1 Projeto Produtividade Em Pesquisa Rogerio Arantes

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Universidade de São Paulo Departamento de Ciência Política Projeto de Pesquisa 2008/2010 Rogério Bastos Arantes http://lattes.cnpq.br/6438633094553520 Agosto de 2008

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Transcript of 1 Projeto Produtividade Em Pesquisa Rogerio Arantes

  • Universidade de So Paulo

    Departamento de Cincia Poltica

    Projeto de Pesquisa

    2008/2010

    Rogrio Bastos Aranteshttp://lattes.cnpq.br/6438633094553520

    Agosto de 2008

  • Resumo

    O presente projeto tem como objetivo principal examinar as relaes entre Constitucionalismo eDemocracia, em perspectiva comparada. Em linha de continuidade com estudos anteriores, conduzidosem parceria com Cludio Gonalves Couto, este projeto apresenta os elementos tericos principais queorientam a pesquisa especialmente a metodologia de anlise constitucional que logramos desenvolvernos ltimos anos bem como estabelece os objetivos mais especficos de investigao para o trinio2008/2010. O eixo terico principal e que articula as frentes de trabalho associadas ao projeto diz respeito aosdiferentes perfis constitucionais adotados pelas novas democracias e o papel especfico desempenhadopela constituio no funcionamento cotidiano de regimes democrticos, de suas instituies polticas ejudiciais. A perspectiva comparada tem ocupado lugar central nessa anlise, e vem sendo desenvolvidapari passu aos avanos obtidos nos planos da pesquisa emprica e do modelo terico mais geral.Cumpre destacar que o projeto tem sido apoiado pelo CNPq (por meio dos editais universais de 2003 e2006), j propiciou experiencia de Iniciao Cientfica a 7 alunos de graduao (nos cursos de CinciasSociais, Relaes Internacionais e Direito) e resultou em publicao de captulos de livros e de artigosem peridicos de ampla circulao. Um destes trabalhos recebeu da Associao Brasileira de CinciaPoltica o prmio Olavo Brasil de Lima Junior pelo melhor artigo de Cincia Poltica e RelaesInternacionais publicado no binio 2006-2008.1

    1Foi ele: COUTO, Cludio G. & ARANTES, Rogrio B. Constituio, governo e democracia no Brasil. RevistaBrasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 21, n. 61, 2006. Outros ttulos so: ARANTES, Rogrio B. & COUTO,Cludio G.Constitucin o Polticas Pblicas? Uma evaluacin de los aos FHC. In Vicente PALERMO (comp.)Poltica brasilea contempornea. De Collor a Lula en aos de transformacin. Instituto Di Tella e Siglo XXI,2003.ARANTES, Rogrio Bastos. Constitutionalism, the Expansion of Justice and the Judicialization ofPolitics in Brazil. In: Rachel SIEDER; Line SCHJOLDEN; Alan ANGELL. (Org.). The Judicialization of Politics in LatinAmerica. 1 ed. New York: Palgrave Macmillan, 2005, p. 231-262. ARANTES, Rogrio B. & COUTO, Cludio G.A Constituio sem fim in Srgio PRAA & Simone DINIZ, S. (orgs) Vinte anos de Constituio. So Paulo: Paulus,2008.

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  • 1. Introduo e delimitao do modelo terico: Polity, Politics e Policy.2

    As relaes entre constitucionalismo e democracia remontam ao pensamento poltico clssico e

    sempre despertaram muita ateno entre os analistas polticos (Holmes, 1988b; Ackerman, 1988 e 1991;

    Waldron; 1999). Sob regimes democrticos de feio liberal, as constituies adquiriram papel central

    na organizao do Estado e na limitao do poder poltico. No sculo XX, no bojo dos processos de

    ampliao do Estado e de suas funes sociais, as constituies de perfil liberal-democrata tambm

    sofreram modificaes importantes e passaram a incorporar novas funes e novas metas relativas ao

    funcionamento do Estado de Bem-Estar Social. Em que pesem esse longo desenvolvimento das

    relaes entre constitucionalismo e democracia e um amplo conhecimento jurdico e poltico j

    existente sobre o mesmo, no chegamos a elaborar modelos tericos mais precisos sobre as diferentes

    dimenses do processo poltico e as relaes recprocas entre o nvel constitucional, o jogo poltico

    propriamente dito e a produo e implementao de polticas de governo. Esta seo se destina a

    delimitar nosso tema de pesquisa, justamente a partir da formulao terica de um modelo de anlise

    das constituies vis--vis as demais dimenses do sistema poltico.3

    Que papis tm, nos regimes democrticos constitucionais, as regras do jogo poltico, a competio

    pelo poder e as decises concretas de governo? Embora cada uma destas dimenses seja parte constitutiva do

    processo poltico na democracia, elas no tm o mesmo significado nem contribuem da mesma forma

    para o funcionamento do regime democrtico. Se quisermos, portanto, compreender corretamente a

    dinmica poltica real das democracias constitucionais, indispensvel verificar como regimes desse

    tipo so capazes de distinguir e articular essas trs dimenses do arcabouo institucional bsico e da

    dinmica poltica.

    Em primeiro lugar, importante considerar que regimes democrticos se distinguem em geral

    de regimes no democrticos pela presena de alguns elementos-chave, a saber:

    1. o jogo poltico transcorre de acordo com regras preestabelecidas;

    2. as eleies so peridicas e ocorrem por meio de sufrgio universal;

    3. os mandatos dos eleitos so limitados tanto temporalmente como no que diz respeito ao alcance de

    suas decises e aes;

    4. a vontade majoritria da populao prevalece nos limites das regras preestabelecidas;

    5. a oposio participante legtima do jogo e deve ter condies de chegar ao poder pelo voto

    popular;

    6. os governantes so responsveis perante o eleitorado;

    7. os direitos civis clssicos de liberdade negativa so garantidos.

    2 O modelo terico que orienta o presente projeto, nesta e nas sees seguintes, foi desenvolvido em co-autoria com CludioGonalves Couto. Boa parte da proposta que aqui apresento ser desenvolvida em parceria com o referido pesquisador.3 Tal modelo vem sendo desenvolvido desde verses anteriores deste projeto de pesquisa e j foi apresentado e discutido emencontros acadmicos na rea de cincia poltica, tendo integrado nossas publicaes mais recentes (COUTO & ARANTES,2003, 2006; ARANTES, 2005; COUTO 2005)

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  • Estes elementos estabelecem regras bsicas do jogo poltico democrtico, conformando o que

    h de essencial na estrutura constitucional de uma poliarquia. Na medida em que delineiam os contornos

    bsicos do regime so, em princpio, condies paramtricas estveis para o exerccio do jogo poltico, no se

    confundido com este ou com seus resultados. Pelo fato de a estrutura constitucional conter tais

    parmetros, de se esperar que ela esteja baseada num amplo consenso dentre os diversos atores polticos

    (os jogadores), ao menos no que concerne a seus aspectos centrais; por outro lado, dado que se trata de

    um acordo bsico, um pacto entre atores polirquicos, possvel esperar que os dispositivos por ele

    estabelecidos tenham carter no controverso, isto , que no encerrem motivo de dvida ou de disputa.

    Fixados os termos consensuais dessa estrutura constitucional bsica, o relacionamento concreto

    entre atores polticos num regime democrtico se d em duas outras dimenses principais, mais visveis

    e perceptveis no dia-a-dia das democracias do que a primeira:

    1. a competio poltica;

    2. a deciso sobre questes governamentais.

    A competio poltica constitui o prprio jogo e nela esto implcitos os enfrentamentos, as

    disputas, as negociaes, os acordos e as coalizes. Trata-se da dimenso dinmica da realidade poltica,

    enquanto as condies paramtricas estveis constituem a sua dimenso esttica. Noutras palavras, o

    jogo poltico diz respeito ao (e interao), ao passo que as condies paramtricas dizem respeito

    estrutura, no mbito da qual ocorrem as aes (e interaes). tambm no mbito desta competio

    que se definem, nos limites das regras estabelecidas, os que ganham e os que perdem, os que ocuparo

    os cargos pblicos (eletivos ou no) e os que ficaro excludos do poder, os aliados e os adversrios etc.

    No entanto, alm deste jogo que leva definio de quem governa e de como se governa, h

    tambm a importante dimenso da tomada de decises sobre as aes de governo, que constitui outra

    esfera particular do regime democrtico. Tais decises so elas prprias um objetivo e uma decorrncia ao

    mesmo tempo do jogo poltico. Afinal, por que motivos competem os jogadores nas poliarquias?

