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12 RELATO DE EXPERIÊNCIA Adolescência & Saúde Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 1, p. 12-20, dezembro 2018 RESUMO Este artigo tem por objetivo lembrar os primórdios da área de Medicina do Adolescente, apresentando um relato histórico, seus pioneiros, as percepções, iniciativas e dificuldades iniciais, e seu desenvolvimento - avanços e conquistas. Refletindo, sobretudo, sobre a abordagem necessária para cuidar dos adolescentes de forma eficaz, intuindo novos caminhos e perspectivas. PALAVRAS-CHAVE Adolescente, Medicina do Adolescente, Comportamento do Adolescente. ABSTRACT This article aims to remember the early years of Adolescent Medicine, presenting a historical description, its pioneers, the perceptions, initiatives and initial difficulties, its development - advances and conquests. It reflects, above all, the necessary approach to effectively take care of the adolescents, sensing new paths and perspectives. KEY WORDS Adolescent, Adolescent Medicine, Adolescent Behavior. Os primeiros anos da Medicina do Adolescente e os pioneiros que desenvolveram esta área de especialidade The early years of adolescent medicine and the pioneers who developed the field Henry Berman 1 Henry Berman ( [email protected]) - University of Washington / Department of Pediatrics: 1959 NE Pacific St, Seattle, WA 98195, EUA. Submetido em 11/05/2018 - Aprovado em 12/06/2018 1 M.D., Clinical Professor of Pediatrics - Division of Adolescent Medicine Department of Pediatrics. University of Washington, Seattle Children's Hospital. > > > > Em 1944, o conselho do Hospital Infantil de Boston propôs uma unidade de adolescentes para o seu Centro Médico. Em 1950, Charles Ja- neway, Médico-Chefe, recrutou o Dr. J. Roswell Gallagher- MD, para desenvolver tal programa. Janeway conhecia Gallagher desde a época em que tinha sido diretor de saúde estudantil na Phillips Academy, em Andover, Massachusetts. No início de 1951, os dois apresentaram uma proposta ao conselho para a criação de uma “Unidade de Adolescentes”, a qual abriu suas portas em 1º de setembro daquele ano - o pri- meiro programa dedicado ao atendimento de adolescentes 1 . Seis pacientes foram atendidos na Unidade no primeiro mês, e outros 54 até o final do ano.

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12 RELATO DE EXPERIÊNCIA

Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 1, p. 12-20, dezembro 2018

RESUMOEste artigo tem por objetivo lembrar os primórdios da área de Medicina do Adolescente, apresentando um relato histórico, seus pioneiros, as percepções, iniciativas e dificuldades iniciais, e seu desenvolvimento - avanços e conquistas. Refletindo, sobretudo, sobre a abordagem necessária para cuidar dos adolescentes de forma eficaz, intuindo novos caminhos e perspectivas.

PALAVRAS-CHAVEAdolescente, Medicina do Adolescente, Comportamento do Adolescente.

ABSTRACTThis article aims to remember the early years of Adolescent Medicine, presenting a historical description, its pioneers, the perceptions, initiatives and initial difficulties, its development - advances and conquests. It reflects, above all, the necessary approach to effectively take care of the adolescents, sensing new paths and perspectives.

KEY WORDSAdolescent, Adolescent Medicine, Adolescent Behavior.

Os primeiros anos da Medicina do Adolescente e os pioneirosque desenvolveram esta áreade especialidadeThe early years of adolescent medicine and the pioneers who developed the field

Henry Berman1

Henry Berman ( [email protected]) - University of Washington / Department of Pediatrics: 1959 NE Pacific St, Seattle, WA 98195, EUA.Submetido em 11/05/2018 - Aprovado em 12/06/2018

1M.D., Clinical Professor of Pediatrics - Division of Adolescent Medicine Department of Pediatrics. University of Washington, Seattle Children's Hospital.

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Em 1944, o conselho do Hospital Infantil de Boston propôs uma unidade de adolescentes para o seu Centro Médico. Em 1950, Charles Ja-neway, Médico-Chefe, recrutou o Dr. J. Roswell Gallagher- MD, para desenvolver tal programa. Janeway conhecia Gallagher desde a época em que tinha sido diretor de saúde estudantil na Phillips Academy, em Andover, Massachusetts.

