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67 1 O Combatente Ilegal nos Memorandos da Guerra Contra o Terror e o Rastro do Pirata 1.1 Introdução. 1.2 O Combatente Ilegal nos Memorandos da Guerra contra o Terror. 1.3 O Rastro do Pirata. 1.4 Conclusão. 1.1 Introdução No contexto do pós 11 de setembro de 2001 e da chamada “guerra global contra o terror”, o poder executivo norte-americano se reorganizou e se mobilizou política, jurídica e linguisticamente, tendo em vista a longa campanha contra o “inimigo-criminoso”, tal como fora anunciada pelo Presidente Bush em seu discurso de 16 de setembro de 2001 221 . Como Karen L. Greenberg destacou, “[n]o centro desta reorganização de poder, simbólica e legalmente, estava a criação de uma nova categoria de pessoa, aplicável a cidadãos norte-americanos assim como a não cidadãos” 222 . A nomenclatura utilizada para designar esta nova categoria foi a de “combatente inimigo ilegal”, ou simplesmente “combatente ilegal” 223 . Ao criar esta categoria, os “linguistas” e consultores jurídicos do governo Bush, especialmente os advogados do Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça, exploraram um espaço nebuloso do direito internacional, favorecendo a confusão e indistinção de outras categorias político- jurídicas e militares, como, por exemplo, “prisioneiro de guerra inimigo”, “combatente” e “não combatente”. Procurava-se um termo que pudesse designar “prisioneiros na guerra contra o terror que não fossem prisioneiros de guerra convencionais” 224 . 221 GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror: Redefining Prisoners in the Post -9/11 Era” in Greenberg, Karen J. and Dratel, Joshua L. with Grossman, Jeffrey S. (Ed.), The Enemy Combatant Papers: American Justice, the Courts, and the War on Terror. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p.x. 222 GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 223 Ver, sobretudo: BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President, the Secretary of State, the Secretary of Defense, the Attorney General, Chief of Staff to the President, Director of Central Intelligence, Assitant to the President for National Security Affairs, Chairman of the Joint Chiefs of Staff” concerning the “Humane Treatment of al Qaeda and Taliban Detainees”, February 07, 2002, (Memo 11) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.134-135. 224 GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x.

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1 O Combatente Ilegal nos Memorandos da Guerra Contra o

Terror e o Rastro do Pirata

1.1 Introdução. 1.2 O Combatente Ilegal nos Memorandos da

Guerra contra o Terror. 1.3 O Rastro do Pirata. 1.4 Conclusão.

1.1

Introdução

No contexto do pós 11 de setembro de 2001 e da chamada “guerra global

contra o terror”, o poder executivo norte-americano se reorganizou e se mobilizou

política, jurídica e linguisticamente, tendo em vista a longa campanha contra o

“inimigo-criminoso”, tal como fora anunciada pelo Presidente Bush em seu

discurso de 16 de setembro de 2001221

. Como Karen L. Greenberg destacou, “[n]o

centro desta reorganização de poder, simbólica e legalmente, estava a criação de

uma nova categoria de pessoa, aplicável a cidadãos norte-americanos assim como

a não cidadãos”222

. A nomenclatura utilizada para designar esta nova categoria foi

a de “combatente inimigo ilegal”, ou simplesmente “combatente ilegal”223

.

Ao criar esta categoria, os “linguistas” e consultores jurídicos do governo

Bush, especialmente os advogados do Office of the Legal Counsel do

Departamento de Justiça, exploraram um espaço nebuloso do direito

internacional, favorecendo a confusão e indistinção de outras categorias político-

jurídicas e militares, como, por exemplo, “prisioneiro de guerra inimigo”,

“combatente” e “não combatente”. Procurava-se um termo que pudesse designar

“prisioneiros na guerra contra o terror que não fossem prisioneiros de guerra

convencionais”224

.

221

GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror: Redefining Prisoners in the Post-9/11

Era” in Greenberg, Karen J. and Dratel, Joshua L. with Grossman, Jeffrey S. (Ed.), The Enemy

Combatant Papers: American Justice, the Courts, and the War on Terror. Cambridge:

Cambridge University Press, 2008, p.x. 222

GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 223

Ver, sobretudo: BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President, the Secretary of

State, the Secretary of Defense, the Attorney General, Chief of Staff to the President, Director of

Central Intelligence, Assitant to the President for National Security Affairs, Chairman of the Joint

Chiefs of Staff” concerning the “Humane Treatment of al Qaeda and Taliban Detainees”,

February 07, 2002, (Memo 11) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit.,

p.134-135. 224

GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x.

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Dessa forma, e diante do dilema de decidir entre contextos de “crime” e de

“guerra”225

, tais arquitetos político-jurídicos buscaram explorar “a distinção entre

combatentes legais [lawful combatants] e combatentes ilegais [unlawful

combatants], uma distinção que tem implicações específicas para o tratamento

legal de prisioneiros em cada um dos grupos”226

.

Na construção desses juristas do governo norte-americano, combatentes

legais (lawful combatants) eram os membros de forças armadas regulares, tais

quais os exércitos dos Estados soberanos modernos, e também os membros de

forças irregulares, como milícias e forças voluntárias, que respeitavam certas

condições (como ter uma estrutura hierárquica de comando em que uma pessoa

fosse responsável por seus subordinados; utilizar um sinal distintivo reconhecível

à distância; carregar suas armas abertamente; e respeitar as leis de guerra),

conforme estabelecido pelas Convenções de Genebra III e de Haia IV. Estes eram

os combatentes protegidos pelo direito internacional, os quais, quando capturados

pelo inimigo, tinham direito ao status de “prisioneiro de guerra”227

.

Já os combatentes ilegais (unlawful combatants) eram os combatentes que

desrespeitavam tais condições mínimas de beligerância legal que haviam sido

positivadas, inicialmente, pela Convenção de Haia IV228

. Por isso, eles estariam

fora do alcance e, assim, da proteção do direito internacional dos conflitos

armados. Consequentemente, tais combatentes – ilegais – não teriam direito às

proteções e benefícios garantidos a um “prisioneiro de guerra” nos termos das

Convenções de Genebra III229

.

Citando o caso dos sabotadores nazistas durante a Segunda Guerra Mundial,

os consultores jurídicos do governo norte-americano não apenas distanciaram os

indivíduos presos no contexto da guerra no Afeganistão das figuras jurídicas do

“combatente legal” e do “prisioneiro de guerra”, como sublinharam o caráter

criminoso destes inimigos não convencionais. Assim, estes indivíduos não

225

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals: The Law and the War on Terror” in Karen J. Greenberg

and Joshua L. Dratel, with Jeffrey S. Grossman (Ed.), The Enemy Combatant Papers. Op. cit. 226

GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 227

GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 228

Ver, por exemplo, o memorando de John Yoo e Robert J. Delabunty (comentado a seguir):

YOO, John and DELABUNTY, Robert J., “Memorandum for William J. Haynes II, General

Counsel, Department of Defense”, concerning the “Application of Treaties and Laws to al Qaeda

and Taliban Detainees”, January 9, 2002, (Memo 4) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture

Papers, Op. cit., p.38-79. 229

GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x.

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poderiam apenas ser detidos, mas também julgados e punidos por tribunais

militares por suas condutas criminosas.

Este é o fenômeno que Noah Feldman identificou como o “fenômeno do

inimigo-criminoso”230

, observável, por exemplo, em Guantanamo Bay, onde

aqueles detidos como “combatentes ilegais” estariam sendo julgados por crimes

de guerra231

. Tais prisioneiros eram considerados inimigos e criminosos. E como

tal figura híbrida e excepcional, eles eram considerados fora do alcance das

proteções do direito internacional, mas não de sua jurisdição criminal e de seu

braço punitivo.

De um lado, como combatentes (ilegais), os detentos de Guantanamo Bay

poderiam ser enquadrados pelo regime do direito internacional que se aplica aos

conflitos armados, à guerra, porém, como (combatentes) ilegais, estariam fora do

alcance de proteção deste regime. Os direitos e as proteções garantidos a

“combatentes”, “não combatentes” e “prisioneiros de guerra” não poderiam ser

estendidos ou aplicados aos “combatentes inimigos ilegais”. No entanto, isso não

significaria que as obrigações deste regime e do direito internacional em geral não

mais se aplicariam a tais indivíduos.

Do outro lado, como combatentes ilegais ou supostos criminosos de guerra,

os detentos poderiam ser submetidos aos regimes do direito internacional que

cuidam de crimes internacionais, em geral, e das graves violações às Convenções

de Genebra, em particular. Os prisioneiros poderiam ser responsabilizados

criminalmente e punidos por crimes de guerra.

Ademais, como combatentes ilegais e possíveis criminosos de guerra,

detentos numa base naval sob o controle, mas fora do território soberano dos

Estados Unidos, estariam – jurisdicional, geográfica e politicamente – fora do

alcance do direito (civil) norte-americano, do direito internacional geral e do

direito internacional dos direitos humanos232

.

Assim, ao adotar o caso contra os nazistas como um precedente, os

advogados do governo norte-americano traçaram sua estratégia político-jurídica,

230

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xix. 231

FELDMAN, N. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xix. 232

Ver: PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, concerning the “Possible Habeas Jurisdiction over Aliens Held

in Guantanamo Bay, Cuba”, December 28, 2001, (Memo 3) in Greenberg and Dratel (Ed.), The

Torture Papers, Op. cit., p.29-37.

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afirmando que, em nome da segurança nacional e em razão do caráter sem

precedentes da ameaça do terrorismo fundamentalista islâmico, era necessário re-

entender e re-construir o direito (norte-americano e internacional)233

. O ponto

crucial desta releitura foi precisamente a criação da categoria de combatente

ilegal, uma nova categoria de indivíduo situado fora das proteções do direito

norte-americano e do direito internacional234

.

Na segunda parte deste capítulo, analisa-se os memorandos do governo

norte-americano, dando particular ênfase àqueles enviados pelos advogados do

Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça. A partir da leitura de tais

documentos, identifica-se importantes traços, categorias e posicionamentos que

fundamentaram a arquitetura político-jurídica da guerra contra o terror. Em

particular, enfoca-se e comenta-se as construções do status dos membros da al

Qaeda e da milícia Talibã e do “espaço-tempo” (im)próprio destes indivíduos.

Finalmente, comenta-se o “papel estruturante” da categoria de combatente ilegal,

destacando seu “lugar” naquela arquitetura, bem como sua alegada “origem”.

Na terceira parte deste capítulo, especula-se sobre e investiga-se esta

alegada “origem” da categoria de combatente ilegal, analisando o “lugar” desta na

arquitetura político-jurídica internacional. Nesse sentido, inspirado no “quase-

conceito” de rastro de Jacques Derrida (comentado na Introdução desta tese),

seguem-se certos rastros constitutivos da categoria de combatente ilegal inscritos

nos memorandos da guerra contra o terror, e em alguns outros textos conexos.

Mais especificamente ao questionar a originalidade desta “origem” e o espaço-

tempo daquele “lugar”, segue-se o rastro de uma categoria que não está presente

em nenhum memorando, mas que, no entanto, parece ser fundamental para

entender, em termos político-jurídicos e histórico-teóricos – internacionais –, o

“papel estruturante” da categoria de combatente ilegal. A partir daqueles

memorandos, então, segue-se o rastro do pirata.

Em seguida, na quarta e última parte, apresenta-se um resumo dos principais

pontos deste capítulo e alguns comentários finais, assim como, busca-se fazer a

transição para o segundo capítulo deste trabalho.

233

GREENBERG, K. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 234

FELDMAN, N. “Enemy-Criminals”, Op. cit.; GREENBERG, K. “Caught in the War on

Terror”, Op. cit.; DRATEL, J. “Repeating History”, Op. cit.; e LEWIS, A. “Introduction”, Op. cit.

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1.2

O Combatente Ilegal nos Memorandos da Guerra contra o Terror

Logo após os ataques contra as torres do World Trade Center, em Nova

York, e contra o Pentágono, em Washington D.C., em 11 de setembro de 2001, o

governo norte-americano requereu, sobretudo de seus advogados do Office of the

Legal Counsel, no Departamento de Justiça, opiniões jurídicas sobre a forma mais

adequada de definir e lidar com os indivíduos que teriam sido responsáveis por

tais ataques235

. Os advogados do governo passaram a analisar se tais indivíduos (e

seus associados) deveriam ser definidos e tratados como criminosos, como

inimigos ou como ambos236

.

Os ataques poderiam ser interpretados como violações às leis norte-

americanas e internacionais, sendo os responsáveis definidos e tratados como

criminosos, conforme havia ocorrido com os acusados pelo ataque ao World

Trade Center em 1991237

. Porém, em razão da magnitude dos ataques, bem como

do fato de que estes teriam sido originados no exterior, a situação poderia ser

definida para além do regime de direito penal norte-americano238

.

Apesar de não envolver um ato de outro Estado, uma vez que os ataques

teriam sido planejados e executados pela organização não governamental al

Qaeda, a situação envolvia agressões contra o Estado soberano norte-americano e,

assim, poderia ser entendida como uma situação de guerra. Nesses termos, os

responsáveis poderiam ser definidos como inimigos239

. Diante deste dilema de

crime e/ou guerra, e orientado pelos advogados do Office of the Legal Counsel, o

governo norte-americano optou por tratar supostos membros da al Qaeda (e seus

associados) como ambos, criminosos e inimigos240

.

Em 14 de setembro de 2001, George W. Bush havia proclamado estado de

emergência nacional (Declaration of National Emergency by Reason of Certain

Terrorist Attacks, Proc. 7463), o que lhe havia garantido poderes constitucionais

235

Ver: GREENBERG, Karen J. and DRATEL, Joshua L. (Ed.), The Torture Papers. Op. cit.; e

GREENBERG, Karen J. and DRATEL, Joshua L., with GROSSMAN, Jeffrey S. (Ed.), The

Enemy Combatant Papers. Op. cit. 236

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”. Op. cit., p.xvii. 237

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii. 238

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii. 239

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii. 240

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii.

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ainda mais amplos para liderar os Estados Unidos na guerra contra o terror241

.

Ademais, a resolução do Congresso autorizando o uso de força militar (o

RCAUFM), adotada em 18 de setembro de 2001, descrevia o adversário de

maneira extremamente vaga, o que, de certo modo, autorizava o Presidente e

Commander-in-Chief a definir e, portanto, lidar com o inimigo da maneira que

julgasse necessária e mais eficaz para a realização dos fins militares determinados

por ele242

.

Nesse contexto, e supostamente confrontando um inimigo incomum,

assimétrico e não estatal, o poder executivo dos Estados Unidos, auxiliado pelos

advogados do Departamento de Justiça, pôde interpretar o RCAUFM de maneira

expansiva, entendendo-se autorizado para perseguir e prender supostos membros

da al Qaeda (e associados) em qualquer lugar que fossem encontrados, por tempo

indefinido, e sem lhes conceder acesso a advogados; em alguns casos, poderiam

inclusive utilizar métodos e técnicas de interrogatório que, convencional e

costumeiramente, eram proibidos pelo direito internacional243

. A situação era

definida como excepcional e, mobilizada para justificar definições e

interpretações jurídicas igualmente sem precedentes244

.

Os memorandos do Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça,

portanto, foram fundamentais para a construção da arquitetura político-jurídica da

guerra contra o terror, na medida em que fundamentaram a definição do status

jurídico-político daquele “inimigo-criminoso”245

; traçaram as linhas fundamentais

do “espaço-tempo” e, assim, da “identidade” que a base naval norte-americana de

Guantanamo Bay, em Cuba, iria adquirir no contexto pós 11 de setembro de

2001246

; bem como pavimentaram a estrada que levaria aos abusos de prisioneiros

em Guantanamo e Abu Ghraib247

.

241

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, concerning the “Detention,

Treatment, and Trial of Certain Non-Citizens in the War Against Terrorism”, (Memo 2) in

Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers. Op. cit., p.25. 242

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”. Op. cit., p.xvii. 243

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii. 244

DRATEL, Joshua L. “Repeating History: Rights and Security in the War on Terror” in

Greenberg and Dratel, with Grossman (Ed.), The Enemy Combatant Papers. Op. cit., p.xiii 245

LEWIS, Anthony. “Introduction” in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers. Op. cit.,

p.xiii. 246

LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit.; FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit.; e

GREENBERG and DRATEL, with GROSSMAN (Ed.), The Enemy Combatant Papers, Op. cit. 247

GREENBERG and DRATEL (Ed.), The Torture Papers: The Road to Abu Ghraib, Op. cit.

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De acordo com Anthony Lewis, a “racionalidade” que produziu tais

memorandos jurídicos não é difícil de ser entendida. Após os ataques de 11 de

setembro, o governo Bush havia declarado que os Estados Unidos estavam em

guerra contra um inimigo incomum. Para derrotar os terroristas da al Qaeda (e

seus associados), o governo precisava ter serviços de inteligência e informações

mais detalhadas sobre seus inimigos não estatais. Contudo, sem tal serviço de

inteligência, o governo seria obrigado a obter informações dos próprios suspeitos

de envolvimento com a al Qaeda que viessem a ser presos248

.

Assim, os advogados e seus memorandos serviriam, pelo menos em parte,

para “racionalizar” e “legitimar” este processo de obtenção de informações

estratégicas no âmbito de uma guerra assimétrica contra um inimigo não estatal

transnacional249

. A premissa do governo Bush era a de que o fim – combater o

terrorismo – justificava os meios escolhidos. Dessa forma, buscou eliminar todo e

qualquer tipo de restrição ou impedimento jurídico que pudesse limitar os meios a

serem utilizados nesta guerra não convencional250

.

Os memorandos jurídicos que fundamentaram a arquitetura político-jurídica

da guerra contra o terror lidavam fundamentalmente com duas questões. De um

lado, buscavam reinterpretar os limites de técnicas para o interrogatório de

suspeitos terroristas251

e, por isso, tais memorandos serem comumente

identificados como os “memorandos da tortura”. De outro lado, buscavam definir

o status jurídico de centenas de prisioneiros da al Qaeda e do Talibã que haviam

sido capturados durante a guerra no Afeganistão e levados para Guantanamo Bay,

em Cuba252

, e, assim, definir se as Convenções de Genebra se aplicavam ou não

às condições de detenção e aos procedimentos de julgamento de tais prisioneiros.

Neste trabalho de doutorado, são analisados apenas os (primeiros) memorandos

que tratam desta última questão envolvendo, ao mesmo tempo, o status dos

prisioneiros e a aplicação das Convenções de Genebra.

Depois do conflito armado que levou à queda do regime Talibã, centenas de

mulçumanos não afegãos, encontrados no Afeganistão e em países vizinhos,

foram detidos pelas tropas norte-americanas. O status destes prisioneiros não era

248

LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiii-xiv. 249

LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiii. 250

LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv. 251

LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv. 252

LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv.

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claramente definido. Eles não vestiam uniformes, mas portavam armas; eles não

eram afegãos, mas estavam no país durante o regime Talibã (o que podia sugerir

uma conexão com a al Qaeda). Tais prisioneiros não podiam ser definidos nem

como prisioneiros de guerra convencionais, nem como criminosos comuns253

.

Diante da detenção desses indivíduos em Guantanamo Bay era preciso

definir o status destes prisioneiros e a aplicabilidade ou não de certas regras do

direito internacional, em geral, e do direito internacional humanitário, em

particular, às condições de detenção e aos procedimentos de julgamento desses

“criminosos-inimigos” capturados. Afinal, era preciso explicar como e por que o

governo norte-americano poderia detê-los de maneira indefinida, sem

comunicação, e sem direito ao contraditório ou à ampla defesa.

O governo Bush, então, passou a denominar estes indivíduos como

“combatentes inimigos ilegais”254

, ou simplesmente “combatentes ilegais”255

,

definindo-os como indivíduos “mais do que criminosos comuns e menos do que

soldados num exército inimigo”256

. Para tanto, o governo fundamentou sua

posição, sobretudo, nos memorandos enviados pelos advogados do Office of the

Legal Counsel do Departamento de Justiça, nos quais o status daqueles

prisioneiros era definido e a não aplicação das Convenções de Genebra era

justificada, juridicamente257

. Um dos “resultados” de tais definições foi o

tratamento abusivo destes detentos no Afeganistão, em Cuba e no Iraque258

.

De modo geral, como destacou Joshua L. Dratel, o tratamento abusivo

perante tais combatentes ilegais pode ser considerado como o resultado de três

propósitos arquitetados político-juridicamente para facilitar a detenção, o

interrogatório, o julgamento e a punição desses indivíduos: (i) o desejo de colocar

tais detentos fora do alcance de qualquer lei ou tribunal (norte-americano,

estrangeiro ou internacional); (ii) o desejo de fazer inaplicáveis as Convenções de

Genebra aos casos de indivíduos presos no contexto dos conflitos armados em

questão; e (iii) o desejo de proteger ou absolver, política e juridicamente, aqueles

253

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xviii. 254

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xviii. 255

LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv. 256

FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xix. 257

LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv. 258

DRATEL, Joshua L. “The Legal Narrative” in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture

Papers, Op. cit., p.xxi-xxii. Resultado este de conhecimento público desde as publicações de fotos

de Abu Ghraib e de imagens e documentários de Guantanamo Bay.

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indivíduos – cidadãos norte-americanos – que estabeleceriam e colocariam em

prática tais políticas259

.

Os memorandos, portanto, teriam seguido uma sequência lógica260

.

Primeiro, definiu-se um local seguro, em que cortes e tribunais (norte-americanos,

estrangeiros e internacionais) não pudessem intervir e estabelecer jurisdição:

Guantanamo Bay, Cuba261

. Segundo, definiu-se o status dos membros da al

Qaeda e da milícia Talibã, argumentando-se pela não aplicação das Convenções

de Genebra (e de Haia) àquelas pessoas capturadas durante o conflito armado no

Afeganistão. Finalmente, em terceiro lugar, interpretou-se a lei de tal forma que os

tomadores de decisão e os executores de tais políticas – e “estratégias de

contrarresistência” – fossem protegidos de qualquer acusação penal futura por

crimes de guerra262

.

De acordo com Karen J. Greenberg, as práticas de tortura em Guantanamo

Bay e Abu Ghraib foram, em grande medida, resultado desses memorandos que

requeriam e fundamentavam um posicionamento jurídico-político em relação (i)

ao status dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã capturados durante o

conflito no Afeganistão; (ii) ao “espaço-tempo” e status do local em que estes

combatentes ilegais seriam presos; e (iii) aos limites das técnicas ou “estratégias

de contrarresistência” que poderiam ser utilizadas para interrogar estes “inimigos-

criminosos”263

.

Nesse sentido, a autora destaca a fundamental importância das

“racionalidades” e construções jurídicas para a execução de tais “estratégias de

contrarresistência”. Segundo Greenberg, a “procura de fundações legais para essas

estratégias teve início com o argumento de que o Talibã e a al Qaeda não são

protegidos pelas Convenções de Genebra: o primeiro porque o Afeganistão era

àquela época um Estado falido, o segundo porque a al Qaeda é um ator não

259

DRATEL, Joshua L. “The Legal Narrative”, Op. cit., p.xxi. 260

DRATEL, Joshua L. “The Legal Narrative”, Op. cit., p.xxi. 261

“The U.S. had leased Guantanamo in perpetuity when Cuba was little more than an American-

controlled banana republic. Since Castro‟s revolution, the U.S. had continued to claim and exercise

control there over Cuban protest – but, crucially for the Bush administration‟s legal strategy, not

sovereignty. Guantanamo was therefore of the United States but not in it. The idea was that the

government could do what it wanted there without falling inside the reach of U.S. law, whether

statutory or constitutional.” FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xviii. 262

DRATEL, Joshua L. “The Legal Narrative”, Op. cit.; e os demais memorandos in Greenberg

and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit. 263

GREENBERG, Karen J. “From Fear to Torture” in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture

Papers, Op. cit., p.xvii-xx.