    Para ocupar postos de poder e influncia, em primeiro lugar, mas para definir polticas pblicas, em

    segundo. Estas ltimas, ao contrrio das condies paramtricas estveis, espera-se que sejam objeto de

    disputa, e no de um amplo consenso; tambm de se esperar que, da mesma forma, tenham carter

    controverso. Enquanto a primeira dimenso constitui a base para o jogo poltico, esta ltima representa

    seus resultados concretos, produzidos em meio ao conflito e controvrsia. E da mesma maneira como

    este jogo se desenrola limitado pela estrutura constitucional, o alcance dos resultados tambm est

    limitado por essa estrutura o que no significa dizer que seja predeterminado por ela.4

    4 Numa perspectiva mais filosfica e menos institucional do que a nossa, SARTORI analisa a questo do consenso nademocracia tambm em trs nveis, do mais bsico ao mais superficial: 1. o nvel bsico diz respeito ao consenso sobrevalores supremos (tais como a liberdade e a igualdade) que habitam a cultura poltica; 2. o nvel procedimental de consensoconcerne s regras do jogo poltico; indispensvel ao funcionamento da democracia; e 3. o nvel programtico do processopoltico, marcado pela discusso sobre governos especficos e suas polticas pblicas, mbito no qual o consenso, se houver,est em permanente tenso e ajuste decorrentes do debate acerca das aes polticas concretas. Noutras palavras, o terceironvel est mais para o dissenso (que no ameaa o edifcio institucional da democracia se o consenso procedimental estiverconsolidado) do que para o consenso. Cf. G. SARTORI (1994: 127-32). Stephen HOLMES (1988b), por sua vez, faz refernciaaos comprometimentos prvios que so criados pelo ordenamento constitucional.

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  • falta de termos apropriados e claramente diferenciados na lngua portuguesa para distinguir

    cada uma dessas trs dimenses da realidade poltica, podemos recorrendo ao ingls cham-los,

    pela ordem em que foram apresentados acima, de polity, politics e policy. A polity corresponde estrutura

    paramtrica estvel da poltica e que, supe-se, deve ser a mais consensual possvel entre os atores; a

    politics o prprio jogo poltico; a policy diz respeito s polticas pblicas, ao resultado do jogo disputado

    de acordo com as regras vigentes5. O quadro 1 resume a natureza e as caractersticas principais destas

    trs dimenses do processo poltico democrtico.

    Quadro 1Natureza das dimenses ideais do processo poltico democrtico

    DIMENSO NATUREZA DENOMINAOCARACTERSTICA

    FORMALCARACTERSTICA

    SUBSTANTIVA

    NormatividadeConstitucional

    Regras Gerais doJogo Poltico(Estrutura)

    PolityPacto entre osdiversos atores

    polticosGeneralidade

    Embates eCoalizes Polticas Jogo Poltico Politics

    Relacionamentodinmico entre os

    atores polticos

    Conflito e/ouCooperao

    NormatividadeGovernamental

    Resultados do JogoPoltico

    (Conjuntura)Policy

    Vitria/Derrota dediferentes atores

    polticosEspecificidade

    No trataremos aqui da dimenso dinmica do processo democrtico, a politics, para

    concentrarmos nossas atenes na hierarquia normativa que distingue o pacto constitucional (polity) de

    decises governamentais (policy).

    As normas constitucionais definem a estrutura do sistema poltico, fixando suas condies gerais

    de funcionamento. Por isto, caracterizam-se por maior generalidade, definindo os pressupostos bsicos

    do jogo poltico, assim como os limites deste e de seus resultados. Num regime polirquico, o ideal seria que

    tal normatividade decorresse de um pacto entre os atores polticos, sendo estipulada da forma mais

    consensual possvel. A exigncia de consenso quanto a essa dimenso deveria ser alta justamente para

    evitar que a Constituio, com seu carter de maior permanncia, refletisse a vitria isolada de alguns

    setores da sociedade sobre outros, consagrando seus interesses particulares de forma perene e

    colocando-os fora do alcance do jogo poltico futuro. A pactuao consensual de princpios

    constitucionais implica na normatizao dos interesses comuns aos diversos setores da sociedade, ou,

    no mximo, dos interesses particulares inegociveis, sem cuja garantia o convvio pacfico e a

    competio poltica leal entre os diversos setores sociais e polticos seriam ameaados6. Por definir5 Decidimos recorrer a esta terminologia pelo fato de que a utilizao de termos em portugus perderia em clareza epreciso. No h termo em nossa lngua que seja equivalente a polity. Mesmo a expresso politia, roubada ao grego, no deuso corrente e sequer consta dos principais dicionrios. No que diz respeito a politics e policy, a palavra em portugus amesma para ambas: poltica. Neste caso, precisaramos falar o tempo todo em poltica como atividade, e em polticapblica, ou poltica governamental, ou ainda em polticas. Por uma questo de economia de linguagem e clareza,optamos pelos termos em ingls.6 Qualquer ordenamento constitucional num regime poltico competitivo, ao fixar condies mnimas para a aceitao dojogo pelos pactuantes, coloca certas questes fora do jogo poltico cotidiano. Stephen HOLMES (1988a) aponta essa questoao mencionar as chamadas gag rules (ou regras de silncio) presentes num ordenamento constitucional. Ele faz refernciadireta questo da escravatura no regime constitucional norte-americano criado em 1787. Tratava-se de uma regra sobre a

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  • somente parmetros, princpios e limites do jogo poltico, normas constitucionais democrticas devem

    ter carter genrico, de modo que medidas especficas para sua efetivao sejam tomadas

    conjunturalmente, tendo em vista as circunstncias particulares com as quais lidam os governos.

    Condio bsica do jogo poltico, resultantes de um pacto poltico entre elites concorrentes, as

    normas constitucionais encarnam a prpria estrutura do Estado, da polity. So, portanto, normas de

    carter soberano, em princpio no sujeitas discusso cotidiana, decorrentes de um momento inaugural

    constituinte, no qual se iniciam o sistema e o jogo polticos; em virtude disto, de se esperar que sejam

    protegidas contra modificaes freqentes. Tendo em vista tal finalidade, as regras decisrias que

    balizam o processo de modificao da normatividade constitucional costumam ser mais exigentes:

    quoruns ampliados de votao, prazos mais dilatados, poder de veto conferido a diversos atores

    institucionais e at mesmo a vedao total a qualquer mudana pela legislatura ordinria mediante

    simples emendas constitucionais, requerendo-se nesse caso a realizao de uma nova Assemblia

    Constituinte. Noutras palavras, o grau de consenso necessrio a decises de tipo constitucional muito mais

    amplo do que aquele aplicvel s decises da poltica governamental.

    O governo age na conjuntura; sua ao baliza-se pela eficcia; suas decises podem sem maiores

    problemas constituir imposies da parte vitoriosa na disputa democrtica (a maioria) sobre a parte

    derrotada (a minoria), assim como podem ter carter especfico e sentido controverso. Tudo isto possvel,

    desde que as decises de governo no contrariem a normatividade constitucional. da natureza do

    prprio jogo democrtico o perde-ganha poltico; ora um grupo obtm o controle sobre os postos

    capazes de processar decises governamentais, ora outro. As oscilaes decorrentes deste processo

    refletem-se diretamente sobre a formulao e implementao das polticas pblicas (policies), que so

    objetos da avaliao do eleitorado, o qual com base num juzo sobre o desempenho do governo

    premia ou pune seus representantes nas eleies subseqentes, por meio das escolhas eleitorais. Se a

    alternncia de grupos (partidos) no governo uma condio do regime democrtico, a variao das

    polticas pblicas (policies) uma conseqncia prtica inevitvel (e desejvel) desse princpio. A

    possibilidade de que tal variao de policies ocorra , portanto, pr-requisito de que a alternncia de

    grupos (partidos) no governo tenha efeitos prticos. Da as menores exigncias das regras decisrias

    referentes produo de a policies.7

    qual sequer se poderia falar, com vistas a no destruir o regime institudo pelos founding fathers. Evidentemente, a existnciade tal regra no seria admissvel numa democracia, mas mesmo regimes polirquicos contm as suas gag rules, ou, ao menos,temas que no esto sujeitos deciso majoritria cotidiana. O direito propriedade privada um exemplo disto.7 Para uma abrangente discusso acerca do processo de emendamento constitucional, ver o volume organizado por SanfordLEVINSON (1995).

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  • 2. Critrios de distino de matrias constitucionais e no-constitucionais.Formulao da Metodologia de Anlise Constitucional.

    Se nossos argumentos sobre as dimenses de polity, politics e policy esto corretos, seria possvel

    distinguir, no interior de uma constituio escrita, os aspectos fundamentais do ordenamento poltico

    relativos estrutura do Estado (polity) daqueles outros que, embora se refiram ao contedo material de

    aes estatais provveis ou desejveis (policies), foram abrigados pelo texto constitucional e

    assemelhados formalmente aos princpios da polity.