No início de 1951, os dois apresentaram uma proposta ao conselho para a criação de uma “Unidade de Adolescentes”, a qual abriu suas portas em 1º de setembro daquele ano - o pri-meiro programa dedicado ao atendimento de adolescentes1. Seis pacientes foram atendidos na Unidade no primeiro mês, e outros 54 até o final do ano.

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Ele viajou pelo país dando palestras e reu-nindo-se com médicos que seguiram sua deci-são de entrar na área. Ele publicou artigos em uma ampla gama de revistas desde o The New England Journal of Medicine até Children, tendo até um programa de rádio. Em 1954, Gallagher foi entrevistado pelo The Saturday Evening Post em um artigo intitulado The Adolescents Get a Doctor of Their Own. Murray Williams, um jo-vem médico de família na Austrália e, décadas depois, o primeiro presidente da Associação In-ternacional de Saúde do Adolescente comentou sobre esse artigo:

Existiram outras iniciativas, principalmente a clíni-ca aberta por Amelia Gates em Stanford em 1916 e um programa comunitário estabelecido por Nydia Gomes-Ferrarotti na Argentina em 1948. No en-tanto, foi Gallagher que criou a especialidade de medicina de adolescentes.

“[Esse artigo] me levou a uma experiência ex-traordinária como um dos primeiros estagiários no único local onde havia treinamento específico, a Unidade de Adolescentes do Hospital Infantil de Boston, Massachusetts... Trabalhei com Ros Gallagher do início de 1956 a setembro de 1958 - Acredito que fui chamado de colega na medici-na; no final desse período recebi o Certificado de Graduação da Harvard Medical School para um curso de doze meses em Medicina do Adolescente. Trabalhei como um membro da equipe, vendo o mesmo número de casos que os outros médicos e participando de todas as sessões de treinamento.” (Murray Williams, 1959).

Williams publicou um artigo sobre suas ex-periências3 que trouxeram uma nova área para seu país. Ele é considerado "o pai da medicina adolescente" da Austrália.

PUBLICAÇÕES

Das várias publicações do Dr. Gallagher, dois capítulos - o primeiro em Clínicas de Pedia-tria da América do Norte em 19604, e o segun-

A Unidade cresceu rapidamente. Os pais viajavam longas distâncias para levar seus ado-lescentes para serem cuidados na “Unidade de Adolescentes”, que também recebeu referências de médicos responsáveis por abrigos institu-cionais, centros de orientação, escolas e vários programas para adolescentes. O programa co-brava US$ 4,00 por visita. Além disso, recebeu financiamento de outras fontes - em particular, da Fundação William T. Grant.

Além de desenvolver um programa que foi o primeiro a ser dedicado especificamente aos adolescentes, Gallagher era um proselitista. Ele pregou sua mensagem que dizia que os adoles-centes precisavam ter médicos que os enten-dessem, que os ouvissem e respeitassem. Des-de o início, ele insistia que sua clínica deveria estar centrada no paciente e nas necessidades especiais do adolescente, e não nas exigências especiais de sua doença. Essa filosofia permeou suas publicações.

Figura 1. J. Roswell Gallagher, M.D. Pioneiro da área de Medicina de Adolescentes - Boston Children’s Hospital (Fonte: Yale University).

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do, cinco anos depois, em Clínicas Médicas da América do Norte5- contêm extensas discussões sobre seus pontos de vista sobre a prestação de cuidados aos adolescentes.

A Dra. Evelyn Eisenstein, líder na constru-ção da Medicina de Adolescentes no Brasil, ain-da quando era estudante de medicina no Rio de Janeiro em 1968, recebeu o livro de presente do médico e colega do então Hospital de Clínicas da Universidade do Estado da Guanabara. Des-de então se dedicou a estudar os cuidados de saúde dos adolescentes. Em 1972, escreveu uma carta ao Dr. Gallagher, e recebeu a carta respos-ta assinada pelo Dr. Robert Masland e o convite para fazer o curso de 5 dias que era oferecido todos os anos, no Hospital de Crianças, na Uni-versidade de Harvard, em Boston. O resto já é a história de uma das pioneiras da Medicina de Adolescentes no Brasil.

