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Este documento sistematiza aspectos centrais das exposições e debates do Seminário de Direitos Humanos da União Europeia, ocorrido em Brasília, em 25 de novembro de 2009. Com apoio da Universidade de Brasília e a participação de especialistas de diversas organizações da sociedade civil brasileira, o seminário teve por objetivo colher subsídios que possam orientar futuros editais da União Europeia na área de Direitos Humanos, com foco em três temas específicos: Direitos da criança e do adolescente, Assistência jurídica às populações menos favorecidas e Direitos indígenas.1

Para cumprir o objetivo proposto, o seminário contou com uma agenda de trabalho constituída de dois momentos principais. Inicialmente, especialistas expuseram suas análises e percepções sobre os três temas priorizados e responderam a questões de esclarecimento. Em um segundo momento, de caráter mais participativo, os presentes foram reunidos, por afinidade temática, em grupos de trabalho para aprofundar reflexões do primeiro momento e indicar sugestões e prioridades para futuros editais da União Europeia em Direitos Humanos.

As discussões nos grupos de trabalho e apresentações em plenária foram orientadas por três questões:

1. Quais os principais desafios e dilemas na implementação dos Direitos Humanos no tema específico do grupo de trabalho?

2. De que forma a sociedade civil brasileira pode apoiar e contribuir com instituições públicas para a implementação de políticas e programas de Direitos Humanos?

3. Quais as principais sugestões para o próximo edital da Delegação da União Europeia no Brasil em Direitos Humanos?

O relatório foi estruturado com base nos três temas priorizados, agregando, em cada qual, os dois momentos de contribuição dos participantes.2

1. As opiniões deste relatório não necessariamente refletem as opiniões da União Europeia.2. Relatório elaborado por Luciano Nunes Padrão, consultor contratado pela Delegação da União Europeia no Brasil para facilitar e sistematizar exposições, discussões e sugestões do Seminário.

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NIELSEN DE PAULA PIRES, UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

É com muita satisfação que em nome do magnífico reitor da Universidade de Brasília, Sr. José Geraldo de Sousa Junior, damos início ao Seminário de Direitos Humanos da União Europeia. Com esse seminário, celebramos um acontecimento de natureza acadêmica, científica, humanística e política. É um evento que sintetiza uma série de princípios da Universidade de Brasília, estabelecidos em seus estatutos: orientação humanística da formação artística, literária, científica e técnica; intercâmbio permanente com instituições nacionais e internacionais; compromisso com a democracia social, cultural, política e econômica; compromisso com a paz, com a defesa dos direitos humanos e com a preservação do meio ambiente. Gostaria de felicitar a Delegação da União Europeia por ter escolhido a Universidade de Brasília para realizar este seminário e convidá-la para prosseguirmos desde aqui falando para o Brasil e para o mundo. Sejam bem vindos e um excelente trabalho é o que deseja a Universidade de Brasília em seu dever de ser uma universidade pública, gratuita e de compromisso com a sociedade brasileira.

ANTOINE GILBERT, CHEFE DA SEÇÃO DE COOPERAÇÃO DA DELEGAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA NO BRASIL

Agradecemos à Universidade de Brasília por sediar este evento, certos que voltaremos a solicitar sua hospitalidade. Agradecemos também aos nossos palestrantes por terem aceitado se juntar a nós. Esse seminário é mais uma oportunidade de marcar a importância que os Direitos Humanos têm para a União Europeia. Não é puramente um evento acadêmico, pois tem para a Delegação objetivos bastante práticos e focados. Desde 2006, esta Delegação tem a responsabilidade de lançar editais de Direitos Humanos para o Brasil e, portanto, de estabelecer uma estratégia que seja relevante e coerente com o contexto brasileiro. Assim, é nosso dever, antes de formular cada edital, consultar a sociedade civil para estabelecer um documento de estratégia que faça pleno sentido.Já foram lançados quatro editais de Direitos Humanos pela Delegação da União Europeia no Brasil e este seminário é o ponto de partida da reflexão sobre um quinto – o que explica os três temas de discussão que estão na programação. Esses não são, evidentemente, os únicos temas relativos a Direitos Humanos que nos preocupam no Brasil. Optamos, contudo, por focar as discussões desse seminário, uma vez que dois desses temas já estavam presentes nos nossos últimos editais e sentimos a necessidade de refinar nossas reflexões e contribuições futuras. A introdução do tema Direito da Criança e do Adolescente dá-se em decorrência de um acordo firmado em 2008 entre a União Europeia e o Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef para empreender ações conjuntas frente a essa problemática. Refletir sobre suas particularidades e desafios consiste para nós em um dever tanto moral como político.Se tivesse que resumir as expectativas da Delegação da União Europeia quanto a este seminário, diria que esperamos obter respostas, ou inícios de respostas, à seguinte questão: como podemos nós, da Delegação da União Europeia no Brasil, ser mais eficientes e efetivos com os recursos disponíveis que temos a vos oferecer no campo dos Direitos Humanos? Obrigado pela atenção e passemos agora a ouvir nossos expositores.

AberturA e Introdução

As três exposições a seguir foram sistematizadas pelo facilitador do Seminário, a partir de apresentações orais dos especialistas convidados e de suas reações a questões formuladas pelos participantes – o que explica o caráter informal e descontinuidades nas narrativas.