    Nossa inteno, nessa parte, elaborar critrios objetivos que nos permitam classificar os

    dispositivos constitucionais como polity ou policy. A tarefa exige boa dose de argumentao, dado que o

    texto formal contempla sem distino esses dois princpios e estabelecer uma hierarquizao entre eles

    correr um risco considervel.

    Como se sabe, o constitucionalismo moderno se desenvolveu a partir do princpio liberal da

    limitao do poder poltico vis vis a liberdade civil e individual. De modo geral, os textos

    constitucionais modernos preocuparam-se em estabelecer os princpios fundamentais do Estado ao

    mesmo tempo que procuraram definir os limites da ao estatal da maneira mais rigorosa possvel.

    Poder e liberdade so considerados antitticos na tradio liberal e essa oposio marcou decisivamente

    o surgimento das primeiras constituies escritas do final do sculo XVIII. Contemporaneamente, o

    conjunto de dispositivos constitucionais relacionados regulao desse antagonismo vem sendo

    difundido por meio das noes de Estado de Direito e Rule of Law. Posteriormente, com a ampliao do

    sufrgio, as Cartas tambm passaram a ter de lidar com a realidade da incorporao de contingentes

    cada vez maiores da populao ao processo poltico. Desta forma, s duas noes anteriores

    acrescentou-se a de Estado democrtico.

    Cremos que uma primeira classificao do texto constitucional, em termos de polity e policy,

    deveria retornar s origens do constitucionalismo moderno e aos princpios liberais que marcaram a

    refundao do Estado, bem como aos princpios democrticos que vieram em seguida, especialmente a

    ampliao dos direitos de participao. Neste sentido, os seguintes critrios poderiam ser adotados para

    identificar os dispositivos tpicos da polity e, por excluso, revelar aqueles que poderiam ser

    considerados veculos de policy. Dentre os princpios de um regime liberal-democrtico, formalizados

    constitucionalmente, apenas seriam tpicos da polity:

    (1) As definies de Estado e Nao, tais como o regime republicano ou monrquico, aorganizao federativa ou unitria, o exerccio direto e/ou por via representativa do poder poltico pelo

    povo, a noo de nacionalidade e a estrutura do aparato estatal.

    (2) Os direitos individuais fundamentais caracterizados pelas condies bsicas do exerccioda cidadania individual. Consideramos como princpios da polity, nessa primeira classificao geral, as

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  • garantias da liberdade civil, que BERLIN (1981: 133-145) reuniu sob a expresso liberdade negativa

    (proteo do cidado contra a ao arbitrria do Estado) e os direitos polticos de participao

    democrtica. Note-se que esse critrio minimalista afasta da definio constitucional da polity os direitos

    substantivos, individuais e sociais, que normalmente vm acompanhados de normas constitucionais

    programticas.

    (3) As regras do jogo, que organizam os processos de: participao e competio polticas,relacionamento entre e intrapoderes, interao entre nveis de governo e entre atores coletivos

    reconhecidos pela Constituio como lidando com interesses de ordem pblica. Tais regras estipulam:

    (a) a diviso de prerrogativas e funes entre os atores institucionais, (b) as regras operacionais do

    processo decisrio governamental e (c) os tempos e prazos que balizam tais processos.

    Os 3 critrios apontados acima partem da maior generalidade possvel da polity (critrio 1) e vo

    ganhando especificidade at quase tocar, por duas vezes, o nvel de policy. No critrio 2, a meno

    cidadania poderia nos levar a incluir direitos constitucionais substantivos que costumam requerer policies

    para tornar possvel a sua efetivao. Todavia, nessa definio minimalista de polity, evitamos confundir

    direitos individuais de proteo (contra o Estado e tambm contra outras pessoas) e de participao na

    esfera poltica, com os direitos dependentes de promoo atravs de polticas governamentais. Segundo

    essa classificao inicial, o primeiro tipo de direitos compe a polity e, portanto, tem natureza

    constitucional. O segundo tipo aproxima-se da categoria de policy, apesar de sua incluso na Carta

    conferir-lhe formalmente status constitucional.

    A definio operacional de polity tambm se aproxima da de policy quando, no critrio 3 (as regras

    do jogo), mencionamos as funes dos diversos entes governamentais. Note-se, todavia, que o critrio 3

    destina-se a catalogar artigos constitucionais que organizam processos dentre eles o da diviso de

    atribuies governamentais especficas entre os rgos estatais e no devem, portanto, ser

    confundidos com aqueles dispositivos que estabelecem funes promocionais do Estado e que sero

    classificados como policy. Nesse sentido, as funes de governo s sero classificadas como parte

    componente da polity quando disserem respeito a questes de ordem procedimental, relacionadas

    distribuio horizontal de poder entre os diversos entes estatais, ao funcionamento interno desses mesmos

    entes, participao democrtica dos cidados e garantia de sua liberdade negativa. Nessa perspectiva,

    funes passveis de serem classificadas como polity provavelmente no sero aquelas que se referem a

    obrigaes positivas do Estado, mas aquelas inspiradas nos princpios liberal do governo limitado e

    democrtico do governo participativo. De outro lado, elas sero classificadas como policy justamente

    quando impuserem essas obrigaes positivas, ao estilo direito do cidado, dever do Estado, numa

    perspectiva vertical de relao entre o governo e a sociedade, em torno de direitos substantivos cuja

    efetivao depende da implementao de polticas pblicas.

    Entretanto, desde que MARSHALL (1967: cap.III) definiu a composio tripartite da cidadania

    moderna em direitos civis, polticos e sociais e que os textos constitucionais da segunda metade do sculo

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  • XX estabeleceram um amplo leque de obrigaes sociais do Estado, tornou-se bastante difcil defender

    um conceito de polity to minimalista como o estabelecido acima. Em todos os pases que recentemente

    adotaram o figurino liberal-democrtico, gamas importantes de direitos sociais foram mencionadas nos

    captulos constitucionais destinados aos direitos e garantias fundamentais. Nossas constituies atuais no se

    restringem a estabelecer os limites necessrios vigncia da liberdade negativa e tratam de avanar na

    direo da igualdade, impondo obrigaes positivas ao Estado. verdade que a realizao dessa

    igualdade obstada pelo direito tambm constitucional da propriedade privada, no sendo demais

    lembrar que tal dispositivo a pedra angular do Estado de Direito liberal. De qualquer forma,

    considera-se um grande salto de cidadania a constitucionalizao de direitos de igualdade material entre

    os homens, mesmo que definies como funo social da propriedade e Estado Democrtico de

    Direito comportem boa dose de contradio, refletida em tenses no interior do texto constitucional.

    Por estas razes e apesar de os conceitos de cidadania e polity no designarem a mesma coisa,

    decidimos trabalhar com dois tipos de classificao: a minimalista, baseada nos trs critrios acima, e

    uma maximalista, que alm dos trs anteriores, incorporaria um quarto critrio:

    (4) Os direitos materiais orientados para o bem-estar e a igualdade, assim como as funesestatais a eles associadas. Tais direitos e funes estatais no se confundem com os trs critriosanteriores, dado que no tm implicao direta sobre as definies de Estado e Nao, no constituem

    direitos civis de proteo da liberdade nem direitos polticos de participao democrtica, nem

    configuram regras processuais da competio pelo poder ou das relaes entre e intra-rgos e nveis

    governamentais. Todavia, no se trata aqui de fazer mera concesso a uma viso da constituio como

    programa social de governo, mas de indicar que determinados direitos materiais podem sem

    considerados condies bsicas para o funcionamento adequado do regime democrtico. Tais direitos tm

    a importante funo de promover a adeso ao pacto poltico democrtico e suprimi-los poderia levar a

    democracia ao colapso. Enquanto os direitos civis de liberdade e polticos de participao mencionados

    no critrio 2 podem ser considerados direitos operacionais indispensveis vida democrtica, os direitos

    materiais aqui mencionados podem ser considerados direitos condicionantes do jogo poltico nesses

    regimes, na medida em que mantm a adeso social ao pacto poltico democrtico8.

