1. LIENHARD, Martin_Intelectuais - Porta-Vozes Dos Pobres
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
Martin Lienhard*
*Latino-americanista e
africanista. Docteur s lettres
pela Universidade de
Genebra e professor emrito
da Universidade de Zurique.
O intelectual engajado
Em 1967, em plena guer-ra do Vietn, o lingista Noam Chomsky publicou um pequeno livro intitula-do The responsability of the intellectuals
(A responsabilidade dos intelectuais).
O papel que ele, nesse livro, atribui aos
intelectuais o de crticos do poder:
[] a posio de que disfrutam per-
mite-lhes denunciar os embustes dos
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governos, analisar as aes, de acordo com as suas cau-
sas e motivos, e, muitas vezes, as intenes ocultas que
lhes so inherentes (Chomsky 1968: 9). No mundo
ocidental, acrescenta, eles tm todas as condies para
trabalhar na descoberta da verdade, oculta por detrs
dos vus da distorso e da deturpao, das ideologias
e dos intereses das classes, atravs dos quais nos so
apresentados os acontecimentos histricos quotidianos
(ibid.). Com um discurso deste tipo, Chomsky se inscre-
ve numa tradio intelectual que surge no contexto do
iluminismo e que se desenvolve mais tarde no contexto
do socialismo nascente. Um representante importante
dessa tradio o escritor francs mile Zola, autor de
um texto cujo ttulo, Jaccuse! (Eu acuso), traduz
perfeitamente a ideia que o intelectual crtico se faz de
seu papel. Neste texto famoso, uma carta aberta ao Pre-
sidente da Repblica Flix Faure, Zola lana um ataque
violento contra um establishment militar que, contra
toda evidncia, condenou, por suposta traio, o capi-
to Dreyfus, judeu. Como Zola no contexto de laffaire
Dreyfus, Chomsky, no da guerra do Vietn, trabalha an-
tes de tudo na crtica do imperialismo, na desmontagem
da mentira no (do) discurso oficial.
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
No mesmo ano 1967, em um curta intitulado Camera
Eye, Jean-Luc Godard (se) coloca, desde sua perspecti-
va de cineasta, a mesma pergunta que Chomsky: como
combater o imperialismo americano, como solidarizar-
se com o povo vietnamita em luta? Ao comeo deste
filme podemos ver o cineasta manejando uma grande
cmera de estdio como se fosse um canho. As ima-
gens que acompanham sua fala so uma sucesso algo
cubista de planos breves que aludem, entre outras
coisas, guerra do Vietn e greve dos operrios da
Rodiaceta (uma greve com ocupao de fbricas que
prepara, de alguma maneira, os movimentos que es-
touram em maio de 1968). Para Godard evidente que
o nico terreno onde ele, enquanto cineasta, pode se
enfrentar com o imperialismo americano, o do cinema
e com as armas que a prtica cinematogrfica lhe ofere-
ce. interessante ver que a questo da solidariedade
com o povo vietnamita como tambn com os operrios
franceses em greve leva o cineasta a problematizar a
relao ou mais exatamente a falta de relao entre
eu (o intelectual, o cineasta) e eles (os operrios):
Eu, por exemplo, cineasta que trabalha na Frana, estou
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completamente separado duma grande parte da popula-
o, em particular da classe operria, mas minha luta, que
a luta contra [] o imperialismo econmico e estti-
co do cinema americano que corrompe o cinema mundial
finalmente uma luta mais ou menos semelhante [ dos
operrios][...]. O pblico operrio no vai ver meus filmes,
[mas] entre mim e ele h mais ou menos a mesma separa-
o que entre mim e o Vietn ou entre ele e o Vietn. No
nos interessamos uns aos outros seno por um sentimento
digamos de generosidade, mas que no corresponde muito
realidade. No nos conhecemos porque estamos, eu, em
uma espcie de priso cultural, e o operrio da Rodiaceta
em uma espcie de priso econmica .1
1 Moi par exemple, cinaste qui tourne en France, je suis par exemple compltement coup dune grande partie de la po-pulation et la classe ouvrire en particulier, et ma lutte moi qui est la lutte contre le cinma amricain contre limpria-lisme conomique et esthtique du cinma amricain qui a gangren maintenant le cinma mondial est finalement une lutte peu prs semblable. Or nous ne parlons pas le public ouvrier ne va pas voir mes films, mais entre moi et lui, disons quil y a la mme coupure quentre moi et le Vietnam ou bien lui et le Vietnam. Nous nous intressons moins lun lautre autrement que par un sentiment - disons - de gnrosit, mais qui correspond pas vraiment la ralit. Nous nous connais-sons pas parce que nous sommes dans une moi, une sorte
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
Exatamente dez anos antes, em 1957, no seu dis-
curso de recepo do prmio Nobel, Albert Camus afir-
mou que o escritor, hoje em dia, no pode se colocar au
servio de aqueles que fazem a histria: est ao servio
de aqueles que a sofrem2. Nessa frmula de Camus,
aqueles que fazem a histria so aqueles que dispem
do poder necessrio para orientar a dinmica histrica
no sentido que melhor corresponde a seus interesses
pessoais, de grupo ou de classe; aqueles que a sofrem
so os demais: o resto da humanidade, aqueles que no
tm a capacidade de infletir o curso da histria. Camus,
convm sublinh-lo, no apresenta o compromisso do
escritor com as vtimas da histria como uma opo
entre outras, mas como a nica possvel. Nem sempre,
na verdade, os escritores, os artistas ou os filsofos se
de prison culturelle et louvrier de la Rodiaceta dans une sorte de prison une prison conomique (Jean-Luc Godard, Ca-mera Eye, 1967; transcrio e traduo: M. Lienhard).
2 Par dfinition, il ne peut se mettre aujourdhui au service de ceux qui font lhistoire : il est au service de ceux qui la su-bissent, Albert Camus speech at the Nobel Banquet at the City Hall in Stockholm, December 10, 1957 [http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1957/camus-speech-f.html, 10/03/2013].
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consideraram advogados das vtimas da histria. Na ati-
tude de Camus talvez haja algo do compromisso com
os pobres que certas ordens catlicas, em particular os
franciscanos radicais da Idade Mdia, defendiam quer
por escrito quer na sua prtica, mas finalmente, o es-
critor evocado por ele representa sobretudo o intelec-
tual engajado moderno.
Nos mesmos anos (os anos cinqenta do scu-
lo XX), no contexto da guerra fria e da descoloniza-
o, um outro intelectual francs, Jean-Paul Sartre,
tambm afirmava a necessidade do engajamento po-
ltico dos intelectuais: um compromisso que para ele,
no contexto da poca, devia passar pela solidariedade
com os partidos comunistas. Quando Camus fez suas
declaraes em Estocolmo, j haviam passado vrios
anos desde sua ruptura com Sartre. Na verdade, quem
decretou essa ruptura foi Sartre ao excomunicar
essa a palavra o autor de Lhomme rvolt (O homem
revoltado). Nesse livro de 1951, Camus tinha apre-
sentado uma crtica radical do estalinismo e de outras
formas autoritrias de politica revolucionria, mas
sem se afastar da ideia de que o intelectual tinha um
compromisso com as vtimas da histria. Com todas
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as vtimas, no s com aquelas consideradas tais pelos
partidos comunistas.