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estatal”264

. Este foi um processo que teve início com os memorandos do governo

norte-americano – sobretudo os do Office of the Legal Counsel– que definiram o

status dos prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã, e justificaram a não

aplicação das Convenções de Genebra a estes indivíduos265

.

A seguir, comenta-se estes (primeiros) memorandos da guerra contra o

terror, com particular ênfase à definição do status desses prisioneiros e, assim, à

categoria de combatente ilegal.

1.2.1

Memorando de 25 de setembro de 2001 (Memo 1)

Em 25 de setembro de 2001, John C. Yoo, Deputy Assistant Attorney

General do Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça, enviou um

memorando para Timothy Flanigan, Deputy Counsel do Presidente dos Estados

Unidos, sobre a questão da autoridade constitucional deste para conduzir

operações militares contra terroristas e Estados-Nações que os apoiassem266

.

Respondendo ao questionamento feito por Flanigan sobre o escopo da

autoridade presidencial para adotar medidas militares como resposta aos ataques

terroristas de 11 de setembro de 2001, Yoo concluiu que o Presidente teria

poderes não apenas para retaliar contra quaisquer pessoas ou organizações

suspeitas de envolvimento nos ataques de 11 de setembro de 2001, como também

para autorizar o uso da força contra Estados que tivessem abrigado ou apoiado tais

pessoas ou organizações267

. Ele lembrou que o próprio Congresso havia

reafirmado tais poderes presidenciais em sua Resolução sobre Poderes de Guerra

(War Powers Resolution) e, mais recentemente, naquele contexto, por meio da

Resolução Conjunta (Joint Resolution) de 14 de setembro de 2001268

.

Na primeira parte do memorando, Yoo analisou o texto e a estrutura

constitucionais, concluindo que a Constituição norte-americana dava ao

Presidente, como Commander-in-Chief e principal órgão da nação em suas

relações exteriores, amplos poderes para determinar o uso de força militar no

264

GREENBERG, Karen J. “From Fear to Torture”, Op. cit., p.xviii. 265

GREENBERG, Karen J. “From Fear to Torture”, Op. cit. 266

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, concerning the “The

President‟s Constitutional Authority to Conduct Military Operations against Terrorists and Nations

supporting them”, September 25, 2001, (Memo 1) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture

Papers, Op. cit., p.3-24. 267

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.3. 268

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.3.

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77

exterior, especialmente em casos de autodefesa269

. Na segunda parte, analisou

declarações e decisões executivas e judiciais sobre a Constituição e os poderes

presidenciais que confirmavam aquela conclusão270

. Na terceira parte, destacou as

práticas relevantes do Estado norte-americano que corroboravam o entendimento

de que o Presidente tinha autoridade para decidir sobre o uso de força militar em

situações de emergência, como aquela criada pelos ataques terroristas de 11 de

setembro de 2001271

. E, na quarta parte, comentou as resoluções do Congresso

(War Powers Resolution e Joint Resolution), concluindo que estas reafirmavam os

citados poderes do Presidente272

.

O ponto central deste memorando era ressaltar a autoridade constitucional

do Presidente para autorizar – unilateralmente273

– o uso de força militar contra os

terroristas responsáveis pelos ataques de 11 de setembro de 2001 e contra os

Estados que tivessem dado abrigo ou apoio a tais pessoas ou organizações. De

acordo com Yoo, todos os poderes do governo federal norte-americano (o

Congresso, o Executivo e o Judiciário) concordavam sobre tais prerrogativas

presidenciais274

.

O Presidente, portanto, tinha amplos poderes para tomar, unilateralmente,

decisões concernentes ao uso da força militar contra aqueles indivíduos,

organizações ou Estados responsáveis, direta ou indiretamente, pelos atentados de

11 de setembro de 2001, e contra qualquer outro indivíduo, organização ou estado

que colocasse em risco os Estados Unidos e sua população. Desse modo, diante de

tais ameaças, em tais situações de emergência, de acordo com o memorando, o

Presidente, sem limites, ou soberanamente (em termos muito próximos da

concepção de Carl Schmitt sobre “o soberano”275), podia decidir sobre a

existência de qualquer ameaça terrorista, bem como sobre a resposta militar mais

adequada a ser adotada.

269

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.4-10. 270

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.10-14. 271

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.14-20. 272

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.20-23. 273

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.20-21. 274

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.4. 275

“Sovereign is he who decides on the exception”. SCHMITT, Carl. Political Theology. Op. cit.,

p.5.

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78

1.2.2

Ordem Militar de 13 de novembro de 2001 (Memo 2)

Em 13 de novembro de 2001, George W. Bush, como Presidente e

Commander-in-Chief das Forças Armadas dos Estados Unidos, determinou uma

Ordem Militar sobre a “detenção, tratamento, e julgamento de certos não cidadãos

na guerra contra o terrorismo”276

. Nela, identificou que “terroristas

internacionais”, incluindo membros da organização terrorista al Qaeda, tinham

atacado os Estados Unidos e sua população, dentro e fora do território nacional,

numa escala que havia criado um “estado de conflito armado” que requeria o uso

das Forças Armadas norte-americanas277

.

Entre outras constatações e determinações, Bush afirmou que era preciso

prender os indivíduos que pudessem ameaçar o país e a população e julgá-los

perante tribunais militares por violações às leis de guerra e demais leis aplicáveis.

Contudo, em razão do perigo e da natureza do terrorismo internacional, justificou

a não aplicação de certos princípios jurídicos e regras de evidência que geralmente

eram reconhecidos e aplicados nos processos penais norte-americanos. Assim,

reafirmou sua determinação sobre a existência de um estado de emergência

extraordinário para os propósitos de segurança nacional, destacando a importância

de tal Ordem Militar em uma situação emergencial278

.

O Presidente Bush definiu que esta Ordem Militar fosse aplicada a

indivíduos que, nos contextos relevantes, (i) fossem ou tivessem sido membros da

organização al Qaeda; (ii) tivessem participado de, conspirado para ou apoiado

atos de terrorismo internacional perpetrados contra os Estados Unidos, seus

cidadãos, segurança nacional, política externa e economia; ou (iii) tivessem dado

abrigo a tais indivíduos279

. De acordo com o Presidente, era de interesse dos

Estados Unidos que tais indivíduos fossem submetidos a tal Ordem280

.

Nesse sentido, Bush determinou que o Secretário de Defesa tomasse toda e

qualquer providência para que os indivíduos sujeitos a esta Ordem fossem

capturados e julgados nos termos ali estabelecidos. Na seção III do documento

276

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, concerning the “Detention,

Treatment, and Trial of Certain Non-Citizens in the War Against Terrorism”, (Memo 2) in

Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.25-28. 277

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.25. 278

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.25-26. 279

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.26. 280

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.26.

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79

(“Detention Authority of the Secretary of Defense”), estabeleceu a competência

do Secretário de Defesa no que se referia à detenção de tais indivíduos,

determinando, dentre outras coisas, que estes deveriam ser presos em local

apropriado, fora ou dentro dos Estados Unidos, tal como designado pelo

Secretário281

. Na seção IV (“Authority of the Secretary of Defense Regarding

Trials of Individuals Subject to this Order”), foi tratada a competência do

Secretário de Defesa sobre os julgamentos dos indivíduos sujeitos a tal Ordem,

determinando, por exemplo, que estes fossem julgados por comissões militares282

.

E na seção VII (“Relationship to Other Law and Forums”), determinou-se que:

[…] b. With respect to any individual subject to this order – (1) military

tribunals shall have exclusive jurisdiction with respect to offenses by the

individual; and (2) the individual shall not be privileged to seek any

remedy or maintain any proceeding, directly or indirectly, or to have any

such remedy or proceeding sought on the individual‟s behalf, in (i) any

court of the United States, or any State thereof, (ii) any court of any

foreign nation, or (iii) any international tribunal.283

Para os propósitos deste trabalho de doutorado, vale sublinhar aqui esta

pretensão de exclusividade de jurisdição de tais tribunais militares sobre aqueles

indivíduos sujeitos a esta Ordem Militar, os quais, à luz das definições desta, eram

– e só poderiam ser – “não cidadãos”. Estes “outros”, ou seja, não cidadãos norte-

americanos, não poderiam buscar proteção jurídica nem ser representados

legalmente perante qualquer corte dos Estados Unidos, inclusive cortes estaduais

(não militares) norte-americanas, e também não poderiam buscar tal proteção ou

ser representados perante qualquer corte de qualquer nação estrangeira, e nem

perante tribunais internacionais, ou seja, eles deveriam ser submetidos,

exclusivamente, à jurisdição daqueles tribunais militares norte-americanos.

1.2.3

Memorando de 28 de dezembro de 2001 (Memo 3)

Em 28 de dezembro de 2001, Patrick F. Philbin e John C. Yoo, ambos

Deputy Assistant Attorney General do Office of the Legal Counsel do

Departamento de Justiça, enviaram um memorando para William J. Haynes II,

General Counsel do Departamento de Defesa, posicionando-se sobre “possível

281

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.26. 282

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.27. 283

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.28.

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jurisdição de habeas [corpus] sobre estrangeiros mantidos em Guantanamo

Bay”284

. Tal memorando tinha como principal objetivo avaliar “se uma corte

distrital federal teria propriamente jurisdição para analisar uma petição de habeas

corpus impetrada em nome de um estrangeiro detido na base naval dos Estados

Unidos em Gantanamo Bay, Cuba (“GBC”)”285

.

De acordo com Philbin e Yoo, tal questão teria sido colocada a eles e ao

Office of the Legal Counsel em razão de propostas que estavam sendo

consideradas pelo Departamento de Defesa para deter em GBC os membros da al

Qaeda e do Talibã que estivessem aguardando julgamento por tribunal militar286

.

Afinal, caso uma corte distrital federal afirmasse sua jurisdição e analisasse uma

petição de habeas corpus impetrada em nome de um dos detentos, ela “poderia

revisar a constitucionalidade da detenção e do uso da comissão militar, a aplicação

de certas provisões de tratados [internacionais], e talvez até o status jurídico dos

membros da al Qaeda e do Talibã”287

.

Philbin e Yoo concluíram que a maioria das autoridades jurídicas indicava

que uma corte distrital federal não teria jurisdição naqueles casos. Contudo,

ponderaram que este não era um posicionamento totalmente pacífico e imune a

críticas ou à eventual manifestação judiciária contrária, ou seja, em favor da

jurisdição distrital federal em tais casos de petição de habeas corpus288

. Assim,

posicionaram-se com cautela289

.

O afastamento da jurisdição distrital federal nestes casos era fundamentado

no precedente estabelecido pelo caso Johnson v. Eisentrager290

, de 1950, em que

284

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, concerning the “Possible Habeas Jurisdiction over Aliens Held

in Guantanamo Bay, Cuba”, December 28, 2001, (Memo 3) in Greenberg and Dratel (Ed.), The

Torture Papers, Op. cit., p.29-37. 285

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 286

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 287

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 288

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 289

“While we believe that the correct answer is that federal courts lack jurisdiction over habeas

petitions filed by alien detainees held outside the sovereign territory of the United States, there

remains some litigation risk that a district court might reach the opposite result.” PHILBIN,

Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General Counsel,

Department of Defense”, Op. cit., p.29. 290

Em tal caso, alemães que haviam ajudado japoneses na China depois da Alemanha ter se

rendido em abril de 1945, e que foram detidos e julgados por tais atos perante uma comissão

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a Suprema Corte norte-americana havia decidido que cortes federais não tinham

autoridade para analisar petição de habeas corpus impetrada em nome de um

estrangeiro inimigo (enemy alien) “que tivesse sido preso e mantido durante todo

o tempo relevante fora do território dos Estados Unidos”291

. A Suprema Corte

havia sustentado seu posicionamento no ponto “fundamental” de que um

estrangeiro mantido fora dos Estados Unidos – ou seja, “além da soberania

territorial dos Estados Unidos e fora da jurisdição territorial de qualquer corte

norte-americana”292

– não podia apresentar tal petição.

Philbin e Yoo argumentaram que o precedente estabelecido pelo caso

Eisentrager deveria servir para barrar qualquer petição de habeas corpus

impetrada em nome de um “não cidadão” preso em GBC293

. Ressaltaram que a

Suprema Corte havia baseado sua conclusão “no fato de que os prisioneiros foram

detidos, julgados e mantidos num território que ficava fora da soberania dos

Estados Unidos e fora da jurisdição territorial de qualquer corte dos Estados

Unidos”294

; e que “território soberano” e “jurisdição territorial” eram termos

intercambiáveis que haviam sido utilizados pela Suprema Corte como sinônimos

“para explicar por que um estrangeiro não tem direito a habeas corpus quando

mantido fora do território soberano dos Estados Unidos”295

. Consequentemente, a

mesma lógica se aplicaria a GBC porque este local de detenção ficava fora do

território soberano norte-americano296

.

Os autores deste memorando lembraram que os Estados Unidos controlam a

GBC graças a um tratado internacional assinado com Cuba em 1903, o Agreement

Between the United States of America and the Republic of Cuba for the Lease to

militar em Nanking, na China, e posteriormente presos na Alemanha, apresentaram, a partir deste

país, petição de habeas corpus perante a corte distrital norte-americana de Columbia. PHILBIN,

Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General Counsel,

Department of Defense”, Op. cit., p.29 291

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 292

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.30. 293

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31. 294

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31. 295

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31. 296

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31.

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the United States of Lands in Cuba for Coaling and Naval Stations297

. Tal acordo

teria reconhecido o exercício pleno de jurisdição e o controle dos Estados Unidos

sobre as áreas que seriam o objeto daquele tratado internacional. Contudo, e este

era o ponto central de Philbin e Yoo, este acordo também afirmava,

expressamente, o reconhecimento, por parte dos Estados Unidos, da soberania de

Cuba sobre aquelas mesmas terras e águas que haviam sido objeto do tratado.

Nesses termos, portanto, eles ressaltaram que Cuba tinha soberania

indiscutível sobre aqueles territórios, e que GBC, consequentemente, não estaria

sujeita à soberania dos Estados Unidos298

. Logo, a conclusão de que o

entendimento mais correto sobre aquele tema era o de que as cortes distritais

federais norte-americanas não tinham jurisdição para receber ou analisar petições

de habeas corpus em nome de não cidadãos presos em GBC299

.

Além disso, apontaram diferentes razões pelas quais cortes distritais federais

não iriam aceitar a possível, mas improvável, tese contrária. Entre elas,

destacaram que as cortes hesitariam em razão da natureza excepcional daquela

situação em GBC, ou seja, uma vez que interfeririam “em matérias sob a discrição

exclusiva dos ramos políticos do governo”300

. Eles explicaram:

Detention and Trial of al Qaeda and Taliban members is undertaken

pursuant to the President‟s Commander-in-Chief and foreign affairs

powers. Without a clear statement from Congress extending jurisdiction

to GBC, a court should defer to the executive branch‟s activities and

decisions prosecuting the war in Afghanistan.301

Mas e se um detento convencesse uma corte distrital federal a exercer

jurisdição sobre sua petição de habeas corpus? Quais seriam as possíveis

consequências jurídicas? Estas eram algumas das questões que preocupavam o

Departamento de Defesa norte-americano, e às quais Philbin e Yoo buscavam

responder – ou construir as respostas mais adequadas, tendo em vista as políticas

determinadas pelos “ramos políticos” do governo. Respondendo ao

297

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31. 298

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31-33. 299

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.33-34. 300

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36. Ênfase minha. 301

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36.

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questionamento feito pelo General Counsel do Departamento de Defesa, eles

revelaram o que poderia ser colocado a perder:

You have also asked us about the potential legal exposure if a detainee

successfully convinces a federal district court to exercise habeas

jurisdiction. There is little doubt that such a result could interfere with

the operation of the system that has been developed to address the

detainment and trial of enemy aliens.302

Primeiro, de acordo com eles, uma petição de habeas corpus permitiria que

um destes “estrangeiros inimigos” questionasse (i) a legalidade de seu status e de

seu tratamento perante tratados internacionais, como, por exemplo, as

Convenções de Genebra e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; (ii)

o uso de comissões militares e a validade das acusações de violações das leis da

guerra, tanto à luz do direito internacional quanto do direito doméstico; (iii) a

constitucionalidade das comissões militares e de seus procedimentos à luz dos

desenvolvimentos mais recentes do direito de habeas corpus nos Estados Unidos;

e (iv) a própria autoridade constitucional do Presidente para determinar o uso de

força militar no Afeganistão303

. Eles comentaram ainda uma última questão:

Finally, you have asked about the rights that an enemy alien habeas

petitioner would enjoy as a litigant in federal court, assuming that the

court has found jurisdiction to exist. We are aware of no basis on which a

federal court would grant different litigant rights to a habeas petitioner

simply because he is an enemy alien, other than to deny him habeas

jurisdiction in the first place.304

Philbin e Yoo, cautelosamente, advertindo sobre a possibilidade, mesmo

que remota, de um entendimento contrário por parte de uma corte distrital federal

(o que significaria a possibilidade desses quatro questionamentos e a consequente

interferência na operação daquele “sistema” que havia sido concebido para lidar

com a detenção e o julgamento daqueles “estrangeiros inimigos”), concluíram que

tais cortes federais, à luz do que eles julgavam como sendo o melhor

entendimento jurídico, não teriam jurisdição para cuidar de petição de habeas

302

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36. Ênfase minha. 303

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36. 304

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36. Ênfase minha.

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84

corpus apresentada em nome de um “estrangeiro inimigo” preso em Guantanamo

Bay305

.

No entanto ao concluir o memorando, eles frisaram que “negar a ele [um

“estrangeiro inimigo”] jurisdição de habeas [corpus] em primeiro lugar” era a

única garantia para que esses questionamentos e interferência não colocassem em

risco aquele “sistema” desenvolvido para lidar com a detenção e julgamento de

tais “estrangeiros inimigos”. Neste caso, era importante garantir que tais “não

cidadãos” fossem colocados e mantidos fora do alcance do direito norte-

americano e do direito internacional.

1.2.4

Memorando de 09 de janeiro de 2002 (Memo 4)

Em 09 de janeiro de 2002, John Yoo, Deputy Assistant Attorney General, e

Robert J. Delabunty, Special Counsel, ambos do Office of the Legal Counsel do

Departamento de Justiça, enviaram um memorando a William J. Haynes II,

General Counsel do Departamento de Defesa, em que discutiam a aplicação de

tratados internacionais e leis norte-americanas aos prisioneiros da al Qaeda e do

Talibã306

. Haynes II havia solicitado a opinião do Office sobre os possíveis efeitos

que tratados internacionais e leis norte-americanas poderiam ter em relação ao

tratamento dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã que haviam sido detidos

durante o conflito no Afeganistão307

.

De modo geral, John Yoo e Robert Delabunty concluíram que os tratados

internacionais em questão não protegiam os membros da al Qaeda porque esta era

uma organização não estatal que, em razão desta natureza, não poderia ser parte

contratante de acordos internacionais que regulassem a guerra. Também

concluíram, mas por outros motivos, que tais tratados internacionais não se

aplicavam à milícia Talibã308

.

Yoo e Delabunty estruturaram seus comentários sobre as questões colocadas

por Haynes II a partir da análise da legislação norte-americana, o War Crimes Act

305

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.37. 306

YOO, John and DELABUNTY, Robert J., “Memorandum for William J. Haynes II, General

Counsel, Department of Defense”, concerning the “Application of Treaties and Laws to al Qaeda

and Taliban Detainees”, January 9, 2002, (Memo 4) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture

Papers, Op. cit., p.38-79. 307

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.38. 308

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.38.

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85

(WCA), e dos principais tratados internacionais aplicáveis, as quatro Convenções

de Genebra. A primeira parte do memorando tratou dessa arquitetura jurídica

fundamental, que era o “pano de fundo” para os comentários e posicionamentos

jurídicos sobre aquelas questões309

. Seus comentários e posicionamentos levavam

em consideração os dois planos que estavam sendo articulados pelo Departamento

de Defesa para o tratamento destes membros da al Qaeda e da milícia Talibã:

First, the Defense Department intends to make available a facility at the

U.S. Navy base at Guantanamo Bay, Cuba, for the long-term detention of

these individuals, who have come under our control either through

capture by our military or transfer from our allies in Afghanistan. We

have discussed in a separate memorandum the federal jurisdiction issues

that might arise concerning Guantanamo Bay [Memo 3, December 28,

2001]. Second, your Department [of Defense] is developing procedures to

implement the President‟s Military Order of November 13, 2001, which

establishes military commissions for the trial of violations of the laws of

war committed by non-U.S. citizens. The question has arisen whether the

Geneva Conventions, or other relevant international treaties or federal

laws, regulate these proposed policies.310

De acordo com eles, o WCA era o ponto de partida mais adequado para a

análise da aplicação ou não das Convenções de Genebra ao tratamento de tais

prisioneiros, sobretudo, tendo em vista estes dois planos que estavam sendo

articulados pelo Departamento de Defesa311

. Nesse sentido, a seção 2441 do WCA

era particularmente importante, na medida em que havia tipificado certos atos

como “crimes de guerra”, incorporando ao direito norte-americano as normas do

direito internacional da guerra e, mais especificamente, as Convenções de

Genebra312

.

Yoo e Delabunty descreveram esta seção do WCA, destacando as quatro

categorias de “crimes de guerra” listadas ali: (i) graves violações (grave breaches)

das Convenções de Genebra; (ii) certos atos que haviam sido proibidos pela

Convenção de Haia IV; (iii) violações do artigo 3º comum das Convenções de

Genebra; e (iv) certas condutas proibidas por outros tratados internacionais dos

quais os Estados Unidos fizessem parte313

.

309

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.39-47. 310

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.39-40. 311

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.40. 312

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.40. 313

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.40-41.

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Eles deram particular atenção às graves violações (grave breaches) das

Convenções de Genebra, comentando rapidamente cada uma destas convenções314

e esclarecendo que, enquanto a Convenção de Haia IV havia estabelecido as

regras de conduta contra o inimigo, as Convenções de Genebra haviam

estabelecido as regras para o tratamento das vítimas de guerra315

.

John Yoo e Robert Delabunty enfatizaram que as Convenções de Genebra,

como todos os demais tratados internacionais, vinculavam apenas Estados

soberanos, ou seja, elas não vinculavam organizações e grupos privados ou

“subnacionais”316

. Nesse sentido, destacaram que o artigo 2º comum destas

convenções estabelecia a aplicação de suas normas a todos os casos de guerras

declaradas ou qualquer outro conflito armado “que possa vir a existir entre duas

ou mais das altas partes contratantes”317

, as quais só poderiam ser estados

soberanos.

A seção 2441 do WCA também havia definido violações ao artigo 3º

comum das Convenções de Genebra como crimes de guerra. Eles sublinharam o

fato de que o artigo 3º comum era um complemento do artigo 2º comum destas

Convenções. Reiteraram que este artigo 2º comum aplicava-se apenas aos

conflitos envolvendo duas ou mais das “altas partes contratantes”. E enfatizaram

que o artigo 3º comum se aplicava exclusivamente a “conflito armado de caráter

não internacional”, ou seja, a conflito que ocorresse dentro do território de uma

das “altas partes contratantes”, e que, consequentemente, não envolvesse ataques

que cruzassem as fronteiras do Estado soberano em questão318

.