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BENEDITO DOS SANTOS,

SECRETÁRIO EXECUTIVO DO CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - CONANDA

Na década de 80, o Brasil deu um passo significativo na direção de assegurar às crianças brasileiras o direito de ter direitos. Tal processo culminou com a instituição, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que foi a primeira legislação nacional a incorporar o acúmulo das discussões e princípios internacionais nessa área, como a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1989. Podemos hoje afirmar que o Brasil dispõe de uma legislação atual e, digamos, radical na defesa dos direitos da criança e do adolescente. Mas, quais foram os avanços e os limites nesses 20 anos de Convenção dos Direitos da Criança e 19 anos de ECA?

Avançamos muito na concepção da criança, ao deixar de concebê-la como objeto e passar a tê-la como um sujeito de direitos, participante e protagônico. Isso representou uma mudança sem precedentes na cultura política e na forma de tratar as crianças brasileiras. Transformar essa concepção de direitos em prática social foi também um avanço que merece ser registrado. O Estatuto apostou muito no sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente, os chamados mecanismos de exigibilidade de direitos, com inovações importantes daí decorrentes.

Mecanismos tradicionais de garantia de direitos foram re-significados, como a Justiça da Infância e da Juventude, o Ministério Público e Defensorias. Juízes e defensores, por exemplo, passaram a ter novos papéis na defesa dos direitos da criança e do adolescente. Novos atores foram também introduzidos para esta defesa: os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares. Os primeiros têm a atribuição de formular a política para a criança e o adolescente. Esta foi a maneira encontrada de institucionalizar a participação da sociedade no processo de formulação de políticas. Antes, tal formulação era feita de cima para baixo, pois não incluía a participação da comunidade. Apesar de imperfeições e problemas, esses Conselhos - organizados em nível nacional, estadual e municipal - passaram a incorporar esse novo modo de formulação da política. Dos cerca de 5.560 municípios brasileiros, 5.100 dispõem de Conselhos - uma cobertura de 92%. É evidente que em alguns estados os Conselhos funcionam melhor e em outros de forma mais precária, mas o que demonstram é que um novo processo de capacitação vem sendo feito a partir da ação. Ou seja, cada um deles aprende a formular política fazendo políticas. A comunidade não está mais alijada desse processo: tem hoje um instrumento e uma nova forma de organizar e formular políticas para a infância e a adolescência.

Os Conselhos Tutelares têm uma perspectiva distinta: incidem diretamente sobre crianças que têm direitos ameaçados ou violados, ou seja, crianças em situação de vulnerabilidade social. Longe dos antigos Comissários de Menores, seu papel é de aplicar medidas de proteção da criança. Há, inclusive, uma proposta de mudar o nome de Conselho Tutelar para Conselho de Proteção da Criança. Os cerca de 5.100 Conselhos existentes no país são eleitos por comunidades e, apesar de problemas de funcionamento, deram grande visibilidade nacional a uma série de violações dos direitos da criança e do adolescente, como, por exemplo, a violência doméstica.

Conselhos de Direitos, Conselhos Tutelares, defensores públicos, Centros de Defesa, Justiça Juvenil conformam hoje uma rede de cerca de 80 ou 100 mil pessoas que trabalham cotidianamente para transformar culturas e atitudes, fazendo valer os direitos da criança e do adolescente. Alguns

dIreItos dA CrIAnçA e do AdolesCente

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especialistas internacionais avaliam esse sistema brasileiro de proteção como um dos maiores existentes. Isso, sem dúvida, é motivo de alegria, mas também de preocupação, pois tal sistema precisa ser fortalecido para não retornarmos à fase da assistência à infância e da caridade.

Avanços também ocorreram em outras áreas: acesso da criança à escola, em que pese a necessidade de melhorar a qualidade do ensino; erradicação do trabalho infantil, onde se conseguiu uma queda de mais de 30% nas últimas décadas, mesmo que os desafios sejam ainda muito grandes. Cabe destacar os avanços em medidas de proteção à criança e ao adolescente: nos últimos anos foram construídos uma série de planos nacionais relevantes, como o de Erradicação do Trabalho Infantil, de Enfrentamento da Violência Sexual, de Convivência Familiar e Comunitária e o Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas.

Ainda em relação ao ECA, deve-se lembrar que foram os violados - sobretudo os movimentos de meninos de rua e a Pastoral do Menor - que trouxeram o estado de direito da criança e do adolescente ou, em outros termos, que reivindicaram serem sujeitos de direito. Na medida em que o ECA substituiu o Código de Menores, ele terminou por ser divulgado não como uma legislação para todos, mas voltada para pobres. Hoje, contudo, está em curso um processo de mudanças na superação desse aspecto, uma vez que diversos contingentes de classe média estão se associando à própria defesa. Temos ainda que avançar muito na universalização das políticas: os Conselhos de Direitos, por exemplo, têm que deixar uma postura concentrada na proteção à criança e ao adolescente. Não iremos resolver problemas de violência contra a criança apenas com ações de proteção à criança. O fundamental é incidir sobre as fontes e as causas da violência. Essa deve ser a nova estratégia a ser buscada.

Quanto aos limites, podemos apontar dificuldades em conceber a política econômica como uma política social. Apesar de esforços e certos avanços, a política econômica brasileira não tem conseguido ser uma política redistributiva, capaz de superar a desigualdade social - um dos maiores desafios do país. Há necessidade de avanços nas políticas de transferência e nas políticas de geração de emprego e renda. Outro desafio é a inclusão de crianças e adolescentes de baixa renda nas políticas básicas. Estima-se que talvez seja mais difícil e desafiante levar para a escola os 5% de crianças que permanecem fora dela, do que o progresso feito até aqui no acesso à educação escolar.