    Por fim, independentemente do peso mais liberal-democrtico ou mais igualitrio das

    constituies, seus textos devem estabelecer apenas os princpios fundamentais do ordenamento

    poltico, no sendo conveniente que desam a detalhes que sejam objeto da politics infraconstitucional

    cotidiana, momento da confeco de policies. Ao constitucionalizar normas que poderiam ser temas do

    jogo poltico ordinrio, acaba-se por extrapolar justamente o seu carter constitucional, conformador do

    jogo, estipulando-se a priori e de forma rgida aquilo que seria passvel de mudanas freqentes; limitam-

    se demasiadamente os resultados possveis do prprio jogo, pois se constrange a liberdade dos atores

    8 Estamos aqui tratando dos direitos sociais, mas tambm alguns outros direitos podem ser condicionantes. o caso dodireito de propriedade, que no se enquadra na categoria de direito social de Marshall (e sim na de direito civil) mas seconstitui num condicionante bvio para o funcionamento de quaisquer regimes polticos em sociedades capitalistas.

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  • na politics cotidiana, tornando formalmente polity o que seria considerado policy em pases dotados de

    constituies mais enxutas. Tendo isto em vista, decidimos incluir dois outros critrios, secundrios,

    que devero ser acionados na tarefa de classificar o texto constitucional..

    (5) Critrio de Generalidade. Deixaro de ser classificados como polity os dispositivosconstitucionais no genricos (muito especficos). Embora de difcil definio, o limiar entre a

    generalidade e a especificidade poderia ser determinado da seguinte forma: so especficos os artigos

    derivados de princpios constitucionais superiores, mas cujo contedo pode sofrer alteraes sem que

    isso ponha em risco os dispositivos mais amplos sob os quais esses artigos esto abrigados. Essa talvez

    seja uma maneira eficaz de distinguir polity de policy, uma vez que os textos constitucionais

    contemporneos tendem, metaforicamente, a assemelhar-se a rvores de cujo tronco vo saindo galhos

    que se ramificam at os ltimos detalhes. Nosso critrio de generalidade poderia funcionar a exemplo

    da poda, que corta pontas de galhos sem que isso ameace a vida da rvore: da mesma forma, existiriam

    artigos constitucionais cuja retirada do texto constitucional no colocaria em risco o princpio

    fundamental ao qual ele est associado. Isto ser particularmente til na desclassificao da condio de

    polity dos dispositivos relacionados ao estabelecimento de regras do jogo, mas que por serem

    demasiadamente detalhistas, especificando processos que deveriam ser objeto de norma

    infraconstitucional, poderiam ser podados da constituio sem que a essencialidade do principio

    superior fosse afetada.

    (6) Critrio de Controvrsia. Tambm deixaro de ser classificados como polity os dispositivoscujo contedo for tipicamente objeto da controvrsia poltico-partidria cotidiana, dizendo respeito s

    plataformas governamentais apresentadas pelos partidos em seu embate pelos postos de governo e no

    se enquadrando, portanto, na condio de norma paramtrica da politics que caracteriza dispositivos de tipo

    constitucional. Nesse sentido, via de regra no sero desclassificados como polity, pelo critrio de

    controvrsia, os dispositivos constitucionais que estabelecem regras procedimentais.

    As razes pelas quais adotamos estes dois ltimos critrios so as seguintes. No que diz respeito

    questo da generalidade, normas muito especficas deixam de constituir parmetros de funcionamento

    do sistema poltico, de desenrolar do jogo e de limitao do escopo das decises, para se tornarem

    por antecipao as prprias decises que caberiam aos atores polticos; por conta disto, perdem seu

    carter constitucional. Ademais, de se esperar que acabem por criar obstculos gesto poltica

    conjuntural, na medida em que podem engessar a ao dos governantes e/ou dos atores sociais diante

    de situaes imprevistas, mudanas de condies sociais, novas tecnologias etc. Com isto, a

    Constituio pode acabar se tornando no um instrumento que confira maior segurana sociedade,

    mas que a impea de dar cabo de seus problemas em tempo hbil e com a preciso necessria, devido

    ao congelamento constitucional de diversos assuntos.

    O mesmo raciocnio se aplica questo da controvrsia com um agravante. A

    constitucionalizao de policies no apenas reduz demasiadamente a margem de manobra decisria dos

    10

  • atores, mas o faz em detrimento da democracia. Isto porque acaba por restringir excessivamente tendo em

    vista o leque ideolgico e de interesses de uma sociedade num dado momento histrico a

    possibilidade de que alternncia dos partidos e das lideranas no governo corresponda a uma

    modificao das polticas pblicas implementadas. Com isto, a competio democrtica no impedida

    no plano eleitoral, mas tem seus efeitos em certa medida anulados ou restringidos no plano

    governamental. Pode-se supor que justamente para isto que servem as constituies restringir a

    ao dos governos. Mas a suposio incorreta se no leva em conta o fato de que tal restrio, caso

    seja demasiada, impede que a prpria vontade popular se manifeste periodicamente por meio das aes

    dos representantes eleitos. Mais do que isso, restringir por demais o alcance das decises polticas

    majoritrias, incentivando e permitindo que minorias descontentes recorram Justia para escapar de

    decises legislativas ordinrias, pelo menos nos pases que adotam algum tipo de controle

    constitucional das leis. Noutras palavras, a vontade momentnea de uma maioria conjuntural impe-se

    no longo prazo s futuras maiorias, cerceando-lhes.

    Em suma, o critrio da controvrsia aponta para o fato de que no legtimo numa democracia

    constitucionalizar questes que sejam controversas. A Constituio deve procurar definir (no limite do

    possvel) apenas o que incontroverso: as condies bsicas de funcionamento de um sistema poltico

    competitivo. Sob este ponto de vista, o que for objeto de disputa deve ser resolvido na disputa, ou seja,

    nos processo eleitoral e decisrio, dentro dos marcos polirquicos. O quadro 2 resume os critrios de

    classificao do texto constitucional, relativos aos dois modelos possveis desenvolvidos a partir do

    esforo terico dessa seo.

    Quadro 2. Critrios de distino de matrias constitucionais e no-constitucionais

    Modelos de classificao

    Minimalista(liberal clssico)

    Maximalista(social)

    (1) As definies de Estado eNao

    (1) As definies de Estado eNao

    Critrios substantivos (2) Os direitos individuaisfundamentais

    (2) Os direitos individuaisfundamentais

    (3) As regras do jogo (3) As regras do jogo

    (4) Os direitos materiais efunes estatais correlatas

    Critrios formais/ (5) Generalidade (5) Generalidadeoperacionais

    (6) Controvrsia (6) Controvrsia

    11

  • 3. Primeiras aplicaes da MAC e o problema constitucional brasileiro.

    Em nossa pesquisa precedente (COUTO & ARANTES, 2003 e 2006; COUTO, 2005), partimos da

    constatao de que um dos aspectos mais evidentes e controversos da democracia brasileira

    contempornea dizia respeito ao fato de que nossa Constituio, promulgada em outubro de 1988, no

    havia adquirido com o passar do tempo as condies de estabilidade e permanncia que habitualmente

    caracterizam os textos constitucionais. Aps sua promulgao o pas permaneceu numa espcie de

    agenda constituinte, como se o processo de reconstitucionalizao no houvesse se encerrado em outubro

    daquele ano. Desde ento, a tomada de decises e a implementao de polticas governamentais no

    lograram adquirir uma rotina apenas infra-constitucional, pois os governos se viram obrigados a

    desenvolver boa parte de sua produo normativa ainda no plano constitucional, por meio de

    modificaes, acrscimos e/ou supresses de dispositivos localizados na prpria Carta.

    A hiptese mais usual acerca da permanncia dessa agenda constituinte no Brasil ps-1988

    (comprovada pela intensa atividade de reforma do texto constitucional nesse perodo) supe que a

    Constituio teria caducado logo aps seu nascimento; isto , o texto teria sofrido de um

    envelhecimento sbito, como se tivesse mais a ver com o passado do que com o presente. Desde a

    promulgao do texto constitucional, vozes dissonantes se levantaram contra a Carta, acusando-a de

    constituir, no plano econmico, um obstculo modernizao do pas e, no plano poltico, um desastre

    do ponto de vista da governabilidade. Tal descompasso seria especialmente perceptvel diante da

    agenda de reformas estruturais do Estado e do sistema econmico, que gradualmente foi-se impondo

    como necessria para a desejada estabilizao da economia e a retomada do desenvolvimento em novas

    bases. Nesse sentido, o fato de a atividade governamental ter continuado a ocorrer no plano

    constitucional seria conseqncia de uma incompatibilidade substancial entre o contedo da Carta de

    1988 e os desafios que a nova realidade econmica e poltica, nacional e internacional, passou a nos

    impor. Desse prisma, a Constituio escrita sob a gide da remoo do entulho autoritrio do regime

    militar ps-64 tornou-se ela mesma e muito rapidamente uma espcie de entulho nacional-

    desenvolvimentista, que precisaria ser removido para permitir a implementao das chamadas

    reformas orientadas para o mercado.