Sartre, ao contrrio, representava naquela altura
a figura do intelectual orgnico do proletariado, aque-
le que sabe, melhor do que os proletrios realmente
existentes, o que o proletariado e seu papel histrico.
Como j o disseram Marx e Engels em 1845: No inte-
ressa saber o que este ou aquele proletrio ou mesmo o
proletariado inteiro imagina ser o objetivo. O que conta
saber o que [o proletariado] e o que estar histrica-
mente obrigado a fazer em conformidade com seu ser3.
O assim chamado intelectual orgnico do proletaria-
do tende, embora no tenha nenhuma relao prtica
ou existencial com os proletrios, a se colocar no lugar
do proletariado, a se considerar seu porta-voz. Um bom
exemplo disso o prprio Sartre quando, no seu en-
saio Orphe noir (Orfeu negro, 1948), introduo a uma
3 Es handelt sich nicht darum, was dieser oder jener Proletarier oder selbst das ganze Proletariat als Ziel sich einstweilen vorstellt. Es handelt sich darum, was es ist und was es diesem Sein gem geschichtlich zu tun gezwungen sein wird (marx-EngEls, Die heilige Familie, IV. Kapitel, Kritische Randglosse Nr. 2, p. 38).
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antologia de poesia negra, constri desenvolvendo o
conceito marxista da ideologia proletria a ideologia
revolucionria negra: [] havendo sofrido mais do
que todos os outros a explorao capitalista, [o negro]
adquiriu, mais do que todos os outros, o sentido da re-
beldia e o amor da liberdade. E sendo o mais oprimido,
o que persegue quando trabalha na sua emancipao
a libertao de todos4. Frmula sem dvida brilhante,
mas construda fora de qualquer interao com os ne-
gros realmente existentes. Indcio disso j o uso (abu-
sivo) do singular o negro que Sartre utiliza para
falar seja dos africanos negros seja dos afrodescendentes
nas Amricas.
Intelectuais e subalternos
O intelectual orgnico do proletariado no precisa de
ouvir a palavra dos proletrios porque j sabe o que
4 [] parce quil a, plus que tous les autres, souffert de lex-ploitation capitaliste, il a acquis, plus que tous les autres, le sens de la rvolte et lamour de la libert. Et parce quil est le plus opprim, cest la libration de tous quil poursuit n-cessairement, lorsquil travaille sa propre dlivrance (sartrE 1969 [1948]: XXXIX).
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eles, enquanto coletivo, tm de pensar. Diferente o
caso dos intelectuais engajados independentes; eles,
ou pelo menos alguns deles, tendem a ter um ouvido
mais aberto para a palavra real, concreta, histrica, dos
subalternos termo de origem gramsciana que usarei do-
ravante para falar de todos aqueles que no tm, no seio
da sociedade capitalista, poder de deciso. Mas e aqui
citarei a famosa pergunta de Gayatri Spivak can the
subaltern speak? Pode ou sabe falar o subalterno/a
subalterna? (spivak 1988). O que Spivak, intelectual
novaiorquina de origem indiana, denuncia no ensaio
aludido a violncia epistmica exercida pelo Ocidente
contra o resto do mundo: o remotamente orquestra-
do, extenso e heterogneo projeto de constituir o su-
jeito colonial enquanto Outro. Este projeto, como ela
precisa, tambm a obliterao assimtrica do rasto
desse Outro em sua precria subjetividade5. O projeto
de Spivak, ao contrrio, visa oferecer uma anlise al-
5 The clearest available example of such epistemic violence is the remotely orchestrated, far-flung, and heterogeneous pro-ject to constitute the colonial subject as Other. This project is also the asymetrical obliteration of the trace of that Other in its precarious Subject-ivity (spivak 1988: 280-281).
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ternativa das relaes entre os discursos do Ocidente e a
possibilidade de falar da mulher subalterna ou por ela6.
Na argumentao de Spivak, a mulher no ocidental
como que o equivalente do negro de Sartre: a catego-
ria tnico-social mais discriminada de todas aqueles que
existem.
Para ilustrar o mecanismo da violncia epistmica
nos serve uma pequena histria do comeo da expanso
europia. H mais de 500 anos, no seu dirio de a bordo
publicado pelo padre dominicano Bartolom de las Ca-
sas, Cristvo Colombo escreveu que ia a levar alguns
ndios para a Espanha para que deprendan fablar
(Coln 1982: 31): para eles aprenderem a falar. Ser
que no sabiam falar? O que no sabiam, claro, era fa-
lar (n)a lngua dos intrusos europeus, e o que Colombo,
enquanto representante do mundo ocidental, esperava
deles, era no s que aprendessem a lngua do invasor,
como tambm que tomassem conscincia de seu novo
estatuto de colonizados. No portanto que o outro, o
no ocidental, no saiba falar. O problema est em que
6 I will offer an alternative analysis oft he relations between the discourses of the West and the possibility of speaking of (or for) the subaltern woman (spivak 1988: 271).
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no pode falar em um contexto que proibe, ignora ou
tergiversa a palavra dele.
Os ndios do almirante genovs e as mulheres
indianas de Spivak no so, obviamente, os nicos su-
jeitos que no podem falar. Na verdade, o fato de os
subalternos no terem acesso palavra pblica mais
geral. Independentemente das formas concretas de sua
organizao, todas as sociedades atuais se caracterizam
como observou Balandier pela presena atuante
de um sistema de desigualdade e de dominao (BalandiEr
1985: 147). esse sistema que proibe ou pelo menos
dificulta - que a palavra dos subalternos, no tergiver-
sada nem mediatizada, obtenha visibilidade e peso em
termos ideolgicos e polticos. Sem dvida h, entre
o Norte e o Sul, nuances importantes quanto ao
grau de discriminao - ou de ostracismo - da palavra
subalterna. Nos EUA e na Europa atuais, um sistema
democrtico relativamente bem desenvolvido parece
garantir a presena pblica dessa palavra. Na prtica,
porm, ela monopolizada por aqueles que representam
- ou pretendem representar - os setores ou grupos su-
balternos. No falam os subalternos: fala-se no nome
deles. Maiores ainda so, sem dvida, os obstculos que
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encontra a palavra subalterna ou marginal no espao
pblico de uma regio como a Amrica Latina, carac-
terizada por uma desigualdade extrema e, sobretudo
nas reas com forte populao indgena ou negra, por
relaes sociais ainda marcadas pela herana colonial/
escravista.