Há limites também no próprio sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente. O ECA, por exemplo, determina que existam varas especializadas em infância e adolescência. Sabe-se que tais varas só existem hoje em 3% das comarcas brasileiras e que sistematicamente juizes não cumprem ou violam os direitos dos adolescentes. Temos também a problemática do Estado violador de direitos. Seria o Ministério Público quem deveria estar fortemente atuando para questionar a ação do Estado, mas sua posição tem sido ambígua, apesar de haver um grupo de promotores muito comprometidos. Mesmo assim, esse talvez seja um exemplo de área onde se deveria conciliar a estratégia da litigância com a estratégia da mobilização e ação política.

A descoberta da diversidade, apesar de tardia, precisa ser registrada. O ECA, por exemplo, pouco menciona a criança indígena. No momento de sua elaboração, era tão grande a luta com a sociedade conservadora e adultocêntrica, que não se conseguiu observar diferenças entre as várias crianças brasileiras. Estamos agora lidando com tal diversidade. Descobrimos, por exemplo, que alguns Conselhos Tutelares retiram equivocadamente crianças indígenas de suas reservas e as colocam em abrigos, o que causa uma série de tensões entre a proteção universal com a diversidade da população. Mais recentemente, contudo, alguns desses Conselhos passaram a negociar com lideranças indígenas

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as medidas de aplicação da proteção. Existe hoje, no âmbito do Ministério Público, um amplo debate se a aplicação do ECA deve ser universal e igual para todos: há os que acham que sim, mas também os que ressaltam que ela deve respeitar a diversidade. Este é um assunto muito complexo, mais político do que propriamente legal: o que fazer, por exemplo, com jovens indígenas que querem utilizar o direito formal brasileiro? Mais recentemente, passamos a defender a recriação de novos espaços de arbitragem e de soberania – o que é uma estratégia ousada que levará certo tempo para amadurecer.

Outro desafio está relacionado aos três segmentos mais resistentes à implantação do ECA: professores, pais e policiais. Um dos nossos maiores dilemas tem sido o de levar os Direitos Humanos para dentro das casas - um dos espaços que mais os violam no país. A violência doméstica tem sido endêmica: cerca de 80% das violações declaradas são denúncias de violência e negligência física e abuso dentro de casa. Tal violência está na base de outros fenômenos sociais: muitas das crianças que fogem de casa declaram tê-lo feito por motivo de violência doméstica; o baixo desempenho escolar está também a ela relacionado. É curioso observar que a sociedade brasileira mobiliza-se contra a exploração sexual, mas pouco faz contra a violência doméstica. Um exemplo é o diálogo entre Conselhos Tutelares e Conselhos de Direito: os primeiros atestam que as violações mais graves ocorrem no âmbito da violência doméstica; os segundos estão formulando políticas para outros fins. A política de direitos humanos para se estabelecer no país tem que antes se firmar dentro de casa, justamente o lugar onde hoje há mais resistência a ela.

Há desafios também em como levar a política de Direitos Humanos a adolescentes em conflito com a lei. Há grandes resistências a mudanças no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), assim como um baixo grau de articulação entre políticas públicas – o que faz retornar e emergir uma série de propostas, de cunho autoritário, de responsabilização e criminalização da juventude, como, por exemplo, as relacionadas ao toque de recolher e redução da maioridade.

É também importante destacar a participação da criança e do adolescente como novos atores sociais. Por incrível que possa parecer, muitos dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente nunca conseguiram efetivamente escutar esses sujeitos no processo de elaboração de políticas. Estamos agora buscando estabelecer mecanismos para garantir tal participação. O Conanda, por exemplo, deu um passo firme ao propor esta participação como um dos eixos da próxima Conferência Nacional da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, recomendaria à União Europeia que fortalecesse a participação de crianças e adolescentes na defesa de seus direitos e em sua responsabilidade social e política. O empoderamento de novos sujeitos de direitos, de novos protagonistas é um componente, se não o principal, que deveria ser requerido em todos os projetos a serem apoiados.

Estamos em um novo caminho no Brasil, mas há ameaças constantes. Há, por exemplo, países que passaram a defender o direito da criança trabalhar, e mesmo outras instituições, que querem voltar à idéia do bem estar e à idéia de que quem decide o melhor para as crianças são os adultos. No Brasil, tomamos outra perspectiva, que precisa ser fortalecida: fazer políticas e defesas dos direitos das crianças e adolescentes com as próprias crianças e adolescentes.

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Reflexões e Sugestões do Grupo de Trabalho

Principais desafios e dilemas na implementação dos Direitos Humanos

• Nãofuncionamentoplenodosistemadegarantiasdedireitos,emdecorrência,por exemplo, de: falta de informação por parte da população; problemas com conselhos tutelares; problemas com orçamento no que se refere à gestão e destinação; não utilização dos mecanismos existentes em relação a garantias dos direitos da criança; falta de priorização dos direitos da criança na efetivação dos seus direitos;

• Baixíssimaparticipaçãodascriançaseadolescentesnacriaçãoeimplementaçãode políticas públicas: é preciso que elas sejam reconhecidas como sujeitos de direito;

• Nãoapropriação,porpartedasociedade(mídia,escola,sistemajudiciário,famílias,entre outros), do novo paradigma da criança como sujeito de direito, a partir da implementação do ECA.