Em 1960, o Dr. Gallagher discutiu a aborda-gem necessária para cuidar dos adolescentes de forma eficaz e, em seguida, forneceu um exem-plo memorável: “Enquanto eles estão avaliando você, e você os está avaliando, eles serão rápidos em julgar se você os aceita ou não e o colocarão em teste muitas vezes. Essa jaqueta de couro te incomoda? Essa faca que se destaca te incomo-da? Você é capaz de aceitá-los como eles são e entender o motivo deles terem a jaqueta de couro e não levar isso, ou a sua sujeira, como uma forma de dizer que eles não o respeitam? Eles não viriam até você se não precisassem usar uma jaqueta de couro ou carregar a faca ou usar roupas sujas. Se você tiver que dizer: ‘Escuta, se você vier me ver, tem que se limpar’, outra pes-soa será mais útil para o adolescente.”

“A filha de amigos, Cain, era um problema: che-gava sempre tarde, suja, recusava-se a tomar ba-nho, entrava na sala e desgraçava os pais diante de seus principais amigos. Eles vieram à consulta e conversaram comigo sobre isso e eu disse que fica-ria feliz em vê-la, mas ela não soava como o tipo de garota que queria vir e me ver numa consulta. No entanto, eles marcaram uma data e literal-mente a arrastaram aqui. Lá estava ela, em meu

consultório externo, com calça jeans suja, cabelo despenteado, cara suja, unhas imundas, botas de montaria sujas. Então eu a cumprimentei com o usual: ‘Olá, sou Ros Gallagher'. Ela olhou para mim e disse: ‘Esta é a última vez que eu vou entrar neste maldito lugar’. ‘Eu também sempre me sinto assim’ disse. Naquele intervalo, já estávamos na sala do consultório.

‘O que está acontecendo? De quem foi essa ideia?’ Eu disse. Como se eu não soubesse. ‘De quem foi ideia!? Daquele velho idiota!’, e então ela começou a falar e continuou a falar e a se queixar durante quase uma hora. ‘Bem, então por que você não vem daqui a alguns dias?’. Ela disse que talvez viesse. Quando estava sain-do, ela disse: ‘Me desculpe por essas botas. Eles me arrastaram até aqui e eu não tive chance de limpá-las’. As botas eram importantes para ela: ela não queria que eu pensasse que ela andava por aí com botas de montaria sujas. Ela jogava a roupa no meio do chão do quarto, mas tudo na sala de arreios onde montava o seu cavalo estava certo e arrumado. A próxima vez que ela voltou à consulta, usou um vestido, um indicativo de que talvez as coisas estivessem melhores.”

“O que eu fiz para fazer essa garota voltar? Eu não fiz nada. Eu não disse: ‘O que você quer dizer por vir aqui vestida assim?’. Eu não disse: ‘O que está errado?’. Eu não forcei. Eu não parecia estar chocado ou chateado com a sua linguagem suja. Eu tentei estar mais interessado nela do que no palavreado usado, das queixas ou na roupa dela. Talvez ela tenha sentido isso.”

Em 1965, o Dr. Gallagher novamente com-partilhou suas percepções sobre os adolescen-tes com suas recomendações aos médicos sobre como cuidar deles. “Diante dos adolescentes há muitas suposições a serem feitas sobre seus traços psicológicos e sobre os processos psico-lógicos de crescimento que ocorrem nesse mo-mento da vida. O mais importante deles é sua capacidade de rapidamente formar ou abando-

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nar um relacionamento terapeuticamente útil com aqueles adultos em quem eles confiam e respeitam, e que estão genuinamente interes-sados neles. Portanto, é aconselhável tratá-los confidencialmente e, ao conversar com eles, so-licitar que falem sobre os assuntos que lhes são importantes — assim como para a maior parte das pessoas neste momento da vida. Eles têm um grande interesse em si mesmos e tendem a rejeitar adultos que não demonstram interesse por eles. Então, veja-os sozinhos e ouça mais do que você fala.”

Em relação aos muitos artigos que ele es-creveu, o Dr. Gallagher publicou o primeiro li-vro didático para a área em que foi pioneiro, Medical Care of the Adolescent, em 1960. [uma segunda edição foi publicada em 1966, e uma terceira — com coautoria de Felix Heald e Dale Garell - em 1976.]

Evelyn Eisenstein, M.D., observa que o Dr. Gallagher foi pioneiro não apenas por seus programas clínicos, mas sobretudo por todo o impacto que teve (nos Estados Unidos e no mundo inteiro) com seu livro Medical Care of the Adolescent.