H tempo, na verdade, que os intelectuais ou al-
guns deles comearam, por motivos muito diversos, a
se interessarem nos discursos de certas categorias de su-
balternos e/ou colonizados7. o caso, nomeadamente,
dos etnlogos e seus precursores mais ou menos diretos.
Tanto na primeira fase da expanso europia, nos scu-
los XV-XVII, quanto nas empresas coloniais modernas
7 No conhecia, no momento de redigir este trabalho, a obra clssica de Jacques Rancire, Le philosophe et ses pau-vres (Paris, Fayard, 1983). Nessa obra se discute a estranha pretenso dos filsofos (desde Plato a Marx) de fazer-se passar por intrpretes ou porta-vozes dos pobres. Embora meu enfoque seja sem dvida semelhante ao de Rancire, o propsito que anima meu trabalho muito mais limitado e mais especfico. Se o erudito autor de Le philosophe faz, de alguma maneira, o processo da filosofia ocidental, s se trata, no presente trabalho, de discutir de que maneira alguns his-toriadores e antroplogos modernos (especialmente latino-a-mericanos) manejam e amide manipulam o discurso dos subalternos.
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dos sculos XIX e XX, eles eclesisticos primeiro e
logo antroplogos profissionais assumiam a tarefa de
estudar o funcionamento social e poltico das sociedades
autctones para facilitar, desta maneira, a implantao
de relaes de tipo colonial. Objeto da pesquisa eram,
principalmente, a vida e os discursos tradicionais das
comunidades colonizadas; o que menos interessava co-
nhecer no contexto colonial eram os possveis discursos
crticos dos colonizados sobre a colonizao. verdade
que por vezes, como aconteceu na conquista espanhola
de boa parte do continente americano, alguns eclesisti-
cos, levando a srio o sempre proclamado compromisso
da Igreja com os pobres, procuraram se fazer advogados
dos colonizados. Isso no significa, porm, que eles se
fizessem porta-vozes do discurso dos colonizados, de um
discurso que consideravam diablico. Mas no pre-
tendo fazer aqui a histria longa e complexa dos
auxiliares intelectuais da expanso europia. Voltando
ao intelectual engajado moderno e encarando o espao
das Amricas, procurarei discutir a maneira como al-
guns representantes dessa figura, particularmente entre
os antroplogos e os historiadores, se enfrentaram (ou se
enfrentam) com o(s) discurso(s) subalterno(s).
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Histrias de vida
Quero comear com um caso concreto que permite
abordar vrios dos problemas que irei discutindo mais
adiante. Em 1922, Manuel Gamio, antroplogo me-
xicano, publicou seu livro La poblacin del valle de Teo-
tihuacn. Esse livro o trabalho fundador da antropo-
logia mexicana moderna e um dos primeiros deste tipo
em toda a Amrica Latina. um livro no qual Gamio,
antroplogo formado na escola culturalista de Franz
Boas, descreve sistematicamente no alguma comuni-
dade extica de alguma periferia do mundo, mas uma
populao que vive no Mxico central, a poucos quil-
metros da capital federal. Monografia etnolgica, esse
estudo oferece tambm a histria poltica e social dos
teotihuacanos desde a poca pre-hispnica at a atuali-
dade daquele momento. Alm de descritiva, essa obra
contm numerosas apreciaes crticas da poltica do
estado mexicano, em particular o fato de ela, at um
passado recente, no ter considerado os antecedentes
histricos da populao indgena-mestia, que forma-
va a abrumadora maioria numrica; suas idiosincrasias;
suas caractersticas; seus ideais, tendncias, necessidades
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
e aspiraes []. No surpreende, acrescenta o autor,
que os governos do sculo XIX fossem repudiados pela
maioria dos habitantes8. Dessa maneira, Gamio, inte-
lectual engajado sua maneira, proclama sua solidarie-
dade com um tipo de populao que, naquela altura,
ainda constituia a maior parte dos subalternos mexica-
nos. Mas Gamio no se limitou desenvolver pesquisas
antropolgicas; ele procurou tambm, acompanhando a
poltica nacional-indigenista do governo supostamente
revolucionrio de sua poca, ressuscitar a ritualidade pre
-hispnica. Nesse sentido, impulsou atividades teatrais
populares e projetos cinematogrficos inspirados em
um suposto teatro pr-hispnico (rEyEs 1991: 11-32);
iniciativas que retomavam, de alguma maneira, as dos
eclesisticos do sculo XVI que criaram a tradio das
chamadas danas da conquista. As imagens que sobrevi-
veram desses espetculos teatrais e projetos cinemato-
grficos (ibid.) sugerem que Gamio, para recriar a ri-
tualidade pr-hispnica, se inspirava nos filmes italianos
sobre a Roma antiga. Infelizmente no conhecemos a
8 Citado a partir de http://americaindigena.com/gamio_teo-tihuacan2.htm (10/03/2013).
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recepo que tiveram, na populao, esses projetos, mas
parece claro que Gamio se considerava o intrprete or-
gnico da populao indgena-mestia que constituia
seu objeto de pesquisa.
Quase uma dcada depois, em 1930, o mesmo Gamio
publica Mexican Immigration to the United States. A Study
of Human Migration and Adjustement (Imigrao mexi-
cana aos EUA. Um estudo sobre migrao e adaptao
humana). Os subalternos que ele estudou para produ-
zir esse livro no so uma populao rural-camponesa
tradicional, mas a populao mexicana na cidade de
Chicago: uma grande novidade na antropologia lati-
no-americana. Um ano mais tarde, em 1931, sai mais
um livro de Gamio, publicado sob a direo editorial
de Robert Redfield, The Life Story of the Mexican Immi-
grant: Autobiographic Documents collected by Manuel Gamio
(A histria da vida do imigrante mexicano. Documen-
tos autobiogrficos recolhidos por Manuel Gamio). A
novidade deste novo livro que rene e apresenta, em
ingls, vrias dezenas de histrias de vida9.
9 No Mxico, as entrevistas originais s foram publicadas em
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Todo esse trabalho fruto do contato que Gamio
teve, em 1926 ou j antes, com alguns antroplogos
norteamericanos. Nesse ano, ele recebeu uma bolsa do
Committee of Scientific Aspects of Human Migration.
Poucos anos antes, o socilogo Ernest W. Burgess e o
antroplogo Edward Sapir tinham comeado um amplo
estudo sobre a cidade de Chicago e os universos subje-
tivos dos habitantes dela. Para faz-lo, se apoiavam nos
relatos orais de seus interlocutores. Um outro membro
da escola de Chicago, Paul Taylor, estudou en com-
paa de su esposa Dorothea Lange, fotgrafa famosa
os migrantes mexicanos na California (langE 1969).
neste contexto que se vo formando dois dos futuros
colaboradores de Gamio: Elena Landzuri y Robert Re-
dfield. J em 1923, Landzuri, no Mxico, comunicou
Gamio com Redfield, e foi por recomendao de Gamio
que este, um dos representantes da teoria da acultura-
o, realizaria em 1930 - seu famoso estudo sobre os
processos de aculturao em Tepoztln. Um outro co-
laborador ser o salvadorenho Luis Felipe Recinos, um
2002: El inmigrante mexicano: la historia de su vida. Entrevistas completas, 1926-1927.
