das TBAS, com o poder descentralizado e com as

relações de troca que envolve, constitui-se em uma opção e não em uma

incompletude, ou em um estágio que precisaria ser superado para atingir, enfim, a

forma social adulta expressa como “Sociedades com Estado”. Joana Overing (1995)

desenvolve este ponto, relacionando a leitura evolucionista à concepção de história

linear que implica. Porém, esta autora questiona a caracterização de Pierre Clastres

das “sociedades sem Estado” como sociedades a-históricas, ou seja, estáticas, no

sentido de não serem movidas por inovações. Vemos que Clastres relaciona a idéia de

inovação (mudanças/história) ao poder coercitivo (Estado), por ser este poder

centralizado, na sociedade ocidental, que garante a aceitação e manutenção das

inovações, inclusive, com o uso legítimo da força física (violência) organizando e

legitimando as inovações. É claro que ele não está dialogando com autores

contemporâneos (pós-guerra fria) que fazem uma nova leitura do Estado Moderno, no

qual a sociedade civil, através de suas instituições – organizações comunitárias, Ongs,

sindicatos, movimento de minorias, étnicos e outros – participa de uma forma mais

direta da administração pública, o que exige uma definição de Estado que considere

essa descentralização e que admita o diálogo com a sociedade civil de uma forma

mais direta (Cf. Villa, 1999).

Mas voltemos à nossa questão: Joana Overing afirma que a concepção de a-

historicidade dessas sociedades indígenas faz parte também de uma visão

etnocêntrica ocidental, que tem em seu cerne o evolucionismo. Defende que a

afirmativa sobre a historicidade ou não de qualquer sociedade depende da visão de

história utilizada. Portanto, não é pelo fato de algumas sociedades não serem movidas

pela idéia de progresso linear e não se interessarem pelo relato de etapas evolutivas,

isto é, sem aparentemente terem uma “história cumulativa” (Lévi-Strauss, 1973), que

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se justifica a afirmativa de serem sociedades ou “povos sem história” (Overing,

1995:109). Desta forma, Overing propõe uma redefinição e ampliação do conceito de

história que possibilite abranger as concepções nativas indígenas sobre a passagem

do tempo, e suas formas de relatarem acontecimentos e eventos, compreendendo “o

modo complexo como os ameríndios vêem a relação entre história, tempo e processo

social” (:109).

Tendo como pressuposto que todas as sociedades têm a sua historicidade, entendida

aqui, segundo Márcio Goldman, como a “história que os homens fazem sem saber”

(1999:228), tratar-se-ia de saber qual a sua modalidade e o regime em casos

concretos.70 Assim, abre-se a possibilidade de pensar a temporalidade também

relacionada à troca de dádivas (entre vizinhos, entre parentes distantes) tanto nas

relações pessoais (horizontais) na sociedade, como nas trocas entre a chefia e a

sociedade. No caso em questão, é necessária a atenção para a concepção de tempo

mítico e a idéia da abolição da reciprocidade que o movimento profético da Terra Sem

Mal proclamava, ou mesmo, das relações de troca com o sagrado através dos rituais

e, assim, a sua relação com a organização do tempo coletivo, por exemplo, nos rituais

de plantio e de colheita.

Entretanto, Pierre Clastres afirma que o político é a primeira instância de diferenciação

social, inaugurando o movimento e a história, sendo o econômico posterior a esta

primeira diferenciação. Porém, a mesma diferenciação, segundo Pierre Clastres, não

foi aceita pelos Tupi-Guarani, pois eles resistiram à incipiente centralização política,

em função, como já citamos, de suas características estruturais. Temos então que se

nas sociedades ocidentais, conforme a definição marxista, o motor da História é a “luta

de classes”, nas sociedades indígenas das TBAS, o motor seria a luta contra o Estado

(2003:234). Este sentido foi apreendido por John Manuel Monteiro (1992), quando

afirmou que a principal fonte de conflitos e o motor da história Guarani é a tensão e,

em certa medida, a imbricação entre tradição e mudança: tradição no sentido de que

essa sociedade prioriza a garantia da sociabilidade orquestrada pela religião; mudança

representada pelas migrações, movidas pelo discurso profético, sempre refratário ao

político (:482), dessa forma, mudança com vistas à permanência da tradição. Segundo

o questionamento de Pierre Clastres: “Que não se possa compreender o poder como

violência e sua forma última (o Estado centralizado) sem o conflito social é indiscutível.

Mas e quando se trata de sociedades sem conflitos, aquelas onde reina o “comunismo

primitivo?” (2003:40).

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Neste caso, Pierre Clastres trata de um sentido estrito de conflito entre forças sociais –

tal como concebido por Marx e Engels – como “motor da história”. Essas forças sociais

estão relacionadas ao desenvolvimento econômico ocidental, aos donos dos meios de

produção e aos que produzem (seus empregados), e não ao que diz respeito ao seu

aspecto mais amplo: o dos conflitos que os rituais indígenas encenam, como os

relativos à ordem cósmica e à concepção autóctone da existência humana, geralmente

interligados com conflitos entre parentes (marido e mulher / pais e filhos / sogros e

genros), ou de relações de amizade e inimizade – este último aspecto fundamental

para a compreensão da guerra ameríndia e das suas concepções de identidade e

diferença. Neste sentido, Clastres chama a atenção, no capítulo “Independência e

exogamia” (2003), para os modelos simplistas ligados às populações da floresta da

América do Sul que, como contraponto às populações andinas, foram caracterizadas

como mais homogêneos e transparentes do que realmente o são e, neste sentido,

talvez a noção de conflito como dinâmica interna possa ter uma outra conotação. Mas

a princípio é interessante notar a especificidade de tais sociedades que, como

veremos, ao mesmo tempo em que têm uma prática de guerra como forma de relação

com o exterior, internamente se protegem de um poder centralizado que possa estar

relacionado a qualquer tipo de violência na figura de seu chefe.

Nessas sociedades o poder político está, segundo Clastres, dissolvido no corpo social,

verdadeiro locus de sua autoridade, e não centralizado na figura do chefe como figura

autônoma e superior. O autor amplia, assim, a reflexão sobre a política a partir da tese

de sua disjunção em relação à instituição da chefia, tendo como preocupação central a

constituição política específica de algumas sociedades, pensadas segundo um modelo

estrutural da relação do grupo social com o poder político através da teoria da troca.

Esta discussão diz respeito à natureza do poder político e ao que garantiria a sua

existência em sociedades que apresentam uma chefia sem “substância” e impotente

(sem autoridade coercitiva), ou seja, “em que condições a vida social indígena pode

desenrolar-se fora das relações de poder coercitivo” (Goldman e Lima, 2003:10).

Problematiza então o modo como a sociedade e a política estão relacionadas quando

a primeira exerce um controle quase absoluto sobre a segunda, impedindo a sua

autonomização.

O argumento de Pierre Clastres baseia-se na constatação de uma resistência irrestrita

apresentada pelas populações ameríndias à instituição de um poder político autônomo

que se apresenta, de uma forma exemplar, no discurso profético da Terra Sem Mal e

nas migrações que o animaram – fenômenos entendidos como “estratégicos” para

impedirem a instalação de chefias políticas centralizadas e autônomas. Esse

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movimento profético teria surgido como conseqüência do crescimento demográfico da

população nativa das TBAS, o que poderia se tornar causa da constituição de um

poder centralizado, um Estado, nas palavras de Pierre Clastres. A resistência à

constituição do que entendemos como Estado se reflete, segundo Clastres, na

concepção indígena do Um (unidade) como símbolo da imperfeição, na medida em

que se contrapõe à dualidade, representação do ideal nativo que possibilita a

identidade (não-contradição) entre o eu e o outro, entre o homem e Deus (2003:190-

1). Afirma assim que o complexo religioso motivou as migrações à procura da Terra

Sem Mal, demonstrando como a cosmologia e a religião desenvolveram-se como

discurso de motivação para o deslocamento geográfico (Cf. Viveiros de Castro,

1986:104). Assim, deixaram o sedentarismo para tornarem-se nômades e, em certa

medida, anti-sociais, já que seus profetas proclamavam a abolição das regras de

casamento – Dêem suas mulheres a quem quiserem – do trabalho e da reciprocidade

(Clastres, P., 2003 e Clastres, H. 1978, e Viveiros de Castro, 1986). Vemos, então,

como nesse momento a sociedade torna-se um problema.

Pierre Clastres afirma a intencionalidade de tais sociedades em permanecerem sem

um poder político centralizado. Portanto, elas são consideradas “sociedades sem

Estado”, porque evitam formas de poder coercitivo e de divisão entre dominantes

(governante) e dominados (governados) e a relação do chefe com qualquer autoridade

coercitiva e autônoma, pois a autoridade tem seu locus na sociedade, o chefe sendo

apenas seu porta-voz e nunca aquele que emanaria um poder autônomo e superior.

Desta forma, a posição do chefe nessas sociedades estaria mais próxima daquilo que

nós entendemos como “Ministro das Relações Exteriores”, posto que representa a

sociedade como uma totalidade una em situações de guerra, diálogo e busca de

alianças com outros povos.

Ressaltamos que o autor apresenta as características principais da chefia política em

tais sociedades segundo a definição de Robert Lowie – três obrigações e um direito –

observando suas relações com a teoria da troca/reciprocidade e da comunicação de

Lévi-Strauss. Temos assim as seguintes características do chefe indígena: a

obrigação de ser generoso, doando seus bens à sociedade; a obrigação de ser

mediador em conflitos e fazedor da paz, através da capacidade oratória; a obrigação

de doar palavras (as que recebe dos deuses) e de fazê-las circular, sendo não só o

chefe considerado como a pessoa que fala, mas também a pessoa que tem o “dom”

da palavra e é tida como chefe; e o direito à poligamia, em alguns casos também

concebido aos xamãs e aos guerreiros de destaque, que são candidatos privilegiados

à chefia.

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3. AS SOCIEDADES DAS TBAS E A TEORIA DA TROCA/RECIPROCIDADE DE

LÉVI-STRAUSS E DA TROCA/DÁDIVA DE MARCEL MAUSS

O fundamento da análise clastriana das instituições políticas e de sua forma de

organização, principalmente no que se refere à relação entre a instituição da chefia e a

sociedade, é feita segundo os termos da teoria da troca/reciprocidade71 do

estruturalista francês Lévi-Strauss (que foi seu professor). Clastres afirma que as

relações entre a sociedade e sua chefia política, nos contextos indígenas, envolvem os

três principais signos que, segundo Lévi-Strauss, são trocados, dão fundamento e

garantem as relações sociais em todas as sociedades: as mulheres, os bens e as

palavras. Porém, Pierre Clastres declara que nas relações de troca entre a chefia e a

sociedade nas TBAS, embora os três signos estejam contidos – concordando com

Lévi-Strauss – a reciprocidade deixa de existir, pois o que se troca não pode ser

considerado como signo que tem o objetivo de comunicar alguma coisa, mas são

apenas valores não-recíprocos, ou seja, o que se dá não é o mesmo que se recebe.