Possibilidades de contribuição da sociedade civil para políticas de Direitos Humanos

• Pormeiodocontrolesocial:monitoramentoeavaliaçãodaspolíticaspúblicas,propostas orçamentárias, apropriação e utilização dos mecanismos e ferramentas legais, nacionais e internacionais;

• Favoreceraatuaçãodecriançaseadolescentescomosujeitosdedireitonaformulação, implementação e fiscalização de políticas públicas, nos espaços educativos, de comunicação e comunitários;

• Fortaleceraatuaçãoemrede,favorecendoatrocadeinformaçãoeaintersetorialidade;

• Promovercapacitaçõesnaáreadeatendimentoàinfânciaenarededegarantiasdos direitos da criança e do adolescente;

• Fortaleceroacessoàcomunicaçãodequalidadenoquedizrespeitoaosdireitosda criança.

Sugestões para o próximo edital da União Europeia• Oseditaistêmsidomuitoestritos,emborasuaformadeabordagemsejainovadora;• Enfatizarapromoçãodaparticipaçãodascriançaseadolescentescomosujeitosde direitos;• Priorizarasredeseocontrolesocial;• Priorizarprojetosquepromovamumamudançadecultura;• Direitosàcomunicaçãodequalidadedevemserumtematransversalatodososdemais.

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OSCAR VILHENA VIEIRA, DIRETOR JURÍDICO DA CONECTAS DIREITOS HUMANOS

Seguindo o espírito deste Seminário, irei direto ao ponto proposto na agenda: quais os desafios para o acesso de grupos vulneráveis à Justiça, especialmente no campo dos Direitos Humanos?

O problema central, não apenas no Brasil, é que o acesso à Justiça é custoso: litigar é uma atividade altamente difícil e técnica e requer muito tempo. Isso significa que grupos marginalizados e vulneráveis têm enorme dificuldade de usar a Justiça a seu favor. Já se disse que o Estado de Direito não é gratuito e que há um custo enorme de operacionalização das Constituições Federais – o que se torna mais dramático em países que são profundamente desiguais, como o Brasil. Isso porque uma constituição altamente liberal e progressista tende a ser capturada por grupos sociais mais afluentes que outros. Vivemos, então, o paradoxo de termos uma constituição generosa, que paradoxalmente protege de forma ainda mais generosa os que têm condição de acessá-la e trazê-la para si, sendo que aqueles que não contam com tal possibilidade tendem a permanecer à margem desse sistema.

A Constituição de 1988 teve um expressivo impacto em esferas que usam o direito como instrumento de proteção dos Direitos Humanos. Em primeiro lugar, por ter transformado o papel do Ministério Público, que passa a ter um mandato centrado na preservação de direitos fundamentais de grupos e coletividades - e não de uma pessoa específica. O Ministério Público conta hoje com mais de 13 mil promotores e procuradores, com a responsabilidade de promover direitos difusos e coletivos, além dos direitos indisponíveis. Sabemos que uma larga parcela do Ministério Público ainda continua presa a suas obrigações tradicionais, sendo difícil dimensionar com exatidão quantos estariam incumbidos da proteção de direitos. Essa mudança no papel do Ministério Público gerou uma elevada expectativa: muitas das Organizações Não Governamentais (ONGs) que se constituíram a partir de 1988 abdicaram de ter departamento jurídico e de litigar, porque imaginavam contar com um grande aparato público altamente remunerado e competente para fazer esse serviço em nome da sociedade civil.

Passados 20 anos, percebe-se que isso não ocorreu a contento, por diversas razões. Dentre elas, pelo fato do Ministério Público ter uma autonomia não só em relação ao Executivo, mas também em relação à sociedade civil. Nota-se que não são muitos os promotores e procuradores que trabalham de maneira coordenada com a sociedade civil, respondendo a suas demandas. Ou seja, esta parceria não é tão simples e o Ministério Público não está tão aberto como antes se imaginava, especialmente em algumas áreas, como a penitenciária, por exemplo. Há, contudo, áreas em que o Ministério Público se tornou um parceiro mais próximo, como meio ambiente e consumidor. Mas, mesmo aqui observa-se que seus principais usuários são a classe média, e não as classes com baixa renda. Apesar da parceria da sociedade civil com o Ministério Público ser hoje vista com muito mais dificuldade do que antes, há um considerável espaço de trabalho comum a ser explorado.

Uma segunda constatação é que os Ministérios Públicos nos estados tornaram-se, em algumas situações, dóceis aos governos locais, perdendo sua capacidade de questionar juridicamente a atuação destes governos. Apesar de diferenças entre eles, os Ministérios Públicos têm, em geral, um padrão baixo de atuação no que diz respeito à fiscalização das violações de Direitos Humanos cometidas pelo próprio Estado. Tal problema torna-se ainda mais complexo ao considerarmos que o Ministério Público Federal tem sido muito tímido nesse campo, inclusive por, somente a partir de 2005, passar

AssIstênCIA JurídICA às PoPulAções Menos FAvoreCIdAs

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a contar com a possibilidade de pedir a federalização de violações de Direitos Humanos ocorridas nos estados. Desde então, poucos pedidos foram feitos pela Procuradoria Geral da República e nenhum foi autorizado pelo Superior Tribunal de Justiça. Em síntese, o Ministério Público tem estado aquém daquilo que poderia fazer e do que o seu mandato constitucional o permite.