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jornalista aprendiz. Segundo um Guia que Gamio es-
creveu para seus auxiliares, eles, em Chicago, deviam
procurar pessoas, mestios ou ndios, pertencentes aos
grupos mais representativos da imigrao mexicana,
para interrog-los acerca de sua cultura material, suas
prticas culturais, os motivos que tiveram para emigrar,
os possveis projetos de retorno e a percepo que eles
tinham de si e de sua relao com o Mxico. Encontra-
mos aqui, por um lado, as perguntas clssicas da antro-
pologia cultural e outras inspiradas na situao dos in-
formantes, mas tambm uma pergunta nova, lgica em
uma situao de exlio, a da identidade. Para garantir
a espontaneidade das entrevistas, Gamio recomendava
a gravao feita s escondidas, uma prtica que os an-
troplogos e os hisoriadores orais, hoje, recusam.
Os auxiliares de Gamio no eram simples instru-
mentos ao servio dele, mas pessoas com convices
ou com interesses prprios. Assim, Elena Landzuri, in-
telectual engajada, no compartilha a teleologia nacio-
nalista de Gamio: [] no creo que sea factible tratar
de guiar a nuestra nacin hacia un final ya preconce-
bido (Carta a Parks, 16 de abril de 1922, em gamio
2002: 44). Mais ainda, ela no acredita no sucesso de
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um projeto comum entre ns e eles (os ndios):
Nosotros nos concentramos en la democracia y el voto;
todas nuestras ideas estn conformadas de manera dife-
rente a las de ellos (ibid.). Robert Redfield, por sua vez,
mostra, enquanto adepto da modernidade capitalista,
uma clara preferncia pelos imigrantes mexicanos poli-
ticamente moderados, ignorando os muitos que como
escreve Devra Weber (ibid.: 54) ouviam avidamente
os oradores socialistas e anarquistas na praa no centro
de Los Angeles. Recinos, simpatizante da revoluo
bolchevique, no parece ter aproveitado as entrevistas
para indoctrinar os entrevistados, mas sim quando
eram mulheres para seduz-las evidente que no
s as perguntas previamente formuladas por Gamio
como tambm as convices ou as preferncias de seus
colaboradores predeterminavam em grande medida a
orientao e o contedo das respostas de seus interlo-
cutores. Ainda assim, Gamio, pelo fato de considerar a
dimenso histrica do fenmeno estudado e de publi-
car os testemunhos individuais dos imigrantes, pode ser
considerado um dos pioneiros da historia ora.
Nos EUA, a possibilidade de ler a histria de
vida de um subalterno ou ex-subalterno era, naquela
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altura, muito menos excepcional do que na Amrica La-
tina. J no sculo XIX, no contexto do movimento pela
abolio da escravatura, foram numerosos os negros que
conseguiram publicar, enquanto autores, sua biografia.
No sculo XX, pouco tempo depois da pesquisa que
Gamio realizou em Chicago, mas j ao comeo da Great
Depression, em 1929, duas Universidades do Sul dos
EUA, a Southern University de Louisiana e a Fisk Uni-
versity de Tennessee, iniciaram, sob a coordinao de
John B. Cade, um projeto destinado a recolher teste-
munhos orais de ex-escravos, um setor subalterno par-
ticularmente discriminado. O ttulo de um dos traba-
lhos de Cade (1935), Out of the mouths of ex-slaves
(Da boca de ex-escravos), j evidencia que o objetivo
desse projeto era dar a palavra aos prprios ex-escra-
vos, de lhes oferecer a oportunidade de evocar, desde
sua prpria perspectiva e na sua prpria linguagem, os
ltimos anos do regime escravista e e experincia, geral-
mente frustrante, das primeiras dcadas de vida livre.
Poucos anos depois, o Federal Writers Project da WPA
(Work Projects Administration), um projeto anlogo ao
anterior mas patrocinado pelo governo estadounidense
(Roosevelt) desembocou, entre 1936 y 1938, na colheita
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de mais de 2000 testemunhos de ex-cativos norteame-
ricanos. Alm de seu interesse histrico-antropolgico,
esse projeto permitiu, no contexto da Grande Depres-
so, dar trabalho a um certo nmero de jovens negros
de boa formao mas com poucas ou nulas perspectivas
laborais. Na introduo a uma grande coleo de his-
trias de vida de ex-cativos norteamericanos, o editor,
George P. Rawick (1972: XIX), explica o inters que
oferece o estudo de tais materiais:
O valor de tais narrativas e entrevistas no reside, geral-
mente, na descrio de grandes acontecimentos histricos
[]. Esses relatos revelam, antes, a vida quotidiana da
gente, seus costumes, seus valores, suas ideias, esperanas,
aspiraes e temores. Podemos derivar deles uma imagem
da sociedade escravista, de sua estructura social e da inte-
rao de negros e brancos. Podemos descobrir neles o rosto
da comunidade de escravos, essa rede de sistemas de co-
municao que permitiu s pessoas seguir vivendo. Atravs
deles podemos, em uma palavra, estudar o desenvolvimen-
to da comunidade10.
10 The value of such narratives and interviews does not gene-
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Se levarmos a srio as observaes de Rawick, a colheita
de testemunhos orais no s permite uma aproximao
histria, vida e ao universo intelectual e afectivo
de uma comunidade, como tambin favorece, com base
na experincia narrativizada da prpria comunidade,
uma viso totalizadora da sociedade. O close-up (que im-
plica o fato de trabalhar com testemunhos individuais)
no exclui, portanto, a macrohistria, mas obriga a
desenvolv-la desde a periferia ou a margem, desde a
perspectiva da comunidade.
Todos esses trabalhos, baseados no discurso de um
setor subalterno, visavam fazer uma histria alterna-
tiva. Embora dessem, de alguma maneira, a palavra a
membros de um setor particularmente ignorado e dis-
criminado, os editores e estudiosos desses testemunhos
rally lie in their descriptions of great historical events []. Instead, they reveal the day-to-day life of people, their cus-toms, their values, their ideas, hopes, aspirations, and fears. We can derive from them a picture of slave society and social structure and of the interaction between black and white. We can see in them the outlines of the slave community, that net-work of communicaction systems whereby people were enab-led to live. And we can study through them the development of the community (rawiCk (1972: XIX).
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
nunca procuraram us-los para falar no nome deles nem
para afirmar, servindo-se deles como de uma mscara,
determinadas posies no xadrez poltico do momento.
O discurso subalterno, para esses historiadores, no era
seno uma fonte (entre outras).