Esta mesma análise é feita por Clastres em relação às palavras dos cantos dos

guerreiros solitários Guayaki; o objetivo de expressá-las não é remeter uma

mensagem ou comunicar algo a alguém, pois o canto é solitário e o único receptor da

mensagem é aquele que a emite.

Pierre Clastres chama a atenção para o fato de o poder político encontrar-se

dissolvido nas sociedades das TBAS, assinalando vínculos entre parentesco e

articulações políticas. Isto se afirma, por exemplo, no capítulo “Independência e

exogamia”, quando aponta que é através da exogamia que esses grupos indígenas

constituem suas alianças políticas (2003:84). O autor problematiza a dissolução do

político, compreendendo-o também através da teoria da troca; porém, enfatiza o

caráter político das relações que Lévi-Strauss tratava como relações sociais de uma

forma mais geral.

O que sobretudo chama a atenção é constatar-se aí a dissolução gradual

do político que, na falta de descobri-lo onde se esperava encontrá-lo, se

crê perceber em todos os níveis das sociedades arcaicas. Tudo cai

desde então no campo do político, todos os subgrupos e unidades

(grupos de parentesco, classes de idade, unidades de produção, etc.)

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que constituem uma sociedade são investidos, com ou sem motivo, de

uma significação política, a qual acaba por abranger todo o espaço social

e por perder conseqüentemente sua especificidade. Pois, se o político

existe em toda a parte, ele não existe em lugar nenhum (2003:34-5).

Ele demonstra que o caso não é de inexistência de poder político nessas sociedades,

mas sim de uma diferenciação. Assim, os ameríndios, animados pelo gosto da

igualdade e pelo sentido de democracia, intuindo a íntima relação entre poder e

natureza que se manifestaria no desejo de dominação e na violência, negam ambos –

o poder e a natureza – constituindo-se de forma a se protegerem de um poder político

que seja autônomo e que fuja do controle da sociedade.

A instituição da chefia compõe-se, segundo Pierre Clastres, de um sub-sistema

separado e marginal em relação à sociedade, controlado e mantido por ela através

das relações de troca. Afirma, portanto, que na relação entre chefia e sociedade o

circuito da troca diferencia-se do que acontece no todo da sociedade, pois a

reciprocidade deixa de ali existir. A relação de troca entre chefia (tomando-se um

indivíduo isoladamente) e sociedade (como entidade global) consiste em uma relação

negativa e unidirecional, posto que as trocas são assimétricas e se dão em um sentido

único (bens e palavras do chefe para a sociedade, e mulheres da sociedade para o

chefe).

Dessa forma, Pierre Clastres parte da teoria da reciprocidade desenvolvida pelo

estruturalista francês Lévi-Strauss, que tem a troca de mulheres, bens e signos

lingüísticos como condição primeira, necessária e fundante da vida social, e acaba por

contestá-la como esfera de reciprocidade na relação entre o chefe e a sociedade.

Segue seu argumento:

Com efeito, é notável constatar que essa trindade de predicados – dom

oratório, generosidade, poligamia, ligados à pessoa do líder – concerne

aos mesmos elementos cujas trocas e circulações constituem a

sociedade como tal e sancionam a passagem da natureza para a cultura.

É inicialmente pelos três níveis fundamentais da troca de bens, de

mulheres e de palavras que se define a sociedade e é igualmente por

referência imediata a esses três tipos de “sinais” que se constitui a esfera

política das sociedades indígenas (Ibidem:55).

Ele evidencia, então, que nessas sociedades as funções relativas à guerra e à caça

(além da esfera religiosa) conferem aos seus atuantes de maior destaque um elevado

estatuto social e político (Idem:53), o que os torna candidatos à chefia política e lhes

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dá o direito à poligamia. Além disso, o próprio “conselho de anciões”, ao qual o chefe

deve submeter suas decisões e que o reconhece no papel de chefe, era composto

pelos guerreiros mais brilhantes. Nas suas palavras:

Ao permitir a poligamia aos seus mais eficazes fornecedores de alimento,

o grupo, hipotecando de alguma forma o futuro, lhes fornece

implicitamente a qualidade de líderes possíveis. É preciso, no entanto,

assinalar que esta poligamia, longe de ser igualitária, favorece sempre o

chefe efetivo do grupo (Idem:53).

Assim, para Pierre Clastres é impossível pensar em termos de reciprocidade nas

trocas entre chefia e sociedade, pois atesta não existir um circuito de trocas que

envolva os três elementos – mulheres, palavras e bens. Ser generoso é uma

obrigação do chefe; a fala é uma qualidade intrínseca e necessária à função (dever); e

as mulheres que recebe são o seu direito, considerando que a chefia geralmente é

passada patrilinearmente,72 nunca restituída em termos equivalentes para a

sociedade. Dessa maneira, “a reinserção das filhas (do chefe) no ciclo de trocas

matrimoniais não compensa a poligamia do pai” (Clastres, 2003:56). Seria então mais

exato falar em doação de mulheres da sociedade para o chefe, da mesma forma em

bens e palavras do chefe para a sociedade, do que em troca, relação que caracteriza

o chefe como um servidor da sociedade, estando, em função dessa relação, sob o seu

controle. Nas suas palavras:

A cultura afirma a prevalência daquilo que a alicerça – a troca –

precisamente vendo no poder a negação desse fundamento, mas é

preciso, além disso, assinalar que essas culturas, ao privarem os

“signos” do seu valor de troca na região do poder, retiram das mulheres,

dos bens e das palavras justamente a sua função de signos a serem

trocados; e é então como puros valores que esses elementos são

aprendidos, pois a comunicação deixa de ser seu horizonte (2003:63).

Desta forma, há menos signos que comunicam alguma coisa do que valores

simplesmente, que não têm a reciprocidade em seu horizonte. Isto fica claro no

aspecto do dever através do qual o chefe indígena tem de doar palavras à sociedade e

que “são ditas para não serem ouvidas”. Portanto, se nas sociedades com Estado,

evidencia-se uma relação intrínseca entre a palavra, o Estado e o uso legítimo da

força, ou seja, palavra e poder, nas sociedades sem Estado, mesmo sendo a palavra o

espaço de excelência para a atuação política do chefe como mediador de conflitos e

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expositor da voz da coletividade e da sua cosmovisão, esta não está relacionada com

a força física. A fala é ritualizada e com ela celebram-se as normas de vida tradicional.

Mas é uma fala vazia de valor coercitivo, de autoridade, fala que não impõe,

simplesmente retoma as “boas formas viver”, isto é, expõe sobre como vivem e

sempre viveram – sobre o que é evidente. Configura-se como um discurso feito para

não ser ouvido: quando o chefe fala, as pessoas, embora reunidas próximas a ele,

falam e fazem outras coisas, e só se voltam em sua direção quando percebem que ele

está tentando impor sua vontade individual ou demonstrando um desejo de poder que

não condiz com as normas tradicionais de se conceber a política. Então, o “chefe que

quer bancar o chefe, é abandonado” (:172).

Essas sociedades mantêm o poder e a chefia separados através do uso da palavra: “O

dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia que ele deve à tribo,

é a sua dívida infinita, a garantia que proíbe que o homem de palavra se torne um

homem de poder” (:172). Portanto, ela não comunica e sim retoma o que as pessoas

já sabem, porque vivem o que a fala transmite – o óbvio – sendo motivo de

estranhamento somente quando se desloca desse seu lugar de atuação, segundo o

ideal de sociabilidade ameríndio das TBAS.

A obra de Pierre Clastres destaca-se, segundo Bento Prado Júnior, referindo-se

especificamente ao ensaio “A Filosofia da Chefia Indígena” (Clastres, 2003), pela

forma como coloca “em xeque a transparência da troca e da comunicação como regra

de constituição da sociedade” (2004:09), estabelecendo um impasse no que se refere

à regra de reciprocidade. Aqui se denota uma relação de troca desigual, sendo que

aquilo que se recebe não se retribui nos mesmos termos, numa estratégia para manter

a sociedade igualitária. Aquele que teve a oportunidade de adquirir mais ou de

acumular qualquer tipo de bem ou valor, sendo um candidato privilegiado à chefia,

acaba por ter que redistribuir o que acumulou (Cf. Lanna, 2002, para a concepção do

chefe indígena como redistribuidor).

A crítica de Pierre Clastres demarca, portanto, um paradoxo em relação à teoria da

troca, na medida em que compreende a inexistência da reciprocidade no direito de

poligamia do chefe e na obrigação de doação de palavras e bens do chefe para a

sociedade. Porém esta análise pode tomar outro rumo se retomarmos Marcel Mauss

com a sua visão da troca/dádiva como um “fato social total”, assim como do

estabelecimento de alianças e de laços sociais através da dádiva (Cf. Caillé, 2002),

contemplando a possibilidade de a mensagem ser aí a afirmação do controle da chefia

pela sociedade e da submissão da primeira à segunda, ocasionando o

estabelecimento de uma relação hierárquica da sociedade sobre a chefia.

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Diante deste panorama, buscaremos recuperar, em termos gerais, a teoria da

troca/reciprocidade de Lévi-Strauss, para confrontá-la e problematizá-la a partir dos

pontos levantados por Pierre Clastres. Num segundo momento, tomaremos alguns

aspectos da análise da troca/dádiva de Marcel Mauss, pretendendo analisar as

relações entre chefia e sociedade nas TBAS a partir deste viés, por defender que a

abrangência de seu referencial analítico traz a possibilidade mais ampla, pois é mais

atenta ao contexto etnográfico, de compreensão das relações na esfera da política

dessas sociedades.

A intenção não é, porém, contestar a teoria da troca de Lévi-Strauss, mas apenas

compreendê-la e arriscar afirmar que, embora os temas tratados por Lévi-Strauss e

Clastres sejam muito próximos (parentesco, mitologia, organização social), os níveis

de análise são diferentes. O primeiro está particularmente preocupado com a lógica de

funcionamento da mente humana e com a estrutura e as regras relativas à troca como

um fenômeno da estrutura geral da reciprocidade (Lévi-Strauss, 1997:182) através de

suas diversas manifestações culturais. Já o segundo, mesmo que mantendo um

constante diálogo com seu professor, está nos colocando em contato com contextos

etnográficos específicos e particulares, atendo-se a eles ao mesmo tempo em que

propõe a ampliação do conceito de política a partir do estudo de casos específicos.

Vejamos: Lévi-Strauss defende que a sociedade é fundada em três níveis de

comunicação ou troca: a comunicação de mulheres entre os grupos, regulamentada

pelas regras de parentesco; a comunicação de bens e serviços, regulamentada pelas

regras econômicas; e a comunicação de mensagens, na qual teríamos as regras

lingüísticas (Dosse, 1993:35). Ele afirma que a análise dos fatos sociais não pode

prescindir da atenção à troca e do que esta comunica, assim como da questão das

relações entre os termos dentro de um sistema (e daí a contextualização, pois o

sentido é aprendido nessas relações) e da preeminência do inconsciente como lugar

de onde as regras sociais vem a cena, no sentido de que organiza de forma estrutural

(por exemplo, segundo os princípios de economia e de reciprocidade), os conteúdos

de cada experiência social.