Nesses termos, reafirmavam a tradicional dicotomia dentro/fora, bem como

reforçavam outros dualismos como estatal/não estatal e internacional/doméstico.

Dessa forma, defenderam a tese de que o texto literal do artigo 3º comum

reconhecia como tal “conflito armado de caráter não internacional” apenas a

guerra civil, ou seja, um conflito de larga escala entre um dos Estados contratantes

314

Eles explicaram, por exemplo, que a Convenção I cuida do tratamento de feridos e doentes nas

forças armadas no solo; que a Convenção II cuida do tratamento de feridos, doentes, e náufragos

nas forças armadas no mar; que a Convenção III regula o tratamento dos prisioneiros de guerra

(prisoners of war ou POWs, em inglês); e que a Convenção IV lida com o tratamento de civis.

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.42. 315

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.42. 316

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.42. 317

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.42. 318

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.44.

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e um grupo insurgente dentro do território soberano deste319

. Segundo Yoo e

Delabunty, uma análise do contexto em que as Convenções foram concluídas e

em que tal artigo havia sido negociado iria corroborar a seguinte tese:

It appears that the drafters of the Conventions had in mind only the two

forms of armed conflict that were regarded as matters of general

international concern at the time: armed conflict between Nation States

(subject to Article 2), and large-scale civil war within a Nation State

(subject to Article 3).320

A evolução histórica do direito dos conflitos armados tinha se dado em três

etapas distintas e subsequentes. Num primeiro momento, o tradicional direito de

guerra teria sido baseado numa dicotomia entre beligerância e insurgência.

Enquanto a primeira categoria aplicar-se-ia a conflitos armados entre dois ou mais

Estados soberanos, a segunda aplicar-se-ia à violência armada dentro do território

de um desses Estados. Esta seria a época estritamente “soberanista” do direito

internacional, em que a soberania era a regra fundamental e o dualismo

dentro/fora era tido como natural e inquestionável. Enquanto as guerras, por

definição conflitos entre Estados soberanos, eram reguladas por regras

internacionais que governavam tanto o conflito quanto a proteção dos não

combatentes, as violências armadas dentro de um Estado não eram reguladas

internacionalmente. A soberania legitimava o espaço doméstico como um

domínio reservado dentro do qual o Estado poderia definir e lidar com “rebeldes”,

“traidores” e “criminosos” conforme julgasse pertinente, e sem a intervenção de

outros Estados ou de regras internacionais321

.

Num segundo momento, que teria tido início com a Guerra Civil espanhola

(1936-39), o direito de guerra teria expandido suas regras para além (ou aquém)

dos conflitos entre Estados soberanos. Neste contexto, alguns princípios de direito

internacional humanitário seriam aplicados também a casos de guerras civis de

grande escala, como o espanhol e o chinês (1947)322

. De acordo com Yoo e

Delabunty, o artigo 3º comum teria sido negociado e concluído neste contexto; ele

teria sido constituído para lidar com este tipo de “conflito armado de caráter não

319

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.44. 320

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.44-45. 321

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45. 322

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45.

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internacional”, uma guerra civil de grande escala dentro do território soberano de

uma das “altas partes contratantes”323

.

Numa terceira e última etapa, o direito de guerra teria se distanciado ainda

mais drasticamente daquela concepção “soberanista” do direito internacional, uma

vez que o direito internacional dos direitos humanos teria ocupado um espaço

fundamental na arquitetura jurídica internacional324

. Assim, a distinção entre

conflitos armados internacionais e internos teria sido superada, e outras formas de

“conflito armado de caráter não internacional” também deveriam ser reguladas

pelo direito de guerra, agora, mais humanitário e humanizado325

.

Segundo Yoo e Delabunty, esta interpretação teria sido afirmada

recentemente pelo Tribunal Penal Internacional ad hoc para ex-Iugoslávia no caso

Tadic. O Tribunal ad hoc teria considerado que o artigo 3º comum aplicava-se não

apenas a guerras civis entre um Estado soberano e um grupo insurgente dentro do

território do primeiro, mas a todos os conflitos armados que não fossem

internacionais, ou seja, que não fossem incluídos no artigo 2º comum326

. Yoo e

Delabunty, no entanto, colocaram-se contrários a esta interpretação do Tribunal

ad hoc da ONU, comentando e enfatizando que esta era uma interpretação errônea

do artigo 3º comum, pois

“In conjunction with common Article 2, the text of Article 3 simply does

not reach international conflicts where one of the parties is not a Nation State.”327

Consequentemente, nem todos os conflitos armados teriam sido incluídos

pela arquitetura jurídica desenhada, complementarmente, pelos artigos 2º e 3º

comuns; sobretudo, aqueles que não tinham sido – e nem poderiam ter sido –

vislumbrados àquela época em que as Convenções de Genebra foram negociadas e

concluídas. Então, o ponto sublinhado por eles era o de que:

[...] an armed conflict between a Nation State and a transnational

terrorist organization, or between a Nation State and a failed State

harboring and supporting a transnational terrorist organization, could

323

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45. 324

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45. 325

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45. 326

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.46. 327

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.46.

Ênfases minhas.

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not have been within the contemplation of the drafters of common Article

3.328

Feitos tais comentários e posicionamentos introdutórios, e construído o

contexto normativo-interpretativo mais adequado, Yoo e Delabunty passaram ao

ponto central do memorando: a questão da aplicação ou não das Convenções de

Genebra aos membros da al Qaeda e do Talibã que haviam sido capturados no

conflito do Afeganistão (e no contexto mais amplo da guerra contra o terror). Na

segunda parte do memorando, eles analisaram a aplicação ou não destes tratados

internacionais à al Qaeda329

; e na terceira, a aplicação ou não destes tratados à

milícia Talibã330

.

Logo na primeira frase da segunda parte, Yoo e Delabunty afirmaram,

categoricamente, que os membros da “organização terrorista al Qaeda” não eram

protegidos pelas leis de guerra: “It is clear from the foregoing statements that

members of the al Qaeda terrorist organization do not receive the protections of

the laws of war”331

. E nem as condições de sua detenção ou os procedimentos de

seu julgamento pelas Forças Armadas norte-americanas estavam sujeitos às

Convenções de Genebra332

.

De acordo com eles, havia três razões que sustentavam esta conclusão. Em

primeiro lugar, o status da al Qaeda como um ator não estatal a fazia inelegível

para requerer as proteções das Convenções de Genebra. Segundo, a natureza do

conflito entre os Estados Unidos e a organização terrorista al Qaeda afastava a

possibilidade de aplicação do artigo 3º comum das Convenções de Genebra. E

terceiro, os membros desta organização terrorista não satisfaziam as condições de

elegibilidade ao status de prisioneiro de guerra nos termos, mais recentes, da

Convenção de Genebra III e, originalmente, da Convenção de Haia IV333

.

Num primeiro passo, portanto, os autores buscaram enfatizar a natureza não

estatal da “organização terrorista da al Qaeda”, e, assim, afastá-la dos acordos

internacionais que governavam as leis de guerra e, sobretudo, do regime de

proteção estabelecido pelas quatro Convenções de Genebra. Como uma

328

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.46-47.

Ênfases minhas. 329

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48-50. 330

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50-70. 331

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48. 332

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48. 333

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48-50.

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organização não estatal, a al Qaeda não era – e nem poderia ser – uma “alta parte

contratante” destes tratados internacionais, o que significava que estes não se

aplicavam nem a ela e nem a seus membros334

. Eles argumentaram:

Common Article 2, which triggers the Geneva Convention provisions

regulating detention conditions and procedures for trial of POWs, is

limited only to cases of declared war or armed conflict “between two or

more of the High Contracting Parties.” Al Qaeda is not a High

Contracting Party. As a result the U.S. military‟s treatment of al Qaeda

members is not governed by the bulk of the Geneva Conventions,

specifically those provisions concerning POWs.335

Em seguida, buscaram afastar a possibilidade de aplicação das Convenções

de Genebra ao(s) conflito(s) armado(s) (mais especificamente, ao conflito no

Afeganistão; e, de maneira mais ambígua e questionável, à guerra contra o terror)

em que os Estados Unidos haviam se engajado no pós 11 de setembro de 2001,

destacando que, à luz do artigo 3º comum, lido em harmonia com o artigo 2º

comum, tais Convenções se aplicavam a apenas dois tipos de conflito armado:

guerras entre Estados soberanos (artigo 2º comum) e guerras civis, ou seja,

conflitos não internacionais (artigo 3º comum)336

.

O conflito com a al Qaeda não se encaixava em nenhuma destas duas

categorias, uma vez que se tratava de um conflito “entre um Estado-Nação e uma

organização não governamental”, mas que não era “uma guerra civil nos termos

do artigo 3º”, em razão de seu “caráter internacional”337

. Não se tratava nem de

uma guerra estritamente internacional, ou seja, entre Estados soberanos, e nem de

uma guerra civil entre grupos que disputavam, internamente, o controle de um

governo ou território338

.

Num terceiro momento, Yoo e Delabunty destacaram que, nos termos

estabelecidos pelas Convenções de Genebra III e de Haia IV, os membros da al

Qaeda não satisfaziam as condições de elegibilidade ao status de prisioneiro de

guerra339

. Opuseram-se então, em primeiro lugar, a um possível entendimento de

que os termos do artigo 4º da Convenção de Genebra III pudessem suscitar a

334

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48. 335

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48. 336

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 337

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 338

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 339

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49-50.

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inclusão dos membros da al Qaeda no regime de proteção de prisioneiros de

guerra estabelecido por este tratado340

.

Comentaram que o artigo 4º(A)(2) deste tratado internacional definia a

categoria de prisioneiro de guerra não apenas em relação aos membros capturados

das forças armadas de uma “alta parte contratante”, mas também em relação a

forças irregulares como “milícias”, “membros de corpos voluntários” e

“movimentos de resistência organizados”; e que o artigo 4º(A)(3) incluía ainda os

membros de forças armadas regulares associados a uma autoridade ou governo

não reconhecido pelo Estado detentor341

. Preventivamente (e estrategicamente),

especularam a possível tentativa de interpretar tais artigos de modo a incluir os

membros da al Qaeda.

Mas, logo em seguida, concluíram que esta seria uma interpretação errônea,

insustentável juridicamente342

, pois o artigo 4º não expandia a aplicação da

Convenção de Genebra III além dos conflitos expressamente identificados nos

artigos 2º e 3º comuns. Estes artigos estabeleciam a arquitetura jurisdicional da

Convenção, o que significava que o artigo 4º (que não era um “artigo

jurisdicional”) se aplicava apenas quando algum dos conflitos previstos nestes

artigos jurisdicionais existisse343

. E mesmo nestes casos, tal artigo apenas

especificava quem deveria receber o status de prisioneiro de guerra344

.

Para Yoo e Delabunty, o conflito no Afeganistão, pelos motivos comentados

anteriormente, não podia ser definido nem como um conflito (internacional) sob a

jurisdição do artigo 2º comum, nem como um conflito (doméstico) sob a

jurisdição do artigo 3º comum. Portanto, concluíram que o artigo 4º da Convenção

de Genebra III não poderia ser aplicado ao conflito iniciado no contexto pós 11 de

setembro de 2001345

.

Num segundo movimento (igualmente preventivo e estratégico), eles

afirmaram que, mesmo no caso em que o artigo 4º fosse considerado jurisdicional

e substantivo ao mesmo tempo (para além do que estabelecido pelos seus próprios

340

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 341

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 342

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 343

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 344

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 345

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.

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termos), ainda assim, os membros da al Qaeda capturados não receberiam a

proteção do status de prisioneiro de guerra. Eles explicaram:

Article 4(A)(2), for example, further requires that the militia or volunteers

fulfill the conditions first established by the Hague Convention IV of

1907 for those who would receive the protections of the laws of war.

Hague Convention IV declares that the “laws, rights and duties of war”

only apply to armies, militia, and volunteer corps when they fulfill four

conditions: command by responsible individuals, wearing insignia,

carrying arms openly, and obeying the laws of war.346

A conclusão de Yoo e Delabunty era categórica:

Al Qaeda members have clearly demonstrated that they will not follow

these basic requirements of lawful warfare. They have attacked purely

civilian targets of no military value; they refused to wear uniform or

insignia or carry arms openly, but instead hijacked civilian airliners, took

hostages, and killed them; they have deliberately targeted and killed

thousands of civilians; and they themselves do not obey the laws of war

concerning the protection of the lives of civilians or the means of

legitimate combat. Thus, Article 4(A)(3) is inapt because al Qaeda do not

qualify as “regular armed forces”, and its members do not qualify for

protection as lawful combatants under the laws of war.347

Portanto, no que se referia à aplicação das Convenções de Genebra

(especialmente a da terceira) aos membros da al Qaeda, a conclusão do

memorando de 09 de janeiro de 2002 era objetiva, clara e pontual: não, as

Convenções de Genebra não se aplicavam à al Qaeda, sobretudo porque esta era

uma organização terrorista não estatal, pois o conflito contra ela não era nem

interestatal (guerra) e nem doméstico (guerra civil), uma vez que ela não era uma

força armada regular, e porque seus membros não eram combatentes legais

(lawful combatants).

Após definirem o status dos membros da al Qaeda, a natureza do conflito e

a inelegibilidade destes indivíduos ao status de prisioneiro de guerra, Yoo e

Delabunty concentram-se, então, no caso dos membros da milícia Talibã. E logo

na primeira frase desta terceira parte do memorando348

, sublinharam que a questão

346

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 347

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.

Ênfase minha. 348

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.

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jurídica sobre a aplicação ou não das Convenções de Genebra à detenção e

julgamento dos membros desta milícia era mais difícil de responder349

.

O Afeganistão era uma “alta parte contratante” das quatro Convenções de

Genebra desde setembro de 1956, o que, para muitos, significava que tais

convenções deveriam ser aplicadas ao conflito em questão e, sobretudo, à milícia

Talibã350

. Contudo, como os autores do memorando se apressaram a enfatizar,

esta conclusão dependia das premissas de que, durante o período em que a milícia

Talibã era dominante no Afeganistão, o Talibã representava o governo, de facto,

deste Estado-Nação; de que o Afeganistão continuou possuindo os atributos

essenciais de um Estado soberano; e de que este governo (Talibã) continuou

cumprindo os termos desses tratados internacionais351

. Foram essas as premissas

que os autores buscaram deslegitimar e refutar nesta parte do memorando.

De modo geral, Yoo e Delabunty concluíram que todas essas premissas

eram falsas. Para eles, o Afeganistão, naquele período, era um Estado falido, um

Estado que havia sido dominado pela violência de uma milícia ou facção

ilegítima. O Afeganistão havia deixado de deter todos os atributos de um Estado

soberano e, assim, falido, não podia continuar sendo reconhecido como uma das

“altas partes contratantes” daqueles tratados. Portanto, a milícia Talibã – tal como

a al Qaeda – não tinha direito às proteções das Convenções de Genebra. O

argumento era que havia provas suficientes de que, àquela época, a milícia Talibã

era dominada pela al Qaeda, o que impedia, logicamente, que a milícia afegã

tivesse um tratamento diferente desta organização terrorista no que se referia à

aplicação ou não das Convenções de Genebra352

.

Yoo e Delabunty começaram esta terceira parte do memorando destacando

os poderes constitucionais do Presidente para interpretar e aplicar tratados

internacionais e determinar, categórica e unilateralmente, que o Afeganistão, sob o

comando do Talibã, havia deixado de atuar plenamente como um Estado

349

Tamanha dificuldade se traduziu no próprio corpo do memorando. Enquanto aquela segunda

parte dedicada à al Qaeda havia ocupado cerca de três páginas apenas, essa terceira parte dedicada

ao Talibã ocupou cerca de vinte páginas, divididas em seis subseções: “A. Constitutional

Authority”; “B. Status as a Failed State”; “C. Implications Under the Geneva Conventions”; “D.

Historical Application of the Geneva Conventions”; “E. Suspension of The Geneva Conventions

as to Afghanistan”; e “F. Suspension Under International Law”. YOO, J. and DELABUNTY, R.

J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50-70. 350

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 351

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 352

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.

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soberano353

. Em seguida, eles exploraram a tese de que o Afeganistão era um

Estado falido, baseando-se, sobretudo, nas informações que haviam sido providas

pelo Departamento de Defesa norte-americano354

.

Essa condição de falência se dava por vários motivos, mais notoriamente,

por causa do colapso do Estado e de suas instituições centrais, evidenciado na

realidade de violência generalizada e no predomínio de uma milícia violenta no

suposto governo daquele território355

. Àquela época de domínio da milícia Talibã,

o Afeganistão vivia num Estado de anarquia ou, mais precisamente, nos termos de

Yoo e Delabunty, numa condição de “statelessness”356

.

O Talibã era identificado como uma “milícia tribal”357

, uma “facção tribal e

guerreira”358

que, além de não ter sido reconhecida pela comunidade

internacional359

, exibia “características de uma gangue criminosa”360

;

características estas que eram ainda mais intensificadas em razão da aproximação

do Talibã à al Qaeda361

.

De acordo com os autores do memorando, o Talibã e a al Qaeda eram tão

próximos, e, por vezes, indistinguíveis, que não era possível considerar a milícia

afegã como um ator independente; pelo contrário, era possível afirmar que esta era

cúmplice da organização em atos terroristas362

. Logo, a milícia Talibã – assim

como a al Qaeda – não era e nem deveria ser protegida pelas Convenções de

Genebra.

Havia basicamente um argumento sendo proposto, o de que o Afeganistão

havia deixado de ser uma “alta parte contratante” destes tratados internacionais. E

a fundamentação deste argumento poderia ser construída de duas maneiras

diferentes, independentes uma da outra ou correlacionadas: (i) por meio do

reconhecimento e determinação presidencial de que o Afeganistão, à época

relevante, era um Estado falido; e/ou (ii) por meio do reconhecimento e

353

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.52-53. 354

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.53. 355

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.53. 356

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.55. 357

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.55. 358

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.55. 359

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.58. 360

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.57. 361

Ver, sobretudo, YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”,

Op. cit., p.57-59. 362

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.59.

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determinação presidencial de que a milícia Talibã, na prática, era indistinguível da

organização terrorista al Qaeda363

.

Num terceiro momento desta terceira parte364

, Yoo e Delabunty comentaram

as implicações de tais posicionamentos e determinações para efeitos da aplicação

das Convenções de Genebra aos membros do Talibã. A primeira implicação era a

de que o artigo 2º comum não se aplicava ao caso em questão, uma vez que ele

estabelecia sua jurisdição apenas em casos de guerras internacionais entre “altas

partes contratantes”. A segunda implicação era a de que nem mesmo os padrões

mínimos estabelecidos pelo artigo 3º comum se aplicavam aos membros desta

milícia, não só porque aquele não era um “conflito não internacional”, mas

também porque tal artigo se aplicava apenas a “conflito não internacional” que

ocorresse dentro do território de uma das “altas partes contratantes” daqueles

tratados internacionais365

.

Dessa forma, uma vez que os termos jurisdicionais destes artigos não se

aplicavam ao conflito entre os Estados Unidos e a milícia Talibã366

, os membros

desta milícia estariam fora da proteção das Convenções de Genebra367

. Tais

indivíduos, quando capturados, não teriam direito à proteção do artigo 4º da

Convenção de Genebra III, e, portanto, ao status de prisioneiro de guerra. A

milícia Talibã não era um exército e nem uma força armada regular.

Assim, ela não se encaixava nos termos estabelecidos pelos artigos 4º(A)(1)

e 4º(A)(3). Apesar de o 4º(A)(2) ter reconhecido a proteção de pessoas que

pertencessem a forças armadas que não fossem regulares, como milícias e

movimentos de resistência organizados, a milícia Talibã não cumpria as condições

mínimas necessárias impostas por este artigo368

. Os membros desta milícia,

portanto, não teriam direito à proteção do status de prisioneiro de guerra nos

termos da Convenção de Genebra III, mesmo que aquele artigo 4º se aplicasse ao

caso em tela.

363

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.60-61. 364

Este terceiro momento, a subseção “C. Implications Under the Geneva Convention”, não

consta no segundo memorando do Office of Legal Counsel sobre o mesmo tema. Ver, mais

adiante, o item 1.2.6 (Memo 6) deste trabalho. 365

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.60. 366

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.60. 367

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.61. 368

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.61.

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96

Na quarta subseção desta parte369

, os autores explicaram que, mesmo não

vinculando juridicamente os Estados Unidos, as Convenções de Genebra

poderiam, ainda assim, ser aplicadas a este conflito como resultado de uma

decisão política do governo norte-americano370

. Isso significava que os Estados

Unidos poderiam aplicar os padrões consuetudinários do direito de guerra aos

membros da milícia Talibã capturados, mesmo que estes não tivessem direito ao

status de prisioneiro de guerra. Nesses termos, seria possível julgar e punir estes

indivíduos pelos crimes de guerra que tivessem cometido371

.

Na quinta subseção desta parte372

, Yoo e Delabunty comentaram a

possibilidade – jurídica – do Presidente dos Estados Unidos, munido de seus

poderes constitucionais, suspender as Convenções de Genebra em relação ao

Afeganistão. Assim, independentemente deste país ser um estado falido ou não, o

Presidente poderia determinar a não aplicação, temporária e específica, de tais

tratados internacionais ao decidir pela suspensão destas obrigações internacionais

àquele caso pontual. Este posicionamento poderia ser fundamentado por meio de

evidências de que o Afeganistão, sob o controle da milícia Talibã, não estava

cumprido, ou, de fato, estava sistematicamente violando as obrigações

internacionais estabelecidas por aqueles tratados internacionais373

. Ademais, o

Presidente poderia alegar que o Afeganistão mantinha, àquela época, íntimo

relacionamento com a organização terrorista al Qaeda, a qual era responsável por

ataques a populações civis374

.

Por fim, numa última subseção, eles trataram do problema da suspensão de

tratados internacionais no direito internacional. Do ponto de vista doméstico, do

direito constitucional norte-americano, não havia qualquer dúvida quanto à

possibilidade do Presidente adotar aqueles posicionamentos e conclusões em

relação a não aplicação das Convenções de Genebra aos membros da milícia

Talibã. No entanto, era preciso analisar se tais posicionamentos e conclusões

369

Esta quarta subseção (“D. Historical Application of the Geneva Conventions”), não consta no

segundo memorando do Office of Legal Counsel sobre o mesmo tema. Ver, mais adiante, o item

1.2.6 (Memo 6) deste trabalho. 370

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.62. 371

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.62. 372

Esta quinta subseção (“E. Suspension of The Geneva Conventions as to Afghanistan”), não

consta no segundo memorando do Office of Legal Counsel sobre o mesmo tema. Ver, mais

adiante, o item 1.2.6 (Memo 6) deste trabalho. 373

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.64. 374

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.65.

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97

estavam de acordo ou violavam o direito internacional375

. Para eles, esta questão

deveria ser considerada apenas como uma forma de justificar as ações dos Estados

Unidos no “mundo da política internacional”376

, e não para determinar

juridicamente as decisões do Presidente.

Eles ponderaram, no entanto, que, nos termos das próprias Convenções de

Genebra, assim como nos termos da Convenção de Viena sobre Direito dos

Tratados, seria possível alegar, no caso da decisão norte-americana de suspender

aquelas convenções, que os Estados Unidos estavam violando o direito

costumeiro internacional. Isso porque, à luz de certas interpretações desses

tratados internacionais e do direito internacional costumeiro, certas proteções à

pessoa humana estabelecidas por tratados de caráter humanitário não podiam ser

suspensas, ou seja, as Convenções de Genebra eram aplicáveis aos membros do

Talibã capturados377

.