    Nossas investigaes nos levaram a um distanciamento dessa hiptese de incompatibilidade

    substantiva, pois constatamos ser mais relevante uma outra dimenso do problema constitucional brasileiro.

    Para alm de eventuais anacronismos legados pela Constituio, verificamos um peculiar modus operandi

    de produo normativa em nvel constitucional, com conseqncias significativas para o

    funcionamento da democracia brasileira. Segundo nossa hiptese geral, o problema tem, portanto, um

    carter mais formal do que substantivo, mais relacionado ao tipo de processo decisrio e governamental

    ensejado pelo arcabouo constitucional do que a um eventual anacronismo dos termos substantivos da

    carta de 1988. Desse ponto de vista, o que menos importa o contedo concreto das agendas de

    12

  • governos especficos e mais a forma exigida para sua implementao, pois verificamos que

    independentemente das polticas governamentais particulares, levadas esquerda ou direita, por

    progressistas ou conservadores (ou qualquer outra denominao ideolgica que se queira dar), a

    atividade de governo no Brasil seguiu ocorrendo em grande medida no plano constitucional, como se

    estivesse capturada por uma dinmica constituinte permanente, incapaz de pr um ponto final no

    processo iniciado em 1988.

    A hiptese especfica da primeira verso do nosso projeto foi a seguinte: a Carta brasileira de

    1988 se distingue por ter consagrado formalmente como norma constitucional diversos dispositivos

    que apresentam, na verdade, caractersticas de polticas governamentais. Nesse sentido, a

    constitucionalizao de policies teria obrigado sucessivos governantes a buscar continuamente modificar

    a Carta para poder implementar boa parte de suas plataformas de governo, algo especialmente difcil na

    medida em que maiorias qualificadas so necessrias para tanto e no nada fcil constru-las no

    contexto institucional de um estado federativo e de um regime presidencialista multipartidrio como o

    brasileiro.

    Com base na Metodologia de Anlise Constitucional (MAC) exposta no item 2 acima,

    realizamos uma primeira anlise da Constituio de 1988, procurando determinar em que medida seu

    texto original continha dispositivos que pudessem ser classificados como de tipo constitucional polity

    - ou mais adequadamente como polticas pblicas - policies.9 A verso original da Constituio de 1988

    continha 245 artigos, mas uma vez decompostos os pargrafos, incisos e alneas, estes artigos se

    desdobraram em 1.627 dispositivos. Para efeitos da nossa primeira contabilidade do textoconstitucional, preferimos deixar de lado o Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, pela sua

    natureza especfica de regra de transio. Depois de rigoroso exame de cada um dos 1.627 dispositivos

    da Carta original e aplicao da MAC, conclumos que 30,5% deles dizem respeito seguramente a policy

    e 69,5% dizem respeito a normas de carter constitucional polity. Em outras palavras, quase 1/3 de

    nossa reorganizao constitucional em 1988 foi marcada pela elevao de polticas pblicas ao plano

    constitucional, com claros efeitos sobre o processo poltico posterior e a permanncia de uma agenda

    constituinte vinculando os sucessivos governos.

    Por outro lado, quando analisamos a distribuio de dispositivos ao longo dos 9 ttulos que

    compem a Constituio, constatamos que o ttulo 4, Da organizao dos poderes, responsvel por

    quase 1/3 do total de dispositivos da carta, o que, sem dvida, indica que o constituinte de 1988 teve

    grande preocupao em estabelecer detalhadamente a dimenso horizontal e funcional do sistema

    poltico brasileiro: composio, competncias, prerrogativas e regras de funcionamento dos poderes

    Executivo, Legislativo, Judicirio e rgos auxiliares como o Ministrio Pblico, a Advocacia-Geral da

    Unio e outros. Em segundo lugar, vem o ttulo 3, Da organizao do Estado, que estabelece a

    estrutura poltico-administrativa do pas, com nfase na dimenso vertical do federalismo, dos governos

    9 Os resultados detalhados dessa primeira anlise da Constituio de 1988 podem ser vistos em COUTO & ARANTES (2006)

    13

  • subnacionais e de suas relaes com a Unio. O peso relativo dos ttulos 3 e 4 certamente explica

    porque, aplicando os quatro critrios de polity formulados pela MAC, revelamos que 75,5% dosdispositivos polity da Carta brasileira dizem respeito exclusivamente ou em associao com outros a

    definies de regras do jogo, isto , so dispositivos destinados a organizar os processos de participao

    e competio polticas, o relacionamento entre e intrapoderes, a interao entre os entes da federao e

    entre atores coletivos reconhecidos pela Constituio como lidando com interesses de carter pblico.

    Tais regras normalmente estabelecem a diviso de prerrogativas e funes entre os atores institucionais,

    os mecanismos operacionais do processo decisrio governamental e os tempos e prazos que balizam

    tais processos. Quanto aos aspectos que poderamos definir como ainda mais estruturais ou estticos

    do ordenamento constitucional as definies de Estado e Nao , estes ocuparam apenas 6,5% do

    texto promulgado em 1988.

    Uma primeira concluso a extrair desse resultado que, se a Constituio brasileira pode ser

    considerada muito extensa, seu tamanho reflete o nvel de constitucionalizao de polticas pblicas

    pelo texto mas tambm o nvel de detalhamento atingido pela Constituinte na definio dos

    procedimentos que deveriam presidir o funcionamento da democracia vindoura, algo que certamente pode

    ser explicado pelas preocupaes da poca em torno da liberalizao e redemocratizao do regime

    poltico. Por outro lado, se Ulysses Guimares alcunhou o texto como Constituio Cidad, o

    adjetivo perde fora aos verificarmos que, quantitativamente, os componentes sociais, civis e polticos

    da cidadania so incomparavelmente inferiores dimenso das regras do jogo: apenas 5,7% dos

    dispositivos constitucionais dizem respeito a direitos materiais orientados para o bem-estar e a

    igualdade sociais e apenas 8,1% dizem respeito a direitos individuais de liberdade e de participao

    poltica. Somados, os dispositivos cidados perfazem pouco mais de 13% da Carta de 1988.

    Quanto a dispositivos de tipo policy, verificamos sua presena em todos os ttulos da

    Constituio, com exceo do ttulo 1, relativo aos Princpios Fundamentais (de fato seria muito

    curioso se ali vissemos a encontrar polticas pblicas constitucionalizadas). Em termos percentuais, os

    ttulos das Disposies constitucionais gerais e da Ordem econmica e financeira foram os que

    apresentaram maior ndice de dispositivos policy, com algo em torno de 70% do total. Na seqncia,

    aparece o ttulo da Ordem social, no qual cerca de 60% dos dispositivos definem princpios de policy e

    no de polity. Nada menos do que 1/3 do ttulo da tributao e do oramento e at mesmo do ttulo

    dos direitos e garantias fundamentais no precisariam estar no texto constitucional, pois referem-se a

    mecanismos de policy e no de polity. Por fim, mesmo os ttulos que remontam s linhas bsicas do

    moderno constitucionalismo Da organizao do Estado e Da organizao dos poderes

    revelaram a existncia de dispositivos policy em seu interior: o primeiro com ndice de 27% e o segundo

    com ndice de 10% do total de dispositivos.

    A partir dessa caracterizao geral da Carta de 1988, podemos avanar no sentido de mensurar

    o impacto de seu perfil geral sobre o processo governamental, a elaborao legislativa e a produo de

    14

  • polticas pblicas, um dos objetivos centrais desse projeto. Em trabalho anterior (COUTO & ARANTES,

    2003), havamos aplicado a Metodologia de Anlise Constitucional ao conjunto de emendas

    constitucionais promulgadas durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso10 e

    chegamos a resultados surpreendentes:

    Dos 482 dispositivos de emendas que modificaram ou aglutinaram novos elementos

    constitucionais, nada menos do que 68,8% (332) diziam respeito a polticas pblicas (policy) e apenas

    31,2% (150) diziam respeito a princpios fundamentais (polity).

    Do total de dispositivos de emendas constitucionais, 60,8% eram aglutinadores, isto , vieram

    agregar novos aspectos Constituio. Dentre os aglutinadores, nada menos do que 82,7%

    diziam respeito a policy e apenas 17,9% vieram acrescentar mais polity Carta.

    A concluso geral a que chegamos naquele primeiro estudo foi: ao contrrio do que se afirma

    no debate pblico, nossa Constituio no foi mutilada pelas emendas constitucionais do

    perodo FHC, mas, pelo contrrio, cresceu nada menos do que 15,3%, graas a elas(enquanto a taxa de modificao do texto original, por emendas desse mesmo perodo, foi a

    metade desse valor: 8,8%).