No que se refere à estrutura da troca, ele aponta que muitas das relações nas quais

ela aparece são ou estão inconscientes, tanto na forma como no conteúdo (estímulos

à troca, assim como suas formas de atualização). Concorda neste sentido com Marcel

Mauss, que as obrigações de dar, receber e retribuir estão encobertas pela aparência

de voluntarismo (ou seja, a obrigação pode estar inconsciente), mas na verdade é esta

obrigação que garante a sistematicidade das relações sociais. Porém, enfatiza e

detém-se no aspecto das regras de reciprocidade, afirmando que a lógica, ou

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estrutura, da troca, é o fundamento de todas as relações sociais. Isto posto já na

proibição do incesto, passagem da natureza para a cultura que, como primeira regra

negativa e encontrada universalmente, faz com que os homens se obriguem a

elaborar esquemas de troca de suas mulheres, doando filhas e irmãs, mediante a

garantia de que receberão esposas e noras.

Ocupa-se, assim, tanto nas Estruturas Elementares do Parentesco (1982) como na

Introdução à Obra de Marcel Mauss (1950), do caráter de sistematicidade e de regras

que envolvem as trocas – o que distinguiria seu aspecto analítico, e que falta, segundo

sua leitura, na análise maussiana. Enfatiza, dessa maneira, o aspecto inconsciente da

reciprocidade (sua obrigatoriedade), através do qual temos a organização de todas as

relações sociais, ou seja, declara que a estrutura da troca segue operações lógicas

que garantem a sistematicidade das relações sociais. Nas palavras de Merleau-Ponty

sobre a estrutura tal qual pensada por Lévi-Strauss:

Os sujeitos que vivem em sociedade não têm necessariamente

conhecimento do princípio da troca, assim como o sujeito falante não

precisa, para falar, passar pela análise lingüística de sua língua. A

estrutura é, antes, praticada por eles como óbvia. Por assim dizer, ela os

“tem mais do que eles a ‘têm’” (Merleau-Ponty, 1968:196).

Parece possível afirmar (ver Caillé, 2002 e Godbout, 1992) que a crítica feita a Lévi-

Strauss de “simplificar” a análise de Marcel Mauss73 deve-se ao fato de que ao

enfatizar o caráter de reciprocidade e ver a troca como um fenômeno geral da

estrutura da reciprocidade (1982:182), Lévi-Strauss acaba por perder as

especificidades dos três momentos envolvidos na troca/dádiva relativos aos seus

contextos socioculturais. Portanto, justamente o aspecto criticado por Lévi-Strauss na

análise maussiana, o de apresentar uma abordagem fenomenológica que prioriza a

teoria nativa em detrimento de uma abordagem analítica, ou de confundir estes dois

níveis, é onde se localiza a riqueza da abordagem de Marcel Mauss. Este autor, além

de separar os três momentos relativos à troca (dar, receber e retribuir), tem no caso do

hau (espírito da coisa) e da traditio romana abordagens que consideram a história e

explicam o elo que une homens e coisas, fazendo-as circular. Considera, assim, as

especificidades das relações que caracterizam essas relações, como Dom/Dádiva,

troca, empréstimo ou comércio, levando em conta que tais relações objetivam,

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sobretudo, a instituição de vínculos entre as pessoas. Desta maneira, estabelece a

possibilidade de pensar as relações sociais como criação de alianças (políticas,

religiosas, de parentesco ou econômicas. Cf. Lanna, 2000), ou de guerra que,

concebida como o contrário da aliança, não deixa de ser pensada como troca, no

caso, de rivalidades, tendo a vingança que a anima como uma outra face da

reciprocidade.

Contudo, a elaboração de Marcel Mauss da troca/dádiva como um “fato social total”,

ou seja, que movimenta a totalidade da vida social (aspectos econômicos, jurídicos,

religiosos, morfológicos e estéticos) nos dá elementos para que a unilateralidade ou

unidirecionalidade constatada por Pierre Clastres nas trocas entre a instituição da

chefia e da sociedade possa esclarecer-se. Para Mauss, esta instituição envolve não

só a troca de presentes, a aquisição de bens através de relações de compra e venda,

da troca de mulheres por meio das relações de parentesco e da troca de palavras,

mas também a troca de gentilezas, de generosidades, de festividades. Abarca até

mesmo as rivalidades ou, ainda, os sentimentos de caridade que motivariam as

doações aos pobres (a esmola), que podem ser vistas como a tentativa do

estabelecimento de uma relação de troca com os Deuses (gratidão, penitência), tanto

quanto as relações sacrificiais de forma geral. Estas não são, portanto, relações que

têm o objetivo apenas de obtenção de bens ou de bons casamentos, mas também

buscam o aumento do prestígio, da influência, da cordialidade, ou mesmo do

estabelecimento de limites entre as relações, de diferenciações e de distinções.

Considerando-se assim, segundo Marcel Mauss, as três obrigações que dão caráter

de sistematicidade à troca/dádiva, não nos parece que o fato de o chefe receber mais

mulheres do que pode doar descaracterize a troca em si, na medida em que ele se

sobressai como doador de palavras e de bens, o que lhe confere influência perante o

grupo. Desta forma esta desigualdade se resolve dentro do próprio sistema de trocas

entre a chefia e a sociedade. Além disso, o chefe indígena possui um estatuto

diferenciado, baseado no prestígio por meio do qual é legitimado, ou seja, legitima sua

posição privilegiada na mediação de conflitos e na transmissão da tradição. Segundo

Pierre Clastres:

A mesma operação que instaura a esfera política proíbe o seu

deslocamento: é assim que a cultura utiliza contra o poder a própria

astúcia da natureza; é por isso que se nomeia chefe o homem no qual se

quebram a troca das mulheres, das palavras e dos bens (2003:61-62).

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Vemos então o artifício dessas sociedades para se manterem igualitárias, pois aqueles

que se destacam e têm alguma possibilidade de acúmulo tornam-se chefes e têm que

redistribuir à sociedade seus bens, tendo com isto o direito de possuírem mais de uma

mulher. O direito à poligamia, por outro lado, garante o controle da sociedade sobre

seu chefe, pois dando mais a sociedade mantém-se como pólo superior. Sem

esquecer que a poligamia aumenta a influência direta do chefe, dado que garante sua

inserção em um número maior de famílias através das alianças matrimoniais.

Reafirma-se desta forma que mesmo as relações de dom envolvem assimetria e

hierarquias, como colocado por Marcel Mauss e enfatizado por Pierre Bourdieu (1996).

Assim, o ato de dar cria diferenças ao mesmo tempo em que une sujeitos, ou seja,

produzindo assimetrias com vistas a superá-las. Nas palavras de Márnio Teixeira-

Pinto, quando afirma que a noção de “sistema” e de “totalidade” está subjacente ao

Ensaio Sobre a Dádiva de Marcel Mauss:

(...) o ato em si de oferecer coisas é ontologicamente determinante na

constituição de uma espécie de “Cogito Coletivo” que a troca expressaria

(Lefort, 1967). A troca, neste sentido, é instituinte de uma primeira

diferenciação: o Dom existe como algo para ser dado a um Outro, isto é,

como algo para Outro. Em outras palavras, o ato potencial da troca

inaugura ou consolida a diferença ontológica entre “Eu” e o “Outro”. Mas

o princípio da Dádiva vai mais além. Pela necessidade de ser retribuído,

o Dom articula um sistema (se um dá e o outro retribui, estão ambos

numa mesma relação): a troca (Teixeira-Pinto, 1992:164).

Quem dá firma-se na relação como dominante, e quem recebe, como dominado, por

ficar em dívida, vinculado à relação pela coisa recebida, até que a retribuição se

concretize, ou então que se aceite o pólo dominante como, por exemplo, o Estado ou

o Sagrado. Assim, nas sociedades das TBAS, conforme Pierre Clastres, existe uma

gradação de superioridade da sociedade sobre o chefe (quando empenha suas

mulheres).

Evidencia-se então a engenhosidade desse tipo de sociedade que, mesmo

considerando o chefe como detentor de prestígio, controla seu poder para que ele não

se torne autônomo, empenhando grande parte de seus valores, suas mulheres os

quais, não podendo ser retribuídos, fazem com que o chefe esteja permanentemente

em dívida com ela. Portanto, a função do chefe é antes caracterizada como a de um

servidor da sociedade, o que o aproxima da definição da “boa política”, guiado pelo

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sentido estrito de igualdade e de democracia que não contempla a separação entre

moral e política, entre governantes e governados, ou entre dominantes e dominados.

Estas seriam as características da chefia indígena enquanto um “lugar” da negação da

autoridade e do poder – atributos exclusivos da sociedade. Os bens trocados, embora

de forma unilateral e assimétrica, servem para fundamentar os vínculos entre a

sociedade e a chefia como uma instância “especial” desta mesma sociedade. Vê-se

assim uma relação clara entre a troca/dádiva com o estabelecimento de alianças, isto

é, “coisas” trocadas que servem antes ao vínculo (conforme se concebe como ele

deva ser) do que à finalidade da troca em si mesma. Assim, importa menos o chefe

não poder retribuir as mulheres que recebe do que o controle da sociedade sobre sua

atuação. Este é o tipo de vínculo que se quer manter.

Quando Pierre Clastres afirma a não-equivalência na troca de mulheres entre a chefia

e a sociedade não entra, em momento algum, na discussão sobre as regras e a

estrutura de parentesco, muito menos em um modelo que dê conta dessas

regulamentações. Mesmo quando debate a exogamia, focaliza a discussão no caráter

e na conceituação das unidades sociopolíticas ameríndias, ao invés de em um modelo

mais abrangente de parentesco, como faz Lévi-Strauss. Afirma que tais unidades

sociopolíticas constituem-se como demos exogamicos formados por várias famílias

extensas, cada qual ocupando uma casa grande. As famílias extensas, com

descendência bilateral e exogâmica, teriam uma tendência a se transformarem em

linhagens – refere-se aos grupos Tupi-Guarani e Tupinambá – em função da

residência unilocal. Dessa forma, atesta que quando a regra de residência é patrilocal

os parentes matrilineares, por ficarem cada vez mais distanciados, passam a ser

considerados menos do que os ascendentes que moram juntos, que são os do lado do

pai. Clastres constata como se constitui a tendência à patrilinearidade nessas

sociedades, aspecto fundamental para a passagem da chefia política, e antevê a

importância da residência na consideração do parentesco, que estudos etnológicos

contemporâneos nas sociedades das TBAS têm demonstrado.

Vemos então que a discussão de Pierre Clastres é sobretudo sobre a dinâmica e a

estática dos sistemas socioculturais relativas aos seus aspectos sociopolíticos, ou

seja, como estes se transformam, mesmo que seja para continuar com o mesmo corpo

conceitual, o que nos faz arriscar a afirmativa de que se trata da estática do sistema

de crenças e da dinâmica social. Para ele, a exogamia nessas sociedades “é o meio

da aliança política” (2003:82) e que pelo fato de cada família extensa ter o seu líder

próprio existe a garantia da permanência da descentralização da política, mantida pela

ação de forças centrífugas que têm como contraponto a ação de um chefe geral, o qual

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atua segundo forças centrípetas (Cf. Lima e Goldman, 2003:17-8). Clastres não se

preocupa com regras e modelos de parentesco como o faz Lévi-Strauss e, neste

sentido, diferencia-se deste mais do que o refuta.