“Eu tenho a terceira edição do livro e autografada por Felix Heald. O Capítulo 7 - O cuidado com os adolescentes - ainda é um conhecimento médico básico para quem quer treinar em Medicina do Adolescente” (Evelyn Eisenstein)

Felix Heald e Robert Masland foram os dois primeiros médicos associados contratados por Gallagher.

Heald, em uma entrevista gravada, infor-mou que:

“O doutor (Sidney) Farber me ligou um dia e per-guntou se eu estava interessado em garotas de 12 anos. Fiquei chocado com isso e não sabia como responder porque não sabia em qual ponto ele queria chegar. Ele me disse que Ros Gallagher es-tava iniciando os trabalhos clínicos e contou sobre sua visão do futuro para o Hospital de Crianças, em Harvard. Parte da visão era um programa para adolescentes” (Felix Heald).

Figura 3. Felix Heald, M.D. Um dos líderes iniciais na área de Medicina de Adolescentes - Boston Children’s Hospital.

Figura 2. Robert Masland, M.D. Professor - Boston Children’s Hospital, aqui nos primeiros anos da área de Medicina de Adolescentes.

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Masland, em uma entrevista gravada, in-formou que:

“Seu tipo de remédio era totalmente diferente da-quele que eu fui treinado em medicina interna. Ele era um médico da escola de Andover, muito inte-ressado em problemas de aprendizagem e proble-mas escolares de crianças que tinham o tipo de problemas comportamentais que todos nós na Medicina do Adolescente gostamos. Não de uma maneira terrível, mas de uma maneira divertida. Não para os pais, mas para os médicos. Passei a maior parte do meu tempo com ele [Ros] apren-dendo a cuidar de crianças com uma variedade de problemas, a maioria relacionada à família e à escola” (Robert Masland).

Tanto Felix Heald quanto Robert Masland tiveram efeitos extraordinários sobre aqueles que treinaram com eles.

Marianne Felice e Sara Forman foram al-gumas das profissionais que trabalharam com os dois:

“Completei uma residência de pediatria de dois anos em Harrisburg, Pensilvânia. Eu não conseguia decidir se queria estudar Pediatria Comportamen-tal ou Medicina do Adolescente. Na Universidade de Maryland, eles tinham duas bolsas - uma em Medicina de Adolescentes, dirigida por Felix Heald, e uma em pediatria comportamental, dirigida por Stan Friedman. Originalmente, o Dr. Heald me re-cusou porque eu não completei minha residência em um hospital de ensino. O doutor Friedman me aceitou. Eu realmente fiz uma bolsa de estudos de três anos em Pediatria Comportamental e Medici-na de Adolescentes. Depois de apenas um ano, o Dr. Heald me pediu para administrar a Clínica de Adolescentes” (Marianne Felice).

“Quando o Dr. Masland entrevistou um paciente, foi magistral. Lembro-me de um caso em que eu era estudante de medicina - estávamos conversando com um jovem que estava envolvido em uma gan-gue. Eu tinha tentado ficar à tona durante a minha história inicial, porém, falando sem sucesso. Aí se-gui os ensinamentos do Dr. Masland. Ele sentou-se e envolveu o paciente em uma conversa sobre sua vida. O doutor Masland perguntou respeitosamente

e ouviu atentamente, sem julgar. Em dez minutos, o adolescente estava chorando sobre toda a violên-cia e os medos que experimentara. Depois disso, conseguimos que nosso paciente se envolvesse em alguns serviços de apoio emocional. Eu nunca vou esquecer essa visita. O Dr. Masland havia me ensi-nado em tão pouco tempo sobre o valor de escutar e ouvir a história de vida do paciente, o valor de se conectar com os adolescentes” (Sara Forman).

ATRAÇÃO PARA UMA NOVA ÁREA

Muitos futuros líderes foram atraídos para a área de especialização do Dr. Gallagher, seja por sua excelência, dedicação ou comprometimento.

William Long foi o primeiro especialista em Medicina do Adolescente a abrir um consultório particular.

“Comecei a praticar em família e li no jornal sobre o interesse do Dr. Roswell Gallagher em Medicina do Adolescente. Ele iria dar um seminário sobre o futuro da Medicina do Adolescente em Tulane, onde estudei na Faculdade de Medicina. Eu fui, ouvi a palestra e consegui almoçar com ele. Ele me en-corajou. Fiquei impressionado, sobretudo, pelo seu amor pelos adolescentes. Tinha um grande coração. Nunca tentava encontrar uma maneira de enganá--los, mas pelo contrário, estava sempre procurando alguma maneira de ajudá-los.”(William Long).