A segunda agência estatal voltada a assegurar direitos fundamentais é a Defensoria Pública, criada pela Constituição de 1988. Diferente do Ministério Público - que tem a função de defender interesses coletivos – a Defensoria Pública está, a princípio, restrita à defesa dos direitos individuais. A lei que as regula estabelece que estas só podem dar atendimento a pessoas que ganhem menos que três salários mínimos por mês, o que significa cerca de 70 milhões de pessoas. Ou seja, os aproximadamente 4.600 Defensores Públicos hoje existentes no Brasil têm uma clientela potencial de 70 milhões de pessoas, o que torna evidente sua falta de condições para atender à demanda existente. Além do mais, os Defensores Públicos têm que dar conta de uma demanda primária de problemas que não estão relacionados com Direitos Humanos, mas são importantes, como divórcio e diversos problemas de natureza criminal. O tempo da Defensoria Pública é, então, basicamente consumido com assistência judiciária, que, embora seja um direito humano, não significa que a atuação do advogado seja em favor de causas de Direitos Humanos. Há hoje tensões e controvérsias a esse respeito, já que as Defensorias Públicas pleiteiam ter uma competência para entrar com ações coletivas, assim como o Ministério Público.

No que diz respeito à sociedade civil, observa-se que, apesar de certos grupos terem uma tradição forte no uso do Direito e da Justiça como instrumentos de mudança social, tais iniciativas são marginais no quadro mais amplo do pais. A sociedade civil brasileira tem maior tradição em apresentar denúncias e em negociar politicamente com atores políticos do que em enfrentá-los judicialmente. Temos hoje, contudo, um conjunto de organizações da sociedade civil muito atuantes na litigância, especialmente em áreas como a do consumidor, onde a classe média atua como a parte interessada, e a ambiental, onde há ONGs com ações primorosas.

Isto posto, é importante salientar como postulado geral que a litigância e o uso do Direito dificilmente causam mudanças sociais profundas, o que não significa dizer que não possam ser muito úteis em ao menos dois aspectos. Um primeiro é quando a sociedade promete algo, seja por intermédio da Constituição ou de leis específicas, como o ECA, por exemplo, mas descumpre essa promessa. Ou seja, a litigância pode ser fundamental para que a sociedade se adeque aos padrões de compromissos legalmente assumidos pelo Estado, responsabilizando aqueles que estão descumprindo obrigações estabelecidas. A litigância não é, portanto, um equipamento revolucionário, mas de cobrança da aplicação da lei e aplicar a lei, no Brasil, não deixa de ser fundamental.

O segundo aspecto é que a litigância pode servir para desestabilizar práticas violadoras. A litigância é um instrumento de longa duração, que pode até, ao seu final, perder o objeto e resultar em derrota; mas a prática violadora tende a se corrigir ao longo desse processo, sobretudo devido a capacidade que a litigância tem de aumentar o custo político dessas práticas. A litigância não pode ser vista como um “ganha e perde”, como uma ação pontual que resolve todos os problemas, mas como um instrumento onde se busque, consistente e persistentemente, atacar uma prática sistemática e, pelo aumento do seu custo político, desestabilizá-la.

Mas como ganhar escala em um contexto em que o custo da litigância é elevado e em que a sociedade não tem uma tradição de filantropia que forneça recursos às organizações que fazem litigância em Direitos Humanos para que estas se ampliem e passem a ter uma larga atuação? Podemos pensar em

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ao menos duas possibilidades de parcerias. A primeira, mais acanhada, mas que pode ser explorada, seria com o mercado de advocacia, através do pro bono. Tal possibilidade, contudo, é ainda difícil, uma vez que para alguns setores a advocacia pro bono tira serviço do advogado remunerado. Cabe lembrar que há uma proletarização da advocacia no Brasil, que tem hoje cerca de 1.064 faculdades de direito, número muito superior ao de países com uma maior tradição de litigância. Infelizmente, a OAB tem sido uma instituição bastante prejudicial à expansão da advocacia solidária e de interesse público no Brasil. São Paulo é hoje o único estado em que a advocacia pro bono está legalizada, ainda que exclusivamente para organizações da sociedade civil. Há também uma baixa cultura dos escritórios de advocacia em firmar laços de confiança e de contribuição no campo dos Direitos Humanos, apesar dos avanços provocados pela ação do Instituto Pro Bono.

Em que pese as grandes diferenças na qualidade do ensino das faculdades de direito (cerca de 82% dos formados jamais irão trabalhar com direito), não há dúvidas que é promissor trabalhar com escolas que fomentem advocacia de interesse público. Nos últimos anos, diversas delas criaram programas de atendimento à população carente, sendo que a OAB tem sido resistente a essas iniciativas. Com isso, torna-se difícil articular uma advocacia que não seja individual e de balcão, mas estratégica; ou seja, de decidir qual é o problema e, a partir de então, montar uma agenda de trabalho para enfrentá-lo.