Notamos assim uma diferença na consideração das transformações feita por estes

dois autores. Segundo a tese de Pierre Clastres, os Tupi-Guarani empreenderam uma

mudança de suas formas sociais quando deixaram de ser sedentários e passaram a

ser nômades, abandonando os antigos hábitos e explicitando a liberação das regras

relativas aos casamentos com o objetivo de não mudarem sua configuração ideológica

ou conceitual, ou seja, aquela que prevê que a organização social deve ser baseada

nos fundamentos cosmológicos de um poder não-coercitivo. Assim, deixaram de lado

suas regras sociais quando estas ensaiaram se particularizar, por desconfiarem e

temerem a especialização da esfera política, isto é, que o aumento demográfico viesse

a exigir a centralização política e seu desenvolvimento na forma de um poder

representativo e com capacidade de decisão autônoma e separada da sociedade.

Esta visão de uma mudança social, visando à permanência da primazia da

organização social baseada nos fundamentos religiosos e políticos não-coercitivos que

levaram às mudanças espaciais, parece opor-se simetricamente às transformações ou

aos grupos de transformações que se deram nos mitos sul-americanos, dos quais nos

fala Lévi-Strauss (1958, 1962, 1964). Sabemos que este autor trata de alterações da

ordem conceitual e mitológica, ou seja, inquirindo como os mitos se transformam para

continuarem a dizer coisas idênticas em contextos diferentes, enquanto que para os

Tupi-Guarani de Pierre Clastres a questão que se coloca é como a sociedade se

transforma (inclusive através de deslocamentos espaciais) para continuar com os

mesmos mitos.

Entretanto, a crítica feita por Pierre Clastres à teoria da troca levistrossiana refere-se

estritamente à análise da troca de mulheres como uma estrutura geral e abstrata, pois

afirma a inexistência de reciprocidade na relação entre o chefe ameríndio e a

sociedade, no caso, o fato de o chefe ameríndio receber mais mulheres (direito à

poligamia) do que possa retribuir. Arrisquei afirmar que em vez da inexistência da

reciprocidade entre a instituição da chefia e da sociedade haveria uma relação de

troca/dádiva que, mesmo os termos trocados sendo desiguais, garantiria, pelo estatuto

da relação, o controle da sociedade sobre a atuação do seu chefe. Considerando-se

que a sociedade doa a seu chefe parte de seus bens mais valiosos – as suas

mulheres – isto faz com que ele permaneça em constante dívida em relação a ela,

quer dizer, mesmo que os termos não sejam recíprocos, parece ser o sentimento de

reciprocidade que estabelece os termos (sua valoração) na relação em questão. Este

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estatuto é colocado por Mauss (1950) quando analisa a dívida, isto é, o sentir-se em

dívida até que a retribuição se realize, se esta for possível ou desejada.

4. O PARADIGMA DO DOM: APROFUNDAMENTOS DA ANÁ LISE MAUSSIANA

SOBRE A TROCA

O também autor francês Alain Caillé, no livro Antropologia do Dom. O Terceiro

Paradigma (2002), propõe, como alternativa aos modelos holistas e ao individualismo

metodológico, o paradigma do dom, da política ou do simbolismo. Contrastando com

os modelos holistas que pensam as relações sociais a partir da ação e da coerção da

sociedade sobre o indivíduo, e com o modelo do individualismo metodológico que, no

extremo oposto, vê o indivíduo – guiado por seus desejos egoístas e por cálculos

racionalistas – como agente das ações sociais, este terceiro paradigma pensa as

relações sociais de uma forma horizontal. Portanto, o paradigma do dom reflete sobre

as motivações dessas relações, ou seja, “a partir do seu meio, horizontalmente, em

função do conjunto das inter-relações que ligam os indivíduos e os transformam em

atores propriamente sociais” (:19). Preocupa-se, desta forma, com as inter-relações

entre os indivíduos, e entre os indivíduos e as instituições, que se caracterizam por

oscilarem entre um duplo par de opostos: liberdade/obrigatoriedade e

interesse/generosidade (:42).

Afirma que apenas este terceiro paradigma considera a existência do homem em toda

a sua amplitude e possibilidade de estabelecer relações, conforme desenvolvido por

Marcel Mauss. Dessa maneira, temos que o primeiro paradigma (o holismo) reduz os

indivíduos a atores de roteiros dados em função de seus papéis sociais, quer dizer, às

obrigações e aos direitos prescritos pela sociedade, não considerando esse indivíduo

capaz da ação ou da decisão de dar, cabendo-lhe apenas desempenhar o seu papel

social. Da mesma forma, para o individualismo metodológico, que explica toda a ação

social através do cálculo racional que objetiva uma maior obtenção de lucro, o

indivíduo não seria capaz do desprendimento necessário ao ato de dar algo ao outro

e, assim, estabelecer relações que não objetivassem seu ganho pessoal (lucro). Em

contrapartida, Alain Caillé desenvolve, a partir deste terceiro paradigma, a análise do

Dom em diversos contextos sociais. Nas suas palavras:

O paradigma do Dom não pretende analisar como se gera o vínculo

social nem a partir da base – a partir dos indivíduos sempre separados –

nem a partir do alto – a partir de uma totalidade social sempre já aí

presente – mas de algum modo a partir do seu meio, horizontalmente,

em função do conjunto das inter-relações que ligam os indivíduos e os

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transformam em atores propriamente sociais. (...) [Este é] o Dom que as

sela, simboliza-as, garante-as e dá-lhes vida. Quer se trate de um Dom

inicial ou de um Dom refeito tantas vezes que nem mesmo pareça mais

um Dom, é dando que o indivíduo se declara concretamente disposto a

tomar parte no jogo da associação e da aliança e que solicita a

participação dos outros nesse mesmo jogo (Caillé, 2002:19).

Tendo por base este paradigma, ele afirma que no interior das relações familiares

existe o Dom-partilha, que se expande para as relações não-familiares quando as

sociedades são pacíficas. Já nas sociedades nas quais prevalecem a rivalidade e a

disputa, a prática é a do dom agonístico. Portanto, quando as relações se direcionam

para fora do âmbito familiar, em direção ao âmbito público ou político, o dom tende a

ser agonístico, marcando a presença da disputa por maior poder, influência e

prestígio.

A retomada e o aprofundamento do Dom como possibilidade de análise das relações

sociais em seus aspectos fenomenológicos e específicos é bastante interessante para

o estudo do poder político nas sociedades indígenas das TBAS, principalmente no que

se refere à relação que se estabelece entre dom, simbolismo e política, considerando-

se principalmente que a partir do dom certas relações sociais são firmadas, e que os

indivíduos se mantêm ligados pelo que é dado ou trocado (Cf. também Godbout,

1992:186-7). Assim, relações estabelecidas através do Dom configuram-se também

como relações políticas, ou seja, relações de aliança que têm como parâmetro valores

e intenções que transcendem os sujeitos que trocam, na medida em que envolvem

grupos, linhagens e, em termos genéricos, que tem a intenção de promover o bem

comum ou público. (Bobbio, 1995:954-5).

Assim, na medida em que o símbolo é concebido como aquilo que une significados,

que une um significante a um significado, ou ainda que representa o que está ausente,

todo Dom pode ser considerado como um símbolo, no sentido de que os objetos que

são doados, presenteados ou trocados têm o seu valor relacionado à história pessoal

de quem os fez ou a quem pertenceram (a traditio romana ou mesmo a noção de hau

de que trata M. Mauss), assim como à intencionalidade de significarem algo. Portanto,

da mesma forma que o símbolo, o dom une pessoas, histórias e significados – ou seja,

tradições – fazendo com que a “coisa” trocada ou dada (sejam palavras, gentilezas,

rivalidades, mulheres ou bens materiais, mas sempre significados, sempre símbolos)

organize, ou melhor, estruture o vínculo social entre as pessoas. Dessa maneira, tanto

o símbolo como o dom fundam relações. Dito de outra forma, sem a troca – mesmo

que sob a aparência de unilateralidade ou unidirecionalidade – não há relação social.

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A partir desta ótica é possível reafirmar a possibilidade de uma mensagem específica

contida no direito à poligamia dos chefes das sociedades das TBAS, que é mantê-lo

em dívida, fazendo com que permaneça sob o controle da sociedade, fato que legitima

que ela o afaste se o seu desejo de poder conduzi-lo a distanciar-se da forma como

concebem o fazer política.

Desta maneira, os indígenas das TBAS estabelecem relações com sua chefia para

que ela permaneça da forma como foi ou é idealizada, representando o modelo da

política não-coercitiva e da sociedade igualitária. Isto não significa que não existam

relações hierárquicas nas sociedades das TBAS. Ao contrário, elas estão presentes

nas relações de parentesco e naquelas que são estabelecidas pela troca/dádiva (como

foi demonstrado) e também no que diz respeito à primazia da esfera da religião

(sociedade) sobre a esfera política, que sustenta a superioridade da primeira sobre a

segunda.

Essas relações diferenciam-se da ideologia individualista racionalista e utilitária

ocidental, representada em últimos termos pelas relações comerciais e monetárias,

nas quais o vínculo social entre as partes contratantes serve à circulação e à obtenção

de lucros e em que a finalidade seria a “coisa” adquirida através de relações de

compra e venda, e seu acúmulo pensado como satisfação última do ser humano

(Caillé, 2002:142). As sociedades indígenas, conforme descritas por Pierre Clastres,

são contempladas, ao contrário, pela conceitualização de “economia do dom”, na qual

as relações sociais são regidas mais por valores simbólicos, como prestígio e

influência, e menos por trocas com o objetivo de acúmulo e pelo cálculo racional de

obtenção de lucro, o que caracteriza as economias do “toma-lá-dá-cá” (Boudieu,

1996).

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CONFERÊNCIA DE ABERTURA da VII Jornada dos Alunos do Programa de

Pós-Graduação em Sociologia e Antropo logia

Mirian Goldenberg74

Semana passada, em uma noite de insônia, fiquei pensando no que iria falar hoje para

vocês. Anna Paula Vencatto, em nome da comissão de organização da Jornada,

convidou-me dizendo que era para falar algo sobre pesquisa, pois supostamente sou

alguém que entende do tema, já que escrevi o livro “A Arte de Pesquisar”.

Primeiramente, pensei em levantar algumas questões para discutir com vocês, como:

1. A dificuldade de escolher um tema de pesquisa, pois muitos alunos não têm

um problema, uma questão ou um objetivo;

2. A escolha da metodologia, a partir do fato de que muita gente chega sem tema

e diz “o que eu quero é fazer pesquisa de campo, observação participante”,

sem nem mesmo saber sobre o que pretende pesquisar;

3. A teoria e os dados da pesquisa, já que muitas vezes a tese é um pacote de

citações de “teóricos” em que os dados aparecem apenas para ilustrar o que

eles já disseram;

4. Como fazer uma entrevista, pois muitos têm dificuldade para ouvir e colocam

na fala dos informantes, por meio das perguntas, o que já sabiam ou o que

queriam ouvir.