Outro profissional atraído foi Dale Garell:

“Eu sabia que estaria trabalhando na área como um estudante de terceiro ano de medicina na Uni-versidade do Colorado, em 1958; ouvi Ros Galla-gher falar em uma reunião em Denver e fiquei in-teressado na área.” (Dale Garell).

Garell fez uma parceria com Gallagher no início dos anos 1960 e tornou-se um dos líderes mais influentes na nova área.

“Depois de um estágio em pediatria na UCSF [Uni-versidade da Califórnia, São Francisco] e novamen-te no Colorado, como pediatra residente, consegui uma bolsa de estudos em Medicina Adolescente com Ros [Gallagher] e Bob Masland. Felix Heald acabara de se mudar para o setor de Pediatria da

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Universidade de George Washington no ano ante-rior. Difícil acreditar que isso aconteceu há mais de 50 anos” (Dale Garell).

Posso citar ainda Iris Litt e Tomas Silber:

“Eu terminei cedo meu curso de graduação em Cornell e precisava trabalhar, então, eu ensinei numa escola do ensino médio por seis meses. Foi aí que percebi que amava essa faixa etária. Eu nun-ca tinha ouvido falar de Medicina do Adolescente. Durante meu segundo ano na Faculdade de Medi-cina, meu pai, um médico, me disse que o Hospi-tal Judaico do Brooklyn estava promovendo uma palestra sobre Medicina do Adolescente; nós dois assistimos à palestra. O palestrante era Roswell Gallagher – então, a seguir, eu fiquei determinada em ir para esta área”. (Iris Litt).

Quando terminei a residência, soube que Michael Cohen estava iniciando um novo pro-grama no Montefiore Hospital. Ele disse que queria me contratar, mas não tinha dinheiro. Em poucos meses ele ligou e disse que agora tinha "o dinheiro da prisão" - para cuidar dos adoles-centes no sistema de Detenção Juvenil”. (Iris Litt).

“Durante minha residência de pediatria em Bue-nos Aires, houve uma reviravolta na nefrologia. A maioria dos meus pacientes eram adolescentes. Os que tinham uremia consumiam uma grande quan-tidade de carne; os que eram hipertensos devo-ravam produtos salgados; os que eram oligúricos nunca tiveram água suficiente; e assim por diante. Eu trabalhei muito bem com eles (eu acho que in-ventei uma variante de entrevistas motivacionais), e meu chefe de serviço comentou sobre como eu lidei positivamente com adolescentes. Eu disse, em tom de brincadeira: ‘Eu faria melhor se houvesse uma especialidade na adolescência.’ Ele então me disse: 'Silber, você conhece (na Argentina todos nós geralmente usamos nosso último nome), exis-te uma especialidade, e é chamada Medicina do Adolescente’. Ele então me emprestou o Medical Care of the Adolescent, editado por Ros Galla-gher, e foi isso. Quando terminei o livro, decidi que era isso o que eu faria pelo resto da minha vida.” (Tomas Silber). [Silber veio para os Estados Uni-dos com uma bolsa de estudo com Felix Heald

em Washington, DC, e ainda está lá, mais de quarenta e cinco anos depois].

PROGRAMAS DE EXPANSÃO

Dr. Gallagher também foi útil para jovens médicos que procuraram abrir um programa de medicina para adolescentes, como por exemplo:

Arthur Roth completou sua residência no Hospital Infantil de Boston no mesmo ano em que Gallagher chegou. No ano seguinte, Roth passou algum tempo com ele para ajudar a co-meçar um programa no Kaiser Permanente, em Oakland.

Joan Morgenthau e um colega visitaram a Unidade para aconselhamento sobre a criação de uma clínica no Hospital de Nova York.

Thomas Schaffer lhe consultou sobre o processo de desenvolvimento do programa em Columbus, Ohio.

Frederick Biehusen pediu ajuda a Galla-gher na criação da primeira Clínica de Adoles-centes nas forças armadas no Hospital do Exérci-to Letterman, em São Francisco.

Jerry Rauh passou vários meses no Bos-ton Children’s Hospital antes de desenvolver seu programa em Cincinnati.