Contudo, para Yoo e Delabunty, tais interpretações eram incorretas. Pelos

motivos apresentados anteriormente, eles avançaram a tese de que os Estados

Unidos poderiam, sim, suspender tais convenções, sem incorrerem em violações

do direito internacional. Concluíram ainda que o Presidente, valendo-se dos

próprios termos das Convenções de Genebra, dos termos da Convenção de Viena,

bem como dos termos do direito internacional costumeiro, poderia suspender as

Convenções de Genebra especificamente em relação à milícia Talibã378

.

Na última parte do memorando, Yoo e Delabunty comentaram a questão do

direito internacional costumeiro da guerra. Tendo analisado se o direito doméstico

norte-americano, mais especificamente o War Crimes Act, e o direito

internacional convencional, mais especificamente as Convenções de Genebra,

aplicavam-se à detenção e ao julgamento dos prisioneiros da al Qaeda e da

milícia Talibã, eles passaram a analisar a aplicação do direito internacional

costumeiro ao caso em tela379

. Da mesma forma, concluíram que este direito

internacional também não se aplicava ao conflito no Afeganistão380

.

375

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.67. 376

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.67. 377

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.68. 378

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.70. 379

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.70-79. 380

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.70.

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Num primeiro momento, eles destacaram que o direito internacional

costumeiro não poderia ser considerado lei federal para efeitos do ordenamento

jurídico norte-americano, tendo em vista, por exemplo, que não havia passado

pelo crivo constitucional do processo legislativo adequado. Assim, não tendo

status de lei federal, o direito internacional costumeiro não poderia impor

qualquer forma de limite aos poderes constitucionais do Presidente naquele

contexto específico do conflito armado pós 11 de setembro381

.

Claramente afirmando uma postura “soberanista” – e dualista – do direito

internacional, eles enfatizaram que os poderes constitucionais do Presidente,

como chefe do Executivo e Commander-in-Chief, naquele momento, deveriam ser

entendidos como a principal fonte para a interpretação e aplicação do direito

internacional, fosse ele convencional ou costumeiro. Dessa forma, o Presidente

podia decidir se o direito internacional costumeiro se aplicava ou não àquelas

circunstâncias382

. Mas, de modo algum, ele era constrangido ou impedido pelo

direito internacional geral no que se referia à conduta dos Estados Unidos na

guerra no Afeganistão383

.

No entanto, mesmo que o direito internacional costumeiro não limitasse o

Presidente e nem as ações militares dos Estados Unidos, isso não significava que

o Presidente não podia determinar a aplicação do direito internacional costumeiro

aos membros da al Qaeda e do Talibã, especialmente no que se referia às

obrigações do direito da guerra impostas a estes indivíduos384

. Os autores

concluíram:

Thus, the President can properly find the unprecedented conflict between

the United States and transnational terrorist organizations a “war” for the

purpose of the customary or common laws of war. Certainly, given the

extent of hostilities both in the United States and Afghanistan since the

September 11 attacks on the World Trade Center and the Pentagon, the

scale of the military, diplomatic and financial commitments by the United

States and its allies to counter the terrorist threats, and the expected

duration of the conflict, it would be entirely reasonable for the President

to find that a condition of “war” existed for purposes of triggering

application of the common laws of war. He could also reasonably find

that the al Qaeda, the Taliban militia, and other related entities that are

engaged in conflict with the United States were subject to the duties

imposed by those laws. Even if members of these groups and

381

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.70. 382

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.74. 383

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.76. 384

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.76.

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99

organizations were considered to be merely “private” actors, they could

nonetheless be held subject to the laws of war.385

Tendo em vista os propósitos deste trabalho, é importante destacar aqui que

os autores concluíram este parágrafo com uma nota de rodapé (n.132) que fazia

referência ao precedente histórico desta possibilidade de responsabilizar

indivíduos “privados” por violações às leis da guerra386

. Nesta nota, eles citaram

um trecho do caso Kadic v. Karadzic em que se explicava que a responsabilização

criminal de indivíduos “privados” por crimes de guerra era reconhecida desde a

Primeira Guerra Mundial havia sido confirmada no Tribunal de Nuremberg depois

da Segunda Guerra mundial, e continuava sendo, até os dias de hoje, um

importante aspecto do direito internacional387

.

Por fim, eles analisaram a possibilidade de aplicação dessas mesmas leis e

costumes da guerra contra oficiais norte-americanos, em caso de violações

cometidas por estes indivíduos a essas normas. A conclusão, novamente, foi a de

que o Presidente poderia determinar se elas seriam ou não aplicáveis aos soldados

americanos, e em que termos isso se daria388

. No entanto, destacaram que nada

impedia que o Presidente determinasse de forma contrária, e que nada ali

contribuía para a conclusão de que os membros das Forças Armadas norte-

americanas estariam imunes à justiça militar em caso de crimes de guerra

cometidos por eles389

.

Yoo e Delabunty concluíram o memorando reafirmando que nem o War

Crimes Act e nem as Convenções de Genebra se aplicavam às condições de

detenção em Guantanamo Bay ou aos procedimentos do julgamento militar dos

prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã. Eles concluíram, ademais, que o

direito internacional costumeiro não tinha efeito jurídico sobre o Presidente e nem

sobre o exército norte-americano, uma vez que não era lei federal nos termos da

Constituição dos Estados Unidos. No entanto, o Presidente tinha plenos poderes

385

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.77. 386

Ver a nota de rodapé n.132: YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J.

Haynes II”, Op. cit., p.77. 387

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.77,

n.132. 388

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.78. 389

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.78-79.

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100

constitucionais para impor o direito costumeiro da guerra tanto à al Qaeda e ao

Talibã quanto às Forças Armadas norte-americanas390

.

1.2.5

Memorando de 19 de janeiro de 2002 (Memo 5)

Em 19 de janeiro de 2002, Donald H. Rumsfeld, Secretário de Defesa dos

EUA, enviou um memorando391

para o Presidente do Joint Chiefs of Staff

informando que o governo dos Estados Unidos havia determinado que os

membros da al Qaeda e da milícia Talibã sob o controle do Departamento de

Defesa não tinham direito ao status de prisioneiro de guerra para efeitos das

Convenções de Genebra de 1949392

. No entanto, determinou que tais indivíduos

fossem tratados humanamente e, respeitada a necessidade militar, de maneira

consistente com os princípios das Convenções de Genebra de 1949393

. Solicitou

ainda que tais ordens fossem transmitidas aos comandantes combatentes e a seus

comandantes subordinados.

1.2.6

Memorando de 22 de janeiro de 2002 (Memo 6)

Em 22 de janeiro de 2002, Jay S. Bybee, Assistant Attorney General do

Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça, enviou um memorando

para Alberto R. Gonzales, Counsel do Presidente, e para William J. Haynes II,

General Counsel do Departamento de Defesa, cujo objeto era, novamente, a

aplicação de tratados internacionais e leis norte-americanas aos membros

capturados da al Qaeda e da milícia Talibã394

. O status jurídico destes prisioneiros

e a aplicação ou não desses tratados e leis já haviam sido discutidos anteriormente

por John Yoo e Robert J. Delabunty no memorando encaminhado para William J.

390

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.79. 391

SECRETARY of Defense, “Memorandum for Chairman of the Joint Chiefs of Staff”

concerning the “Status of Taliban and Al Qaeda”, January 19, 2002, (Memo 5) in Greenberg and

Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.80. 392

SECRETARY of Defense, “Memorandum for Chairman of the Joint Chiefs of Staff”, Op. cit.,

p.80. 393

SECRETARY of Defense, “Memorandum for Chairman of the Joint Chiefs of Staff”, Op. cit.,

p.80. 394

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President, and William

J. Haynes II, General Counsel of the Department of Defense” concerning the “Application of

Treaties and Laws to al Qaeda and Taliban Detainees”, January 22, 2002, (Memo 6) in Greenberg

and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.81-117.

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101

Haynes II em 09 de janeiro de 2002 (Memo 4, comentado anteriormente no parte

1.2.4.)395

.

Os dois memorandos (Memos 4 e 6) tinham o – mesmo – propósito de

analisar “se certos tratados [internacionais] que são parte das leis dos conflitos

armados se aplicam [aplicavam] às condições de detenção e aos procedimentos

para julgamento de membros da al Qaeda e da milícia Talibã”396

. E, ressalvadas

certas diferenças e especificidades comentadas a seguir, as conclusões gerais de

Bybee neste memorando de 22 de janeiro foram praticamente idênticas às de Yoo

e Delabunty naquele memorando de 09 de janeiro397

.

Dos memorandos analisados neste trabalho, estes dois eram os mais longos

(e os mais importantes para os propósitos desta tese de doutorado). Enquanto o

memorando de 09 de janeiro, enviado por Yoo e Delabunty, tinha 42 páginas e era

dividido em quatro partes398

, o memorando de 22 de janeiro de 2002, enviado por

Bybee, tinha 37 páginas e cinco partes399

. As duas primeiras partes dos

memorandos eram praticamente idênticas400

. A terceira era a mesma nos dois

documentos, mas sofreu algumas mudanças em suas subseções. Enquanto no

395

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit. 396

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.81. Ver passagem quase idêntica em: YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for

William J. Haynes II”, Op. cit., p.38. 397

“We conclude that these treaties do not protect members of the al Qaeda organization, which as

a non-State actor cannot be a party to the international agreements governing war. We further

conclude that the President has sufficient grounds to find that these treaties do not protect members

of the Taliban militia. This memorandum expresses no view as to whether the President should

decide, as a matter of policy, that the U. S. Armed Forces should adhere to the standards of

conduct in those treaties with respect to the treatment of prisoners.” BYBEE, Jay S.,

“Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.81. A única

diferença é que a segunda frase (“We further conclude that the President has sufficient grounds to

find that these treaties do not protect members of the Taliban militia”) é mais curta no memorando

de Yoo e Delabunty: “We further conclude that these treaties do not apply to the Taliban militia.”

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.38. 398

As quarto partes eram: “I. Background and Overview of the War Crimes Act and the Geneva

Conventions”; “II. Application of WCA and Associated Treaties to al Qaeda”; “III. Application of

the Geneva Conventions to the Taliban Militia”; e “IV The Customary International Laws of

War” YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.38-

79. 399

As cinco partes eram: “I. Background and Overview of the War Crimes Act and the Geneva

Conventions”; “II. Application of WCA and Associated Treaties to al Qaeda”; “III. Application of

the Geneva Conventions to the Taliban Militia”; “IV. Detention Conditions Under Geneva III”; e

“V. Customary International Law” BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and

William J. Haynes II”, Op. cit., p.81-117. 400

Comparar BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”,

Op. cit., p.81-90 e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”,

Op. cit., p.38-50.

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102

memorando de Yoo e Delabunty havia seis subseções401

, no de Bybee havia

quatro402

. Ademais, a antiga quarta parte do memorando de 09 de janeiro foi

transformada numa quinta parte do memorando de 22 de janeiro; e de suas antigas

três subseções apenas a primeira permaneceu403

. Mas, a principal novidade do

memorando de Bybee foi uma nova quarta parte que tratava do tema das

condições de detenção à luz da Convenção de Genebra III, e, numa de suas duas

subseções, comentava especificamente o status dos prisioneiros pertencentes ao

Talibã de acordo com os termos do artigo 4º deste tratado internacional404

.

Em linhas gerais, as conclusões finais sobre o objeto central desses dois

memorandos foram praticamente idênticas. Tanto Yoo e Delabunty como Bybee

posicionaram-se no sentido de que os tratados internacionais e as leis norte-

americanas, mais especificamente as Convenções de Genebra e o War Crimes Act,

não se aplicavam às condições de detenção e aos procedimentos de julgamento

dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã presos em Guantanamo Bay405

. No

entanto, houve diferenças e especificidades importantes.

Em seu memorando de 22 de janeiro de 2002, Bybee concluiu:

For the foregoing reasons, we conclude that neither the federal War

Crimes Act nor the Geneva Conventions would apply to the detention

conditions of al Qaeda prisoners. We also conclude that the President has

the plenary constitutional power to suspend our treaty obligations toward

Afghanistan during the period of the conflict. He may exercise that

401

As seis subseções eram: “A. Constitutional Authority”; “B. Status as a Failed State”; “C.

Implications Under the Geneva Conventions”; “D. Historical Application of the Geneva

Conventions”; “E. Suspension of The Geneva Conventions as to Afghanistan”; e “F. Suspension

Under International Law”. YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J.

Haynes II”, Op. cit., p.50-70. 402

Neste memorando, três subseções tinham sido mantidas idênticas (“Constitutional Authority”;

“Status as a Failed State”; e, a agora “C”, “Suspension Under International Law”), as antigas

subseções “C”, “D” e “E” haviam sido descartadas, e uma nova subseção havia sido incluída (“D.

Application of the Geneva Convention As a Matter of Policy”). BYBEE, Jay S., “Memorandum

for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.90-107. 403

As três subseções da quarta parte do memorando de 09 de janeiro eram: “A. Is Customary

International Law Federal Law?”; “B. Do the Customary Laws of War Apply to al Qaeda or the

Taliban Militia?”; e “C. May a U.S. Servicemember be Tried for Violations of the Laws of War?”.

Para as alterações, comparar: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and

William J. Haynes II”, Op. cit., p.111-116 e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for

William J. Haynes II”, Op. cit., p.70-79. 404

A quarta parte era: “IV Detention Conditions Under Geneva III”). E suas duas subseções: “A.

Justified Deviations from Geneva Convention Requirements”; e “B. Status of Taliban Prisoners

Under Article 4”. BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes

II”, Op. cit., p.107-111. 405

Comparar BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”,

Op. cit., p.117; e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op.

cit., p.79.

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discretion on the basis that Afghanistan was a failed State. Even if he

chose not to, he could interpret Geneva III to find that members of the

Taliban militia failed to qualify as POWs under the terms of the treaty.

We also conclude that customary international law has no biding legal

effect on either the President or the military because it is not federal law,

as recognized by the Constitution.

We should make clear that in reaching a decision to suspend our treaty

obligations or to construe Geneva III to conclude that members of the

Taliban militia are not POWs, the President need not make any specific

finding. Rather, he need only authorize or approve policies that would be

consistent with the understanding that al Qaeda and Taliban prisoners are

not POWs under Geneva III.406

Comparando-se estes termos com os da conclusão daquele memorando de

09 de janeiro de 2002, verificam-se algumas diferenças e especificidades

importantes. Enquanto a conclusão daquele memorando de Yoo e Delabunty tinha

apenas um parágrafo com três frases, esta conclusão de Bybee era composta por

dois parágrafos, sendo que o primeiro tinha cinco frases e o segundo, duas. Para

além dessas diferenças numéricas, as conclusões apresentavam semelhanças,

diferenças e especificidades substanciais bastante relevantes.

A primeira frase das duas conclusões era praticamente idêntica, e apontava

para aquela conclusão geral de que o War Crimes Act e as Convenções de

Genebra não se aplicavam àqueles indivíduos, “estrangeiros inimigos”, detidos

pelos Estados Unidos durante a guerra no Afeganistão. A principal diferença era a

de que no memorando de Bybee ela se restringia às condições de detenção dos

prisioneiros, exclusivamente, da al Qaeda407

. Em comparação com a primeira

frase da conclusão do memorando anterior de Yoo e Delabunty, a primeira frase

da conclusão do memorando de 22 de janeiro: (i) não mencionava a questão da

aplicação de tais tratados e leis aos procedimentos de julgamento por comissões

militares; (ii) não mencionava Guantanamo Bay; e, de maneira ainda mais

importante para os propósitos deste trabalho, (iii) não mencionava os prisioneiros

da milícia Talibã.

No memorando de Yoo e Delabunty, os membros da al Qaeda e da milícia

Talibã apareciam juntos, e a não aplicação daqueles tratados e leis se dava tanto

em relação às condições de detenção quanto aos procedimentos de julgamento por

406

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.117. 407

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.117.

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104

tribunais militares408

. Agora, o caso dos membros da al Qaeda era expressamente

diferenciado do caso dos membros da milícia Talibã.

Mas, de certo modo, esta diferenciação não era uma grande novidade, uma

vez que ela já estruturava a parte central dos dois memorandos. Tanto Yoo e

Delabunty como Bybee dedicavam a segunda parte dos memorandos à aplicação

de tratados e leis à al Qaeda, e a terceira parte à aplicação destes à milícia Talibã.

Ademais, todos eles reconheciam que a aplicação ou não das Convenções de

Genebra aos membros desta milícia era uma questão jurídica mais difícil do que

aquela colocada em relação aos membros da al Qaeda409

.

Nesse sentido, é importante destacar que a segunda e a terceira frases da

conclusão deste memorando de 22 de janeiro não faziam parte da conclusão do

memorando do dia 09 de janeiro. Elas estavam diretamente relacionadas a esta

especificidade da aplicação ou não das Convenções de Genebra aos membros da

milícia Talibã. Apesar de tais questões terem sido discutidas nos dois

memorandos, as conclusões do Memo 6 (de que o Presidente tinha totais poderes

constitucionais para suspender, especificamente em relação ao Afeganistão, as

obrigações internacionais norte-americanas advindas daqueles tratados

internacionais410

; e de que o Presidente poderia exercer tal discrição com base no

fato de que o Afeganistão, àquela época, era um “Estado falido”411

) não haviam

sido explicitadas na conclusão do memorando de Yoo e Delabunty (Memo 4).

408

A primeira frase era: “For the foregoing reasons, we conclude that neither the federal War

Crimes Act nor the Geneva Conventions would apply to the detention conditions in Guantanamo

Bay, Cuba, or to trial by military commission of al Qaeda or Taliban prisoners”. YOO, J. and

DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.79. 409

Nos dois memorandos, a primeira frase da terceira parte (“III. Application of the Geneva

Conventions to the Taliban Militia”) era idêntica: “Whether the Geneva Conventions apply to the

detention and trial of members of the Taliban militia presents a more difficult legal question”.

Ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.90; e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.

Ademais, vale destacar que a terceira parte destes documentos era substancialmente maior do que

a segunda. No memorando de 09 de janeiro de 2002, enquanto a segunda parte tinha duas páginas

e meia (p.48-50), a terceira parte tinha, aproximadamente, 21 páginas (p.50-70). No memorando

de 22 de janeiro de 2002, enquanto a segunda parte tinha, aproximadamente, 02 páginas (p.89-90),

a terceira parte tinha 16 páginas (p.90-107). Ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R.

Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.89-107; e YOO, J. and DELABUNTY, R. J.

“Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48-70. 410

As discussões sobre os poderes presidenciais para suspender tais obrigações internacionais,

especificamente em relação ao Afeganistão, durante aquele período de conflito, foram feitas nos

dois memorandos. Nesse sentido, ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales

and William J. Haynes II”, Op. cit., p.90-107; e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum

for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50-70. 411

As discussões sobre a condição de “Estado falido” do Afeganistão e suas consequências

jurídicas internacionais foram comentadas nos dois memorandos. Nesse sentido, ver: BYBEE, Jay

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105

De modo ainda mais importante, sobretudo para os propósitos deste

trabalho, a quarta frase da conclusão do memorando de Bybee indicava que,

mesmo que o Presidente escolhesse não suspender tais obrigações internacionais

em relação ao Afeganistão, ele poderia, ainda assim, interpretar a Convenção de

Genebra III e negar o status de prisioneiro de guerra aos membros da milícia

Talibã, uma vez que estes não teriam cumprido ou satisfeito as condições de

elegibilidade estabelecidas pelo artigo 4º deste tratado412

. Tal conclusão estava

diretamente relacionada à inclusão daquela nova quarta parte do memorando de

22 de janeiro, que tratava das condições de detenção à luz da Convenção de

Genebra III e, mais especificamente, do status dos membros da milícia Talibã à

luz daquele artigo desta Convenção413

.

Nesta nova quarta parte do memorando, Bybee comentou outras duas

possibilidades em relação aos poderes do Presidente para decidir sobre a aplicação

ou não das Convenções de Genebra no caso dos prisioneiros membros do

Talibã414

. Na primeira subseção, destacou que certas doutrinas jurídicas, como as

de “autodefesa” e de “impraticabilidade” (“infeasibility”, em inglês), poderiam

servir para justificar possíveis desvios norte-americanos em relação às obrigações

impostas pela Convenção de Genebra III415

. E na segunda subseção, defendeu a

tese de que o Presidente, mesmo não suspendendo aquelas obrigações

internacionais norte-americanas em relação ao Afeganistão, tinha amplos poderes

para interpretar os termos deste tratado internacional e, assim, determinar o status

jurídico dos membros da milícia Talibã. Na opinião de Bybee, estes prisioneiros

não tinham direito ao status jurídico de prisioneiro de guerra416

.

De acordo com Bybee, a Convenção de Genebra III estabelecia que, no caso

de um conflito armado internacional, ou seja, de um conflito sob a jurisdição do

artigo 2º comum, os combatentes deveriam se encaixar em uma das várias

S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.95-102; e YOO,

J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.53-62. 412

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.117. 413

Mais especificamente, ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and

William J. Haynes II”, Op. cit., p.107-111. 414

Mais especificamente, ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and

William J. Haynes II”, Op. cit., p.107-111. 415

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.108-110. 416

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110.

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categorias estabelecidas por este tratado para que pudessem receber o status de

prisioneiro de guerra417

.

Para Bybee, o artigo 4(A)(1)–(3) da Convenção de Genebra III determinava

as três categorias relevantes naquele contexto: (i) membros das Forças Armadas

de um Estado que fosse parte do conflito, junto com as milícias e forças

voluntárias que também fizessem parte deste; (ii) membros de milícia ou corpos

voluntários que fossem comandados por um indivíduo responsável por seus

subordinados, que tivessem um sinal distintivo reconhecível à distância, que

carregassem suas armas abertamente, e que respeitassem as leis da guerra; e (iii)

membros de forças armadas regulares que apoiassem um governo ou autoridade

que não fosse reconhecido pelo país detentor418

.

Determinar se os membros da milícia Talibã se encaixavam em uma dessas

três categorias era fundamental para a decisão sobre o direito ao status jurídico de

prisioneiro de guerra. O artigo 5º da Convenção de Genebra III determinava que,

em caso de dúvida, uma pessoa que tivesse cometido algum ato beligerante,

quando detida pelas forças inimigas, deveria receber a proteção da Convenção até

que um tribunal determinasse seu status419

. Bybee explicou que, de modo geral,

dever-se-ia presumir que tais indivíduos detidos tinham status de prisioneiro de

guerra, nos termos daquele artigo 4º, até que um tribunal determinasse o

contrário420

. Porém, logo em seguida, sublinhou que o Presidente poderia

determinar, unilateral e categoricamente, que todos os prisioneiros da milícia

Talibã estariam fora do alcance do artigo 4º da Convenção de Genebra III421

. Ele

explicou:

He [the President] could interpret Geneva III, in light of the known facts

concerning the operation of Taliban forces during the Afghanistan

conflict, to find that all of the Taliban forces do not fall within the legal

definition of prisoners of war as defined by Article 4. A presidential

determination of this nature would eliminate any legal “doubt” as to the

417

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110. 418

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110. 419

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110. 420

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110. 421

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110.

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prisoners‟ status, as a matter of domestic law, and would therefore

obviate the need for Article 5 tribunals.422

No entanto, Bybee ponderou que ele e o Departamento de Justiça não

tinham acesso aos “fatos” sobre as condutas e práticas da milícia Talibã durante o

conflito, e que, assim, não poderiam opinar sobre aplicação de tal possibilidade

“de direito” à situação “de fato”.