Abrindo parênteses: lembro de uma experiência de campo em São João Nepomuceno

em que Roberto DaMatta convidou uns oito alunos para fazerem uma pesquisa sobre

a amizade. Eu e outra aluna saíamos todos os dias cedinho para entrevistar as

pessoas da cidade, e os outros dormiam até tarde; depois, encontravam-se em um

barzinho e ficavam tomando cerveja e conversando com os freqüentadores. Naquele

momento, achei aquilo um absurdo. Hoje, reconheço que eles também fizeram uma

pesquisa excelente, bastante criativa (e com certeza mais prazerosa), porque

conversaram muito com os moradores da região e de um jeito bem mais descontraído

do que nós duas;

5. Pensei em contar algumas das minhas inúmeras experiências de campo que

me ensinaram coisas que não se aprendem nos livros, como os dilemas que

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vivi quando Rubem César me disse que eu deveria participar do ritual e tomar

o chá de ayuasca para escrever um trabalho de fim de curso sobre o Santo

Daime (e não apenas entrevistar seus adeptos, como eu estava planejando);

6. Por fim, pensei em discutir com vocês uma idéia de Roland Barthes de que

gosto muito e coloquei como epígrafe de “A arte de Pesquisar”. Ele diz que:

Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida

outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.

Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender,

de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento

impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que

atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora

de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo na própria

encruzilhada de sua etimologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de

saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível.

Depois de pensar nesses vários caminhos, lembrei-me, no meio da noite insone, de

uma frase que sempre digo para os meus alunos, frase que me acompanha e me

consola nas minhas dificuldades com o mundo acadêmico.

Muitos anos atrás, quando fazia o doutorado, li a autobiografia de Norbert Elias que

ainda não tinha sido publicada no Brasil. Neste livro, Elias dizia algo do tipo: “Se eu,

quando estava escrevendo minha tese de doutorado, soubesse que todo mundo sofre

ou sofreu o que eu estava sofrendo, eu teria sofrido um pouco menos. Só que

ninguém me disse isso”.

Então, pensei em tentar falar algo para diminuir o sofrimento que, com certeza, vocês

estão sentindo ou irão sentir um dia.

Desde que ingressei no mundo acadêmico, só conheci duas pessoas que não

sofreram no processo de escrever uma tese. Para não citar essas duas pessoas, que

são aqui do Rio, preferi um exemplo um pouco mais distante.

Howard Becker ao contar que, ao contrário de seus amigos, não sofreu muito para

concluir seu mestrado aos 21 anos e seu Phd aos 23, diz:

Mesmo entrando para o Departamento de Sociologia, eu não tinha

sérias intenções de me tornar sociólogo. Eu tinha a séria intenção de

me tornar um pianista de jazz. Trabalhava três ou quatro noites por

semana em bares e estudava piano horas seguidas, todos os dias. A

universidade era uma atividade de lazer, uma espécie de hobby. E isso

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teve um resultado interessante, porque eu não tinha nenhuma

ansiedade em relação aos estudos. Se me saísse bem, ótimo, se não,

não tinha importância. Todos os meus amigos se preocupavam,

sofriam, e eu não. Lembro que uma vez encontrei no campus Joseph

Gusfield... Ele estava carregando uma pilha enorme de livros de

psicologia social e eu perguntei para que era aquilo. Ele me disse que

estava estudando para a prova, e eu me espantei, porque todos nós

sabíamos que Herbert Blumer, o examinador da matéria, perguntava

sempre as mesmas coisas. Bastava estudar um pouco que já dava

para fazer a prova. E então Gusfield me disse: “Mas se eu quero ser

um grande sociólogo, tenho que ler tudo isto. É importante”. Eu só

estava preocupado com o suficiente para passar de ano, nunca liguei

para provas, nunca me preocupei com tese. Para mim, aquilo era uma

brincadeira. E assim consegui a minha titulação. Acho que consegui

tão depressa por isso, porque minha ansiedade estava no piano...

Escrevi minha tese de mestrado sobre os músicos de jazz e foi muito

fácil. Tudo o que eu tinha que fazer era manter um diário de campo

sobre o que acontecia comigo. Quando chegava em casa, de manhã,

fazia minhas anotações (p.3). (...) Tornei-me então o Dr. Becker [depois

de escrever a tese de doutorado] e me perguntei: e agora? Nessa

época eu ainda estava tocando piano, e essa era a atividade mais

importante para mim. Mas em dado momento comecei a pensar:

“Afinal, estudei todo esse tempo, e talvez deva admitir que as pessoas

com quem trabalho nos lugares onde toco piano não são tão

simpáticas assim, são meio mafiosas, meio criminosas. Talvez seja

melhor seguir o caminho acadêmico” (p.17) (...) Comecei a lecionar

realmente em 1965, na Northwestern, e tive todos aqueles problemas

terríveis de um professor iniciante, de preparar aulas... Eu não sabia

ensinar. Sabia fazer pesquisa, mas não ensinar. Foi horrível, mas de

alguma maneira sobrevivi (p. 18).

Diferentemente de Becker, sou daquelas pessoas que sofreram e sofrem o tempo

todo: para fazer os trabalhos de fim de curso, para escrever a tese, para defender a

tese, para conseguir a bolsa de recém-doutor, para fazer o concurso para professora

do IFCS e, quando pensei que finalmente iria relaxar, começaram os sofrimentos

infinitos: pedir a bolsa do CNPq, renovar a bolsa do CNPq, escrever os artigos que

têm que ser publicados em revistas qualis A, escrever os livros e esperar que as

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pessoas leiam e gostem, orientar alunos e não saber o que a banca vai dizer na

defesa (e, tenham certeza, o orientador é quem se sente mais vulnerável às críticas da

banca), apresentar trabalhos na ANPOCS, na ABA, fazer palestras, dar aulas na

graduação e na pós etc. Sou avaliada diariamente:

d pelos alunos, que querem sair das aulas com a sensação de que ganharam

algo que justifique o fato de estarem aqui e não na praia;

d pelos orientandos, que sempre vão descobrir alguma responsabilidade do

orientador nas dificuldades que enfrentam para concluir a tese;

d pelos colegas, que vão dizer se fui ou não interessante nas colocações em

algum seminário ou congresso;

d por mim mesma, que tenho medo de não estar dizendo nada de original e

brilhante.

Todos têm seus próprios fantasmas que assombram principalmente na hora de dormir.

Eu tenho muitos. Agora vocês entenderam a razão de minha insônia.

O que mais invejo em um colega – e não são poucos os que têm esta qualidade – é a

capacidade de dormirem pelo menos seis horas antes de uma conferência ou palestra.

Aqueles que dormem oito horas são meus exemplos de saúde mental. E até hoje,

depois de quase 12 anos no IFCS, ainda olho com admiração para os professores que

têm uma boa noite de sono antes de uma aula. O pior é que a insônia não é apenas

antes do evento ou da aula. Depois, a cabeça não pára pensando no que falei, no que

não falei, em que não fui tão bem, no comentário do outro. Minhas idéias mais

interessantes só surgem depois que o debate acabou, provavelmente quando já estou

deitada e deveria dormir. Fico matutando: “Naquela hora, eu deveria ter respondido

assim.”; “Como não pensei em dizer assado? É tão óbvio!”. E continuo com o debate

na minha cabeça, só que agora sem interlocutores e público. Se somarem o antes e o

depois, vocês vão perceber que são raras as noites de sono tranqüilo.

Aí chega o sábado, meia-noite, em que supostamente todos estão se divertindo e

relaxando, e estou no computador escrevendo algum artigo ou resenha para uma

revista. Penso: “Será que sou a única maluca que está trabalhando no sábado, a esta

hora?”. Acabo de ter esse pensamento e recebo um e-mail da Yvonne enviando-me

um texto que está escrevendo. Respondo: “Yvonne, será que somos as únicas

malucas que estão trabalhando a esta hora, no sábado?”. Ela imediatamente me

responde com outro e-mail (pois está proibida de me ligar depois das 10 horas para

não me provocar ainda mais insônia): “Acabei de falar com o Peter, que também está

escrevendo não sei o que para não sei onde”. Resumindo, somos uma comunidade de

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malucos, provavelmente insones, que passam fins de semana, feriados e férias

trabalhando. Que não relaxamos nunca, que vamos ao cinema e choramos muito ao

ver Hotel Ruanda, como eu e Yvonne, mas saímos e discutimos o filme usando o

conceito de indigenização da modernidade de Marshal Sahlins. Só para vocês terem

idéia, a única novela que me permiti assistir foi Laços de Família, pois tinha a

justificativa de estar dando um curso sobre família na pós-graduação com a Bila.

Depois, publiquei dois artigos sobre a novela para provar para mim mesma que não

estava vagabundeando.

No meu caso, tudo pode ser fonte de reflexão para as minhas questões que, como

vocês sabem, são as relações de gênero na cultura brasileira. Muito freqüentemente,

após uma palestra que dou, uma pessoa do público vem me fazer alguma pergunta e

eu inverto totalmente a situação e começo a entrevistá-la. É um vício. A Anna Paula

Vencato já percebeu isso em nossos intervalos de café, no meio das aulas, quando

começo a fazer um verdadeiro interrogatório para os alunos do curso.

Aliás, Anthony Giddens também fala de seu interesse pelos alunos ao contar por que

nunca pensou em abandonar a vida acadêmica, apesar de sua dificuldade para ser

nomeado para uma cátedra de sociologia em Cambridge:

Deixaram de promover-me em nove ocasiões, um recorde que só

recentemente foi quebrado por alguém (p.41). Apesar de minhas

dificuldades em Cambridge, sempre me senti satisfeito na vida

acadêmica estando em contato regular com os estudantes.

Perguntaram ao célebre teórico social francês Michel Foucault,

pouco antes de sua morte, como ele definiria a si mesmo, e ele

respondeu simplesmente: “como um professor”. Também é assim

que me vejo. Lecionar, especialmente para um público estudantil

tão diverso, tem sido um dos grandes prazeres de minha vida

(pp.40-41).

Marshal Sahlins, ao relatar a experiência do teach-in, nos anos 60, como uma forma

inovadora de protesto contra a guerra do Vietnã, também destaca a importância do

papel dos alunos na vida acadêmica. Ele diz:

Os dois [professores e alunos] se estimularam mutuamente: assim

como o compromisso do corpo docente aumentou em resposta à

dedicação dos alunos, as fileiras dos estudantes engajados

aumentaram pela curiosa descoberta de que seus professores eram

seres humanos, dispostos a direcionar suas paixões acadêmicas e seu

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saber para alguma coisa que estava acontecendo no mundo. Os teach-

in foram uma genuína experiência intelectual talvez porque, pela

primeira vez, tanto professores quanto estudantes estivessem

discutindo, a sério e com respeito pelas opiniões uns dos outros, algo

que ambos tinham profundo interesse em compreender (p.280).

Se os alunos são um “dos grandes prazeres” da vida acadêmica, existem, no entanto,

muitos sofrimentos.

Como diz Pierre Bourdieu, compreender a própria trajetória é compreender o campo

com o qual e contra o qual cada um se fez. Ele diz: “o mundo intelectual, que se

pensa tão profundamente liberto das conveniências, sempre me pareceu habitado por

conformismos profundos, os quais agiram sobre mim como forças repulsivas” (p.128).