Joseph Michelson contou com Gallagher como consultor de seu programa no Jewish Hos-pital de Brooklyn.

OS ANOS 60 E SUAS TURBULÊNCIAS

Nos Estados Unidos, a década de 1960 as-sistiu uma série de mudanças radicais na socie-dade que influenciaram o desenvolvimento da medicina do adolescente. Estas incluem: � Desenvolvimento de contraceptivos orais, le-vando adolescentes a procurar atendimento de médicos que os faziam se sentirem confortáveis durante a consulta, sem a permissão dos pais.

� O aumento de doenças sexualmente transmis-síveis devido ao aumento da atividade sexual, levando à busca de atendimento confidencial.

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nho dado por crianças]. Portanto, primeiro nome Bunny, sobrenome, Rabbit”.

O DESENVOLVIMENTO DO SAM (HOJE SAHM)

No final da década de 1960, os programas de Medicina de Adolescentes haviam se ex-pandido com a ajuda de subsídios, onde havia atendimento especializado para adolescentes e minorias de baixa renda. Como observado, a contracepção, em particular pílulas anticon-cepcionais, tornou-se disponível para mulheres jovens; clínicas móveis e gratuitas ajudaram adolescentes carentes, marginalizados e sem moradia. No entanto, ainda havia muito traba-lho a ser feito - não apenas para pacientes ado-lescentes, mas também para os especialistas. A especialidade alcançara o ponto de desenvolvi-mento, no qual havia interesse em unir opor-tunidades de aprendizado e pesquisa - e para ter a possibilidade de conhecer um punhado de colegas atraídos por essa área incomum.

� Embora o aborto fosse ilegal na maioria dos estados até o início dos anos 70, os progra-mas de medicina para adolescentes, às vezes, eram capazes de fornecer esse serviço confi-dencialmente.

� Um aumento no uso da heroína e outras dro-gas ilegais em adolescentes criou a necessi-dade do desenvolvimento de clínicas para cuidar deles.

� A crescente oposição à guerra no Vietnã e uma rebelião da juventude contra o "establish-ment", levando à alienação e a episódios de rebeldia. Como os médicos em seus aventais brancos representavam o máximo em auto-ridade, alguns desses adolescentes e jovens adultos desprezavam os cuidados médicos - em detrimento deles. Isso levou especialistas em medicina de adolescente a desenvolver serviços inovadores.

Andy Guthrie, que havia treinado sob a liderança de Gallagher, criou um serviço de van móvel, composto por um médico, enfermeiras e estudantes (não aventais brancos) que cuidavam daqueles jovens “sem-teto” (muitos tinham lares - eles desafiavam seus pais morando na rua).

Histórias que vieram desse serviço são me-moráveis:

John Kulig: “Eu era voluntário mensal na van, começando em 1976 como residente pediátri-co na Tufts. Trabalhei com Barbara Whalen e Andy Guthrie. Cada noite havia uma história diferente e que acontecia na van. Uma das mais memoráveis foi de um jovem que tinha um rato de estimação. O rato se sentava em seu ombro e ele abria a boca e deixava o rato entrar em sua boca e beber sua saliva. Além disso, ele fazia isso na van para im-pressionar os voluntários. Era um jovem muito sim-pático, e ele claramente gostava de nossas reações de surpresa.

Os jovens não tinham que dar seus nomes verdadeiros, mas nós mantínhamos registros mé-dicos. Mantivemos uma pasta de arquivo com todos nomes. Um paciente que vimos muitas ve-zes, atendia pelo nome de Bunny Rabbit [Rabbit é coelho em inglês, Bunny é o nome de coelhi-

Figura 4. Broche de Evelyn Eisenstein, Médica, Professora, especialista em Medicina de Adolescentes, membro da Society for Adolescent Health and Medicine (SAHM).

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Uma versão inicial de uma associação formal de Medicina para Adolescentes desen-volveu-se na Inglaterra no final do século XIX. Em 1884, médicos que cuidavam de meninos adolescentes em internatos se uniram para or-ganizar a Associação de Diretores Médicos das Escolas. Quase cem anos depois, em 28 de abril de 1968, representantes de clínicas e progra-mas para adolescentes nos Estados Unidos e Canadá se reuniram em Washington- D.C. para o seminário anual planejado e organizado por Heald e Sturgis, que concordaram unanime-mente com a criação da Society for Adolescent Medicine (SAM).