Dessa forma, orientou William J. Haynes II e o Departamento de Defesa

que buscassem averiguar os seguintes fatos: (i) se as unidades da milícia Talibã

adotavam uma estrutura de comando reconhecível e hierárquica; (ii) se eles

vestiam uniformes distintivos; (iii) se eles operavam usando suas armas

abertamente; (iv) as táticas e estratégias com as quais conduziam suas atividades;

e (v) se eles respeitavam as leis de guerra423

.

O ponto principal de Bybee era o de que, caso verificassem que a milícia

Talibã, “de fato”, havia violado tais requisitos durante o conflito no Afeganistão,

então, o Departamento de Defesa, “de fato” e “de direito”, teria fundamentos

suficientes para aconselhar o Presidente a determinar, unilateral e

categoricamente, que todos os membros da milícia Talibã capturados pelos

Estados Unidos não eram prisioneiros de guerra nos termos do artigo 4º da

Convenção de Genebra III424

.

Ele lembrou ainda que o Presidente, adotando esta linha de raciocínio e

prática, estaria reconhecendo que aquele era um conflito de natureza

internacional, ou seja, um conflito entre dois Estados signatários das Convenções

de Genebra, uma vez que o artigo 4º apenas se aplicava nos casos daqueles

conflitos internacionais previstos pelo artigo 2º comum destes tratados

internacionais425

.

No que se referia a proteção dos oficiais norte-americanos, sobretudo em

relação a possíveis acusações penais por crimes de guerra, Bybee enfatizou que

essa determinação presidencial não poderia suscitar qualquer forma de

422

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110. 423

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110. 424

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.110-111. 425

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.111.

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108

responsabilização nesse sentido. A legislação norte-americana aplicável, o War

Crimes Act, criminalizava, de um lado, graves violações às Convenções de

Genebra ou, de outro lado, violações ao artigo 3º comum.

Assim, se os membros da milícia Talibã não eram prisioneiros de guerra

(mesmo tendo sido parte de um conflito – “de caráter internacional” – sob a

jurisdição do artigo 2º comum), o tratamento destes “combatentes ilegais” não

poderia ensejar uma grave violação nos termos da Convenção de Genebra III. Isso

porque, nos termos do artigo 130 desta Convenção, uma grave violação só poderia

ser cometida contra pessoas que fossem protegidas por este tratado

internacional426

.

Essa determinação presidencial, ao mesmo tempo, constituiria estes

indivíduos como combatentes “fora-da-lei”, ou seja, juridicamente desprotegidos,

e imunizaria os oficiais norte-americanos responsáveis pela detenção,

interrogatório e julgamento de tais combatentes ilegais e, portanto, fora da

proteção do status jurídico de prisioneiro de guerra.

Além disso, não reconhecendo tais indivíduos como prisioneiros de guerra

de acordo com os termos do artigo 4º, mas reconhecendo o caráter – internacional

– do conflito e, assim, a jurisdição do artigo 2º, o Presidente também estaria

reconhecendo a não aplicabilidade do artigo 3º comum ao caso em tela. Dessa

forma, não seria possível alegar violação a este artigo, e nem aos termos

correspondentes do War Crimes Act427

.

Depois de comentar o direito internacional positivo, Bybee comentou, na

última parte do memorando, o direito internacional costumeiro. Sua posição a este

respeito (sintetizada na quinta e última frase do primeiro parágrafo de sua

conclusão) foi idêntica a de Yoo e Delabunty428

. Para todos eles, dualistas, no que

se referia às condições de detenção dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã,

o direito internacional costumeiro não se aplicava, ou seja, não impunha limites

jurídicos nem ao Presidente, nem às Forças Armadas, uma vez que não era lei

426

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.111. 427

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.111. 428

“We also conclude that customary international law has no binding legal effect on either the

President or the military because it is not federal law, as recognized by the Constitution.” YOO, J.

and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.79; e BYBEE, Jay

S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.117.

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federal à luz da Constituição dos Estados Unidos. Contudo, isso não significava

que o Presidente não poderia decidir e aplicar, unilateralmente, o direito

internacional costumeiro, inclusive as normas consuetudinários do direito de

guerra, a tais indivíduos429

.

Bybee concluiu seu memorando com um novo parágrafo, enfatizando que o

Presidente não precisava tomar nenhuma medida específica para suspender as

obrigações de tratados internacionais ratificados pelos Estados Unidos ou para

construir uma interpretação da Convenção de Genebra III que negasse o status de

prisioneiro de guerra aos membros da milícia Talibã. O Presidente precisava

apenas autorizar ou aprovar políticas que fossem consistentes com o entendimento

de que os prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã, nos termos deste tratado

internacional, não tinham direito ao status de prisioneiros de guerra430

.

1.2.7

Memorando de 25 de janeiro de 2002 (Memo 7)

Em 25 de janeiro de 2002, Alberto R. Gonzales, White House Counsel,

enviou ao Presidente George W. Bush um memorando cujo objeto era a decisão

sobre a aplicação da Convenção de Genebra III ao conflito com a al Qaeda e o

Talibã431

. Gonzales destacou que o Departamento de Justiça havia apresentado

uma opinião jurídica formal concluindo que a Convenção de Genebra III sobre o

Tratamento de Prisioneiros de Guerra não se aplicava ao conflito com a al Qaeda,

e que havia fundamentos razoáveis para que o Presidente concluísse que tal

tratado internacional também não se aplicava ao conflito com a milícia Talibã. Ele

lembrou ainda que o Presidente, diante daquela opinião formal, havia

determinado, em 18 de janeiro de 2002, que tal tratado não se aplicava àqueles

conflitos e que, assim, os prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã não tinham

direito ao status de prisioneiro de guerra.

429

Esta era uma conclusão implícita no memorando de 22 de janeiro de 2002; ela havia sido

explicitada na conclusão do memorando de Yoo e Delabunty: “Nonetheless, we also believe that

the President as Commander-in-Chief, has the constitutional authority to impose the customary

laws of war on both the al Qaeda and Taliban groups and the U.S. Armed Forces” YOO, J. and

DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.79. 430

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,

p.117. 431

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President” concerning the “Decision Re

Application of the Geneva Convention on Prisoners of War to the Conflict with al Qaeda and the

Taliban”, January 25, 2002, (Memo 7) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op.

cit., p.118-121.

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110

O memorando de Gonzales buscava apresentar as ramificações desta

decisão do Presidente, sobretudo diante da solicitação que havia sido feita pelo

Secretário de Estado, Colin L. Powell, para que Bush reconsiderasse seu

posicionamento432

. De acordo com Gonzales, as bases daquela decisão

presidencial incluíam: (i) a determinação de que o Afeganistão era um Estado

falido; e (ii) a determinação de que o Talibã e suas forças não eram um governo,

mas um grupo militante parecido com um grupo terrorista433

.

Ele comentou possíveis consequências, positivas e negativas, de tal

determinação presidencial. Quanto aos aspectos positivos, destacou, sobretudo, a

questão da flexibilidade em relação às práticas e políticas futuras que poderiam

ser utilizadas na guerra contra o terrorismo, e a redução substantiva da ameaça de

processos penais domésticos contra oficiais do governo. No que se referia à

flexibilidade, enfatizou que a natureza incomum deste novo tipo de conflito

justificava um novo entendimento sobre o tratamento, interrogatório e julgamento

de tais “prisioneiros terroristas”, e argumentou:

By concluding that GPW [Geneva Convention III on Prisoners of War]

does not apply to al Qaeda and the Taliban, we avoid foreclosing options

for the future, particularly against nonstate actors.434

Com relação às possíveis consequências negativas, Gonzales realçou, entre

outras: (i) que desde 1949, quando as Convenções de Genebra haviam sido

concluídas, os Estados Unidos nunca tinham negado sua aplicabilidade; (ii) que

tal posição norte-americana poderia provocar condenações aos Estados Unidos,

inclusive por parte de seus aliados; e (iii) que poderia introduzir um elemento de

incerteza com relação à definição do status de adversários435

.

Gonzales concluiu seu memorando respondendo aos argumentos (do

Secretário de Estado) que defendiam a aplicação da Convenção de Genebra III aos

membros da al Qaeda e do Talibã. Entre outras contrarrazões, ele salientou que

aquele era um novo tipo de guerra, não contemplado à época em que as

432

Nesse sentido, ele destacou que o Attorney General, John Ashcroft, tinha, juridicamente, os

poderes para interpretar o direito (tanto norte-americano quanto internacional) para o ramo

executivo do governo; e que ele havia delegado tal competência interpretativa para o Office of

Legal Counsel do Departamento de Justiça. Lembrou, ademais, que o Legal Adviser do Secretário

de Estado havia expressado opinião diferente daquela apresentada pelo Office. GONZALES,

Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.118-119. 433

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.118-119. 434

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.119. Ênfase minha. 435

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.120.

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111

Convenções de Genebra foram concluídas, e que demandava novas formas de

conduta em relação aos terroristas capturados; que as políticas e costumes norte-

americanos não se aplicavam “a conflitos com terroristas, ou com forças

irregulares, como o Talibã”436

; e que, mesmo que a Convenção de Genebra III não

fosse aplicável a tais indivíduos, os Estados Unidos poderiam acusar, por crimes

de guerra, qualquer indivíduo que cometesse certos atos contra os soldados norte-

americanos437

. Sua conclusão final foi a de que os argumentos apresentados em

favor da aplicação das Convenções de Genebra aos membros da al Qaeda e do

Talibã não eram persuasivos438

.

1.2.8

Memorando de 26 de janeiro de 2002 (Memo 8)

Em 26 de janeiro de 2002, o Secretário de Estado, Colin L. Powell, enviou

um memorando para o Counsel do Presidente, Alberto R. Gonzales, em que

comentou criticamente o memorando que este havia enviado ao Presidente no dia

anterior439

. Nele, Powell expressou sua preocupação com o fato de que tal

memorando não teria apresentado, adequadamente, ao Presidente Bush as opções

que estariam à disposição dele, nem havia identificado, corretamente, os “prós e

contras” relevantes de cada uma dessas opções440

.

De acordo com Powell, o Presidente tinha basicamente duas opções. Na

primeira, ele determinaria que a Convenção de Genebra III não se aplicava ao

conflito no Afeganistão porque este era um “Estado falido”. Na segunda, ele

determinaria que esta convenção aplicava-se ao conflito no Afeganistão, mas que

os membros da al Qaeda, como um grupo, e do Talibã, individualmente ou como

um grupo, não tinham direito ao status de prisioneiro de guerra nos termos deste

tratado internacional. Nas duas opções, o tratamento de todos os prisioneiros seria

consistente com os princípios do tratado internacional441

.

Para Colin Powell, as duas opções envolviam, entre outras, as seguintes

vantagens: (i) garantiam a mesma flexibilidade prática para o tratamento de

436

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.121. 437

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.120-121. 438

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.120. 439

POWELL, Colin L., “Memorandum” concerning the “Draft Decision Memorandum for the

President on the Applicability of the Geneva Convention to the Conflict in Afghanistan”, January

26, 2002, (Memo 8) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.122-125. 440

POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.122. 441

POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.122.

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prisioneiros, inclusive no que se referia ao interrogatório e ao tempo de detenção;

(ii) permitiam que os Estados Unidos não reconhecessem o status de prisioneiro

de guerra aos membros da al Qaeda e do Talibã; e (iii) não implicavam qualquer

risco significativo no que se referia à possibilidade de instauração de processos

penais contra oficiais norte-americanos442

.

Opondo-se às conclusões de Gonzales, Powell ressaltou que aquela primeira

opção tinha apenas uma vantagem, enquanto a segunda tinha pelo menos quatro.

O único “pró” da primeira opção era a “máxima flexibilidade”. A segunda opção,

por sua vez, entre outros, tinha os seguintes “prós”: (i) preservava maior

flexibilidade à luz dos direitos doméstico e internacional, uma vez que a

abordagem seria mais defensável juridicamente; (ii) garantia fundação jurídica

mais sólida para as políticas que o governo norte-americano tinha a intenção de

adotar; (iii) preservava a credibilidade e a autoridade moral dos Estados Unidos

internacionalmente; e (iv) diminuía os incentivos para investigações criminais

internacionais contra tropas e oficiais norte-americanos443

.

Segundo Powell, esta segunda opção tinha apenas um aspecto negativo, o de

que, numa eventual análise, caso a caso, do status dos prisioneiros, alguns

membros da milícia Talibã poderiam ser reconhecidos como prisioneiro de guerra

nos termos da Convenção de Genebra III. A primeira, além de outros, tinha os

seguintes pontos “contra”: (i) um alto custo em termos da reação internacional

negativa; (ii) podia provocar alguns promotores estrangeiros a investigar e

processar as tropas e os oficiais norte-americanos; e (iii) podia gerar críticas e

protestos formais internacionais contra os Estados Unidos perante a (antiga)

Comissão (e atual Conselho) de Direitos Humanos da ONU, bem como perante a

Corte Internacional de Justiça444

.

Powell concluiu seu memorando comentando os erros e imprecisões daquele

memorando de Gonzales, destacando, por exemplo, que a determinação de que o

Afeganistão era um “Estado falido” iria de encontro com a posição oficial norte-

americana, assim como contra o reconhecimento da comunidade internacional de

que tal país era parte legítima das Convenções de Genebra. Ele enfatizou que a

não concessão do status de prisioneiro de guerra aos membros da al Qaeda e da

442

POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.122. 443

POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.123-124. 444

POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.123-124.

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113

milícia Talibã também poderia ser determinada pelo Presidente caso ele

reconhecesse que a Convenção de Genebra III se aplicava ao conflito no

Afeganistão445

.

1.2.9

Carta de 01 de fevereiro de 2002 (Memo 9)

Em 01 de fevereiro de 2002, John Ashcroft, o Attorney General, enviou uma

carta ao Presidente George Bush comentando a discussão do National Security

Council sobre o status dos prisioneiros da milícia Talibã446

. De acordo com

Ashcroft, havia duas teorias que estavam sendo aventadas para fundamentar a

conclusão de que os combatentes da milícia Talibã não tinham, juridicamente,

direito ao status de prisioneiro de guerra447

.

De um lado, havia a tese de que, durante o contexto relevante, o Afeganistão

era um Estado falido, e, assim, falido, não podia ser considerado uma das altas

partes contratantes da Convenção de Genebra III. Consequentemente, os termos

deste tratado não se aplicariam ao caso em questão, o que significava que os

membros da milícia Talibã capturados não tinham direito ao status jurídico de

prisioneiro de guerra. De outro lado, havia a tese de que, durante o contexto

relevante, o Afeganistão era uma alta parte contratante deste tratado internacional,

mas os combatentes da milícia Talibã não tinham direito ao status de prisioneiro

de guerra porque eles haviam agido como combatentes ilegais (o termo utilizado,

em inglês, era unlawful combatants)448

.

O Attorney General, juridicamente competente para interpretar a lei para o

Poder Executivo do governo dos Estados Unidos449

, comentou que uma

determinação presidencial de que o Afeganistão era um Estado falido, e, portanto,

de que este país não era parte daquele tratado internacional, iria minimizar

inúmeros riscos jurídicos envolvendo responsabilidade, litigância e processos

criminais. Isso porque, à luz da opinião da Suprema Corte norte-americana no

caso Clark v. Allen, “quando um Presidente determina que um tratado não se

445

POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.124-125. 446

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, February 01, 2002, (Memo 9) in

Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.126-127. 447

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 448

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 449

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.119.

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114

aplica, sua determinação é inteiramente discricionária e não será revista pelas

cortes federais”450

.

Ressaltando um ponto que já havia sido destacado nos memorandos de Yoo

e Delabunty e de Bybee, ele lembrou ao Presidente que, nos termos do War

Crimes Act, certas violações da Convenção de Genebra III eram tipificadas como

crimes de guerra451

. Assim, ele argumentou que afastar a aplicabilidade de tal

tratado era também afastar a possibilidade de responsabilização criminal de

funcionários públicos norte-americanos. De modo geral, o ponto central de

Ashcroft era ressaltar precisamente tais garantias asseguradas pela primeira tese,

em detrimento da segunda tese:

In constrast, if a determination is made under Option 2 that the Geneva

Convention applies but the Taliban are interpreted to be unlawful

combatants not subject to the treaty‟s protections, Clark v. Allen does not

accord American officials the same protection from legal consequences.

In cases of Presidential interpretation of treaties which are confessed to

apply, courts occasionally refuse to defer to Presidential interpretation.

Perkins v. Elg is an example of such a case. If a court chose to review for

itself the facts underlying a Presidential interpretation that detainees were

unlawful combatants, it could involve substantial criminal liability for

involved U.S. officials.452

Ele destacou, em itálico, a diferença entre uma determinação e uma

interpretação presidencial sobre a aplicabilidade ou não daquele tratado

internacional, enfatizando o maior risco – jurídico e político – inerente àquela

segunda tese, interpretativa. Ashcroft enfatizou que as duas opções eram teses

jurídicas, e que, assim, não excluíam outras considerações, práticas e políticas,

que poderiam guiar as decisões do poder executivo norte-americano. Sua

conclusão, no entanto, era a de que a primeira tese era, juridicamente, a mais

segura para evitar futuras revisões judiciais e responsabilizações criminais de

oficiais norte-americanos, bem como para evitar a imposição jurídica de certos

padrões para a detenção, o interrogatório e o julgamento dos prisioneiros da

milícia Talibã453

.

450

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 451

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 452

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. Ênfase no original. 453

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126-127.

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115

1.2.10

Memorando de 02 de fevereiro de 2002 (Memo 10)

Em 02 de fevereiro de 2002, William H. Taft IV, Legal Advisor do

Departamento de Estado, enviou um memorando para Alberto R. Gonzales,

Counsel do Presidente, comentando um paper de Gonzales sobre a Convenção de

Genebra454

. Como o próprio Gonzales já havia informado ao Presidente, em seu

memorando de 25 de janeiro de 2002, Taft tinha um entendimento diferente

daqueles expressados pelo Attorney General, John Ashcroft, e, sobretudo, pelo

Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça455

.

Em seu memorando de 02 de fevereiro, Taft reafirmou sua posição em favor

da aplicação das Convenções de Genebra ao conflito no Afeganistão. O Legal

Advisor destacou que, mesmo do ponto de vista prático-político, a decisão de que

tais convenções se aplicavam a tal conflito era a mais acertada, na medida em que

isso iria demonstrar que as condutas norte-americanas se baseavam no direito

internacional e em suas obrigações jurídicas internacionais456

.

Taft criticou a estrutura daquele paper de Gonzales, que sugeria a distinção

entre (i) o conflito dos Estados Unidos contra a al Qaeda e (ii) o conflito dos

Estados Unidos contra a milícia Talibã. Para ele, esta distinção não estava de

acordo com os termos estabelecidos pelas Convenções de Genebra. Isso porque,

caso estas convenções se aplicassem ao conflito no Afeganistão, seus termos

deveriam ser aplicados a todas as pessoas envolvidas (“al Qaeda, Taliban,

Northern Alliance, U.S. troops, civilians, etc.”457

). Caso elas não se aplicassem,

então, ninguém poderia se beneficiar, juridicamente, de suas proteções458

.

Nesse contexto, vale destacar, mesmo que rapidamente, alguns dos termos

deste paper de Gonzales, publicado como anexo ao memorando de Taft459

. Nele,

Gonzales resume os principais pontos sobre a discussão em torno da aplicação ou

não da Convenção de Genebra III aos membros da al Qaeda e da milícia Talibã.

454

TAFT, William H. IV, “Memorandum” (“Comments on Your Paper on the Geneva

Convention”), February 02, 2002, (Memo 10) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture

Papers, Op. cit., p.129-133. 455

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.119. 456

TAFT, William H. IV, “Memorandum”, Op. cit., p.129. 457

TAFT, William H. IV, “Memorandum”, Op. cit., p.129. 458

TAFT, William H. IV, “Memorandum”, Op. cit., p.129. 459

GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to

Taliban and al Qaeda”, in TAFT, William H. IV, “Memorandum”, Op. cit., p.130-133.

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116

No que se referia à aplicabilidade da Convenção de Genebra III ao conflito

com a al Qaeda, Gonzales relatou que os advogados do Departamento de Justiça

(entre outros departamentos e agências do governo) haviam concluído que, em

termos jurídicos, tal conflito, independentemente de onde ele fosse travado, não

era objeto de tal Convenção; ou seja, esta não se aplicava a um conflito contra

uma organização terrorista transnacional460

. De um ponto de vista jurídico, tal

posicionamento era o mais seguro para proteger os oficiais norte-americanos

contra possíveis tentativas de responsabilizá-los criminalmente. De um ponto de

vista prático-político, tal entendimento era o mais apropriado porque ele

enfatizava que o conflito global contra a al Qaeda era um novo tipo de conflito –

que não era regulado pela Convenção de Genebra III. Gonzales destacou também

que os advogados do Departamento de Estado (como Taft) tinham entendimento

diferente, em favor da aplicação desta Convenção de Genebra ao conflito no

Afeganistão461

.

Já em relação à aplicabilidade da Convenção de Genebra III ao conflito com

a milícia Talibã, Gonzales relatou que os advogados do Departamento de Justiça

(entre outros departamentos e agências do governo) concordavam que o

Presidente tinha autoridade constitucional para determinar a suspensão da

Convenção de Genebra III em relação ao Afeganistão, baseado na conclusão de

que este era um Estado falido. Ele destacou que os advogados do Departamento

de Estado (como Taft), de outro modo, não concordavam com esta concepção de

que o Afeganistão era um Estado falido. Mas, frisou que todos os advogados

haviam concordado que os membros da milícia Talibã não tinham direito ao status

de prisioneiro de guerra, independentemente da suspensão ou não da Convenção

de Genebra462

.

Ademais, no que se referia ao status de prisioneiro de guerra, Gonzales

relatou que os advogados envolvidos haviam concordado que tanto os membros

da al Qaeda como os da milícia Talibã não teriam direito às proteções inerentes a

460

GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to

Taliban and al Qaeda”, Op. cit., p.131. 461

GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to

Taliban and al Qaeda”, Op. cit., p.131. 462

GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to

Taliban and al Qaeda”, Op. cit., p.131-133.

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117

tal status. E que, assim, tais advogados haviam sido consistentes com a

determinação do Presidente Bush de 18 de janeiro de 2002463

.

1.2.11

Memorando de 07 de fevereiro de 2002 (Memo 11)

Em 07 de fevereiro de 2002, o Presidente George W. Bush enviou um

memorando para o Vice-presidente, para o Secretário de Estado, para o Secretário

de Defesa, para o Attorney General, para o Chief of Staff to the President, para o

Director of Central Intelligence, para o Assistant to the President for National

Security Affairs, e para o Chairman of the Joint Chiefs of Staff, no qual apresentou

suas determinações sobre a aplicação da Convenção de Genebra III ao(s)

conflito(s) em que os Estados Unidos estavam envolvidos, assim como reafirmou

a ordem para o “tratamento humano de prisioneiros da al Qaeda e do Talibã”464

.

Neste memorando, Bush destacou a complexidade das questões legais

envolvidas nas extensas discussões sobre a aplicação da Convenção de Genebra

III ao(s) conflito(s) contra a al Qaeda e a milícia Talibã. Ele destacou que, de

acordo com os próprios termos desta Convenção, tal tratado internacional se

aplicava apenas a conflitos envolvendo as “altas partes contratantes”. Isso

significava que tais tratados internacionais pressupunham a existência de forças

armadas – “regulares” – que lutassem em nome de Estados soberanos465

.