Ao revelar o sentimento de ambivalência que sempre sentiu perante o mundo

intelectual, diz que:

[...] essa tensão nunca se revelou a mim de maneira tão dramática

como por ocasião da aula inaugural no Collège de France, ou seja, no

momento de assumir um papel que eu tinha dificuldade para englobar

na idéia que eu fazia de mim. A preparação dessa aula levar-me-ia a

sentir uma concentração de todas as minhas contradições: o

sentimento de ser perfeitamente indigno, de não ter nada a dizer que

mereça ser dito diante daquele tribunal. Na certa, o único veredicto que

reconheço duplica-se por um sentimento de culpa em relação a meu

pai, que acabara de morrer... Embora saiba que ele teria ficado por

demais orgulhoso e feliz, estabeleço um liame mágico entre sua morte

e êxito, assim constituído em transgressão-traição. Noites de insônia

(pp.130-131).

Nessa aula inaugural, Bourdieu criticou, questionou, desafiou a própria Instituição. Ele

conta: “Esboço um movimento de parada brusca e de ir embora... vou até o fim na

corda bamba. Depois sinto um terrível mal-estar, ligado ao sentimento da gafe mais

do que da transgressão”. [Depois que concluí a aula], “falo a torto e a direito, em meio

ao relaxamento que se segue a uma enorme tensão, com o sentimento de ter sempre

de pagar um preço muito elevado por tudo” (p.132). É o próprio Bourdieu sentindo-se

um “peixe fora d’água”.

Mas é Bourdieu também que considera importante repartir essas dificuldades do

mundo acadêmico para poder superá-las. Assim ele nos fala:

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Nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades. Cada um

achará uma certa consolação no fato de descobrir que grande número das

dificuldades imputadas em especial à sua falta de habilidade ou à sua

incompetência são universalmente compartilhadas. Quanto mais a gente

se expõe, mais possibilidades existem de se tirar proveito da discussão e,

estou certo, mais benevolentes serão as críticas ou os conselhos (a melhor

maneira de “liquidar” os erros – e os receios que muitas vezes os

ocasionam – seria podermos rir-nos deles, todos ao mesmo tempo) (pp.

18-19).

Assim, termino com a frase de Norbert Elias que me inspirou. Como vocês sabem,

Elias, durante décadas, foi um verdadeiro outsider no mundo acadêmico. Somente

aos 57 anos conseguiu sua primeira posição estável como professor de sociologia. “O

processo civilizador” foi publicado em alemão em 1939, mas só foi descoberto

tardiamente, na década de 70, na França e na Inglaterra. Em “Norbert Elias por ele

mesmo”, escreveu:

Sabia que era um bom professor – já tinha a reputação entre

meus companheiros de estudos de possuir o dom de explicar

coisas complicadas com simplicidade. Gostava de ensinar. No

que diz respeito à pesquisa, dispunha apenas de minha tese de

doutorado para provar minha capacidade. E ela representava um

trabalho duro. Tinha confiança em minhas capacidades

intelectuais, e idéias não me faltavam. Mas o imenso trabalho

intelectual que minha tese exigiu me parecera dificílimo. Só bem

mais tarde fui pouco a pouco compreendendo que noventa por

cento dos jovens encontram dificuldade ao redigir seu primeiro

trabalho importante de pesquisa; e, às vezes, acontece o mesmo

com o segundo, o terceiro ou o décimo, quando se consegue

chegar aí. Teria agradecido se alguém me dissesse isso na

época. Evidentemente pensamos: “Sou o único a ter tais

dificuldades para escrever uma tese (ou outra coisa); para todos

os outros, isso se dá mais facilmente”. Mas ninguém disse nada.

É por isso que digo isso aqui. Essas dificuldades são

absolutamente normais. Sabia que a sorte estava do meu lado. O

trabalho jamais foi totalmente fácil para mim, mas eu era

perseverante e nunca o abandonei (pp.102-103).

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Aproveito o convite que a comissão de organização da Jornada me fez para dar este

recado em alto e bom som. Para que mais tarde não possam dizer, como Norbert

Elias, que nunca ninguém disse esta verdade para vocês.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Alzira Alves; VELHO, Gilberto; ESTRADA, Maria Ignez Duque. Uma

entrevista com Howard S. Becker. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 5,

1990, p. 114-136.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras,

2005.

ELIAS, Norbert. Norbert Elias por ele mesmo. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

GIDDENS, Anthony & PIERSON, Christopher. Conversas c om Anthony Giddens.

Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

SAHLINS, Marshal. Cultura na prática. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

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PALESTRA proferida por João de Pina Cabral nos Encontros com a Sociologia e

a Antropologia

Apresentação

Com o objetivo de ampliar as discussões entre os profissionais da Ciência Humana, a

Revista Enfoques traz uma novidade. Trata-se da reprodução de alguns textos

apresentados nos Encontros de Sociologia e Antropologia, organizados pelo Programa

de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ), cujo objetivo é

proporcionar aos professores e aos alunos uma integração com profissionais de

diversos países, além de contribuir para aprofundar questões de abrangência social e

cultural.

Neste número, a Revista Enfoques traz alguns trechos do debate ocorridos durante a

exposição do antropólogo João de Pina Cabral,75 que esteve no Programa de Pós-

Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGAS) no dia 23 de agosto de 2005, na

sala Evaristo de Moraes. Com a palestra intitulada “A Catedral das Palhotas: religião e

política no Moçambique tardo-colonial” o autor buscou mostrar como a religião, a

política, a arquitetura, a arte, a identidade étnica integram-se:

“[...] Na verdade, o que se passa com a definição do que é religião passa-se com a

definição do que é política, do que é economia, do que é simbolismo, passa-se com

todas as grandes categorias analíticas da antropologia. Ora, como dar volta à questão

definidora do que é religião? A solução que eu prefiro constitui-se em recusar toda e

qualquer fixação sobre as fronteiras categoriais, aquilo que os ingleses chamam de

categorical boundaries. [...] Assim, a atitude que proponho a vocês aqui é que ao invés

de seguirmos o percurso sociocêntrico já tão familiar, que parte de um núcleo

conceitual central que se presume ser estruturante e claramente determinável em

direção às margens que se presume que são [...], seja o contrário: que assumamos

que temos que abordar a religião a partir das margens, a partir da sua intrínseca

marginalidade, quer dizer, vendo-a como uma área de sociabilidade que nunca atinge

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absoluta completude, nunca é plenamente estruturada e é sempre integralmente

perpassada pelo resto da vida sociocultural. Se pensássemos que nos iria ser possível

determinar de forma transculturalmente válida o que é de fato religião, então seríamos

levados a procurar delimitar suas fronteiras definidoras. Só que esta esperança há

muito se desfez, como aliás em todas as outras grandes áreas da antropologia

clássica. Não nos resta, pois, mais do que abordar a religião a partir do ponto de vista

da sua marginalidade, da sua mutuabilidade e relacionalidade. Ora, mal aceitemos um

enfoque sobre as margens da religião, mais rapidamente nos convenceremos de que

não há realmente uma perspectiva melhor para o estudo da religião do que esta” (João

Pina Cabral – IFCS/PPGSA/2005).

Filho de um bispo anglicano em Moçambique, desde cedo Pina Cabral interessou-se

pelas relações entre europeus e africanos. Nesta palestra, o autor traz como objeto de

análise Moçambique, onde o campo da religião tardo–colonial funcionava como uma

margem etnicamente partilhada para lidar com os dilemas levantados pela

modernidade. Recorrendo ao trabalho de Amâncio d'Alpoim Guedes, mais conhecido

por Pancho, “um dos mais brilhantes arquitetos que jamais me foi dado conhecer”, o

autor mostra de que forma as viagens de campo em Moçambique o colocaram diante

das investigações sobre relações, religiosidade, concepções familiares e perspectivas

políticas, etnicidade, como veremos no texto a seguir.

Revista Enfoques

Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia IFCS/UFRJ

Palestra

“Apesar de o gesto político inicial ter constituído um pouco mais do que um exercício

de diplomacia internacional, no decorrer dos anos 60 as atitudes foram evoluindo num

sentido de maior abertura internacional, e consideráveis mudanças foram também

ocorrendo nas coalizões políticas internas em Moçambique durante o período da

Guerra Fria. Uma guerra de guerrilha anti-colonial pró-Soviética estava em curso nas

fronteiras ao norte e a nordeste de Moçambique. No entanto, o impacto dessa guerra

sobre as populações urbanas em rápido crescimento era muito tênue. Assistiu-se a um

dos períodos de maior crescimento econômico na África Austral, que trouxe consigo

uma relativa prosperidade e abriu às populações rurais um maior contato com as

sociedades de consumo. Durante os anos 60 e na primeira metade dos anos 70 – a

isto eu chamo de período tardo-colonial – ocorreu também um surto de construção

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 J¡_¢�£¤x¥y e¦ § ¨~©[ªJ«0¬�­~®�©e¯C©S­�¨a°�±J«0²�®9³�´e¬�®�¯0µ�±[´�¬>³J´�¶�¶%·�¦�¸�¹�º�¢�»�¦S¹[¥_¢�¼e½

civil, o maior que o pobre país jamais teve, e que se liga ao nosso tema de hoje: a

arquitetura colegial modernista. [...] O período tardo-colonial levou também a uma

gradual mudança de atitudes da população branca e do Estado para com as

populações indígenas. O sistema de Higinato, que retirava o direito de cidadania à

maioria das populações negras, foi abolido [...]”.

“[...] em Moçambique muitas pessoas de classe média branca já estudavam na África

do Sul e, portanto, tinham acesso a formas modernas e eram altamente influenciadas

pelo Ensino Superior, o que não estava disponível em Portugal. Continuávamos com o

nosso retrógrado sistema universitário. Isto provocou um impacto muito grande sobre

Moçambique no mundo da língua portuguesa. Essa elite, com uma forte ligação com o

sistema universitário sul-africano, correspondia a uma espécie de vanguarda e isto se

nota ainda hoje. Mas não é sobre isto que eu vou falar. A política salazarista de reduzir

um pouco a opção cultural e intelectual em Moçambique por relação aos restantes

espaços do império. Dentro da lógica o que se estampava neste detalhe tão distante

que seu espaço sobre os outros territórios estariam formalizado. Em Angola não era

assim em Portugal, Cabo Verde e São Tomé não era assim, em Moçambique era

permitido as pessoas que tinham um papel encontrar o regime que tinham estado no

exílio entrar e residirem em Moçambique. Por exemplo, o meu professor de história,

durante o ensino secundário, tinha sido secretário geral no partido comunista, foi

preso, fugiu, seguiu para a Bulgária e depois negociou com o regime a possibilidade

de voltar, mas só para Moçambique. Houve muitas pessoas assim e, portanto, este foi

um impacto muito grande em Moçambique.”