O subalterno citado
Nos anos da Tricontinental (para nomear de alguma ma-
neira o perodo das lutas revolucionrias que acompa-
nharam ou seguiram os movimentos de descolonizao
africanos e asiticos), muitos intelectuais latino-america-
nos, estudiosos e artistas, procuram de diversas maneiras
vincularse aos movimentos populares ou revolucionrios.
Alm da produo de estudos mais ou menos marxistas
da sociedade, aparecem trabalhos cientficos ou arts-
ticos nos quais, de uma maneira ou outra, se pretende
dar um espao palavra daqueles que, at ento, no fi-
zeram, mas para usar a expresso de Camus sofreram
a histria. Observam-se tambm esforos individuais
e coletivos tendentes a construir e legitimar, a partir de
testemunhos populares, uma perspectiva poltica desen-
volvida no seio dos grupos de intelectuais progressistas.
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Neste caso, a palavra do subalterno, do trabalhador, do
pobre, do marginal, no serve ou no prioritariamente
de fonte para a histria ou a antropologia, mas para le-
gitimar uma mensagem poltica construda fora do espa-
o subalterno. Tenemos que ser la conciencia de nuestra
cultura, el alma y la voz de los hombres sin historia,
dir peremptoriamente em 1980 um intelectual cubano,
Miguel Barnet (1998: 55). A experincia dos subalter-
nos ou a experincia que se atribui aos subalternos
se transforma em argumento a favor de um projeto de
transformao social elaborado nos crculos intelectuais.
No sculo XVIII, os filsofos ilustrados inventaram,
para combater ideologicamente um poder monrquico
em decadncia, olhares e discursos exticos. Diderot, por
exemplo, no seu Supplment au voyage de Bougainville, d a
palavra a Orou, sbio nativo de Tahiti, para desmitificar,
atravs da fala dele, o sistema monrquico francs. Neste
caso, a manipulao da palavra do outro to evidente
que no h verdadeira manipulao: todos os leitores da
poca sabiam que se tratava de uma fico. Mais com-
plexo o caso dos textos pelos quais se pretende revelar
e difundir o discurso de subalternos realmente existentes
e ainda vivos. Em princpio, o editor, sobretudo quando
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
se trata de um historiador ou de um antroplogo, no
inventa nem modifica a palavra pronunciada por seus in-
terlocutores subalternos, mas no deixa de manipul-la
de diferentes maneiras. O problema de base se encontra
formulado lucidamente num ensaio no qual Dipesh Cha-
krabarty (1992), historiador indiano, encara a questo da
histria dos subalternos indianos uma histria para a
qual no existem fontes escritas:
[] o sujeito anti-histrico e antimoderno no pode falar
enquanto teoria [= sujeito de um discurso terico] no
mbito dos procedimentos de conhecimento implementa-
dos pela Universidade, mesmo quando esses procedimen-
tos reconhecem e documentam sua existncia. Semelhante
ao subalterno de Spivak (ou ao campons do antroplogo,
que no pode existir seno sob a forma de uma citao no
meio de um discurso mas amplo, o do antroplogo), esse su-
jeito, objeto de um discurso que se faz em seu nome ou sobre
ele, s existe num relato de transio, um relato que sempre
acaba privilegiando o moderno (quer dizer Europa).11
11 The antihistorical, antimodern subject, therefore, cannot speak itself as theory within the knowledge procedures of the
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Chakrabarty toca aqui um ponto decisivo para
nossa argumento. Na sua linguagem, o termo de su-
jeito anti-histrico ou anti-moderno remete para um
sujeito coletivo, indiano no caso, que no se reconhece
na narrativa ocidental da histria, uma narrativa basea-
da na existncia ou no projeto de um estado nacional
maneira da Europa (= Ocidente). No mbito da cin-
cia histrica universitria, esse sujeito no pode falar,
no reconhecido enquanto portador de um discurso
terico ou de conhecimento. Nesse contexto, ele s tem
uma quoted existence: s existe na medida em que sua fala
citada, situada e comentada pelo discurso do antrop-
logo ou do historiador. Alm disso, ele o subalterno
no conta por aquilo que ou pelo que sabe, mas s
enquanto sujeito envolvido num processo de transio
modernidade (ocidental). o que j aconteceu, h mais
university even when these knowledge procedures acknowled-ge and document its existence. Much like Spivaks subaltern (or the anthropologists peasant who can only have a quoted existence in a larger statement that belongs to the anthropo-logist alone), this subject can only be spoken for and spoken of by the transition narrative that will always ultimately pri-vilege the modern (i.e., Europe) (ChakraBarty 1992: 52).
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
de 500 anos, com os ndios que tiveram a duvidosa
sorte de ser descobertos por Cristvo Colombo.
Embora que por muitos motivos, a histria da
Amrica Latina no se possa equiparar com a da ndia,
as aporias epistemolgicas com que na Amrica Latina se
enfrentam os antroplogos e os outros cientficos sociais
dedicados ao estudo dos setores subalternos no so quali-
tativamente diferentes das que mencionam Chakrabarty
ou Spivak para a ndia. Tambm na Amrica Latina, os
procedimentos de conhecimento implementadas pela
Universidade e a teleologia nacionalista exercem uma
violncia epistmica que proibe que os subalternos (ou
certas categorias de subalternos) se manifestem enquanto
sujeitos ou portadores de um discurso terico: de uma
viso do mundo prpria. Tambm na Amrica Latina,
portanto, a existncia dos subalternos tende, nos traba-
lhos dos intelectuais, a no ser seno uma quoted existence.
Em 1966, a Academia de Ciencias de Cuba publica
Biografa de un cimarrn (Biografia de um escravo
fugitivo), obra do jovem antroplogo cubano Miguel
Barnet. Apesar de seu ttulo, o texto se apresenta como
uma autobiografia, uma narrativa em primeira pessoa, a
de um ex-escravo: Esteban Montejo. Quando graas
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a uma nota de imprensa Montejo foi descoberto por
Barnet, j tinha mas de cem anos e morava em uma
casa para ancios. Ao comeo, o antroplogo tinha em
mente obter dele um mximo de informaes sobre as
religies cubanas de origem africana, mas, com o tempo,
acabou se interessando mais na viso que o ex-escravo
tinha de uma poca mal conhecida da histria cubana,
a que comea nos anos antes da abolio da escravatura
(1886). A tcnica usada para recolher a informao foi
a da entrevista diretiva, mas, como admite o autor,
s parte das sesses foram gravadas. Embora ele precise
que no intencionamos criar um documento literrio,
um romance, algumas expresses no prlogo, por
exemplo tivemos de parafrasear muito ou quisemos
descrever os recursos empregados pelo informante para
sobreviver [] no mato (BarnEt 1968: 11-12), levam
a pensar que o texto publicado, mas do que reproduzir
a fala de Montejo, a recria (ibid.: 12).