O Presidente dos Estados Unidos, em seguida, contrastou a natureza da

guerra contra o terrorismo à natureza – estado-cêntrica – dos conflitos regulados

pela Convenção de Genebra III, enfatizando que aquele conflito pós 11 de

setembro de 2001 constituía um novo paradigma. Este novo paradigma

demandava um novo entendimento do direito de guerra; um entendimento que, no

entanto, deveria ser consistente com os princípios das Convenções de Genebra466

.

Valendo-se, então, de sua autoridade constitucional como Commander-in-

Chief e como Chefe do Poder Executivo dos Estados Unidos, e baseando-se na

463

GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to

Taliban and al Qaeda”, Op. cit., p.133. 464

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President, the Secretary of State, the Secretary

of Defense, the Attorney General, Chief of Staff to the President, Director of Central Intelligence,

Assitant to the President for National Security Affairs, Chairman of the Joint Chiefs of Staff”

concerning the “Humane Treatment of al Qaeda and Taliban Detainees”, February 07, 2002,

(Memo 11) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.134-135. 465

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President”, Op. cit., p.134. 466

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President”, Op. cit., p.134.

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opinião do Departamento de Justiça – representada no Memo 6, de 22 de janeiro

de 2002 – bem como na opinião jurídica apresentada pelo Attorney General em

sua carta de 01 de fevereiro de 2002 – Memo 9 – George W. Bush determinou:

a. I accept the legal conclusion of the Department of Justice and

determine that none of the provisions of Geneva apply to our conflict with

al Qaeda in Afghanistan or elsewhere throughout the world because,

among other reasons, al Qaeda is not a High Contracting Party to

Geneva.

b. I accept the legal conclusion of the Attorney General and the

Department of Justice that I have the authority under the Constitution to

suspend Geneva as between the United States and Afghanistan, but I

decline to exercise that authority at this time. Accordingly, I determine

that the provisions of Geneva will apply to our present conflict with the

Taliban. I reserve the right to exercise this authority in this or future

conflicts.

c. I also accept the legal conclusion of the Department of Justice and

determine that common Article 3 of Geneva does not apply to either al

Qaeda or Taliban detainees, because, among other reasons, the relevant

conflicts are international in scope and common Article 3 applies only to

“armed conflict not of an international character.”

d. Based on the facts supplied by the Department of Defense and the

recommendation of the Department of Justice, I determine that the

Taliban detainees are unlawful combatants and, therefore, do not qualify

as prisoners of war under Article 4 of Geneva. I note that, because

Geneva does not apply to our conflict with al Qaeda, al Qaeda detainees

also do not qualify as prisoners of war.467

Há inúmeros pontos importantes aqui. Na primeira determinação (a) de

Bush, é importante ressaltar a ênfase dada de que nenhuma das regras das

Convenções de Genebra se aplicava ao conflito contra a al Qaeda, em nenhum

lugar do mundo, ou seja, os membros da al Qaeda estavam, universalmente, fora

do alcance de proteção destas convenções, mas, sobretudo, fora do alcance das

proteções garantidas pelo status de prisioneiro de guerra nos termos da

Convenção de Genebra III.

Nesse sentido, é interessante destacar os termos da quarta determinação (d)

do Presidente, na medida em que seu cerne foi, precisamente, a não qualificação

dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã como prisioneiros de guerra. Note-

se, no entanto, que tais – não – qualificações foram construídas de maneiras

distintas. Com base em “fatos” informados pelo Departamento de Defesa e em

467

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President”, Op. cit., p.134-135.

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recomendações “jurídicas” do Departamento de Justiça468

, os membros da milícia

Talibã foram determinados como “combatentes ilegais” (unlawful combatants), e,

por isso, não qualificados como prisioneiros de guerra nos termos do artigo 4º da

Convenção de Genebra III. Os membros da al Qaeda, por sua vez, simplesmente

foram determinados como não qualificados ao status de prisioneiro de guerra

porque as Convenções de Genebra, conforme aquela primeira determinação (a),

não se aplicavam ao conflito contra esta organização terrorista.

Consequentemente, cumpre sublinhar uma nuance da terceira determinação

(c) de Bush: o plural utilizado para qualificar “os conflitos relevantes” em que os

Estados Unidos estavam envolvidos. Tais conflitos – no plural – eram

internacionais em escopo, e, por isso, ambos, não ensejavam a jurisdição do

artigo 3º comum das Convenções de Genebra, uma vez que este artigo se aplicava

apenas a conflito armado que não tivesse caráter internacional. Por isso, a não

aplicabilidade de tal artigo aos prisioneiros da al Qaeda e do Talibã.

Mas o caráter “internacional” do conflito contra a milícia Talibã era

diferente do caráter “internacional” do conflito contra a al Qaeda, entre outras

razões, porque esta, conforme aquela primeira determinação (a), não era uma “alta

parte contratante” das Convenções de Genebra; ou seja, a al Qaeda não era um

Estado, e nem o governo ou a representação de um ente público e soberano. Daí,

aquele aspecto mais universalista desta determinação (a).

Como Yoo e Delabunty e Bybee já haviam ressaltado, o caso da milícia

Talibã era mais difícil469

, haja vista a relação (legítima ou não, democrática ou

não, mas, inegável) do Talibã com o Estado soberano do Afeganistão. Este não

468

Nesse sentido, vale lembrar que Jay Bybee, o Asssitant Attorney General do Office of Legal

Counsel do Departamento de Justiça, precisamente naquele memorando de 22 de janeiro de 2002

enviado para Alberto Gonzales, Counsel to the President, e para William J. Haynes II, General

Counsel do Departamento de Defesa, havia concluído (e orientado) na subseção “B. Status of

Taliban Prisoners Under Article 4” da parte “IV. Detention Conditions Under Geneva III”: “We

do not have, however, the facts available to advise your Department [of Defense] or the White

House whether the President would have the grounds to apply the law to the facts in this

categorical manner. Some of the facts which would be important to such a decision include:

whether Taliban units followed a recognizable, hierarchical command-and-control structure,

whether they wore distinctive uniforms, whether they operated in the open with their weapons

visible, the tactics and strategies with which they conducted hostilities, and whether they obeyed

the laws of war. If your Department [of Defense] were to conclude that the Afghanistan conflict

demonstrated that the conduct of the Taliban militia has always violated these requirements, you

would be justified in advising the President to determine that all Taliban prisoners are not POWs

under Article 4.” BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes

II”, Op. cit., p.110-111. Ênfase minha. 469

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50; e

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.90.

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apenas era reconhecido como um Estado soberano pela comunidade

internacional, como também era parte das Convenções de Genebra desde

setembro de 1956470

. O Afeganistão, inquestionavelmente, era uma “High

Contracting Party to Geneva”. Daí, a segunda determinação (b) de Bush de que

as regras de Genebra se aplicavam ao conflito com o Talibã. Portanto, o caráter

“internacional” deste conflito era outro; ou melhor, era o próprio, o tradicional

conflito internacional ou interestatal, ou seja, entre Estados-Nações.

Nesses termos, Bush parece ter adotado aquela segunda tese apresentada

(mas contraindicada) pelo Attorney General, John Ashcroft, em sua carta de 01 de

fevereiro de 2002 (Memo 9). De acordo com esta, os Estados Unidos

reconheceriam que o Afeganistão era uma alta parte contratante das Convenções

de Genebra (e que, portanto, não era um Estado falido), e que tais tratados

aplicavam-se ao conflito em questão. Contudo, por não terem cumprido os

requisitos estipulados pelo artigo 4º da Convenção de Genebra III, ou seja, por

terem agido como combatentes ilegais, os membros da milícia Talibã não teriam

direito ao status de prisioneiro de guerra471

. E assim, no que se referia à forma e à

substância do tratamento dos prisioneiros da al Qaeda e do Talibã, os traços

arquitetônicos – político-jurídicos – fundamentais haviam sido determinados por

Bush.

Nos últimos parágrafos de seu memorando, e evocando os valores da nação

norte-americana, Bush solicitou (apenas solicitou; e, não, determinou!) que os

prisioneiros fossem tratados humanamente, incluindo aqueles que (supostamente)

não tivessem o direito a tal tratamento. Nesse sentido, destacou que, como uma

medida política (e, não, de direito), as Forças Armadas dos Estados Unidos

deveriam continuar tratando os prisioneiros humanamente e, dentro do possível,

de acordo com a necessidade militar, numa maneira consistente com os princípios

das Convenções de Genebra472

.

1.2.12

Memorando de 07 de fevereiro de 2002 (Memo 12)

Em 07 de fevereiro de 2002, Jay S. Bybee, Assistant Attorney General do

Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça, enviou um memorando

470

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 471

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 472

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President”, Op. cit., p.135.

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para Alberto R. Gonzales, Counsel do Presidente, em que tratou do “status das

forças Talibã de acordo com o artigo 4º da Terceira Convenção de Genebra de

1949”473

. Tomando como verdadeiros os “fatos” informados pelo Departamento

de Defesa, Bybee concluiu que o Presidente tinha fundamentos jurídicos e provas

factuais suficientes para determinar que todos os membros da milícia Talibã não

tinham direito ao status de prisioneiro de guerra nos termos da Convenção de

Genebra III474

.

O memorando foi estruturado em quatro partes principais. Na primeira,

Bybee tratou de fazer uma introdução geral, explicando os termos relevantes do

artigo 4º desta convenção para a análise do caso em tela. Na segunda parte,

destacou que todos os membros da milícia Talibã – como um grupo – não

cumpriam as quatro condições estabelecidas pelo artigo 4º(A)(2), condições estas

primeiramente estabelecidas pela Convenção de Haia IV de 1907, e, assim, não

tinham direito ao status de prisioneiro de guerra. Na terceira parte, comentou as

outras duas subseções relevantes do artigo 4º, concluindo que estas também

requeriam respeito àquelas quatro condições de Haia para a concessão do status, e

que os membros da milícia Talibã não teriam direito a tal status mesmo que

fossem considerados membros de forças armadas regulares. Na quarta parte,

comentou a autoridade constitucional do Presidente para determinar o status de

combatente ilegal para todos os membros da milícia Talibã475

.

Bybee começou seu memorando explicando que o artigo 4º da Convenção

de Genebra III define as categorias de pessoas que têm direito ao status jurídico

de prisioneiro de guerra quando capturadas pelo inimigo476

. De acordo com ele, as

três referências importantes para aquela discussão eram os artigos 4º(A)(1),

4º(A)(2), e 4º(A)(3). O artigo 4º(A)(1) estabelecia a concessão deste status para os

indivíduos capturados que fossem membros das forças armadas de uma parte do

conflito. O artigo 4º(A)(3) estabelecia a concessão do status para indivíduos que

473

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President” concerning

the “Status of Taliban Forces Under Article 4 of the Third Geneva Convention of 1949”, February

7, 2002, (Memo 12) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.136-143. 474

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.136. 475

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.136-143. 476

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.136.

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fizessem parte de forças armadas regulares leais a autoridade ou governo não

reconhecido pelo Estado detentor. E o 4º(A)(2):

Article 4(A)(2) includes as POWs [prisoners of war] members of “other

militias” and “volunteer corps”, including “organized resistance

movements” that belong to a Party to the conflict. In addition, members

of militias and volunteer corps must “fulfill” four conditions: (a) “being

commanded by a person responsible for his subordinates”; (b) “having a

fixed distinctive sign recognizable at a distance”; (c) “carrying arms

openly”; and (d) “conducting their operations in accordance with the laws

and customs of war.” Those four conditions reflect those required in the

1907 Hague Convention IV.477

De acordo com Bybee, para decidir se os membros da milícia Talibã tinham

ou não direito ao status de prisioneiro de guerra, o Presidente deveria, em

primeiro lugar, decidir se eles se encaixavam em uma dessas três categorias. Ele

destacou que o Presidente tinha poderes constitucionais para interpretar e aplicar

tratados internacionais, assim, poderia determinar que os membros da milícia

Talibã não se encaixavam em nenhuma daquelas categorias e que,

consequentemente, não tinham direito ao status de prisioneiro de guerra478

.

O ponto central de Bybee era o de que, como uma milícia e, portanto, à luz

dos termos do artigo 4º(A)(2), o Talibã não podia receber os benefícios da

proteção desse status jurídico porque não satisfazia, pelo menos, três daquelas

quatro condições de Haia:

As the Taliban have described themselves as a militia, rather than the

armed forces of Afghanistan, we begin with GPW‟s [Geneva Convention

III on Prisoners of War‟s] requirements for militia and volunteer corps

under Article 4(A)(2). Based on the facts presented to us by DoD

[Department of Defense], we believe that the President has the factual

basis on which to conclude that the Taliban militia, as a group, fails to

meet three of the four GPW requirements, and hence are not legally

entitled to POW [Prisoner of War] status.479

Em primeiro lugar, a milícia Talibã não tinha uma estrutura de comando

hierárquica, nem um comandante que se responsabilizasse pelas ações de seus

subordinados. De acordo com o Departamento de Defesa, esta milícia funcionava

mais como um conjunto de diferentes grupos armados, desorganizados, que

477

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.136. 478

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.137. 479

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.137.

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lutavam pelos seus “próprios interesses tribais, locais ou pessoais”480

. Ademais,

quando organizados, tais grupos tinham como referência central a al Qaeda, uma

organização terrorista multinacional que não prestava contas ao e nem dependia

do Estado soberano do Afeganistão481

. Segundo Bybee, a partir dos bombardeios

aéreos dos Estados Unidos, a distinção entre Taliban e al Qaeda teria sido

praticamente extinta, tendo esta última assumido a liderança na organização da

defesa contra as tropas norte-americanas482

.

Em segundo lugar, não havia qualquer indicação de que o Talibã vestia ou

usava qualquer sinal distintivo que fosse reconhecível à distância. Eles se vestiam

como civis. Dessa forma, não era possível distingui-los da população civil, o que

atestava o não cumprimento desta condição imposta pelas Convenções de Haia IV

e de Genebra III483

. Em terceiro lugar, havia o fato de que, apesar de carregarem

suas armas abertamente em público, o que, em tese, estaria de acordo com os

termos do artigo 4º(A)(2), os membros do Talibã não satisfaziam completamente

tal condição, uma vez que, de acordo com Bybee, “muitas pessoas no Afeganistão

carregam armas abertamente”484

; ou seja, os membros da milícia Talibã não se

distinguiam de maneira satisfatória da população civil.

Em quarto e último lugar, não havia indicação alguma de que a milícia

Talibã “entendia, considerava-se vinculada a, ou mesmo tinha conhecimento das

Convenções de Genebra ou de qualquer outro regime de direito”485

. E Bybee

acrescentou:

Taliban militia groups have made little attempt to distinguish between

combatants and non-combatants when engaging in hostilities. They have

killed for racial or religious purposes. Furthermore, DoD [Department of

Defense] informs us of widespread reports of Taliban massacres of

480

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.137. 481

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.137. 482

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.138. 483

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.138. 484

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.138. 485

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.138.

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civilians, raping of women, pillaging of villages, and various other

atrocities that plainly violate the laws of war.486

Nesses termos, e diante dos “fatos” informados pelo Departamento de

Defesa, Bybee concluiu que o Presidente poderia determinar, unilateral e

categoricamente, que a milícia Talibã como um todo, ou seja, como um grupo, era

incapaz de satisfazer as condições de Haia que haviam sido reafirmadas

expressamente no artigo 4º(A)(2) da Convenção de Genebra III487

.

Mas, de acordo com Bybee, mesmo que se tentasse defender a tese de que a

milícia Talibã não era uma milícia, mas, sim, parte das forças armadas regulares

do Afeganistão, mesmo assim, os membros dessa milícia ou exército não teriam

direito ao status de prisioneiro de guerra, pois não se encaixariam nas condições

de Haia e de Genebra488

.

Apesar de não explicitarem essas quatro condições, os artigos 4º(A)(1) e

4º(A)(3) as incorporam nos termos “forças armadas” e “forças armadas regulares”

que utilizam, respectivamente. Citando diferentes fontes acadêmicas e autoridades

sobre o assunto, como o próprio Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Bybee

enfatizou que tais condições de Haia e de Genebra são intrínsecas às definições de

forças armadas e de forças armadas regulares. Dessa forma, mesmo um membro

destas forças regulares não teria direito ao status de prisioneiro de guerra quando

capturado, caso não satisfizesse essas condições489

.

E, assim, concluiu:

We believe that the President, based on the facts supplied by DoD

[Department of Defense], has ample grounds upon which to find that

members of the Taliban have failed to meet three of these four criteria,

regardless of whether they are characterized as members of a “militia” or

of an “armed force”. The President, therefore, may determine that the

Taliban, as a group, are not entitled to POW [Prisoner of War] status

under GPW [Geneva Convention on Prisoners of War].490

486

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.138. 487

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.138-139. 488

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.139-142. 489

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.139-142. 490

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.142.

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Tal determinação afastaria a necessidade de estabelecimento de tribunal

para analisar individualmente, em caso de dúvida, o status de cada prisioneiro, tal

como estabelecido pelo artigo 5º da Convenção. Isso porque, diante de uma

determinação tão ampla – de que “o Talibã, como um grupo”, não teria direito a

tal status ou de que todos os membros do Talibã eram combatentes ilegais491

e,

por isso, não teriam tal direito – aquele problema de “dúvida” seria resolvido

imediatamente492

.

*****

Os memorandos de 07 de fevereiro de 2002, de Jay S. Bybee e de George

W. Bush, de certo modo, concluíram uma “primeira” fase da construção da

arquitetura político-jurídica da guerra contra o terror; fase esta que tinha como um

de seus pontos mais fundamentais a definição do status dos membros da al Qaeda

e da milícia Talibã493

. De modo geral, esses primeiros (doze) memorandos

trataram de quatro questões fundamentais.

Uma das questões foi a dos poderes constitucionais do Presidente, como

chefe do Poder Executivo e Commander-in-Chief, para conduzir operações

militares contra terroristas, bem como para interpretar tratados internacionais e

determinar o status dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã. Esta questão

apareceu, direta ou indiretamente, em praticamente todos os memorandos

comentados aqui. Mais especificamente, ela foi o objeto central daquele

memorando enviado por John C. Yoo em 25 de setembro de 2001 (Memo 1), e

uma parte importante dos comentários de John Yoo e Robert Delabunty, no

491

“The president, in other words, may use his constitutional power to interpret treaties and apply

them to the facts, to make the determination that the Taliban are unlawful combatants. This would

remove any „doubt‟ concerning whether members of the Taliban are entitled to POW status.”

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.143. 492

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,

p.142-143. 493

Depois desses primeiros (doze) memorandos, os demais se voltaram quase que exclusivamente

para a questão mais específica (mas não menos importante) das técnicas, estratégias e métodos de

interrogatório dos prisioneiros de Guantanamo Bay e, depois, de Abu Ghraib. Esta “segunda”

parte dos memorandos tem como principal objeto o que foi chamado ali de “técnicas de contra-

resistência”. Como se destacou anteriormente, este “segundo” momento dos memorandos não é

objeto deste estudo de doutorado. Aqui, enfoca-se, exclusivamente, os primeiros (doze)

memorandos, sobretudo aqueles que trataram da definição do status dos membros da al Qaeda e

da milícia Talibã, bem como da aplicação ou não das Convenções de Genebra a estes indivíduos.

De modo geral, ver (todos) os memorandos em: Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers,

Op. cit., p.3-380; e especialmente p.144-380 (para os memorandos restantes, Memos 13-28).

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126

memorando de 09 de janeiro de 2002 (Memo 4), e de Jay S. Bybee, nos

memorandos de 22 de janeiro de 2002 (Memo 6) e de 07 de fevereiro de 2002

(Memo 12).

Uma segunda questão fundamental foi a da jurisdição em relação à base

naval norte-americana em Guantanamo Bay, Cuba, local em que os membros da

al Qaeda e da milícia Talibã capturados durante o conflito no Afeganistão seriam

detidos – indefinidamente. Esta questão foi o principal objeto do memorando de

Patrick Philbin e John Yoo de 28 de dezembro de 2001 (Memo 3), em que estes

analisaram se havia possibilidade de que cortes distritais federais norte-

americanas afirmassem e exercessem jurisdição sobre petições de habeas corpus

impetradas em nome de um daqueles prisioneiros. Como Philbin e Yoo

enfatizaram neste memorando, o “espaço-tempo” excepcional de Guantanamo era

fundamental para a arquitetura político-jurídica e, assim, para a consecução da

guerra contra o terror.

A terceira questão foi a da responsabilização criminal de indivíduos por

crimes de guerra. De um lado, os Estados Unidos pretendiam, por meio de

tribunais militares instaurados em Guantanamo Bay, julgar e responsabilizar

criminalmente os prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã por eventuais

crimes de guerra que tivessem cometido durante o conflito. De outro lado, o

governo norte-americano pretendia imunizar soldados e oficiais norte-americanos

contra possíveis tentativas de responsabilizá-los, doméstica e/ou

internacionalmente, por crimes de guerra que (alegadamente) tivessem sido

cometidos por eles contra tais prisioneiros. Esta foi uma questão comentada em

diferentes memorandos, mas, particularmente, no de Philbin e Yoo de 28 de

dezembro de 2001 (Memo 3), no de Yoo e Delabunty de 09 de janeiro de 2002

(Memo 4) e no de Jay S. Bybee de 22 de janeiro de 2002 (Memo 6). E foi uma das

questões centrais da Ordem Militar dada por George W. Bush em 13 de novembro

de 2001 (Memo 2).

Finalmente, a quarta questão fundamental foi a da aplicação de tratados

internacionais e leis norte-americanas aos membros da al Qaeda e da milícia

Talibã presos em Guantanamo Bay, tema indissociável da discussão sobre o status

de tais indivíduos à luz do direito internacional e, mais especificamente, das

Convenções de Genebra. Esta era uma questão intrínseca a todos os memorandos

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127

comentados anteriormente; pode-se dizer, inclusive, que era a questão central de

todos eles.

Não por acaso, ela ter sido objeto principal dos três memorandos mais

longos e tecnicamente mais importantes enviados pelo Office of the Legal Counsel

do Departamento de justiça, o de Yoo e Delabunty de 09 de janeiro de 2002

(Memo 4) e os de Jay S. Bybee de 22 de janeiro de 2002 (Memo 6) e de 07 de

fevereiro de 2002 (Memo 12). Também foi o objeto central do memorando do

Secretário de Defesa de 19 de janeiro de 2002 (Memo 5), do memorando de

Alberto Gonzales de 25 de janeiro de 2002 (Memo 7), do memorando de Colin

Powell de 26 de janeiro de 2002 (Memo 8), e do de William Taft de 02 de

fevereiro de 2002 (Memo 10). Este assunto foi um dos pontos mais importantes da

carta de John Ashcroft de 01 de fevereiro de 2002 (Memo 9). E, de maneira ainda

mais importante, foi o cerne das principais determinações de George W. Bush de

07 de fevereiro de 2002 (Memo 11).

Ademais, tendo em vista a questão do status dos membros da al Qaeda e da

milícia Talibã, discutiu-se também a condição de falência do Estado soberano

Afeganistão, e, a partir desta condição, o status deste como uma das “altas partes

contratantes” das Convenções de Genebra. Comentou-se também a natureza

particular do conflito: de caráter “internacional”, mas envolvendo, de um lado,

um Estado soberano (os Estados Unidos) e, de outro, uma organização terrorista

“não estatal” – e, assim, “não pública” – (a al Qaeda e, com importantes

qualificações, a milícia Talibã).

Desde o primeiro memorando, a “identidade” dos membros da al Qaeda e

da milícia Talibã capturados pelas Forças Armadas norte-americanas e detidos em

Guantanamo Bay vinha sendo associada a, identificada com, e/ou construída por

meio de diferentes nomes, adjetivos e categorias, como “terrorista”494

,

“estrangeiro”495

, “estrangeiro inimigo”496

, “não cidadão”497

, “não estatal”498

,

“criminoso”499

, “irregular”500

e, é claro, “combatente ilegal”501

.