“O arquiteto Pancho Guedes [...], nascido em 1925 em Lisboa, passou a sua infância

em Moçambique, onde seu pai era médico e prestava serviço. Tendo estudado

arquitetura na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, voltou para Lourenço

Marques em 1949. Iniciou a sua vida profissional como desenhista no gabinete de

arquitetura da Câmara Municipal da cidade. O seu primeiro trabalho (quem conhece

Moçambique se surpreenderá, pois é um fato) constitui hoje um marco identitário

central da cidade. Foi encarregado de redesenhar a fortaleza da cidade a partir da

ruína dos alicerces que constituem os restos ainda existentes do que tinha sido por

vários séculos a única presença portuguesa no sul de Moçambique, o sempre precário

Presídio de Lourenço Marques.”

Nas palavras de uma historiadora da arte africana, quando o movimento modernista

assumiu o controle na África Austral, alguns arquitetos, em especial Nornam Eaton,

Barrie Biermann e Amâncio d'Alpoim Pancho Guedes, concentraram-se na exploração

das possibilidades de uma adaptação regionalista às condições específicas locais do

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Estilo Internacional emergente. Uma parte central dessa procura foi um forte

engajamento com formas artísticas e artesanais e uma curiosidade sobre a cultura

tradicional africana. Guedes, em especial epitomisa essa explícita integração da arte

com a arquitetura. Ele não só aplica a arte a partir de vários meios à sua arquitetura,

como mais significativamente trata o próprio edifício como uma escultura.’ [...] Pancho

Guedes foi sempre um pensador e artista profundamente polêmico e prolixo, que

nunca se associou ao regime ditatorial e colonialista português. Contudo, no período

de pós-independência, as suas posições resolutamente liberais e opostas ao

autoritarismo soviético levaram-no a ter de sair do país e a aceitar o posto de

professor e de chefe do departamento de arquitetura na Universidade do

Witwatersrand em que se aposentou no início da década de 1990, indo viver em

Sintra, perto de Lisboa onde tem hoje um papel ativo como arquiteto e professor de

arquitetura.

“Falaremos agora um pouco das igrejas protestantes. Alguns dos seus projetos mais

inovadores foram realizados para as igrejas missionárias protestantes. [...] Com os

missionários protestantes de origem não-portuguesa, Pancho Guedes partilhava de

uma profunda preocupação com a questão da educação africana – questão tão

polêmica no âmbito do coronelismo salazarista, cujas atitudes sempre foram no

sentido de impedir a formação de uma elite africana com raízes regionais. [...] Diz-se

que este foi um dos temas mais polêmicos no período da virada das décadas de 50 e

60 e nas dissensões políticas que então marcaram o regime. Quando Henrique Galvão

se vira contra o salazarismo dizendo que Salazar queria manter no obscurantismo as

populações africanas, este foi um ponto retórico central. Aliás, nos panfletos que

Henrique Galvão publicou aqui no Brasil, nos anos 50 e 60, o enfoque do

obscurantismo era muito importante. Falo isto porque realmente a questão da

educação africana acabou por se revelar um grande tema polêmico naquela época,

mais ainda para Pancho que se recusava a ver a arquitetura como algo separado tanto

da arte quanto da vida cotidiana, e sentia ser urgente construir uma linguagem cultural

e artística que permitisse, por um lado, reduzir o sentimento de alienação da

população africana em relação ao seu passado diante da modernidade e, de outro

lado, reduzir o sentimento de deslocamento e de estranhamento que a população de

origem européia tinha quanto à inserção africana. Para Pancho, na época, a noção de

que as populações brancas viessem um dia a deixar de constituir parte integrante da

sociedade africana era tão impensável quanto a noção de que o colonialismo racista

se prolongaria interminavelmente. Lembrem-se de que estávamos no auge do período

modernista e que essa gente tinha a idéia de que a história iria se cumprir – aquela

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coisa que o Brasil também tem – mas a história não se cumpriu, apesar de eles

estarem convencidos de que sim. Portanto, se por um lado acreditavam que o futuro ia

ser a independência, por outro lado também estava muito longe de pensar que poderia

haver uma diminuição das porções brancas. [...] Para Pancho, como para Henrique

Galvão, como ainda para os líderes exilados dos movimentos independentistas

africanos, o lusotropicalismo oficial não constituía mais do que uma fachada hipócrita

e, sobretudo, cega em relação ao futuro. Para um modernista como Pancho, a

inevitabilidade de uma forma qualquer de libertação nacional e cultural num futuro

próximo estava fora de questão [...].”

[...] “Assim, a injustiça racial e a hipocrisia cultural e política que rodeavam [Pancho]

deixavam-no profundamente preocupado. Já queriam produzir inevitavelmente uma

temível herança de revolta e violência. Pancho criticava ferrenhamente os arquitetos e

os urbanistas que desenhavam na época a cidade de Lourenço Marques , que sempre

foi a sua cidade, e que se preocupavam em produzir uma cidade formal esteticamente

perfeita, esquecendo a realidade viva da crescente população africana. Eram cegos ao

inevitável devir da cidade. Em julho de 1963, publicou nos jornais um texto em que

acusava os urbanistas de venderem os verdadeiros futuros mascarados em sonhos.

Quem hoje visitar Maputo não poderá deixar de ficar impressionado com a força

visionária desta apreciação. Na época, a missão presbiteriana suíça, formalmente

fundada por Henri Junod, e a Diocese Anglicana dos Libombos, eram as duas

principais dominações protestantes. O impacto da sua evangelização nas populações

do sul de Moçambique resultou essencialmente de uma longa história de migração

laboral masculina para as minas do Transval e das Rodésias Norte e Sul, em que

houve a ocupação territorial portuguesa na década de 1890. Isto é importante explicar,

porque a historiografia do movimento pós-independência também não compreendeu o

fato e hoje há uma revisão desse enfoque.

Nas áreas do país em que eram ativas essas denominações, havia uma influência em

número de crentes bem superior à da igreja católica romana oficial, cujo impacto na

época ainda estava fortemente ligado à colonização portuguesa. [...] Os hospitais e os

postos de saúde que essas missões montaram nas zonas rurais do sul do país eram

uma marca da sua independência diante do Estado. Contudo, o que mais incomodava

os oficiais do regime eram as atividades de educação e catequese que essas missões

empreendiam, quando freqüentemente eram usadas as línguas nativas [...] Para os

setores da direita do regime anti-colonial, tratava-se de uma forma descarada de

propaganda “anti-portuguesa”. O exemplo máximo dessa atitude é o estudo do

protestantismo africano publicado pelo antropólogo José Júlio Gonçalves, com o qual

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ele obteve o seu doutoramento na Universidade Complutense de Madrid. Ele foi

funcionário do Ministério da Defesa, esteve associado à polícia política e mais tarde foi

professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarina (assim

passou a chamar-se a Escola de Estudos Coloniais após as reformas de Adriano

Moreira).”

“[...] O período Caetanista nos primeiros anos da década de 70 foi marcado por uma

série de iniciativas idealistas com forte visão futurista e que acabaram por ser

largamente derrotadas. A criação de universidades na África foi um desses grandes

esforços, cujo impacto em Moçambique é ainda hoje crescente. Outro que muito nos

interessa aqui foi o esforço liderado pelo último Governador Geral colonial Baltazar

Ribeiro de Sousa, no sentido de realizar uma aproximação com os movimentos

religiosos tradicionalmente opostos ao colonialismo português: as comunidades

muçulmanas, as igrejas protestantes tradicionais, mas deixando fora o islamismo, e os

setores emergentes da Igreja Católica Romana que, nesta altura, estava se firmando.

O governador e o próprio Marcello Caetano revelaram-se incapazes, porém, de

controlar as atividades repressivas da polícia secreta do regime (PIDE), dos setores

mais exaltados das Forças Armadas assim como dos ideólogos do regime (ferozes

inimigos da dissensão religiosa tais como José Júlio Gonçalves).”

“Nas tentativas de liberalização, eu insisto em destacar José Júlio Gonçalves. Ele

escreveu dois volumes sobre o protestantismo alemão. Esses volumes têm sido

recuperados, por quê? Porque as pessoas procuram dados, informações sobre o

protestantismo na África e só vão encontrá-las no livro de José Júlio Gonçalves.”

“Para pessoas como Pancho Guedes e os líderes religiosos protestantes da época,

contudo, a falência das políticas caetanistas representa o fim do seu muito acarinhado

sonho protonacionalista de uma evolução gradual e negociada visando à

independência política e à libertação das populações africanas do jugo colonial.”

“Falemos agora um pouco sobre a igreja anglicana. A catedral anglicana de Maciene é

um velho e amplo edifício com telhado em folhas de zinco, ao estilo das igrejas

missionárias rurais que foram construídas na segunda metade do século XIX por toda

a África. A data de sua fundação é hoje desconhecida e o local de sua construção, por

ter sido muito anterior à implementação da administração portuguesa na década de

1890, não se integra facilmente na organização territorial moderna. Assim, tal como a

missão presbiteriana de Rikatla, fundada por Junod na mesma região, a catedral

anglicana está situada numa zona rural profunda, relativamente distante da cidade de

Xai-xai, que é a cidade mais próxima e é a capital da moderna Província de Gaza.”

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“Apesar de ser suíço por nacionalidade, Junod era contrário aos interesses coloniais

portugueses e escreveu bastante sobre isso. Ele foi um participante ativo na cena

política da época, sempre favorecendo os interesses militares. A tradição de ódio e

suspeita, por parte dos portugueses, direcionada aos missionários anglófonos, queria

prolongar-se em Moçambique bem para além da Independência e foi inicialmente

formulada pelos principais integrantes da Expedição Militar que controlou Gaza e

muito, particularmente, pelo próprio Mouzinho, e largamente disseminada através da

difícil diplomacia com Junod. Em 1967, porém, os bispos da Província Anglicana da

África Austral, sentindo que o tempo para missões lideradas por estrangeiros estava

por terminar e que um certo nível de autonomia local tinha de ser constituído em

Moçambique, em interseção com as autoridades portuguesas e não contra elas,

decidiram nomear para a Diocese dos Libombos um bispo de língua e nacionalidade

portuguesas. Defendiam que tal pessoa estaria em melhor posição que um britânico

para reduzir os temores quanto às atividades portuguesas e para organizar a Diocese

com um grau maior de autonomia, preparando um candidato moçambicano para o

bispado. Esta decisão, francamente apoiada pela nova geração de bispos anglicanos

de origem africana, viria a provocar um importante no estertor do apartheid. Penso que

tanto o Bispo Zulu, que é menos conhecido internacionalmente, mas que teve um

papel de liderança entre os bispos anglicanos, assim como o bispo Tutu, que depois

como arcebispo se tornou uma grande figura internacional, causaram grande

desconforto nos meios missionários britânicos, os quais até então tinham controlado

tais relações. Não vou entrar aqui em detalhes, mas este desconforto continua ainda

hoje. [...] Vocês vêem que há desencontros, há compatibilidades equívocas que vão

acontecendo. A história é feita disso. O bispo escolhido foi o meu pai, Daniel de Pina

Cabral; ele era pastor evangélico e advogado comercial, oriundo de uma família

protestante do norte de Portugal e foi entronizado em Lisboa em 1967, obtendo o

bispado em 1976 [...].”