Grande sucesso pelo fato de fazer ouvir por pri-
meira vez a voz de um ex-escravo latino-americano, o
livro de Barnet, a raiz de sua ambiguidade congnita (o
leitor ignora em que medida o que l a transcrio ou a
recriao da fala de Montejo), suscitou tambm debates
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
e polmicas. Para responder a seus crticos, o autor, num
ensaio escrito alguns anos depois da primeira edio da
Biografia, classificou sua narrativa em um gnero dis-
cursivo inventado por ele ad hoc: o romance-testemu-
nho (BarnEt 1998: 17 ss.). Distanciando-se de suas
afirmaes do prlogo da Biografia (no intencionamos
criar um documento literrio) Barnet se reivindica ago-
ra artista. E o artista explica tem de ser visionrio
[], tem de contribuir ao conhecimento da realidade,
imprimir a essa um sentido histrico e entregar ao
leitor un mito que lhe seja de proveito (ibid.: 22-23).
um programa talvez legtimo para um autor de ro-
mance histrico, mas se torna problemtico quando
aplicado a posteriori a um texto publicado originalmente
como etnolgico. A Biografia se retomarmos a fr-
mula de Chakrabarty reconhece e documenta a
existncia do sujeito subalterno, no caso um ex-escravo
velho, mas esse sujeito, objeto de um discurso que se
faz em seu nome ou sobre ele, s existe num relato de
transio. Na verdade, o que Barnet fez na Biografia
foi apresentar, atravs da fala (recriada) de um ex-es-
cravo, sua prpria viso da histria. No caso, uma vi-
so teleolgica, nacionalista-revolucionria. Ponto final
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dessa histria a Revoluo (castrista), a consolidao
de um estado nacional e a de uma cultura igualmente
nacional. No prlogo a seu livro, Barnet, situando
sua personagem, diz que su tradicin de revoluciona-
rio, cimarrn primero, luego libertador, miembro del
Partido Socialista Popular ms tarde, se vivifica en nues-
tros das en su identificacin con la Revolucin Cubana
(BarnEt 1968: 14). como dizer que Montejo, desde
seu nascimento, estava predestinado a se transformar,
finalmente, em militante de um movimento moder-
no, no caso a revoluo cubana de 1959. A aventura
dele ou da fala dele no acabou com a edio cuba-
na de seu testemunho. Nos EUA, o livro de Barnet foi
publicado como Autobiography of a runaway-slave (Auto-
biografia de um escravo fugitivo). Da quoted existence no
livro original, Montejo passou, portanto, a autor de um
livro que nunca escreveu nem viu impreso. Parece mes-
mo verdade que o subalterno no pode falar por si: os
donos do discurso histrico ou poltico se encarregam de
sequestrar e manipular a fala dele.
interessante ver que no ensaio de 1970, Barnet
no se limita a defender a legitimidade de seu trabalho,
como tambm ataca um colega americano, Oscar Lewis,
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
cujo mtodo de trabalho, em termos antropolgicos,
talvez fosse mais profissional do que o seu. Pelo menos
dois dos livros de Lewis pertencem au gnero criado por
ele da autobiografia mltipla: The children of Snchez/
Los hijos de Snchez (1961/1964), trabalho no qual falam os
membros de uma famlia que mora na periferia da Cidade
do Mxico, e La vida (1966/1987), livro que d a palavra
a vrias geraes de porto-riquenhos em Nova Iorque.
Uma das crticas que Barnet dirige a Lewis que ele, em
Los hijos de Snchez (1964), faz o estudo de um estrato
social e no de um contexto nacional (BarnEt 1998:
38). Crtica inconsistente (e no caso tambm injusta) que
confirma que o antroplogo cubano subordina tudo a
uma teleologia nacional: para ele, o estado nacional o
ponto de partida e de chegada obrigatrio para qualquer
pesquisa, independentemente do tipo de relao que o
grupo social estudado mantenha com o estado-nao.
Sempre no mesmo ensaio, Barnet enfatiza a falta
de literariedade dos trabalhos de Lewis, antroplogo cujo
mtodo, segundo ele, o seguinte: escrevo o que voc
me diz e como o diz12. Para ele, a imaginao literria
12 Dois anos antes, porm, em 1968, Barnet, em uma resenha
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tem de acompanhar a imaginao sociolgica (BarnEt
1998: 27). Lewis, cuja trajetria cientfica comeou antes
da de Barnet, nunca pretendeu escrever romances-teste-
munho. Isso no quer dizer que La vida ou Los hijos de
Snchez sejam simples transcries de entrevistas: como
qualquer trabalho que pretenda dar a palavra aos su-
balternos, estes livros so produto de todo um complexo
processo de seleo, montagem, edio e difuso. E como
Barnet, Lewis escolheu seus interlocutores em funo do
discurso que pretendia produzir, no caso a defesa de sua
antropologia da pobreza13. Para Lewis, os pobres e,
particularmente, os habitantes desse espao transnacio-
nal que Mike Davis (2006) chamou de Planet of slums,
tm, independemente de sua origem e seu lugar de resi-
dncia, o mesmo tipo de cultura: uma cultura condicio-
nada, fundamentalmente, pela marginalidade.
sobre Lewis intitulada Testimonio falso o realidad? (Barnet 1998: 58-69), reconhece repetidamente no s as qualidades etnolgicas como tambm o valor literrio da obra do antro-plogo americano, chegando a afirmar que la literatura lati-noamericana se enriquece con este libro (ibid.: 69).
13 Uma formulao sistemtica desta teoria se encontra em La vida, Mexico, Grijalbo, 1983, XLIV-LVII.
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
Nos anos de auge dos movimentos revolucionrios
na Amrica Latina, os testemunhos populares que vo
sando, em alguns casos graas ao prmio Testimonio
da Casa de las Amricas (Havana), se baseiam amide
nos depoimentos de lderes populares. No Peru, Huill-
ca: habla un campesino peruano, publicado por Hugo Nei-
ra Samnez (prmio Casa de las Amricas, 1974)14; na
Bolvia, Si me permiten hablar. Testimonio de Domitila, una
mujer de las minas bolivianas, Moema Viezzer (Siglo XXI,
1980 [1977]); no Guatemala, Me llamo Rigoberta Mench
y as me naci la conciencia, editado por Elizabeth Burgos-
Debray (prmio Casa de las Amricas, 1982). Para dar
maior peso ao discurso progressista ou revolucionrio
que pretendem difundir, os editores enfatizam, habitual-
mente, a representatividade de seu(s) informante(s).
Editora da biografia de Domitila, Moema Viezzer (1980:
3), por exemplo, escreve na sua introduo: El itinerario
de Domitila se inscribe dentro de la gran trayectoria de
14 No seu prlogo, Neira (1974: 8) admite que seu interlocu-tor, Huillca, contina hablando solamente quechua []. Se isto verdade, como que se realizaram as entrevistas? Quem as dirigi? Quem realizou a traduo para o espanhol? O editor do texto no oferece nenhuma resposta a tais perguntas.