494

YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan” (Memo 1), Op. cit., p.3. 495

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense” (Memo 3), Op. cit., p.29. 496

PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General

Counsel, Department of Defense” (Memo 3), Op. cit., p.36. 497

BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001” (Memo 2), Op. cit., p.25.

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128

De um lado, e sem hesitação, os membros da al Qaeda foram determinados

fora do alcance das Convenções de Genebra porque faziam parte de uma

“organização terrorista”502

, de um “ator não estatal”503

, de uma “força armada

irregular”504

, e porque, desse modo, não eram e nem poderiam ser uma das “altas

partes contratantes” destes tratados internacionais505

. Além disso, eles não tinham

direito ao status jurídico de prisioneiro de guerra porque haviam adotado

“condutas beligerantes ilegais” (unlawful warfare)506

.

De outro lado, com certa hesitação e mediante importantes qualificações,

determinou-se que os membros da milícia Talibã não tinham direito ao status de

prisioneiro de guerra, entre outros motivos, pois não haviam adotado “condutas

beligerantes legais” (lawful warfare)507

, tinham certas “características de gangues

criminosas”508

e lutavam por “seus próprios interesses tribais, locais, pessoais”509

,

e porque tinham vínculo (quase) umbilical ou até mesmo se confundiam com a al

Qaeda, uma “organização terrorista multinacional” totalmente desvinculada e fora

do controle do Estado soberano afegão510

.

498

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.

cit., p.38; e BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”

(Memo 6), Op. cit., p.81. 499

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6),

Op. cit., p.98. 500

GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President” (Memo 7), Op. cit., p.121. 501

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President” (Memo 9), Op. cit., p.127; BUSH, George

W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.135; e BYBEE, Jay S.,

“Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President” (Memo 12), Op. cit., p.139. 502

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.

cit., p.38. 503

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.

cit., p.38; BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”

(Memo 6), Op. cit., p.81; e BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11),

Op. cit., p.135. 504

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6),

Op. cit., p.81. 505

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.

cit., p.38; BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”

(Memo 6), Op. cit., p.81 506

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.

cit., p.38; e BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”

(Memo 6), Op. cit., p.81. 507

YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.

cit., p.50; e BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”

(Memo 6), Op. cit., p.110-111. 508

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6),

Op. cit., p.98. 509

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President” (Memo 12),

Op. cit., p.137. 510

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President” (Memo 12),

Op. cit., p.137.

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Influenciado por tais termos, e baseando-se mais especificamente no

memorando de Jay Bybee de 22 de janeiro de 2002511

e na carta de John Ashcroft

de 01 de fevereiro de 2002512

, o Presidente George W. Bush, em seu memorando

de 07 de fevereiro de 2002, determinou que os membros da milícia Talibã eram

“combatentes ilegais” e que, por isso, não tinham direito ao status jurídico de

prisioneiro de guerra513

.

O Presidente Bush não precisou determinar o mesmo para os membros da al

Qaeda porque estes já estavam fora do alcance das Convenções de Genebra desde

o início; era óbvio que estes indivíduos não eram combatentes legais. Afinal, a

guerra contra o terrorismo deveria ser entendida em oposição à tradicional

concepção de conflito armado internacional, ou seja, em oposição à concepção de

conflito entre forças armadas regulares, exércitos, representando Estados-Nações

soberanos514

; ela requeria um novo paradigma para (re)entender o direito da

guerra515

.

Daí, a simples constatação lógica de que os membros da al Qaeda, os

“terroristas não estatais e multinacionais”, não tinham direito ao status de

prisioneiro de guerra516

. E assim, arquitetonicamente fora da proteção das

Convenções de Genebra, eles eram, arquitetônica e naturalmente, “combatentes

ilegais” e vice-versa.

De acordo com os memorandos, sobretudo com os memorandos dos

advogados do Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça,

especialmente o de Yoo e Delabunty de 09 de janeiro de 2002 e os de Bybee de

22 de janeiro e 07 de fevereiro de 2002, a categoria de “combatente ilegal” estava

fundamentalmente associada às quatro condições de “beligerância legal” (lawful

warfare)517

estabelecidas, originalmente, pela Convenção de Haia IV de 1907, e

511

BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6),

Op. cit. 512

ASHCROFT, John, “Memorandum to the President” (Memo 9), Op. cit., p. 513

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.135. 514

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.134. 515

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.134. 516

BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.135. 517

Estas quatro condições são: (i) ser comandada por uma pessoa responsável por seus

subordinados; (ii) usar distintivo fixo reconhecível à distância; (iii) carregar armas abertamente; e

(iv) respeitar as leis e costumes da guerra. BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R.

Gonzales, Counsel to the President” (Memo 12), Op. cit., p.136.

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130

reafirmadas expressamente no artigo 4º(A)(2) da Convenção de Genebra III de

1949518

.

Não tendo respeitado tais condições, um indivíduo que tivesse participado

de conflito armado, quando capturado pelas forças inimigas, não teria direito ao

status jurídico de prisioneiro de guerra, mesmo que fizesse parte de uma força

armada regular519

. Estruturalmente, portanto, os membros da al Qaeda não

tinham direito a tal status, uma vez que pertenciam a uma organização terrorista

transnacional que, dadas suas condutas, natureza e propósito, não satisfazia tais

condições mínimas de “beligerância legal” (lawful warfare). Assim, os membros

da al Qaeda eram combatentes ilegais por definição.

Já os membros da milícia Talibã não necessariamente eram combatentes

ilegais. Nos termos do artigo 4º(A)(2), membros de milícias, ou seja, de forças

armadas irregulares, também poderiam ser protegidos pelo status jurídico de

prisioneiro de guerra, mas desde que satisfizessem as quatro condições de

“beligerância legal” (lawful warfare). Daí, a importância (e, quiçá, necessidade)

da determinação do Presidente Bush, de que os membros da milícia Talibã eram

combatentes ilegais, para a consecução da guerra dos Estados Unidos contra o

terror.

Como combatentes ilegais, os membros da al Qaeda e da milícia Talibã não

apenas seriam colocados e mantidos num “lugar” – geográfico e político-

jurisdicional – bastante incomum, Guantanamo Bay, como também ocupariam um

“espaço-tempo” bastante particular na arquitetura político-jurídica, e histórico-

teórica, internacional.

Na próxima parte deste capítulo, e a partir de alguns rastros inscritos nesses

memorandos e em outros textos conexos, seguem-se os rastros de algumas

“alteridades”, de algumas categorias ausentes em tais memorandos, mas que, no

entanto, mesmo que invisivelmente, como espectros ou rastros de rastros, faziam-

se presentes ali como um traço arquitetônico – histórico-teórico – constitutivo,

mas ocultado ou esquecido, daquela alegada “origem” das condições mínimas de

518

Ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”

(Memo 12), Op. cit., p.136. Ver também: YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for

William J. Haynes II” (Memo 4), Op. cit., p.48-50, 61-62; e BYBEE, Jay S., “Memorandum for

Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6), Op. cit., p.89-90, 107-111. 519

Ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”

(Memo 12), Op. cit., p.136-142.

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“beligerância legal” (lawful warfare). Esses rastros parecem ser fundamentais

para que se possa (re)entender, (re)pensar, e questionar, a “identidade” e o

“espaço-tempo” particulares do “combatente ilegal” naquela arquitetura

internacional.

1.3

O Rastro do Pirata

A determinação do status dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã

como “combatentes ilegais” foi fundamental para a arquitetura político-jurídica e

consecução da guerra contra o terror. De um lado, autorizou a não aplicação das

proteções das leis norte-americanas e do direito internacional, mais

especificamente das Convenções de Genebra, a estes prisioneiros; e, de outro,

autorizou a detenção indefinida de tais indivíduos, bem como a jurisdição de

tribunais militares norte-americanos para julgá-los e puni-los por crimes de

guerra.

Como se pôde observar na leitura dos memorandos, a construção dessa

determinação envolveu, entre outras medidas, a mobilização de diferentes

categorias, interpretações, e pares binários como paz/guerra, guerra/crime,

guerra/terrorismo, (guerra) internacional/civil, estatal/não estatal, público/privado,

(força armada) regular/irregular, exército/milícia, soldado/terrorista, (Estado)

soberano/falido, internacional/doméstico, dentro/fora (do alcance das Convenções

de Genebra), cidadão/estrangeiro, (combatente) legal/ilegal, entre outros.

A “identidade” e o “espaço-tempo” (im)próprios do “combatente ilegal” na

arquitetura político-jurídica da guerra contra o terror foram constituídos nessa

trama de nomes, significantes e significados. Conforme se pôde verificar nos

memorandos, o status dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã não eram um

dado soberano, natural, autoidêntico a si e absolutamente independente de outros

termos, status e categorias. Este status foi debatido, comentado, interpretado,

determinado, e, assim, construído.

Ao mesmo tempo, esta construção não se deu no vácuo, num “espaço-

tempo” qualquer ou independente de tudo e de todos. Esta construção, igualmente,

não foi autoidêntica a si mesma e absolutamente independente de outros termos,

categorias, linguagens e construções. Os diferentes nomes, categorias, definições,

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132

significantes e significados mobilizados naqueles memorandos não pertenciam

apenas àquela arquitetura ou linguagem específica da guerra norte-americana

contra o terror, mas também a outras arquiteturas e linguagens, como o direito

norte-americano e o direito internacional.

A trama de nomes, categorias e significantes arquitetada nesses

memorandos foi construída por meio, e sempre dentro, da linguagem. Mais

especificamente, ela foi arquitetada por meio, e dentro, da linguagem do direito

norte-americano e, sobretudo, da linguagem mais técnica do direito internacional.

Neste trabalho de doutorado, enfoca-se, exclusivamente, a relação daquela

arquitetura político-jurídica da guerra contra o terror construída por meio daqueles

memorandos e esta linguagem mais específica do direito internacional.

A leitura desta relação, como se comentou na Introdução deste trabalho, é

influenciada pela concepção de linguagem, ou de texto, de Jacques Derrida. Como

ele destacou em a Gramatologia, não há nada fora do texto. E neste texto geral é o

jogo da diferença, ou différance, que estrutura o “significado” e que constrói a

“identidade” de um “significante”. Assim, a “identidade” é o resultado do jogo,

tramado, de suas “alteridades”, que, no entanto, são constitutivas daquela520

.

Nesta trama de diferenças e espaçamentos, ou, para usar os termos de Rafael

Haddock-Lobo, neste “labirinto de inscrições”521

, o que há são significantes e

significantes de significantes. Não há identidade soberana que seja absoluta e

idêntica a si mesma, nem, portanto, significado transcendental. O significado é

constituído no jogo e entre os espaçamentos dos diferentes significantes. No texto

de Derrida, o que há é uma cadeia de remetimentos em que um significante se

remete a outro, que se remete a outro, sem que haja um ponto de referência último

ou primeiro, sem que haja uma fundação última ou um significado original. O que

há são rastros, e rastros de rastros.

O “quase-conceito” de rastro de Derrida (comentado na Introdução desta

tese) serve aqui como fonte de inspiração para questionar a “identidade” e o

“espaço-tempo” (im)próprio do “combatente ilegal”, tal como este foi construído

e determinado naqueles memorandos. Dessa forma, pretende-se seguir o rastro da

relação entre o texto mais específico da arquitetura desenhada por estes

520

Nesse sentido, ver: DERRIDA, Jacques. Of Grammatology. Baltimore: The Johns Hopkins

University Press, 1997. 521

HADDOCK-LOBO, Rafael. Derrida e o Labirinto de Inscrições. Op. cit.

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133

memorandos e o texto mais geral da arquitetura do direito internacional,

enfocando-se, mais precisamente, no ponto “original” evocado e mobilizado pelos

arquitetos político-jurídicos norte-americanos para fundamentar a discriminação

entre “combatentes legais” e “combatentes ilegais”.

Como se comentou anteriormente, a definição do status dos membros da al

Qaeda e da milícia Talibã como “combatentes ilegais” baseou-se no não

cumprimento por parte destes daquelas quatro condições mínimas de

“beligerância legal” (lawful warfare) estabelecidas pelo artigo 4º(A)(2) da

Convenção de Genebra III de 1949. E como se evocou naqueles memorandos,

para fundamentar aquela discriminação, tais condições haviam sido estabelecidas,

originalmente, pela Convenção de Haia IV de 1907.

Assim, apesar de estruturarem a análise da aplicação de tratados

internacionais àqueles prisioneiros em torno, sobretudo, das Convenções de

Genebra, e mais especificamente da Convenção de Genebra III, os arquitetos

político-jurídicos norte-americanos recorreram, em última instância, a esta

Convenção de Haia para fundamentar esta definição. Esta, portanto, era a origem

do adjetivo “ilegal” que qualificou substancialmente os combatentes da al Qaeda

e da milícia Talibã, e, assim, determinou o “espaço-tempo” (im)próprio destes

indivíduos nas arquiteturas político-jurídicas norte-americanas da guerra contra o

terror e do direito internacional. Evocando esta “origem”, os memorandos

(re)afirmaram a estrutura dicotômica baseada no par binário “combatente

legal”/“combatente ilegal”, autorizando, assim, esta determinação de status, bem

como aquele “espaço-tempo” (im)próprio. Mas será que esta origem é tão original

e absoluta assim?

O propósito de tal questionamento não é o de questionar se, de fato e/ou de

direito, a Convenção de Haia IV foi o primeiro tratado internacional a estabelecer

aquelas condições de “beligerância legal” (lawful warfare) e, com elas, a regra

internacional que autoriza a discriminação entre “combatentes legais” e

“combatentes ilegais”; mas, sim, o de questionar a “identidade”, a “original-

idade”, desta origem. Noutras palavras, o propósito aqui é enfocar a construção

histórico-teórica desta regra internacional, e, portanto, daquela origem, destacando

certas alteridades histórico-teóricas constitutivas daquelas categorias de

combatentes.

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134

1.3.1

Uma Regra que veio do Direito Internacional do Mar

Em seu livro sobre o direito de conflitos armados internacionais, Yoram

Dinstein comenta, na primeira parte, sobre “combatentes e civis”, do capítulo

sobre “combate legal” (lawful combatancy), que “um civil pode se converter em

combatente”, mas que “uma pessoa não pode (e não é permitida a) ser os dois, um

combatente e um civil, ao mesmo tempo, e nem pode constantemente passar de

um status ao outro”522

. Ele conclui: “[s]eja na terra, no mar ou no ar, uma pessoa

não pode combater o inimigo e continuar um civil”523

.

Mais importante para os propósitos deste trabalho, o autor comenta que

“[i]nteressantemente, esta norma geral primeiro se cristalizou no direito de guerra

do mar [law of sea warfare]”524

, com a Declaração de Paris de 1856 que, em seu

artigo 1, abole a prática de “privateering”525

. Dinstein leciona:

Privateers were private persons (at times known as corsairs, not to be

confused with pirates) who obtained official letters of marque from a

Government, allowing them to attack enemy merchant vessels. As the

language of the Declaration of Paris indicates, it merely confirms the

abolition of privateering as „an already established situation‟ under

customary international law. The law of land (and air) warfare ultimately

adjusted to proscribe parallel modes of behaviour.526

(ênfases minhas)

Como o autor explica, o “privateer” (ou “corsário”) era uma pessoa privada

que obtinha do governo uma “letter of marque”, ou seja, uma autorização, que lhe

permitia atacar uma embarcação mercante inimiga durante um conflito armado. É

importante notar que há aqui uma relação entre o público (o governo) e o privado

(a pessoa privada) que, uma vez mediada por uma “letter of marque”, autoriza o

agente privado, agora “privateer”, a atacar uma embarcação mercante inimiga.

Com tal autorização pública, a pessoa privada se transforma num “combatente

privado com procuração pública”527

. Assim, a figura do “privateer” representa

522

DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities under the Law of International Armed

Conflict. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.28. 523

DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28. 524

DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28. 525

DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28. Nesse sentido, ver: 1856 Paris

Declaration Respecting Maritime Law, in ROBERTS, Adam and GUELFF, Richard (Ed.).

Documents on the Laws of War (3rd

Edition). Oxford: Oxford University Press, 2000, p.47-52. 526

DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28. 527

Este é um termo que estou introduzindo para fins didáticos e ilustrativos.

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135

precisamente aquela situação de confusão entre a condição de “soldado” e a de

“civil” que é comentada (criticamente) por Yoram Dinstein.

A abolição do “privateering”, portanto, liquida esta figura intermediária528

entre o público e o privado, entre um combatente estritamente público, o soldado,

e um não combatente estritamente privado, o civil. Afinal, o “privateer”, munido

de sua autorização governamental (“letter of marque”), ou seja, constituindo-se

por meio de uma relação fundamental com o poder público, posicionava-se entre

esses extremos.

Note-se, também, a observação de Yoram Dinstein de que a figura do

privateer ou corsário não deve ou não pode ser confundida com a do pirata.

(Como será comentada a seguir, esta diferenciação parece ser importante para

(re)entender e questionar a construção, a “identidade” e o “espaço-tempo”

(im)próprio do “combatente ilegal” naquelas arquiteturas norte-americanas da

guerra contra o terror e do direito internacional).

Nesse contexto, cumpre salientar que aquelas observações iniciais de Yoram

Dinstein apontam para a suposta origem histórico-conceitual da diferenciação

entre combatentes legais (lawful combatants) e combatentes ilegais (unlawful

combatants)529

, diferenciação esta que, como destacado anteriormente, foi

fundamental para a definição do status dos membros da al Qaeda e da milícia

Talibã, e, consequentemente, para a conclusão de que estes indivíduos estavam

fora do alcance de proteção internacional das Convenções de Genebra530

.

Vale reiterar que esta diferenciação está diretamente associada à “origem”

daquelas condições de “combate legal” (lawful combatancy) reafirmadas no artigo

4º(A)(2) da Convenção de Genebra III, ou seja, ela está relacionada,

originalmente, à Convenção de Haia IV.

Este tratado internacional, celebrado em 1907, trata das “Leis e Costumes da

Guerra na Terra”531

, e o artigo 1º de seu Anexo estende a aplicação das “leis,

528

Aqui faço referência, proposital, ao termo (“Intermediate”) que Carl Schmitt utiliza no subtítulo

de seu livro sobre o “partisan”. Ver: SCHMITT, Carl. Theory of the Partisan: Intermediate

Commentary on the Concept of the Political. (Translated by G. L. Ulmen). New York: Telos

Press Publishing, 2007. Voltaremos a este ponto mais adiante. 529

Sobre a diferenciação entre combatentes legais e ilegais, ver: DINSTEIN, Yoram. The

Conduct of Hostilities, Op. cit., p.29-33. 530

Nesse sentido, ver: DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.33-54. 531

“Convention (IV) Respecting the Laws and Customs of War on Land”, in SCOTT, James

Brown. The Reports to the Hague Conferences of 1899 and 1907. Oxford: Clarendon Press,

1917, p.509-532.

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direitos, e deveres de guerra”, para além dos exércitos, a milícias e corpos

voluntários, sob a condição de que estes satisfaçam aquelas quatro condições532

.

Este ponto também é sugerido por Yoram Dinstein, quando este destaca a

abolição do “privateering” e a relação desta com a emergência da regra do direito

internacional de guerra que proíbe a confusão entre ou concomitância do status de

soldado e do status de civil. Como ele destaca, esta é uma regra internacional

estabelecida no regime do direito de guerra no mar.

Segundo Dinstein, aboliu-se aquela figura intermediária que existia entre o

exclusivamente público (o soldado combatente) e exclusivamente privado (o civil

não combatente) e, assim, se estruturaram – e se normalizaram – os dualismos

soldado/civil e combatente/não combatente; primeiro, no direito internacional de

guerra no mar, com a Declaração de Paris de 1856, e, só então, a “lei de guerra na

terra (e no ar) acabou se ajustando e proscrevendo modos semelhantes de

comportamento”533

. A Convenção de Haia IV pode ter positivado aquelas

condições, mas foi a Declaração de Paris que, antes, constituiu a possibilidade de

diferenciar civis de combatentes, e combatentes legais de combatentes ilegais.

Este é um rastro da relação entre terra e mar, ou, mais precisamente, entre uma

regra internacional que veio do direito de guerra no mar e se consolidou no direito

dos conflitos armados na terra.

Assim, as discussões sobre combatentes legais e combatentes ilegais (bem

como sobre forças regulares e irregulares), que são discussões diretamente

relacionadas às condições estabelecidas no artigo 1º do Anexo à Convenção de

Haia IV de 1907 sobre as leis e costumes de guerra na terra, devem ser ampliadas

de modo a incorporar as diferenciações de status e categorias relacionadas ao

direito internacional do mar, em geral, e dos direitos e costumes de guerra no mar,

em particular. Desse modo, parece importante (e prudente) repensar o dualismo

532

“Article 1. The laws, rights, and duties of war apply not only to armies, but also to militia and

volunteer corps fulfilling the following conditions: 1. That they be commanded by a person

responsible for his subordinates; 2. That they have a fixed distinctive emblem recognizable at a

distance; 3. That they carry arms openly; and 4. That they conduct their operations in accordance

with the laws and customs of war. In countries where militia or volunteer corps constitute the

army, or form part of it, they are included under the denomination „army‟.” Annex to the

Convention, Regulations Respecting the Laws and Customs of War on Land, Section I – On

Belligerents, Chapter I – The Qualifications of Belligerents, in SCOTT, J. B. The Reports to the

Hague Conferences, Op. cit., p.512. 533

DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28.

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“combatente legal”/“combatente ilegal” tanto em relação à categoria do

“privateer” como também em relação à categoria do “pirata”.

Nesse sentido, importante ressaltar a preocupação com um possível retorno

da prática de “privateering” durante a Conferência de Haia de 1907, no âmbito,

por exemplo, das negociações da Convenção (VII) sobre a “Conversão de Navios

Mercantes em Navios de Guerra”, que tratavam precisamente da possível

transformação de um agente privado-comercial em um agente público-militar534

.

Comentando o artigo 1º535

desta Convenção (VII), o Relator da Comissão

responsável por tais negociações, Mr. Henri Fromageot, destacou que tal artigo

estabelecia um princípio que deveria ser entendido como um corolário da

Declaração de Paris de 1856, uma vez que seu objetivo era dar toda a garantia

contra um retorno da prática de privateering. O princípio-corolário era o de que

“[t]oda embarcação alegando ser beligerante em caráter deve ser colocada sob a

autoridade, controle direto, e responsabilidade do Estado cuja bandeira ela

carrega”536

.

1.3.2

Aquele que praticava Violência Individual Extraterritorial Privada e

não Estatal

Este princípio-corolário explicitava a centralidade do Estado soberano na

ordem político-jurídica internacional, ou, dito de outro modo, expressava a

concentração da autoridade do Estado no que se referia à exclusividade do uso

legítimo – e legal – da força nas relações internacionais. Combatentes legítimos –

e legais – passaram a ser, necessariamente, aqueles que estão sob “a autoridade,

controle direto, e responsabilidade do Estado [soberano]”. Esta é uma leitura que

parece estar de acordo, por exemplo, com a tese de Janice E. Thomson em seu

livro sobre mercenários, piratas e soberanos537

.

534

SCOTT, J. B.. The Reports to the Hague Conferences, Op. cit., p.590-598. 535

“Article 1. A merchant ship converted into a war-ship cannot have the rights and duties

accruing to such vessels unless it is placed under the direct authority, immediate control, and

responsibility of the State whose flag it flies.” General Report to the Conference upon the work of

the Fourth Commission (Reporter, Mr. Henri Fromageot) in SCOTT, J. B. The Reports to the

Hague Conferences, Op. cit., p.597. 536

General Report to the Conference upon the work of the Fourth Commission (Reporter, Mr.