Vejo, contudo, possibilidades na criação de clínicas de Direitos Humanos pelas escolas, como as clínicas de direitos da criança e do adolescente e clínicas de direito ambiental. Uma clínica não necessariamente leva um caso judicial até o fim, o que é até difícil considerando que os alunos são temporários; mas não é difícil quando se estabelece uma parceria entre uma faculdade de direito e uma ONG que o faça. Conta-se, assim, com os alunos para que estes façam pesquisas, levantamentos, etc. – o que em algumas situações têm dado certo, como, por exemplo, o recém criado pro bono junior. O impacto sobre os alunos é excepcional: mesmo que estes passem apenas seis meses ou um ano dentro de uma clínica, quando se formarem terão uma atuação diferenciada daqueles que não vivenciaram esta experiência. A União Europeia poderia, então, pensar em formas de estimular e incentivar a criação dessas clínicas.

Uma outra possibilidade de parceria é com o Estado, onde deveríamos talvez concentrar mais nossa atenção. As Defensorias Públicas têm, em muitos estados, uma grande dificuldade em estabelecer prioridades por estarem sufocadas pelo volume de ações que chegam a elas. Um trabalho interessante a ser feito com as lideranças dessas Defensorias seria propor formas de reservar uma parcela de seu tempo para estabelecer prioridades compatíveis com problemas regionais. Há aqui uma possibilidade de articulação entre a academia, Defensorias Públicas e organizações da sociedade civil para que estas possam agir de maneira consistente e persistente para desestabilizar uma prática sistemática de violação de Direitos Humanos.

Considerando que as Defensorias Públicas vivenciam os problemas muito diretamente e, em muitos estados, têm dado sinais de uma preocupação maior, recomendaria que, estrategicamente, este trabalho deveria começar a partir de seu envolvimento.

Caberia, então às organizações da sociedade civil identificar os problemas relevantes e os levar às Defensorias Públicas, tentando apoiar iniciativas que permitam superá-los de forma mais sistemática e estratégica. Articulações entre universidade, ONGs de campo e Defensorias podem, sim, promover deslocamentos e mudanças positivas em problemas concretos.

Recomendo às agências de fomento, como a União Europeia, criar incentivos que favoreçam a

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aproximação dos grupos que fazem litigância estratégica na sociedade civil, que são poucos, com as Defensorias Públicas, e com isso criar ambientes de diálogo para que agendas possam ser estabelecidas.

O desafio é como apoiar e manter organizações e grupos que fazem litigância para que estes consigam levar a cabo suas tarefas, que são custosas e de longo prazo. A diferença de uma ONG normal para uma ONG que faz litigância é que esta não lida no tempo restrito dos projetos, uma vez que é longo o período decorrido entre a abertura e a conclusão de um processo. É, portanto, uma empreitada longa e difícil de ser concluída; mas são esses atores – poucos muito profissionalizados – que invariavelmente conseguem desestabilizar práticas violadoras de Direitos Humanos no Brasil.

Reflexões e Sugestões do Grupo de Trabalho

Os integrantes do grupo sugeriram, inicialmente, que a União Europeia passe a utilizar a expressão “Assessoria Jurídica e Litigância Estratégica”, uma vez que “Assistência Jurídica” é um termo que remete a assistencialismo e enfatiza o acesso formal à Justiça, o qual é uma forma, dentre outras, de promoção dos Direitos Humanos.

Principais desafios e dilemas na implementação dos Direitos Humanos

• Garantiraexigibilidadedosdireitosjáestabelecidosnalei:omarconormativobrasileiro é progressista e garantidor de direitos, mas sua aplicação prática é consideravelmente limitada;

• Conciliarasduasformasdeexigibilidadedosdireitos:viajurídicaeviapolítico-social.O desafio é ampliar o conceito de “acesso à Justiça” para “acesso a direitos”, o qual se dá não apenas pela via do Poder Judiciário, mas também fora dele, mediante outros mecanismos de exigibilidade. Exemplo: cobrança de implementação de direitos em órgãos administrativos, como secretarias estaduais, prefeituras, etc;

• Fortalecimentodoprotagonismodasorganizaçõesdasociedadecivilnalitigânciaena assessoria jurídica – e não necessária e exclusivamente em parceria com órgãos do poder público, tendo em conta as fragilidades do Ministério Público e da Promotoria Pública expostas no momento anterior;

• Formaçãodosprofissionaisdedireito,considerandodeficiênciasnaformaçãodestespara atuar com a litigância estratégica para promoção dos Direitos Humanos.

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Possibilidades de contribuição da sociedade civil para políticas de Direitos Humanos

• AproposituradeaçõesinovadorasquepossibilitemaoPoderJudiciáriocriarprecedentes de implementação de direitos é uma forma da sociedade civil contribuir com a implementação de políticas públicas;

• Fortalecimentodasociedadecivilnosmecanismosdeparticipaçãojáexistentesnomarco institucional brasileiro, como, por exemplo, conferências, consultas à população, audiências formais e conselhos formais de direitos.

Sugestões para o próximo edital da União Europeia

• Fortalecimentodoprotagonismodasociedadecivil,apartirdoapoioacentrosde litigância, de assessoria jurídica ou de fortalecimento dos direitos dentro de organizações da sociedade civil. O apoio deve incidir tanto sobre aqueles já existentes como impulsionar a criação de outros novos na esfera da sociedade civil – e não apenas o fortalecimento da parceria com o poder público, como expresso na Prioridade 1 do último edital da Delegação da União Europeia no Brasil;

• Fortalecerosmecanismosdeexigibilidadedosdireitosforadopoderjudiciário.