Sobre esse evento posso citar Dale Garell e Jerry Rauh que diziam:

“Havia um pequeno grupo de nós pressionan-do para criar a Sociedade - principalmente Jerry Rauh, Andy Rigg e eu. Ros [Gallagher] definitiva-mente não concordou; não ficava claro se Felix [Heald] achava se era uma boa ideia, mas ele foi favorável. Ros estava relutante; ele se perguntou qual era a confusão. Ele queria ser um bom clínico

- isso é o que ele era. Pelo menos em certo nível, foi assim que ele se apresentou - um clínico muito bom. Ele sentiu que a Sociedade estava tentando estruturar a área, tentando identificar alguma coi-sa, quando ele achava que todos deveriam estar realmente confortáveis tratando bem clinicamente os jovens.” (Dale Garell).

Jerry Rauh concordou com Garell:

“Sim, acho que ele pensou que ao se tornar uma organização, esse grupo de líderes eficazes e com-prometidos, se quisessem, poderiam se isolar”.

Foram necessários dois anos e duas reu-niões para concluir a criação da Sociedade - um ano para estudar, e um ano para preparar docu-mentos, que foram padronizados de acordo com a Academia Americana de Pediatria. “A votação foi unânime. Ros, com relutância, concordou em ser o primeiro presidente”. Heald foi eleito vice--presidente; Rigg, tesoureiro; e Garell, secretário executivo. (Todos esses cargos e estes profissio-nais haviam sido treinados sob a liderança de Gallagher). Jerry Rauh, Henry Cooper e Joseph Michelson faziam parte do restante do conselho executivo. Em março de 1969, a primeira reu-nião anual da recém-formada Sociedade para a Medicina do Adolescente foi realizada como parte do quinto seminário anual de Washington sobre cuidados com a saúde de adolescentes. (Jerry Rauh).

A Society for Adolescent Health and Medicine (SAHM) tem agora 50 anos e é uma sociedade médica altamente respeitada, com 1.200 mem-bros. Possui forte presença internacional com profissionais de 38 países, incluindo o Brasil.

Gallagher conhecia excepcionalmente os adolescentes. Anteriormente discuti o artigo no Saturday Evening Post de 1954 que levou Murray Williams a viajar da Austrália para Boston. Esse artigo conclui da seguinte forma:

“Você acha que pode colocar um colete nas cos-tas de uma criança com escoliose, você pode dizer para um adulto conseguir um com menor custo. Mas sem investigar o estado da sua coluna, você apertar uma cinta em um adolescente de dezesseis

Figura 5. Trecho do livro publicado e foto de Gallagher e Harris conversando (Fonte: Gallagher and Harris).

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anos, você pode esperar por um colete quebrado,

uma personalidade distorcida e compromissos in-

terrompidos. O adolescente negligenciado vai fa-

zer alguma coisa, vai chamar a atenção para mais

do que as suas costas. Ele está mais consciente de

si mesmo do que uma criança, menos disposto a

sacrificar parte de si mesmo do que um adulto, e

involuntariamente exige o mesmo tipo de atenção

médica que todas as pessoas deveriam ter.”

A história "da menina com as botas sujas" mais a lição "do colete quebrado" fornecem a

maior parte do que os interessados na área de Medicina de Adolescentes precisam saber.

NOTA

Este artigo foi originalmente escrito em in-glês e submetido aos editores da Revista Ado-lescência & Saúde em 14 de maio de 2018. Dr. Henry Berman pesquisou e construiu este relato histórico sobre o surgimento da área de Medicina de Adolescentes nos EUA especialmente destinado à edição comemorativa aos 15 anos desta Revista.

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BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

1. The Children’s Hospital of Boston “Built Better Than They Knew.” 1964. Clement E. Smith. Little Brown and Company Boston/Toronto p. 246.

2. Williams M. A clinic for adolescents: a survey of 750 patients. Med J Aust.1959 Aug 15;46(2):201–207.

3. Symposium on Adolescents. Pediatrics Clinics of North America. Vol 7 No 1, Feb 1960

4. The Medical Care of the Adolescent. Medical Clinics of North America, Vol 49, No 2, March 1965.

5. Gallagher, JR.; Heald, FP.; Garell, DC. Medical care of the adolescent. 3rd ed. McGraw-Hill/Appleton & Lange, 1976.

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