    Em suma, o crescimento do texto constitucional no perodo FHC foi marcado pela

    incluso de novos dispositivos policy na Constituio, em proporo significativamente superior aos

    dispositivos polity nela includos por meio de emendas. Tentar compreender porque isso aconteceu

    segue sendo um desafio analtico e de pesquisa emprica. De qualquer forma, com a aplicao da MAC

    prpria Constituio de 1988, pudemos verificar com maior preciso onde incidiram as emendas do

    perodo FHC que visaram modificar aspectos do texto constitucional (se polity ou policy). O resultado se

    encontra na tabela 1.Tabela 1. Constituio e emendas constitucionais FHC

    Tipo de dispositivo originalSofreram

    modificaoNo sofrerammodificao

    Polity 92 1.039Policy 68 428

    Total 160 1.467

    Embora o maior nmero de emendas modificadoras tenha incidido sobre dispositivos

    polity do texto original, proporcionalmente bem mais significativo o nmero de emendas sobre

    dispositivos policy, se considerarmos o perfil geral da Constituio. O fato que teste estatstico revelou10 Ao longo de 20 anos de vigncia da Constituio de 1988, 62 emendas constitucionais foram aprovadas, sendo 6 duranteo processo de Reviso de 1994 as Emendas Constitucionais de Reviso e outras 56 como Emendas Constitucionaiscomuns. Destas ltimas, 35 foram aprovadas somente durante o governo Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002(4,375 emendas por ano) tendo sido, na sua maior parte, propostas de iniciativa do Poder Executivo e recaindomajoritariamente sobre matrias que compunham uma agenda tipicamente governamental e no necessariamente constitucional.Durante o governo Lula, outras 21 emendas foram aprovadas at dezembro de 2007 (aproximadamente 4 emendas por ano).

    15

  • a existncia de uma associao entre policy constitucionalizada e emendas modificadoras. Em outras

    palavras, as mudanas constitucionais do perodo FHC incidiram significativamente mais em

    dispositivos policy do que em dispositivos polity, o que corrobora a hiptese com a qual estamos

    trabalhando desde o incio: a agenda poltica e governamental brasileira segue sendo uma agenda

    constituinte no porque sucessivos presidentes quiseram mutilar princpios fundamentais ou por

    qualquer outra razo exgena, mas porque a prpria Carta os obrigou, em grande medida, a lidar com a

    Constituio para implementar simples polticas pblicas. Mais do que isso, o grande legado da era

    FHC foi ter acrescentado 250 novos dispositivos policy ao ordenamento constitucional brasileiro.11

    4. Novos passos: comparao e teste de hiptese sobre judicializao depolticas pblicas.

    Duas questes que de imediato se levantam, aps a considerao do caso brasileiro, se a Carta

    de 1988 constitui uma regra ou uma exceo vis-a-vis outras Constituies e que impacto o perfil

    revelado por nossa anlise tem sobre o Judicirio e seu grau de interveno no territrio das polticas

    pblicas. Nossos prximos passos de pesquisa esto voltados para a busca de respostas a estas duas

    questes. A primeira nos conduzir a trabalhar com a metodologia de anlise constitucional em

    perspectiva comparada. A segunda nos levar a testar a hiptese de que o perfil constitucional induz

    judicializao das politicas pblicas.

    No primeiro caso, se tomarmos como referncia a anlise comparativa de taxas de

    emendamento constitucional realizada por LUTZ (1995), logo nos salta aos olhos a atipicidade de nossa

    Lei Fundamental. O clculo da taxa bastante simples: divide-se o nmero de emendas constitucionais

    pelo nmero de anos de vigncia de uma Constituio. Dentre 29 pases selecionados para o ano de

    1992, a menor taxa de emendamento constitucional foi a do Japo, de 0,00 indicando que nenhuma

    emenda fora aprovada Carta do ps-guerra, ento com 47 anos. A mesma razo era encontrada para a

    Nigria, porm com uma Carta que durou apenas 5 anos. Pouco acima disso, com os menores valores,

    figuravam Venezuela (0,04), Dinamarca (0,07), Austrlia (0,09), Frana (0,12) e Estados Unidos (0,13).11 Ao analisar o malogro da reviso constitucional de 1993/94, MELO (2002) afirma que ele se deu em virtude de umaconjuno de fatores. A despeito dos aspectos que favoreciam a mudana constitucional (votao por maioria simples emsesso unicameral do Congresso), outras caractersticas, no entanto, tais como o monoplio, pelo Legislativo, da iniciativapropositiva, a inexistncia de policy advocates para as emendas e a simultaneidade de votaes reduziam o potencial demudana por parte do governo. A anlise sugere que esse potencial, que o arranjo institucional propiciava, foi anulado peloimpacto devastador de fatores contextuais, tais como os constrangimentos eleitorais, a polarizao da agenda pblica e aestrutura de incentivos com que se deparavam o Executivo e o Legislativo na conjuntura da CPI do oramento. Ocalendrio eleitoral, como varivel isolada, se constituiu no fator decisivo. (MELO, 2002, 76) A anlise de MELO em sireveladora de um aspecto fundamental do problema constitucional brasileiro: afinal, por que o sucesso ou o fracasso de umprocesso de reviso constitucional deveria estar condicionado pelos interesses do governo, pela presena ou ausncia depolicy advocates, pelo efeito negativo (devastador) de fatores contextuais, pela conjuntura poltica e pelo calendrioeleitoral, se no pelo fato de que essa Constituio ela mesma uma Carta de dispositivos tipicamente governamentais? Isto, os fatores identificados por MELO para explicar o fracasso da reviso constitucional de 1993/94 so a prpria confirmaode que a Constituio criou um modus operandi de produo normativa que vincula interesses conjunturais, de governo e depolicy advocates, ao marco constitucional. Por essa razo nossa agenda poltica seguiu sendo uma agenda constituinte no ps-1988.

    16

  • Os maiores valores eram os de ustria (7,00), Malsia (5,18), Sucia (4,72), Mxico (2,94), Qunia

    (2,72), Luxemburgo (1,80) e Papua Nova-Guin (1,75).

    Fazendo o clculo da taxa de Lutz para o Brasil, chegamos a 3,17. Trata-se de um valor superior

    ao dobro da mdia dos 29 pases por ele estudados (1,48) o que colocaria o pas num hipottico 4

    lugar, caso o inserssimos na lista. Diante disto, a pergunta que poderamos fazer : que importncia isto

    tem? Para tentar responder a esta questo, levemos em conta algumas suposies tericas de Lutz

    (1995: 242):

    Our first working assumption has to do with the expected change that is faced by anypolitical system.

    ASSUMPTION 1: Every political system needs to be altered over time as a result of somecombination of: (1) changes in the environment within which the political system operates (includingeconomics, technology, and demographics); (2) changes in the value system distributed across thepopulation; (3) unwanted or unexpected institutional effects; and (4) the cumulative effect ofdecisions made by the legislature, executive, and judiciary.

    A second assumption concerns the nature of a constitution.ASSUMPTION 2: In political systems that are constitutional, in which constitutions are

    taken seriously as limiting government and legitimating the decision-making process they describe,important alterations in the operation of the political system need to be reflected in the constitution

    If these two assumptions are used as premises in a deductive process, they imply a conclusionthat stands as a further assumption.

    ASSUMPTION 3: All constitutions require regular, periodic alteration, whether throughamendment, revision, or replacement.

    Pode-se inferir da que as constituies pouco emendadas possivelmente no respondem s

    mudanas do tempo ou, se o fazem, isto se d pelo recurso a expedientes outros que no a mudana do

    texto constitucional propriamente dito. Lutz aponta que nos casos em que muito difcil o

    emendamento constitucional pela legislatura, provvel que a alterao constitucional se d mediante a

    interpretao dos tribunais; bem esse o caso dos Estados Unidos, alis.

    Entretanto, podemos nos questionar ainda se uma elevada taxa de mudanas constitucionais

    desejvel. Lutz aponta que uma taxa razovel de emendas constitucionais situar-se-ia prxima

    mdia internacional. Considerando os casos elencados, ela oscilaria em torno de 1,5. O Brasil superaria

    por larga margem o que Lutz apontaria como razovel. Mas por qu razes seria nossa constituio

    to emendada? Na forma de trs proposies, Lutz (1995: 243-4) nos fornece sugestes a esse respeito:

    PROPOSITION 1: The longer a constitution, the higher its amendment rate, and theshorter a constitution, the lower its amendment rate.

    ()PROPOSITION 2: The more difficult the amendment process, the lower the amendment

    rate, and the easier the amendment process, the higher the amendment rate.()

    17

  • PROPOSITION 3: The more governmental functions dealt with in a constitution, thelonger it will be, and the higher rate of amendment it will have.