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MÁRCIO AUGUSTO FREITAS DE MEIRA, PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI

PAULO CELSO DE OLIVEIRA, COORDENADOR GERAL DE DEFESA DOS DIREITOS INDÍGENAS DA FUNAI

Em 2010, o Brasil completa 100 anos de Política Indigenista oficial. Durante muitos anos, a política de proteção dos povos indígenas no Brasil baseava-se em uma concepção positivista e laica, segundo a qual os indígenas seriam povos em uma fase inicial da evolução da humanidade. Por essa concepção, os indígenas não tinham capacidade plena, inclusive do ponto de vista jurídico. Eram, em síntese, considerados como indivíduos selvagens que evoluiriam para um patamar de civilização: ser civilizado implicaria em deixar de ser indígena. É importante examinar essa política em sua ambigüidade: ao mesmo tempo em que negava a etnicidade indígena, ela terminou por salvar e proteger muitos dos povos indígenas brasileiros que são hoje crescentemente protagonistas de seu destino histórico.

Ao longo dos anos, muitas mudanças ocorreram na compreensão de como deveria ser feita a política de proteção aos povos indígenas, sobretudo a partir dos anos de 1980. Na década anterior, esta população havia chegado ao seu patamar mínimo, não ultrapassando 150 ou 200 mil indivíduos. Ao final da ditadura militar, houve então uma grande mobilização da sociedade civil brasileira em defesa dos povos indígenas, a qual foi acompanhada por mudanças na organização do Estado. A partir de então, a Funai, criada em 1967, passou a atuar crescentemente na demarcação de terras tradicionalmente ocupadas e, com isso, a população indígena brasileira voltou a crescer e tem hoje cerca de 735 mil indivíduos. O crescimento da população indígena a partir dos anos 80 é um fenômeno de extrema importância e se dá de duas formas: através do crescimento vegetativo dessa população acima da média nacional e a partir de uma nova dinâmica social em que comunidades indígenas passam a assumir sua identidade em função da própria garantia de seus direitos, dada pela Constituição de 1998.

Essa Constituição atribuiu ao Ministério Público Federal a competência para defender os direitos indígenas e também reconheceu a legitimidade das comunidades para ingressar em juízo quando houver ameaça ou lesão a esses direitos – o que não era antes possível. Houve, com isso, uma ampliação da autonomia dos povos indígenas. A Advocacia Geral da União tem também competência para defender os direitos indígenas, o que conforma uma estrutura institucional e jurídica avançada e em sintonia com a legislação internacional. Em 2002, por exemplo, o Brasil ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um dos principais instrumentos internacionais de proteção aos direitos indígenas; em 2007, o Brasil concede voto favorável à aprovação Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Todo esse arcabouço jurídico serve para orientar as políticas públicas brasileiras.

Temos, então, a passagem de uma concepção baseada no indígena como um ser incapaz para uma situação de protagonismo, em que os povos indígenas assumem o papel de serem eles mesmos os protagonistas da sua história, com sua voz e com sua capacidade de organização. Como se disse recentemente no Supremo Tribunal Federal, por ocasião da regularização da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a Constituição de 1988 é como se fosse a Lei Áurea dos povos indígenas, pois rompeu com a tradição jurídica brasileira assistencialista, clientelista e que tratava os povos indígenas como incapazes.

Tais mudanças nos trazem muitas responsabilidades e desafios. Talvez o maior deles seja a necessidade de requalificar a Funai, principal instituição do Estado brasileiro responsável pela política indigenista.

dIreItos IndígenAs

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É esse o esforço que estamos fazendo e a sociedade civil brasileira tem dado um apoio importante e pode ampliá-lo na medida em que avalize essas mudanças conceituais. A Funai tem que ser uma instituição crescentemente forte para garantir os direitos dos povos indígenas: já chegamos a ter cinco mil funcionários e hoje contamos com cerca de apenas dois mil. Por essas limitações, a Funai obteve autorização para realizar um concurso para cerca de 3.400 servidores, já tendo sido contratados 70 profissionais e se prevê que 400 sejam contratados até o início do próximo ano.

Ao mesmo tempo, a Funai precisa ser uma instituição leve, capaz de articular e coordenar ações de todas as instituições do Estado brasileiro frente aos povos indígenas. A Funai não pode ser a única instituição a cuidar dos povos indígenas, como o fazia no passado o Serviço de Proteção ao Índio. Ministérios como Educação, Saúde e Desenvolvimento Social, por exemplo, têm que cuidar dos povos indígenas em seus programas e organismos. Estamos, nesse momento, construindo uma transição para um Estado que considera a pluralidade étnica da sociedade brasileira e, dentro dela, a presença de mais de 220 povos indígenas. Inclusive com muitos indígenas que hoje vivem nas cidades, um fenômeno novo que precisa ser enfrentado para que possamos garantir os direitos desses cidadãos.

Temos também como desafio a gestão participativa. Em um contexto de protagonismo indígena, o Estado brasileiro não pode mais continuar a tratar a política indigenista de cima para baixo, como o fazia no passado. Os mais de 220 povos indígenas, portadores de culturas diferenciadas, reivindicam hoje políticas específicas para cada uma delas, o que não é uma tarefa de fácil execução e terá que ser desenvolvida ao longo do tempo. Contudo, em 2006 foi criada uma Comissão Nacional de Política Indigenista que vem funcionando como uma experiência nova de construção de uma política participativa, por ser um espaço de diálogo entre o Governo Federal e as comunidades indígenas. Mais recentemente, essa Comissão elaborou um projeto de Lei, encaminhado ao Congresso, para constituição de um Conselho Nacional de Política Indigenista.