Henri Fromageot) in SCOTT, J. B. The Reports to the Hague Conferences, Op. cit., p.597. 537

THOMSON, Janice E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns: State-Building and

Extraterritorial Violence in Early Modern Europe. Princeton: Princeton University Press,

1994.

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Nesta obra, a autora tem como objetos principais a soberania e a construção

do Estado. Portanto, é preciso fazer a observação de que seu estudo sobre

mercenários, privateers e piratas é condicionado por um interesse anterior nas

relações desses “agentes” com o soberano, o qual, por meio do uso estratégico e

seletivo da violência extraterritorial, exercia, monopolizava e, assim, autoafirmava

e constituía sua própria autoridade e soberania.

Para Thomson, os soberanos construíram os Estados valendo-se, de um

lado, do uso de mercenários e privateers e, de outro lado, da punição seletiva de

alguns piratas, quando seus interesses demandavam. Ademais, houve um esforço

do Estado no sentido de expandir e exercer seu controle sobre os indivíduos

dentro de seu território, na tentativa de obter “a autoridade exclusiva para formar

um exército e usar violência contra outros Estados”538

.

De acordo com a autora, havia uma relação íntima entre o Estado, o

soberano e a exploração da violência individual extraterritorial, que podia ser

verificada, por exemplo, nos casos do uso de privateers e da punição seletiva de

piratas. Dessa forma, a busca por autoridade exclusiva para usar violência

internacionalmente envolveu também a eliminação dessas formas – privadas – de

violência extraterritorial. Isso significou a definição e supressão da pirataria539

e a

eliminação do privateering.

Para Thomson, a consolidação do Estado soberano moderno (tal como o

imaginamos à luz da tradicional concepção weberiana) e, assim, também a do

sistema de Estados soberanos (tal como o imaginamos à luz da tradicional

concepção realista de relações internacionais) envolveram não apenas a

concentração do controle sobre os indivíduos dentro de uma jurisdição territorial e

o monopólio da autoridade para formar um exército e usar a força contra outros

Estados, mas também a eliminação e/ou o controle de diferentes formas de

violência individual extraterritorial (pirataria, privateering, filibustering) por parte

do Estado soberano, e do sistema de Estados540

.

538

THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.142. Nesse contexto, a

autora está se referindo ao caso norte-americano em relação ao filibustering. De acordo com

Thomson, “[t]he defining characteristic of nineteenth-century filibustering was that individuals

from one sovereign state conducted warlike operations against a second sovereign state with which

the first state was at peace.” THOMSON, J. E., Op. cit., p.141. 539

THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.140. 540

THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.142.

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Nesse contexto, portanto, aquele princípio-corolário estabelecido pelo artigo

1º da Convenção de Haia (VII) sobre a “Conversão de Navios Mercantes em

Navios de Guerra” deve ser entendido também como o princípio-corolário ou um

traço fundamental de uma ordem que se consolidou com e sob “a autoridade,

controle direto, e responsabilidade do Estado [soberano]”. Como se comentou,

este é um corolário da Declaração de Paris de 1856, um princípio que busca

garantir que não haja um retorno da prática de privateering.

Aqui, é importante destacar dois aspectos da leitura de Janice Thomson

sobre piratas e privateers. Primeiro, ela parece reconhecer que, tecnicamente, a

categoria de “pirata” é diferente da categoria de “privateer” (lembre-se da

advertência feita por Yoram Dinstein sobre esta diferença conceitual). Segundo, e

talvez por causa dos propósitos e objetos de seu estudo e de sua perspectiva

teórica, ela parece relegar esta “tecnicalidade” a um segundo plano, concentrando-

se no “fato”, “empiria” ou “realidade” histórica de que, na prática, os piratas e os

privateers eram praticamente a mesma coisa, praticamente indistinguíveis. Para

ela, o privateer era uma espécie de pirata, ou, de fato, era um pirata (os privateers

da Rainha Elizabeth corroboravam tal entendimento).

Para a autora, a única diferença entre eles era a de que o privateer tinha

posse de uma “comissão de privateering” (uma “letter of marque”), enquanto o

pirata não a tinha. Mas o ponto fundamental era precisamente o de que esta

“comissão” pública poderia ser concedida pelo soberano a qualquer pirata,

transformando-o, imediata e convenientemente, num privateer. No sentido

contrário, o soberano também poderia julgar que um privateer não era

propriamente comissionado e, assim, condená-lo como um pirata. Daí, a confusão

entre o público e o privado, o Estado e o indivíduo, e o problema político-jurídico

da instrumentalização e exploração do uso da violência individual extraterritorial.

Como a autora comenta, “enquanto os Estados insistissem no direito de

explorar a violência individual, a pirataria não poderia nem mesmo ser definida,

muito menos suprimida”541

. E sem definir a pirataria não seria possível definir e

diferenciar a prática do privateering, e, consequentemente, nem suprimir a

primeira, nem abolir a segunda. Nesse sentido, vale destacar a importante

conclusão de Janice Thomson:

541

THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.140.

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140

Only with this delegitimation of state-sponsored individual violence on the

high seas was it possible to clearly distinguish piracy from privateering and

criminal acts from acts of war. Only then did it become possible to develop

an international norm against piracy and to suppress it. Only then could

pirates be defined as stateless persons for whose actions no state could be

held responsible but any state could prosecute. Only with the

universalization of the metanorm against individual violence on the high

seas were the areas of the globe not subject to sovereignty converted from a

state of nature into a realm of orderly interstate relations.542

De um ponto de vista mais amplo e estrutural, é importante notar a relação

entre, de um lado, a “deslegitimação da violência individual patrocinada pelo

Estado” e a “universalização da metanorma contra a violência individual” no alto-

mar e, de outro, a conversão “das áreas do globo não sujeitas à soberania” de um

“estado de natureza” para um estado de “relações interestatais ordenadas”. Houve,

portanto, a imposição da ordem internacional territorial, ou a partir da terra, sobre

o alto-mar, ou seja, sobre a área do globo fora da jurisdição territorial do Estado

soberano e, assim, fora da “jurisdição territorial coletiva” do sistema de Estados.

Um dos pontos centrais da tese de Thomson é o de que este processo de

ordenamento envolveu a (ou dependeu da) “deslegitimação da violência

individual patrocinada pelo Estado no alto-mar”. Tal violência era patrocinada

pelo Estado de duas maneiras: positivamente no caso do privateer, na medida em

que a ele era conferida uma “letter of marque”, e negativamente no caso do pirata,

na medida em que esta “letter of marque” era negada ou ausente. Assim, de um

ponto de vista mais específico, “individualista” e conceitual, este processo de

ordenamento envolveu a definição de – e, assim, a diferenciação entre – “pirata” e

“privateer”; e com estas definições e diferenciações, a distinção entre “atos

criminosos” e “atos de guerra”.

Aqui, é importante destacar que esta inter-relação – como condição de

possibilidade para a diferenciação – entre a definição de “pirata” e a definição de

“privateer”. Isso porque para a definição e subsequente abolição do privateering

era necessária a definição da pirataria. Ademais, vale realçar, o problema da

confusão entre o publico e o privado, entre a condição de privado-comerciante e

público-militar, entre o status de soldado e o status de civil, no direito da guerra

no mar, era – histórica e teoricamente – personificada na figura do privateer.

542

THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.140.

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141

Nos termos de Yoram Dinstein, este era uma “pessoa privada” que portava

uma “letter of marque” concedida por uma autoridade pública, por um Estado

soberano. O pirata, por sua vez, nos termos de Thomson, era uma pessoa (privada)

“sem Estado” (stateless) e sem tal “letter of marque”, cujas ações não poderiam

causar a responsabilização (internacional) de nenhum Estado; mas que, no

entanto, podia ser, capturado, julgado e punido por qualquer Estado.

Esta foi a “norma internacional” que levou à supressão da pirataria (uma das

práticas de violência individual extraterritorial privada no alto-mar), a

“metanorma” que foi universalizada, que ordenou o alto-mar, e que, assim,

domesticou o “Estado de natureza” daquelas “áreas do globo não sujeitas à

soberania”. Esta é a origem da jurisdição universal543

.

1.3.3

Aquele que lutava em nome de nenhuma Nação

Em uma entrevista sobre a “questão da tortura”, concedida à revista

eletrônica Frontline em 2005, John Yoo, um dos principais arquitetos político-

jurídicos daqueles memorandos do Office of the Legal Counsel do Departamento

de Justiça (mais especificamente, dos memorandos de 25 de setembro de 2001, de

28 de dezembro de 2001 e de 09 de janeiro de 2002), revelou, no final de uma de

suas respostas, uma importante fonte conceitual para a fundamentação daquela

categoria de “combatente ilegal” na guerra norte-americana contra o terror, e,

assim, para a não aplicação das Convenções de Genebra àqueles indivíduos que

tivessem tal status:

[Frontline:] I can see from how that could be the basis for things to begin to

flow: Does Geneva [Conventions] apply? Are they enemy combatants? Are

they [Prisoners of War] POWs? Are they wearing uniforms, and are they

doing unlawful acts to women and children? The logic of it could flow from

what you were talking about.

[John Yoo:] I think a lot of the logic flows from the two [questions] I had to

answer right from the beginning: Is it war or not? And then, should they be

543

Nesse sentido, ver: THE PRINCETON Principles on Universal Jurisdiction, in Stephen Macedo

(Ed.). Universal Jurisdiction. Op. cit, p.21-22; MACEDO, Stephen (Ed.). Universal

Jurisdiction. Op. cit; BASSIOUNI, M. Cherif. “The History of Universal Jurisdiction and its

Place in International Law”, in Stephen Macedo (Ed.). Universal Jurisdiction, Op. cit., p.39-63;

CASSESE, Antonio. International Criminal Law. Op. cit.; SIMPSON, Gerry. Law, War and

Crime. Op. cit.; e SIMPSON, Gerry. “Piracy and the Origins of Enmity”. In Craven, Fitzmaurice

and Vogiatzi. (Ed.). Time, History and International Law. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers,

2007.

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142

treated the same as a nation or not? Because I think some people think,

well, crime is just one sort of sphere with its own rules, and war is just one

sphere and its own rules, and everybody in war gets treated the same. But

that's not actually the case. War has different rules for a nation and different

rules for people who choose to fight kind of like pirates who are outside the

control of a nation. […]544

(ênfase minha)

Aqui, é interessante destacar os pares binários – guerra/crime e

nação/piratas – que parecem constituir a “(infra)estrutura lógica” de John Yoo, e,

assim, regular a sua construção racional da natureza dos combatentes e das regras

que deveriam ser aplicadas a eles. Em primeiro lugar, tratava-se de um contexto

de “guerra”; e, não, de “crime”. Em segundo lugar, não se tratava de uma guerra

contra uma “nação”, ou seja, de um conflito armado entre dois ou mais Estados

soberanos, mas, sim, de uma guerra contra indivíduos que estavam “fora do

controle de uma nação”, e que lutavam como “piratas”.

Esta oposição nação/pirata – ou seja, entre combatentes sob o controle de

uma nação e combatentes “fora do controle de uma nação” – parece fundamental

para entender aquela definição do status dos membros da al Qaeda e da milícia

Talibã nos memorandos da guerra norte-americana contra o terror. Pois, como se

viu, a não relação com um Estado soberano (pelo menos, que não fosse um

“Estado falido”) foi determinante para a conclusão de que tais indivíduos eram

“combatentes ilegais”. Nestes termos de Yoo, esses indivíduos teriam lutado

“como piratas” (“like pirates”).

Naquele mesmo ano, 2005, um artigo publicado pela revista The New

Yorker também retratou a “questão da tortura” e da fundamentação desenvolvida

por John Yoo para justificar a categoria de “combatente ilegal”, bem como a não

aplicação das Convenções de Genebra aos prisioneiros de Guantanamo Bay.

Numa passagem reveladora, a autora do artigo, Jane Mayer, se refere a uma

entrevista que teria feito, por telefone, com um dos principais autores daqueles

memorandos. Ela comenta, citando John Yoo:

In a recent phone interview, [John] Yoo was soft-spoken and resolute. “Why

is it so hard for people to understand that there is a category of behavior not

covered by the legal system?” he said. “What were pirates? They weren't

fighting on behalf of any nation. What were slave traders? Historically, there

were people so bad that they were not given protection of the laws. There

were no specific provisions for their trial, or imprisonment. If you were an

544

YOO, John. “The Torture Question: Interviews: John Yoo”, Frontline, October 18, 2005.

Available at: <http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/torture/interviews/yoo.html>.

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143

illegal combatant, you didn't deserve the protection of the laws of war”. Yoo

cited precedents for his position. “The Lincoln assassins were treated this

way, too”, he said. “They were tried in a military court, and executed”. The

point, he said, was that the Geneva Conventions‟ simple binary

classification of civilian or soldier isn't accurate.545

De modo geral, esta passagem fornece importantes rastros para entender as

categorizações, diferenciações e dicotomias que estruturaram, por exemplo, o

memorando de 09 de janeiro de 2009, arquitetado e construído por Yoo e

Delabunty. Novamente, a figura do pirata aparece como aquela associada a um

tipo de combatente que está e luta fora do controle de qualquer nação. Em

diferentes trechos, Yoo destaca a não aplicação das leis, em geral, e das leis da

guerra, em particular, a determinados casos e categorias de indivíduos e

comportamentos. De acordo com ele, não haveria regras específicas que

regulassem a detenção e o julgamento destes indivíduos.

A caracterização destas pessoas como “tão más” reaproxima a guerra e suas

leis a julgamentos de valor, e, assim, a um juízo moral sobre o “bem” e o “mal”, e

sobre o “justo” e “injusto”. Este movimento, sutil, mas extremamente poderoso,

de moralização parece trazer consigo uma (re)leitura – “político-teológica” – da

ordem político-jurídica internacional.

Nesta (re)leitura, “piratas”, “comerciantes de escravos” e “combatentes

ilegais” parecem exemplificar o tipo de indivíduo que, pela sua natureza “tão má”

(e, poder-se-ia acrescentar, “tão injusta”), não “merece a proteção das leis de

guerra”. Para este tipo de indivíduo a classificação binária, civil/soldado, das

Convenções de Genebra não era adequada. E de acordo com os precedentes, o

julgamento perante corte militar, seguido de execução, parecia ser a forma mais

adequada de lidar com este tipo de indivíduo que não lutava em nome de nenhuma

nação.

Yoo parecia estar corroborando a conclusão do Presidente Bush, em seu

memorando de 07 de fevereiro de 2009, de que, naquele contexto de guerra contra

o terrorismo, era preciso um novo paradigma para (re)entender e (re)pensar o

direito da guerra. No entanto, Yoo lembraria ao Presidente que, para isso, já havia

um paradigma, o antigo paradigma do pirata na arquitetura político-jurídica

internacional.

545

MAYER, Jane. “Outsourcing Torture; The secret history of America‟s „extraordinary rendition‟

program”. The New Yorker. New York, February 14, 2005. p.7-8. Ênfases acrescidas.

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144

1.4

Conclusão

A arquitetura político-jurídica da guerra norte americana contra o terror foi

construída, e arquitetada, em grande medida, por meio daqueles memorandos que

buscavam, sobretudo, definir o status dos membros da al Qaeda e da milícia

Talibã capturados durante o conflito no Afeganistão, e presos indefinidamente em

Guantanamo Bay, Cuba. Entre tais memorandos, destacaram-se aqueles do Office

of the Legal Counsel do Departamento de Justiça que, (re)lendo e

(re)interpretando os termos da arquitetura político-jurídica internacional,

definiram o status de tais indivíduos como o de “combatentes ilegais”.

Como “combatentes ilegais”, aqueles prisioneiros também foram

identificados com um “espaço-tempo” (im)próprio fora do alcance das proteções

estabelecidas pelas Convenções de Genebra de 1949. Mais especificamente, dada

a natureza ilegal de suas condutas beligerantes, determinou-se que tais indivíduos

não tinham direito ao status jurídico de prisioneiro de guerra, e que, portanto,

estavam fora do alcance das proteções da Convenção de Genebra III.

A construção de tais determinações foi fundamentada na diferenciação

jurídica entre “combatentes legais” e “combatentes ilegais”, diferenciação esta

que havia sido estruturada a partir da definição das quatro condições mínimas de

“combate legal” (lawful combatancy) estabelecidas pelo artigo 4º(A)(2) da

Convenção de Genebra III. A origem evocada destas condições – e, portanto, da

dicotomia “combatente legal”/“combatente ilegal” – era a Convenção de Haia IV

de 1907, relativa às leis e costumes de guerra na terra.

A partir do questionamento desta suposta origem, e fundação, terrestre,

buscou-se, então, “seguir” alguns rastros deixados nos e constitutivos dos próprios

memorandos. Primeiro, destacou-se que a regra que estabeleceu a fundação para a

dicotomia “combatente legal”/“combatente ilegal” foi uma regra internacional

que, antes de ter sido afirmada pelo direito de guerra na terra, constituiu-se e

normalizou-se por meio do direito de guerra no mar.

Assim, a “origem” da alegada origem daquelas condições reafirmados em

Genebra em 1949 não se encontrava nos termos, terrestres, estabelecidos em Haia,

em 1907, mas nos termos declarados em Paris, em 1856, em relação a uma

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categoria especifica do direito internacional de guerra no mar, o privateer ou

corsário.

O privateer era uma figura intermediária entre o combatente público (o

“soldado”) e o não combatente privado (o “civil”). Ele era uma pessoa privada

que obtinha do soberano ente público uma “letter of marque”, uma autorização,

que lhe permitia atacar uma embarcação mercante inimiga durante um conflito

armado. O privateer era uma pessoa privada que se convertia ou era convertida

num combatente por meio de um “toque” público. Como um combatente

“híbrido”, privado e público, ele fazia confundir não apenas o “público” e o

“privado”, mas também o “combatente” e o “civil”.

O privateer também era uma figura intermediária por outras razões. Ele era

definido entre a categoria do combatente estritamente estatal e público, o

“soldado”, e a do combatente estritamente não estatal e privado, o “pirata”. Como

este, o privateer era aquele que praticava uma forma de violência individual

extraterritorial. Contudo, diferentemente do pirata, que praticava uma forma de

violência individual extraterritorial estritamente privada e não estatal, ou seja, sem

o “toque” do Estado, o privateer exercia sua forma de violência individual

extraterritorial com a autorização do ente público e soberano. O privateer era

comissionado por este com uma “letter of marque”.

No rastro daquela regra internacional que veio do mar, rastreou-se também a

categoria do privateer, cuja abolição, declarada em Paris, em 1856, foi

fundamental para a estruturação daquelas dicotomias, “combatente”/“não

combatente”, “soldado”/“civil”, e “combatente legal”/“combatente ilegal”, e,

assim, para a consolidação da autoridade exclusiva do Estado soberano para a

formação de um exército, e para praticar violência tanto dentro de seus territórios

quanto extraterritorialmente. Daí, o monopólio do Estado sobre a legitimidade e

legalidade do uso da força nas relações internacionais. Daí também, o “espaço-

tempo” daqueles que são identificados ou construídos como o ponto

diametralmente oposto ao do combatente “estatal”, “público”, “legítimo” e

“legal”.

Nesses termos, regulou-se, internacionalmente, o uso da força e a prática da

violência. A partir da Declaração de Paris de 1856, portanto, combatentes

legítimos – e legais – passaram a ser, necessariamente, aqueles que estavam sob

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“a autoridade, controle direto, e responsabilidade do Estado [soberano]”. Este

corolário da declaração foi reconhecido e reafirmado em Haia, em 1907.

Mas como se comentou, a categoria do privateer era fundamentalmente

relacionada com a do pirata. O rastro deste, portanto, também podia ser

identificado a partir daqueles rastros constitutivos do “combatente ilegal”, e,

assim, daqueles memorandos do governo norte-americano.

O pirata era o outro ponto conceitual em relação ao qual o ponto do

privateer era definido como intermediário. Consequentemente, a abolição deste

ponto resultou na estruturação dicotômica dos pontos conceituais intermediados

por ele, como, por exemplo, “público”/“privado”, “guerra”/“crime”,

“combatente”/“não combatente”, “soldado”/“civil”, “violência individual

extraterritorial pública”/“violência individual extraterritorial privada”,

“soldado”/“pirata”, e “combatente legal”/“combatente ilegal”.

O rastro do pirata também era constitutivo da categoria de combatente

ilegal. O rastro do pirata foi explicitado, em 2005, por John Yoo, um dos

principais arquitetos político-jurídicos daqueles memorandos norte-americanos.

Naquelas duas oportunidades, Yoo reafirmou a dicotomia nação/pirata e, com ela,

a diferenciação entre combatentes sob o controle de uma nação e combatentes

“fora do controle de uma nação”.

Este era o ponto em comum daquelas duas passagens de John Yoo.

Ademais, este é um ponto diretamente relacionado à aplicação ou não do direito

de guerra, em geral, e das Convenções de Genebra, em particular. Como se

destacou anteriormente na leitura dos memorandos, os elementos que

fundamentaram a definição do status dos membros da al Qaeda como

“combatentes ilegais” foram precisamente a natureza não estatal desta

organização terrorista e o descumprimento das quatro condições mínimas de

“combate legal” (lawful combatancy). Assim como o “membro da al Qaeda”, o

“pirata” parece representar aquele ponto “não estatal”, “privado” ou “sem Estado”

que é o “outro”, o diametralmente oposto ao ponto “estatal”, “público” ou “sob a

autoridade, controle direto, e responsabilidade do Estado”.

Da mesma forma, a definição do status dos membros da milícia Talibã

também envolveu estes dois elementos, na medida em que: (i) construiu-se o

Afeganistão como um “Estado falido”; (ii) distanciou-se esta milícia deste Estado

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soberano, aproximando-a da organização terrorista, al Qaeda; e (iii) determinou-

se a não satisfação por parte dos membros desta milícia daquelas condições

mínimas.

De certo modo, tendo em vista a categoria do pirata na arquitetura político-

jurídica internacional, a sua relação mutuamente constitutiva com a categoria de

privateer, bem como observando as diferenciações e especificidades daquelas

segunda e terceira partes dos memorandos de 09 de janeiro e 22 de janeiro de

2002, parece ser possível “identificar” ou “aproximar”, de um lado, aquela

definição dos membros da al Qaeda à categoria de pirata e, de outro, a dos

membros da milícia Talibã à de privateer. A partir desta arquitetura político-

jurídica e conceitual, parece possível também (re)entender e (re)pensar os passos e

ângulos construídos para fundamentar aquelas determinações finais.

Esses memorandos construíram a definição do status dos membros da al

Qaeda e da milícia Talibã, sobretudo, a partir da naturalização do ponto

diametralmente oposto ao do soldado, do membro de uma força armada regular,

do “combatente legal”. Assim, delimitou-se o “espaço-tempo” (im)próprio e a

“identidade” daqueles “combatentes ilegais”.

Como Yoo destacou, o “pirata” era um ponto paradigmático na arquitetura

político-jurídica (e histórico-teórica) que poderia servir para fundamentar tal

“identidade” e “espaço-tempo” (im)próprios. Ademais, concebido como um

indivíduo cuja natureza era “tão má”, o pirata (entre outras categorias) poderia

servir para uma releitura, ético-moralista, do direito internacional. Assim, o rastro

do pirata nestes memorandos norte-americanos da guerra contra o terror era

também o rastro de uma releitura – político-teológica – dos limites do direito

internacional.

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