    A constituio brasileira se adequa perfeitamente s trs proposies de Lutz: ela longa,

    apresenta um processo de emendamento relativamente fcil e lida com muito do que poderamos

    chamar de funes governamentais ou seja, policies.

    Quanto a seu tamanho, para alm do anedtico, a Carta de 1988 realmente grande em termos

    comparados. Seu texto original possui 39.500 palavras (valor arredondado), o que o colocaria num

    hipottico 8 lugar na lista de 29 pases analisados por Lutz. Entretanto, como esse autor no considera

    apenas os textos originais para seus cmputos, mas tambm os emendados, provvel que o texto

    constitucional brasileiro fosse comparativamente maior frente verso originria de seus congneres.

    Tendo isso em vista, se tomarmos como referncia o texto constitucional brasileiro consolidado at a

    emenda 49/2006, aferimos que possui 65.000 palavras. Considerando as Cartas analisadas por Lutz, o

    mesmo nmero da Constituio do Alabama, cuja taxa de emendamento de 8,07 (a mais alta dentre as

    constituies estaduais americanas)12 e, dentre as constituies nacionais, menor apenas que as

    Constituies da ndia (95.000 palavras, taxa de 1,49) e da Malsia (91.400, taxa de 5,18).

    Quanto facilidade de emendamento, no que concerne aos procedimentos requeridos, o texto

    brasileiro figuraria como o terceiro de mais fcil modificao na lista de Lutz. Segundo um ndice por

    ele elaborado (que no cabe aqui pormenorizar) o Brasil apresentaria um ndice de dificuldade de

    emendamento de 1,5 superior apenas aos apresentados por ustria (0,80) e Sucia (1,00). Pouco acima

    do Brasil figurariam Malsia (1,60), o Qunia (1,75) e Luxemburgo (1,80); os textos mais difceis de

    emendar seriam da Iugoslvia (5,60), EUA (5,10) e Austrlia (4,70). O ndice mdio de 3,26.

    Confirmando as proposies, ustria, Sucia e Malsia apresentam elevadas taxas de emendamento

    constitucional (7,00; 4,72 e 5,18, respectivamente), o Qunia teria um valor pouco menor, mas ainda

    acima da mdia, de 2,72, ao passo que os trs ltimos mencionados acima apresentam taxas muito

    baixas de emendamento constitucional, de 0,75; 0,13 e 0,09, respectivamente13.

    Finalmente, quanto terceira proposio de Lutz, a quantidade de funes governamentais

    com que lida uma constituio, o autor no nos oferece nenhuma anlise emprica a respeito, embora

    aponte o problema. E justamente essa lacuna que este projeto pretende preencher. Em primeiro

    lugar, falta na discusso do autor uma definio mais precisa do que se entende por funes

    governamentais. As nicas referncias feitas por LUTZ (1995: 246) ao assunto se do num nico

    pargrafo de seu artigo, quando ele comenta que (1) as constituies estaduais norte-americanas teriam

    crescido premidas pelo cada vez maior nmero de funes com que os estados lidam, com o

    12 A segunda mais extensa carta estadual norte-americana a de Oklahoma, com 58.200 palavras, seguida das cartas daLousiana, com 47.300, e a do Missouri, com 39.300. Suas taxas de emendamento so, respectivamente, de 1,58; 1,69 e 1,61;todas acima da mdia estadual norte-americana, de 1,23 (Lutz, 1995: 248-9).13 Ressalve-se que alguns dos casos elencados por Lutz, como a Iugoslvia, so de pases no-democrticos e, portanto,parece-nos que sua anlise fica prejudicada.

    18

  • conseqente crescimento da maquinaria governamental. Ao lado disso, (2) os estados teriam sido cada

    vez mais obrigados a responder a problemas de grande magnitude associados rpida urbanizao,

    desenvolvimento tecnolgico, crescimento e mobilidade populacional, mudana econmica e

    desenvolvimento, e o tratamento justo de grupos minoritrios, e teriam aumentado tambm (3) a

    presso de interesses especficos por status constitucional; e (4) a desconfiana das legislaturas estaduais,

    resultante de abusos passados, a qual resultou em detalhadas restries sobre a atividade

    governamental.

    Ao observar esses pontos, Lutz conclui (1995: 246-7):

    All of these factors tribute to the length of state constitutions, and it is argued that not onlydo these pressures lead to many amendments, and thus greater length, but that greater length itselfleads to the accelerated need for amendment simply by providing so many targets for change. Thus,the length becomes a surrogate measure for all of these other pressures to amend, and is a key causalvariable.

    Portanto, quanto mais uma constituio tem de lidar com polticas pblicas, maior ela tende a

    ser. Quanto maior ela , mais tende a ser emendada. E quanto mais emendada for, maior ela fica,

    tendendo a ser ainda mais emendada. Esta seria uma descrio acurada do processo pelo qual passa a

    Constituio brasileira desde 1988. A questo que Lutz no respondeu e sobre a qual ns aqui

    buscamos fornecer um modelo explicativo : como definir o que, no interior de uma Carta

    constitucional, so polticas pblicas? E como, com base nessa definio, verificar se de fato uma

    constituio com muitas polticas pblicas torna-se maior e mais emendada?

    Na primeira etapa desta nossa pesquisa procuramos responder a esse problema numa anlise

    sobre a Carta brasileira de 1988. Todavia, para poder compreend-lo melhor, seja para a formulao de

    uma teoria poltica da Constituio e do emendamento constitucional, seja para uma compreenso mais

    acurada dos problemas particulares suscitados pelo ordenamento constitucional brasileiro, torna-se

    necessria a comparao. preciso analisar textos constitucionais de outros pases, distinguindo em seu

    interior a presena de policy ou polity, para verificar em que medida o diferente balano entre esses dois

    elementos normativos no interior de uma Carta afeta, primeiro, a forma como um pas governado e,

    segundo, a maneira como os atores polticos lidam com a Constituio. Caso nos atenhamos ao estudo

    exclusivo da Constituio brasileira de 1988, corremos o risco de reificar esse texto sem conseguir

    formular explicaes universalizveis e, conseqentemente, vlidas. Essa a razo de nos lanarmos

    agora uma perspectiva comparada.

    O segundo passo da pesquisa est direcionado anlise do impacto do perfil da constituio

    sobre o processo decisrio, especialmente o de tipo judicial. Nosso argumento principal que a Carta

    de 1988, por ter consagrado formalmente como norma constitucional diversos dispositivos de policy,

    apresenta fortes implicaes para o modus operandi do sistema poltico brasileiro. Esse perfil conduz a

    trs conseqncias importantes do ponto de vista do processo decisrio e do funcionamento do

    poderes. Em primeiro lugar, a constitucionalizao de polticas pblicas faz com que os sucessivos

    19

  • governantes se vejam diante da necessidade de modificar o ordenamento constitucional para poder

    implementar parte de suas plataformas de governo. Em segundo lugar, construir amplas maiorias

    legislativas passa a ser condio bsica para superar o engessamento prvio a que foi submetida a

    agenda governamental pelo constituinte, algo especialmente difcil no contexto institucional de um

    estado federativo e de um regime presidencialista multipartidrio como o brasileiro. Por fim, mas no

    menos importante, esse tipo especial de Constituio tem impacto significativo sobre o funcionamento

    do sistema de justia, na medida em que o Judicirio e especialmente seu rgo de cpula o Supremo

    Tribunal Federal (STF) passam a ser mais acionados para controlar a constitucionalidade das leis e

    demais atos normativos, nem sempre relativos a princpios constitucionais fundamentais, mas

    freqentemente relativos a polticas pblicas.

    Nesta etapa da pesquisa, pretendemos desdobrar a metodologia de anlise constitucional para o

    exame das Aes Diretas de Inconstitucionalidade julgadas pelo STF (so hoje mais de 4 mil) e verificar

    a hiptese da judicializao das polticas pblicas por meio do processo de reviso constitucional que

    ocorre com as ADIns. Nossa hiptese que a combinao de uma Constituio fortemente dirigente

    que encerra um grande nmero de polticas pblicas e um sistema de controle direto da

    constitucionalidade das leis de amplo acesso a atores sociais e polticos (Arantes, 2005) faz do caso

    brasileiro um exemplo no s de constituio muito emendada (a partir de uma agenda governamental

    que bem poderia ser considerada ordinria, luz de critrios mais substantivos) como de intensa

    participao do judicirio na poltica, na medida em que a constituio est carreada de polticas

    pblicas que por essa via acabam desaguando igualmente nos tribunais.