“O que estou tentando sugerir é que a possibilidade da mudança para a capital, com o

realinhamento de uma catedral que estava numa zona rural, porque correspondia a

um realinhamento anterior à implantação do colonialismo, pondo-a em Maputo,

constituía um problema político para as elites que tinham encontrado ali uma espécie

de meio para manifestarem alguma preponderância dentro de um regime colonial. No

regime colonial, trata-se de uma questão parecida com aquela da aristocracia do

proletariado, em que um grupo subalterno tem dentro dele alguém que consegue

negociar formas de posicionamento. É sobre isto que eu estou falando. Mas a velha

catedral estava urgentemente necessitada de reparação. Durante uma conversa

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informal, o bispo teria dito ao arquiteto que precisava reconstruir a catedral, mas que

não tinha dinheiro para tal. O próprio Pancho Guedes descreve como apresentou ao

Bispo, algumas semanas mais tarde, um plano de construção de uma nova catedral

com materiais disponíveis no local e técnicas arquitetônicas tradicionais, o que

reduziria os custos a quase nada. Este foi o plano que a princípio apresentou. Ele

assim o descreve: “quando era preciso construir alguma coisa, mas faltava dinheiro,

eu costumava optar por um modo de construção tradicional moçambicano, mas da

forma como é construída a maioria das casas moçambicanas – e quase toda a gente

sabe construí-las. Por todos os lados encontram-se pau, cana, lama e palha. Estão

disponíveis de graça ou por quase nada. No entanto, esse tipo de sugestão só era

aceito como último recurso. Os negros preferiam sempre uma 'casa de branco', tinham

vergonha de suas palhoças maravilhosas (não sei se vocês usam aqui a palavra

palhoça, usam?), perfeitamente adaptadas e econômicas. E, assim, ele o descreve:

‘Para a igreja anglicana situada no interior do mato, em Maciene, e que necessitava de

um novo edifício e não tinha dinheiro, eu busquei as formas tradicionais de construção

do vernáculo moçambicano’.“A Catedral de Palhotas celebra os componentes

tradicionais do 'Kraal', a aldeia e o curral, que é característico do sudeste da África. O

sinal da cruz é repetido quatro vezes nos canais das águas da chuva, nas paredes,

nas palhotas e no cruzamento das trilhas do mato." É característico de Pancho fazer

com que sua arquitetura ecoe na paisagem, criando coisas nela em virtude da

presença da arquitetura. Então, ele fala das quatro cruzes, uma das quais não está no

plano de Albuquerque; o que acontece é que as pessoas vêem e fazem trilhas – era

esta a idéia dele. A palhota central seria construída pela comunidade, enquanto as

palhotas menores seriam construídas por cada uma das famílias como se fossem

bancos de igrejas. A parte interior do muro tinha assentos e havia enormes cajueiros

(esféricos e verde-escuros) em cada um dos quatro cantos. Segundo Pancho Guedes,

esta é a maquete, e o bispo teria rejeitado o modelo porque preferia um estilo de

construção não-vernacular. Foi isto o que ele disse quando lhe perguntei: ‘mas então

por que meu pai rejeitou o modelo?’ Ele respondeu: ‘porque não gostava; queria a

construção de cimento’. Fui então perguntar ao meu pai e ele me disse que não se

lembra de todo de ver esse modelo, mas que se lembra de uma coisa: que o Pancho

estava demorando muito para fazer os planos de uma outra igreja e com a qual ele

estava mais preocupado, pois era o Centro Diocesano de São Cipriano em

Chamanculo e que, portanto, ele não teria dado atenção por causa disso.”

“O plano de Pancho Guedes para a sua Catedral de Palhotas nunca foi erguido, no

entanto, iria ter uma longa vida como um projeto não-construído. A intensa atividade

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de Pancho Guedes como professor de arquitetura – através desta maquete e como

promotor da integração entre arte, arquitetura e idiomas tradicionais da África Austral –

fez com que, em meados dos anos 70, o seu projeto, apesar de nunca ter sido mais do

que uma maquete, fosse apresentado repetidamente em artigos e livros de numerosas

exposições arquitetônicas. Por tudo o que representa das correntes arquitetônicas da

época e pela forma como integra uma série de preocupações com a arquitetura em

relação com a arte, com a arquitetura como local identitário e como afirmação sobre o

mundo vivido, o projeto merece ganhar a atenção que lhe daremos a seguir. [...] Por

trás dos projetos que o arquiteto desenhou de igrejas feitas com material das palhotas

há uma análise sociológica e um posicionamento político. Por forma a

compreendermos o que tal significa, temos que olhar brevemente para a capital da

colônia - a tão louvada Lourenço Marques, hoje Maputo.

“Categoricamente constituiu o caniço: um bairro de lata, construído com materiais e

técnicas de construção cada vez menos vernaculares[...] Numa tentativa de obstar a

instalação de formas de uso capião que dessem origem à posse definitiva da terra, os

urbanistas do período tardo-colonial engendraram a política de bloquear a construção

de estruturas de cimento no caniço. Como se pode bem imaginar, a população mais

pobre vê esse constrangimento como uma maneira de lhe retirar a possibilidade da

construção das tão privilegiadas casas de branco. Era como o caso das favelas, como

não se pudesse construir com tijolo nas favelas, mas só com madeira e pau.

“Em 1963, num dos seus gestos políticos mais arrojados, Pancho Guedes conseguiu

chamar a atenção do público branco e rico para as gravíssimas implicações que

poderiam advir do fato de verem como ficção que a outra cidade não existia. Em um

número de julho do periódico local, A Tribuna, o arquiteto publicou um manifesto

escrito num tom neo-surrealista, que era o seu tom característico, e que se chamou

‘Várias receitas para curar os males do caniço ou o manual do Vogal sem Mestre’. É

preciso perceber que o Vogal é um membro da Câmara, portanto, é o que aqui vocês

chamam de Vereador. Não é Vereador, é o membro da Câmara Municipal, e é sem

Mestre porque ele estava dizendo que eles eram ignorantes. A história deste

documento, tal como é hoje narrada pelo próprio autor, é bem interessante [...]. ‘A

cidade está doente’, diz ele, ‘ela está louca porque é esquizofrênica, recusa-se a

aceitar que não é uma, mas que são duas’.”

“A parte por ventura mais fascinante do manifesto é a solução que o arquiteto teria

dado de trazer o caniço para a cidade de cimento: construir habitações baratas para

os trabalhadores nos terrenos vazios ainda existentes nas zonas pantanosas, menos

no centro da cidade, e que tinham tido tratamento para água e que ficaram como zona

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não-urbanizada até a última década. Só agora é que vários capitalistas começavam a

ali construir edifícios. O que Pancho propunha era que lá se construísse, mesmo no

centro da cidade, que se começasse a construir para os trabalhadores. A sua idéia era

trazer para dentro da cidade a verdadeira vida urbana, uma vida que integrasse

pobres e ricos, negros e brancos em movimentos e em espaços comuns. Não resta

dúvida de que a solução era utópica e irrealizável, tendo em vista as atitudes

dominantes naquela época, mas o mais importante é que a formulação feita envolvia

um claro reconhecimento público da disparidade racial que estava sendo erigida

através de um planejamento urbanístico, quando apresentado como meramente

sanitário, estético e moderno, escondendo a enormidade do que estava para ser feito

por traz da sua aparente naturalidade.

Casinhas lindas e cidades-jardim, dizia Pancho Guedes, eram sonhos que produziam

pesadelos a curto prazo, mas em 1963 não havia como ouvi-lo. Para demonstrar que

havia outros trilhos que levariam a um mundo mais humano, a imaginação insaciável

do arquiteto foi produzindo uma série de planos, maquetes e técnicas de construção.

Para os presbiterianos, por exemplo, ele desenhou uma igreja de cimento sobre rodas.

É claro que eles preferiram fazer um negócio com a Câmara e construíram a igreja

sem as rodas, mas ela foi planejada para existir sobre as rodas de um trator. Os

planos eram fascinantes! Outra situação: numa missão, também na igreja

presbiteriana, havia um construtor que não sabia ler, então, Pancho desenvolveu todo

um método de construção para ler planos arquitetônicos para construtores iletrados.

Curiosamente, ele era também arquiteto de um dos principais bancos comerciais de

Angola e de Moçambique, e que tinha inúmeras agências nessas duas colônias.

Pancho sempre insistia em recorrer a materiais locais e a sinais estéticos que

ligassem os edifícios às tradições regionais. Fazia parte do seu acordo.”

“Então, eu concluo, a própria linguagem do desenho Pancho Guedes é uma

declaração de revolta e um manifesto permanente em favor de uma modernidade mais

humana. Ele não podia ou não queria ser missionário ou até crente, contudo, na área

da religião encontrou duas importantes portas para a sua criatividade. Ele conseguia

partilhar com esses missionários o desejo de construir edifícios economicamente

viáveis e apropriadamente aclimados, os quais podiam ser usados para ultrapassar as

formas inscritas de dominação que impediam a renegociação de uma sociabilidade

racializada.”

“O simbolismo das cabanas-palhotas, agregadas na Catedral de Palhotas, tem nele

inscrito uma sociologia utópica. Muitos outros dos seus edifícios públicos, religiosos ou

não, desenvolveram esta noção através da imagem da rua central”.

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“Eu quero insistir que se trata de uma idéia muito utópica, de uma idéia de socialidade,

em que o espaço cria a sociedade. Eu usava esta noção por meio da imagem da rua

central e do muro que passava através de todo o complexo arquitetônico, criando um

todo de integração mecânica e democrática.”

“Pancho Guedes encontra nas tradições religiosas uma linguagem simbólica que lhe

permite explorar a integração entre arte e arquitetura seguindo a sua fé modernista.

Ele deseja integrar a celebração do ser com a prática da co-identidade. Na Catedral de

Palhotas, ele quer incorporar a cruz que se repete quatro vezes ao simbolismo circular

do Kraal, que é o local de residência por excelência, associando-os a uma noção

panteística de radicação telúrica expressa através dos quatro cajueiros gigantes e dos

canais para a água da chuva, que em Gaza é tão rara quanto torrencial, e ainda com

as tais trilhas que depois se criariam em razão da catedral que lá está. Esta espécie

de recurso simbólico surgiu em muitos de seus edifícios e não só nos mais

especificamente religiosos como, por exemplo, no seu conhecido prédio de habitação

– 'Leão que ri' – muito famoso porque o plano constitui as formas simplificadas de um

homem e de uma mulher. No Centro Anglicano Chamanculo podemos ver hoje um dos

exemplos mais bem-sucedidos da transformação de um edifício em um texto

simbólico. Ali, para explorar a noção da natureza incomensurável do divino que

mistura o racional e o irracional, o possível e o impossível, ele criou um edifício que

integra repetidamente o círculo e o quadrado, sugerindo, através de uma polegada de

ângulos, a metáfora da quadratura do circulo. Para a igreja principal deste complexo

arquitetônico, o arquiteto e o bispo pediram a Malangatana para pintar dois painéis

representando a vida e o martírio de São Cipriano, um dos primeiros mártires cristãos

de origem africana.”

“A cidade de cimento não é unicamente uma idéia errônea dos brancos; ela há muito

tinha entrado nas mentes de toda a gente, brancos e negros.”