O Brasil tem avançado bastante na garantia e afirmação dos direitos dos povos indígenas, principalmente no direito à terra tradicionalmente ocupada. Cerca de 13% do território nacional são hoje destinados ao usufruto exclusivo dos índios. Avaliamos que a grande etapa de demarcação de terras, nos anos 90 e na presente década, está sendo superada – mesmo que ainda existam muitas terras a serem regularizadas. O caso da Raposa Serra do Sol mostrou como tais regularizações são desafiantes, uma vez que são muitos os setores a elas resistentes, com argumentos que vão desde a soberania nacional até barreiras ao desenvolvimento dos estados e municípios. Por outro lado, estudos recentes demonstram a importante contribuição dessas terras para a preservação ambiental, um dado de crescente relevância em um contexto de debate global sobre mudanças climáticas.

A demanda mais forte dos povos indígenas está hoje no campo da promoção do desenvolvimento sustentável. Esta é a base para a preservação da cultura e para o bem estar dessas comunidades. Além de políticas específicas, há um forte empenho do Estado brasileiro para a universalização das políticas públicas, apesar de uma série de dilemas aí existentes. Hoje, por exemplo, cerca de 40 mil famílias indígenas recebem Bolsa Família e, recentemente, a Funai fez acordo com o Ministério da Previdência Social para garantir a aposentadoria especial aos indígenas. Há dúvidas e questionamentos sobre a universalização dessas políticas. Nossa posição é que o indígena é um cidadão brasileiro e, portanto, deve ser beneficiado por esses programas; mas é fundamental buscar articulá-los, na medida do possível, com outras medidas estruturantes. O elemento central para a Funai é ouvir, em cada caso, as comunidades indígenas.

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Reflexões e Sugestões do Grupo de Trabalho

Principais desafios e dilemas na implementação dos Direitos Humanos

• DefiniçãourgentedeumaPolíticaIndígenaquepromovaoprotagonismodospovos indígenas na elaboração de políticas públicas em nível municipal, estadual e federal, que seja compartilhada por todos os órgãos governamentais e pela sociedade brasileira;

• AvaliaçãodosImpactosdasPolíticasPúblicasnascomunidadesindígenasnoâmbito ambiental, sociocultural e econômico. Exemplo, o Programa de Aceleração do Crescimento Econômico - PAC;

• Respeitoaosdireitosindígenasdaspopulaçõesindígenasurbanas;

• Respeitoaosdireitosindígenasdosdetentosindígenas.

Possibilidades de contribuição da sociedade civil para políticas de Direitos Humanos

• Promoçãodecampanhaseatividadesnaeducaçãoformaleinformalsobrea realidade indígena no Brasil;

• Promoçãododiálogoentreasociedade,povosindígenaseosdiferentesatoresdo poder público em nível local, regional e nacional;

• Identificaçãoemapeamentodeiniciativaslocais,promovendoparceriaentrea sociedade Civil, os povos indígenas e o poder público;

• Acompanhamentoecontrolesocialdaimplementaçãodaspolíticaspúblicasexistentes, em particular daquelas em defesa dos direitos indígenas;

• Promoçãoeinformaçãodasaçõesdeadvocacynadefesadosdiretosindígenas.

Sugestões para o próximo edital da União Europeia

• Promoçãodosdireitosindígenasedaidentidadeculturaldosdiferentespovosindígenas, para uma maior compreensão social nas regiões onde vivem as próprias comunidades;

• Priorizaraomenostrêstemasnospróximoseditais:i)populaçõesindígenasurbanas;ii) valorização e divulgação da cultura indígena; iii) promoção e fortalecimento de espaços de diálogo entre a sociedade civil, os povos indígenas e o poder público.

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O momento final foi destinado a uma breve avaliação do Seminário, no qual se pode colher impressões e sugestões dos participantes. Além de diversos agradecimentos à Delegação da União Europeia no Brasil e à Universidade de Brasília por uma iniciativa para pensar, de forma franca e aberta, novas possibilidades de apoio, os participantes destacaram os seguintes pontos:

• Seminárioscomoestesãotambémoportunidadesdeaprendizadoede estreitarrelaçõesentreasorganizações:“dialogaréamelhorformade buscar soluções para problemas complexos de direitos humanos”;

• Otempofoilimitadoparadiscutirexperiênciasdistintascompessoas eorganizaçõesdiferentes,recomendando-sequeospróximosseminários tenham maior duração, para melhor amadurecer as discussões e, inclusive, situá-lasnopresentecontextodacooperaçãointernacional;

• Importânciadesemináriosfuturosenvolveremorganizaçõesrepresentativas de segmentos sociais;

• Oseminárioconseguiuidentificarosprincipaisdesafiosedilemasdas práticasdoEstadoedasabordagensdasociedadecivilparaefetivaçãodos DireitosHumanosnasáreasdiscutidas;

• Semináriosfuturosdevemreservartempoparaumadevidaapresentação dasorganizaçõesparticipantese,inclusive,trocadeexperiências;

• Necessidadedemaiordivulgaçãodospróximossemináriosparaqueestes sejam ainda mais representativos;

• Considerandooêxitonocumprimentodoobjetivoproposto,aUnião Europeiadevedarcontinuidadeàpráticaderealizarseminárioscomoeste.

BRASÍLIA, JANEIRO DE 2010.

AvAlIAção do seMInárIo