    No seu conhecido estudo comparativo envolvendo 36 democracias contemporneas, Lijphart

    (2003) demonstrou a existncia de relao emprica entre rigidez constitucional e fora da reviso

    judicial, o que poderia ser explicado por duas razes: uma delas que tanto a rigidez quanto a reviso

    judicial so recursos anti-majoritrios, e que as constituies completamente flexveis, com a ausncia

    de reviso judicial, permitem a regra irrestrita da maioria. A segunda razo que elas tambm se ligam

    logicamente, no sentido em que a reviso judicial s pode operar de forma efetiva se for apoiada pela

    rigidez constitucional, e vice-versa. Lijphart completa o argumento afirmando que numa combinao

    de forte controle constitucional e constituio flexvel, a maioria legislativa tender a reagir a

    declaraes de inconstitucionalidade com emendas Constituio. E, inversamente, sob constituies

    rgidas, mas no protegidas por mecanismos de controle constitucional, a maioria parlamentar poder

    aprovar leis de carter constitucionalmente duvidoso.

    Portanto, com a constitucionalizao de direitos cria-se de imediato um ponto de veto, embora

    no se gere automaticamente um ator de veto (veto player), pois a vedao a que determinadas decises

    sejam implementadas no decorre diretamente da ao de qualquer ator poltico, mas sim da interdio

    constitucional formal a que determinadas coisas sejam feitas. Contudo, ainda que no haja a

    interveno direta de outros atores polticos pelo fato da constituio prever certas vedaes, o fato

    20

  • que para assegurar que os direitos constitucionais no sero solapados por decises das autoridades

    governamentais necessria a interveno de um ator em particular: o judicirio. Sem que haja um

    controle de constitucionalidade capaz de assegurar que perdero efeito (ou sero anuladas) normas

    legais ou atos administrativos em contradio com o que determina a constituio, pouca valia teria a

    prescrio constitucional de direitos ou de qualquer outra coisa. Tendo isso em vista, o veto point da

    constitucionalizao dos direitos ganha efetividade apenas quando o veto player representado pelos

    tribunais entra em ao, exercendo o controle de constitucionalidade. E, vale lembrar, o judicirio

    somente passa a agir depois que provocado por algum a deixar a condio de inrcia que lhe

    prpria. Para Taylor, inclusive, mais correto seria falar dos tribunais da seguinte forma: by providing

    veto points to select political actors, it gives them greater voice and leverage over policy than might

    otherwise be the case, in some cases enabling them to act as veto players even when they might

    otherwise be unable to do so elsewhere in the political system. (Taylor, 2004, 154)

    5. Objetivos especficos e resultados esperados (trinio 2008/2009).

    Nos prximos trs anos, minha inteno desenvolver duas metas de investigao emprica

    mais especficas, luz do quadro terico exposto acima:

    1. Anlise do impacto do perfil constitucional sobre o processo de reviso judicial da

    constitucionalidade das leis, pelo Supremo Tribunal Federal, a fim de testar a hiptese da

    judicializao das polticas pblicas; e

    2. Anlise comparada de processos de reformas constitucionais recentes em pases selecionados

    da Amrica do Sul, e seus impactos sobre o funcionamento da democracia .

    A anlise especfica da dimenso judicial do problema constitucional brasileiro nos permitir

    elaborar uma contribuio que reputamos original ao campo de estudos que se dedica anlise de

    processos decisrios que envolvem mudanas constitucionais. Nossa idia construir um modelo

    explicativo baseado em trs variveis, algo que a literatura ainda no logrou fazer: (1) a taxa de policies de

    uma Constituio; (2) o grau de dificuldade de emendamento constitucional; e (3) a existncia ou no

    do controle constitucional das leis a cargo do Judicirio ou de tribunais constitucionais e o grau em

    que praticado pelos rgos responsveis. A considerao dessas trs variveis na anlise dos diferentes

    casos nacionais nos permitir compreender, de forma comparativa, como em cada um dos pases

    estudados a constituio afeta a agenda governamental de polticas pblicas e ao mesmo tempo

    afetada por esta.

    A anlise comparada de processos de reformas constitucionais recentes em pases selecionados

    da Amrica do Sul nos permitir analisar seus impactos sobre o funcionamento da democracia nesses

    21

  • pases, em conexo com as questes de estatidade (stateness) que tm sido debatidas pela literatura

    embalada pelo conceito de Estados Falidos (Fukuyama, 2005). Alguns pases como Venezuela, Bolvia

    e Equador tm passado por importantes processos de mudana constitucional, envolvendo diversas

    dimenses da estatidade, mas parecem longe ainda de estabelecer um marco jurdico consensual nesse

    plano normativo fundamental. Interessa-nos analisar estes processos, a partir da metodologia de anlise

    constitucional que desenvolvemos, e suas consequncias para a maior ou menor institucionalizao do

    regime democrtico nesses pases.

    6. Metodologia e Plano de Atividades.

    O presente projeto poder contar com a colaborao de outros pesquisadores, pois h espao e

    eu diria mesmo necessidade disso. Algumas atividades aqui previstas supem a formao de uma

    equipe mais ampla de investigadores. A pesquisa ser realizada com base na seguinte metodologia e

    plano de trabalho:

    6.1. Anlise da bibliografia.

    Tendo em vista os objetivos principais do projeto, os seguintes tpicos devero orientar a pesquisabibliogrfica:

    6.1.1. Relaes entre constitucionalismo e democracia (objetivos gerais)6.1.2. Controle constitucional das leis e judicializao da poltica (objetivo especfico 1)6.1.3. Processo decisrio e legislativo (objetivo especfico 1)6.1.4. Transies democrticas recentes, processos de elaborao constitucional e de construo

    institucional (objetivo especfico 2)6.1.5. Regimes democrticos e questes de stateness em perspectiva comparada (objetivo especfico

    2)

    6.2. Consolidao da Metodologia de Anlise Constitucional.

    A Metodologia de Anlise Constitucional (MAC) tem nos permitido examinar o contedo deuma constituio e verificar em que medida seus dispositivos correspondem a princpiosfundamentais (polity) ou a polticas pblicas (policy). Informados pela teoria democrtica e porelementos fornecidos pelo constitucionalismo, formulamos critrios objetivos de classificao dedispositivos constitucionais, e por meio deles temos avaliado qualitativa e quantitativamente os textosconstitucionais selecionados. Nosso desafio terico e metodolgico nessa prxima etapa do projetoser desenvolver modelos que nos permitam analisar comparativamente diferentes modos defuncionamento de democracias constitucionais, especialmente no que diz respeito 1) a processos demudana constitucional e 2) de judicializao de polticas pblicas como decorrncia da taxa depolicies existentes nas constituies e dos sistemas mais ou menos acessveis de controle deconstitucionalidade das leis.

    6.3. Pesquisa emprica e sistematizao de dados.

    6.3.1. Levantamento e sistematizao em banco de dados das Aes Diretas deInconstitucionalidade no perodo 1988-2007 (objetivo especfico 1)

    22

  • 6.3.2. Seleo de pases que passaram recentemente por processos de (re)construo institucionale elaboraram novos textos constitucionais, com vistas anlise comparativa (objetivoespecfico 2)

    6.4. Reunies de trabalho e seminrios de discusso.

    Nossa inteno formar uma equipe mais ampla de pesquisadores - com estudantes degraduao e de ps-graduao, assim como de professores doutores e caso tenhamos sucesso nessesentido, haver pelo menos quatro tipos de reunies e seminrios, envolvendo os participantes:

    6.4.1. Reunies para organizao, avaliao e ajustes do trabalho de pesquisa. 6.4.2. Reunies para sistematizao e anlise do material emprico.6.4.3. Seminrios para debater problemas suscitados pela leitura da bibliografia. 6.4.4. Seminrio final, com a participao de convidados especialistas, para discusso dos

    resultados da pesquisa.

    6.5. Produo de artigos sobre os principais resultados desta etapa da pesquisa, a seremencaminhados para publicao:

    6.5.1. Constitucionalizao e judicializao de polticas pblicas.6.5.2. Reformas constitucionais e institucionalizao da democracia em perspectiva comparada.

    7. Cronograma geral da pesquisaConsiderando o perodo de 36 meses, possvel estabelecer o seguinte cronograma de

    atividades (esto grafados em tom mais escuro os bimestres nos quais as atividades sero desenvolvidas

    com maior intensidade, e em tons mais claros os bimestres em que sero empreendidas com menor

    intensidade).

    Ms/Atividade 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36

    Leitura e anlise dabibliografia

    Pesquisa EmpricaConsolidao da MACRedao de Artigos

    Reunies de TrabalhoSeminrios Internos da

    EquipeSeminrio Final

    23

  • 8. Bibliografia

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