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la clase trabajadora y del pueblo boliviano. O que se
sugere demagogicamente ao leitor que a voz reco-
lhida pelo editor ou a editora do testemunho a voz de
todo um povo. No caso de Rigoberta Mench, a preten-
dida representatividade da testemunhante contribuiu
a provocar grandes polmicas. Mas essa a pergunta
fundamental quem fala realmente neste tipo de textos?
No seu ensaio j mencionado, Spivak se refere,
irnicamente, ao intelectual do primeiro mundo dis-
farado de no-representante ausente que deixa que
os oprimidos falem em seu prprio nome15. Embora
ela tenha em mente Foucault e Deleuze, no h dvida
que sua observao pode ser aplicada a todos os inte-
lectuais no s aos do primeiro mundo que se-
questram fragmentos de discurso subalterno em funo
de objetivos no necessariamente compartilhados pelos
autores originais desse discurso. Mas qual a alternati-
va? Na verdade, a existncia do sujeito anti-moderno
(Chakrabarty) sempre e inevitavelmente ser, nos livros
15 [] first-world intellectual masquerading as the absent nonrepresenter who lets the oppressed speak for themselves (spivak 1988: 292).
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
ou nos filmes realizados pelos intelectuais urbanos de
classe mdia (ou alta), uma quoted existence. Tambm nos
escritos como os de Boaventura Santos Sousa que
de maneira algo paternalista atribuem, a esse sujeito
anti-moderno, uma epistemologia outra, a do sul 16.
Nesta situao de aporia poltico-epistemolgica, a ni-
ca sada praticvel, a meu ver, de o intelectual se des-
mascarar radicalmente, explicitando seu papel e sua
16 A epistemologia do sul, tal como definida por Boaventu-ra de Santos Sousa no trecho reproduzido a seguir, lembra, na sua formulao apodctica, a definio da ideologia proletria pelos marxistas. The two premises of an epistemology of the South are as follows. First, the understanding of the world is much broader than the Western understanding of the world. This means that the progressive change of the world may also occur in ways not foreseen by Western thinking, including cri-tical Western thinking (Marxism not excluded). Second, the diversity of the world is infinite. It is a diversity that encompas-ses very distinct modes of being, thinking and feeling, ways of conceiving of time and the relation among human beings and between humans and non-humans, ways of facing the past and the future and of collectively organising life, the production of goods and services, as well as leisure. This immensity of alter-natives of life, conviviality and interaction with the world is largely wasted because the theories and concepts developed in the global North and employed in the entire academic world do not identify such alternatives (santos 2012: 51)
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posio (privilegiada, preeminente) no dilogo com os
subalternos. No caso da apresentao de testemunhos
subalternos, por exemplo no contexto de uma pesquisa
em histria oral, isso significa revelar com um mximo
de transparncia as condies de produo e de edio
dos depoimentos.
O intelectual se desmascara: histria oral e cinema documental
Um trabalho de histria oral cuidadosamente prepara-
do e executado Canto de morte kaiow de Jos Carlos
Sebe Bom Meihy (1991). No Brasil, comea por expli-
car o autor, existem segmentos da populao contem-
plados apenas pela documentao externa, produzida
sobre eles []17. Mas para mudar essa situao, no
basta acrescenta lucidamente o autor entregar-se
seduo de dar voz aos vencidos. Levando em conta
o contexto no qual se trabalha, importante relacionar
o conhecimento com a realidade poltica; objetivo do
17 Todas as citaes deste pargrafo provm dos dois captulos introdutivos de Canto de morte kaiow (mEihy 1991: 15-33).
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
trabalho chegar a fazer uma histria pblica, uma
histria que privilegia o social como alvo do conheci-
mento. Para isso se parte de uma questo inspirador,
no caso o suicdio dos ndios sul-mattogrossenses: uma
proposta socialmente comprometida a ao mesmo tem-
po cientfica. Mas, se pergunta logo o autor, como
vencer a inevitvel distncia entre brancos [] e os
ndios pobres, a incompatibilidade entre duas cultu-
ras?. A soluo sugerida consiste em adotar o mtodo
da entrevista no-diretiva, respeitando ao mximo
a sofisticada lgica dos ndios. Quanto edio dos
testemunhos, o autor indica, sem precisar o que isto
significa exatamente, que a fala dos ndios tem de ser
traduzida para o cdigo do branco. Nesta fase, diz
logo, anula-se a voz do entrevistador e passa-se su-
presso das perguntas e sua incorporao no discurso
do depoente. As vezes, admite o autor, se impe a
complementao de palavras ou frases que no foram
mais que insinuadas. Consciente do carter delicado
deste procedimento, o autor explica que vital que as
entrevistas, antes de sua publicao, sejam legitimadas
pelos depoentes. Precauo louvvel, mas que no pode
ocultar o fato de o subalterno no estar em condies de
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conhecer todas as implicaes de sua participao em
um projeto elaborado e realizado em funo dos objeti-
vos e dos critrios do editor18.
Se no Canto de morte kaiow as (muitas) pre-
caues tomadas na obteno das entrevistas parecem
adequadas, os procedimentos usados na sua edio me-
receriam, a meu ver, alguma discusso. Ao anular a voz
as perguntas do entrevistador se melhora sem d-
vida a legibilidade do texto, mas se suprime um dos
componentes decisivos da situao (comunicativa) que
permitiu obter o testemunho: a interao entre entre-
vistador e entrevistado. verdade que o autor faz ques-
to de trazer ao leitor o que chama a aura do momento
da gravao, mas s a aura: no sua realidade. Uma
realidade sempre caracterizada, como bem lembra Bill
18 J no sculo XVI, em Cusco, o cronista Sarmiento de Gam-boa, para legitimar sua histria oral dos Incas, fez ler em pblico e logo aprovar pelos representantes das grandes fam-lias os depoimentos recolhidos e transcritos por ele. pouco provvel que os depoentes incaicos se dessem conta de que o objetivo que perseguia Sarmiento era demonstrar que os Incas eram usurpadores. Alis, os indios presentes s aprovaram o esqueleto do texto de Sarmiento: um texto que desqua-lifica constantemente a veracidade de seus depoimentos (cf. liEnhard 2008: 90).
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
Nichols no seu livro sobre o cinema documental, pela
existncia de uma relao inevitavelmente hierrquica
entre entrevistador e entrevistado (niChols 1991: 47).
Em uma gravao audio-visual (e quero agora,
para terminar, comentar brevemente as vantagens des-
ta tcnica), essa relao fica sempre patente. Embora
o cineasta, como amide acontece, procure anular sua
presena ou seu papel, as imagens e a banda sonora de-
latam inevitavelmente o tipo de interao se estabele-
ceu entre ele e o entrevistado. A diferena de um de-
poimento transcrito, um depoimento filmado deixa ver
e ouvir uma infinidade de detalhes que contribuem a
situar a fala do entrevistado, entre eles as caractersticas
da encenao (cenrio, distribuio dos interlocutores
no espao, presena ou no de ouvintes), a atuao e o
jogo do entrevistado (que reage ao jogo do entre-
vistador), as particularidades de sua enunciao (cadn-
cia e ritmo da fala, tom da voz). Pelo menos parte desses
detalhes escapam inevitavelmente ao controle do ci-
neasta, mas hoje, de toda maneira, muitos documen-
taristas, seguindo a lio do cinma-vrit (inaugurado
em 1961 por Chronique dun t, Crnica de um vero,
de Jean Rouch e Edgar Morin), optam por revelar os
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secretos de seu trabalho cinematogrfico, em parti-
cular as modalidades de interao que vigoram durante
a filmao entre o cineasta e seus personagens. Diante
de um filme ou vdeo auto-reflexivo, o espetador no s
ouve a voz e v a performance do(s) testemunhante(s),
como tambm recebe informao sobre a maneira como
se obtiveram os testemunhos apresentados pelo filme.
Um exemplo quase didtico no de cinma-vrit mais
de um filme no qual o aspeto auto-reflexivo se torna
decisivo Santiago (2007) de Joo Moreira Salles. Per-
sonagem dessa obra Santiago, o antigo mordomo da
famlia Moreira Salles; o documentarista um dos filhos
dessa famlia de banqueiros brasileiros. No ano 1992,
o cineasta filmou vrias entrevistas com Santiago, al-
gumas delas imobilizando-o no que tinha sido, antiga-
mente, seu lugar de trabalho por excelncia: um estrei-
to corredor que leva para a cozinha. Nessas entrevistas,
Santiago lembra sua fascinao pela(s) histria(s) de to-
dos os reis e prncipes que j houve na histria do mun-
do, revelando dessa maneira que ele, mordomo de uma
famlia da alta burguesia brasileira, tinha tambm uma
outra vida: a de historiador da aristocracia mundial.
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
Moreira Salles, no satisfeito com o resultado de suas fil-
magens, abandonou o projeto para retom-lo depois da
morte de Santiago, quase quinze anos mais tarde. No
se tratava, j, de completar um filme j comeado, mas
de fazer, com os mesmos materiais, um outro filme para
entender ou explicar o fracasso do projeto inicial. Uti-
lizando rushes do processo de filmao, o cineasta deixa
ver e ouvir, nas sequncias finais do filme definitivo, o
autoritarismo que caracterizou a encenao e a condu-
o das entrevistas com Santiago. Seu comentrio em off
lembra, de alguma maneira, o que Godard, meio sculo
antes, disse acerca da impossibilidade da comunicao
entre o cineasta e os operrios:
que ele [Santiago] no era apenas meu personagem, eu
no era apenas um documentarista. Durante os cinco dias
de filmagem, eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa
e ele nunca deixou de ser nosso mordomo.
O filme de 1992 teria sido, simplesmente, um re-
lato sobre a curiosa alienao de um mordomo brasilei-
ro. Na verso definitiva de 2007, o cineasta, fazendo-
se personagem do filme, deixa ver que tanto Santiago
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quanto ele prprio se encontram presos no papel que
era o seu na realidade social brasileira. Diante da cma-
ra, Santiago, alm de subalterno em termos sociais,
tambm como que um ttere que o documentarista
maneja sua vontade. Ao no ocultar a relao dupla-
mente hierrquica que existe entre o cineasta (filho de
banqueiro) e seu personagem (mordomo de banquei-
ros), Santiago o filme realiza uma operao simulta-
neamente autocrtica (dirigida contra o abuso de poder
por parte do cineasta) e crtica (contra a remanescncia,
no Brasil, de relaes sociais quase feudais).
Mais de vinte anos antes, no terreno do cinema pol-
tico, Eduardo Coutinho, realizou, com Cabra marcado
para morrer (1984), um filme que constitui, alm de seu
valor documental, uma importante reflexo cinemato-
grfica sobre o cinema engajado19. Em 1962, a raiz do
assassinato de Joo Pedro Teixeira, fundador da Liga
Camponesa em Sap (Paraba), Coutinho decide realizar
um filme de fico sobre a vida e a morte de Joo Pedro
19 Um excelente trabalho sobre este filme se encontra em Lins 2007: 30-57.
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
Teixeira, filme no qual a viva de Joo Pedro, Elizabeth
ia a fazer o papel que lhe correspondeu na realidade
vivida. A filmagem comea em fevereiro de 1964 em
Galilia (Pernambuco), mas brutalmente interrompi-
da, poucas semanas depois, pelo golpe militar. Vrios
camponeses e membros da equipe de filmagem so
apreendidos; os militares confiscam parte do material.
Em 1981, na poca do governo de transio do general
Figueiredo, Coutinho volta a Galilia para retomar seu
filme ou, mais exatamente, para fazer um filme novo,
diferente, que comea com o reencontro com os cam-
poneses atores de 1964 e a projeo dos materiais que
se filmaram com eles nessa poca. Cabra marcado para
morrer, um filme de 1984, ser um filme sobre um filme
inacabado de 1964, que contm, alm de fragmentos
desse filme, a narrativa voz e imagens dos sucessos
de 1962, entrevistas com os camponeses-atores de 1964
que assistiram em 1981 projeo do filme de 1964 em
Galilia e, finalmente, a narrativa cinematogrfica do
encontro no s com Elizabeth, viuda de Joo Pedro e
atriz principal do filme de 1964, como tambm com os
descendentes dela. Alm de um documentrio sobre um
projeto poltico-cinematogrfico abortado, Cabra
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um testemunho coletivo sobre o movimento campons
antes e durante a ditadura militar e um discurso sobre
a histria poltico-social brasileira entre 1962 e 1981.
Mas tambm, e o que quero enfatizar aqui, um filme
que permite avaliar o itinerrio intelectual e artstico de
um importante cineasta brasileiro entre 1964 e 1981.
Em 1964, Coutinho ia fazer um filme no qual os cam-
poneses atores seguiam um roteiro idealizado e escrito
pelo cineasta; um filme agit-prop vagamente inspirado
na tradio neo-realista. Em 1981, quando ele volta
ao Nordeste, no h roteiro nem a inteno de fazer
um cinema propriamente militante. O filme, agora,
avana em grande medida ao ritmo dos encontros e das
revelaes dos atores-personagens, de aqueles homens
e mulheres que 16 anos antes s foram atores-recitan-
tes de uma histria contada por outro. Cabra marcado
para morrer produto de umas circunstncias nicas e
portanto inimitvel20, mas ao mesmo tempo um filme
20 Combinando imagens das grandes greves do ABC paulista de 1979-1980 e entrevistas com os antigos grevistas, Pees (2002) de Eduardo Coutinho , sem dvida, o filme que mais se aproxima, no pela histria que conta mas enquanto traba-lho cinematogrfico, a Cabra marcado para morrer.
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Intelectuais: porta-vozes dos pobres?
que inaugura um novo tipo de relacionamento, menos
demaggico ou paternalista e mais horizontal, entre o
intelectual e os pobres.
Bibliografia
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