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1. INOVAÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: O IMPACTO DO APLICATIVO UBER NO MERCADO CONSUMIDOR BRASILEIRO.1
ALESSANDRA GARCIA MARQUES Mestre em Direito Constitucional pelo IBDP/IDP
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UCAM Especialista em Direito Tributário pela UCAM
Especialista em Direito Sanitário pela UNB Graduada em Direito pela UFU, Graduada em História pela UFU
Promotora de Justiça de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Estado do Acre
Presidente da MPCON. [email protected]
Sumário:
1 Introdução 2 O Uber e as inovações 3 Inovações e os direitos fundamentais 4 A inovação Uber e o direito brasileiro 5 Inovação e a possibilidade de colisão de direitos fundamentais: o Uber 6 Conclusão 7 Referências
Área do Direito: Fundamentos do Direito
Resumo: O presente artigo analisa o impacto do aplicativo Uber no mercado consumidor
brasileiro, na perspectiva dos reflexos que a inovação ocasiona sobre os direitos fundamentais.
O que se busca aqui é pensar em que medida a inovação atinge os direitos fundamentais,
averiguando se o Uber provoca colisões de direitos fundamentais ou se os problemas jurídicos
que com ele surgiram situam-se apenas no âmbito da interpretação das normas
infraconstitucionais à luz da Constituição da República. Para isso, a metodologia utilizada
consiste na análise conceitual do que vem a ser inovação, a fim de que se possa compreender
seu impacto sobre o direito e, concretamente, o impacto do Uber sobre o direito, devendo-se,
ademais, empreender uma análise crítica acerca do tratamento dado ao serviço de transporte
individual de passageiros pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ao final analisando a natureza
jurídica do novo serviço, a constelação de direitos fundamentais em jogo no caso concreto e as
normas jurídicas sobre transporte no Brasil, é possível constatar que não há de se falar em
colisão de direitos fundamentais provocada pelo Uber, embora as inovações possam ocasioná-
las, sendo que no caso o que existe são problemas no âmbito da interpretação das normas
infraconstitucionais que regem o tema, normas que devem ser todas devidamente
interpretadas conforme a Constituição.
1 Texto original publicado na Revista de Direito do Consumidor 2016 RDC VOL. 107 (SETEMBRO -
OUTUBRO 2016). São Paulo: RT. 2016.
1. Introdução
A velocidade com que as mudanças ocorrem no mundo é uma característica evidente do
tempo atual. Muitos olhos ainda habituados a um tempo que transcorria com moderação não
raramente sentem desconforto diante das mudanças rápidas e constantes. Se há os que
resistem em acreditar que fomos modernos, o que, por consequência, nos impediria de
sermos pós-modernos (LATOUR, 2009), é verdade também que pelo menos a velocidade das
mudanças, uma das características da pós-modernidade – para os que nela acreditam –, não
pode ser negada, ainda que haja discordância a respeito do nome a ser dado ao tempo em que
vivemos. O termo pós-modernidade, aliás, surge nos Estados Unidos da América, no final da
década de 1960, tendo seguidamente sido adotado na Europa por filósofos e historiadores
como Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Jean Baudrillard, dentre outros.
Criticado por muitos e recepcionado por outros tantos, é fato que sobre o polêmico termo
pós-modernidade praticamente inexiste consenso, o que fica evidente a começar quanto ao
seu marco inicial. Um de seus maiores defensores, o filósofo francês Jean-François Lyotard
(1998), afirma que tal marco seria o fenômeno da sociedade pós-industrial, o que poderia ser
identificado com o fim da Segunda Guerra Mundial, tendo ocorrido mais rapidamente em
alguns países e menos em outros, de sorte que a pós-modernidade inegavelmente seria uma
resposta ao nazismo, ao mesmo tempo em que caracterizaria esse momento o rompimento
com as antigas verdades até então inquestionáveis do liberalismo e do marxismo.
De qualquer modo, o termo pós-modernidade ganhou enorme importancia, sobretudo a partir
do fim da década de 1980, quando, com a queda do muro de Berlim, ficou consagrada a crise
das velhas verdades.
Ainda a respeito da pós-modernidade, Barroso diz-nos que:
Planeta Terra. Início do século XXI. Ainda sem contato com outros mundos habitados. Entre luz
e sombra, descortina-se a pós-modernidade. O rótulo genérico abriga a mistura de estilos, a
descrença no poder absoluto da razão, o desprestígio do Estado. A era da velocidade. A
imagem acima do conteúdo. O efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o
essencial. Vive-se a angústia do que não pôde ser, e a perplexidade de um tempo sem
verdades seguras. Uma época pós-tudo: pós-marxista, pós-kelseniana, pós-freudiana.
(BARROSO, 2003, p. 150)
Se a descrição para o mundo visto por Marx e Engels (1988) no Manifesto Comunista pode ser
sintetizada na frase “Tudo que é sólido desmancha no ar”, conforme disse Berman (2008),
como poderia ser resumida uma descrição de Marx, sem dúvida um dos maiores críticos e
observadores dos acontecimentos históricos de todos os tempos, se vivo fosse, para o mundo
que emergiu após a Segunda Guerra Mundial, especialmente a partir da década de 1980? Se
não é fácil encontrarmos frase tão impactante quanto a citada, que descreveu aquele tempo,
para representar o mundo atual, é possível ao menos levantarmos características deste tempo
em que as verdades absolutas foram soterradas, no qual a razão não mais demonstra a força
de antes, num ambiente em que as sociedades plurais e complexas deparam-se com mudanças
tecnológicas que ocorrem permanentemente, tornando as relações e até as pessoas e as
coisas voláteis e absolutamente efêmeras.
Para Jayme (2016, p. 118-120):
A pós-modernidade vive de outros pensamentos. O comum, o igual não será negado, mas
aparece como subsidiário, como menor. A identidade cultural do indivíduo, como a dos povos,
é que necessita de atenção. A pluralidade reaparece como um valor jurídico (Rechtswert); as
diferenças entre ordens jurídicas passam a ser interessantes.
Com isto, nos aproximamos da segunda tese, qual seja, do interesse da pós-modernidade no
acontecimento contemporâneo, momentâneo, confirmando uma nova maneira de perceber a
comparação. (...)
Dentre os valores básicos da pós-modernidade destaca-se o reconhecimento do pluralismo, da
pluralidade de estilos de vida e a negação de uma pretensão universal à maneira própria de ser
(die Absage an universelle Ansprüche eigener Anschauungen). Isto pode ser dito de forma mais
radical: É a aceitação do não conciliável (Hinnahme des Unvereinbaren).
Segundo o mestre alemão Erik Jayme, é possível identificarmos características da cultura pós-
moderna que se relacionam com o direito. Essas características são o pluralismo, a
comunicação irrestrita, a narração e um certo retorno dos sentimentos. Sobre o pluralismo, o
autor destaca o pluralismo de fontes legislativas, o de sujeitos a proteger e o de agentes
ativos. Esse pluralismo relaciona-se à pluralidade de estilos de vida. Já a comunicação, para o
referido autor, é o valor máximo da pós-modernidade juntamente com a extrema valorização
do tempo nas relações humanas, do direito enquanto instrumento de comunicação, de
informação, sendo a comunicação agora um método de legitimação. Quanto à narração, Erik
Jayme assevera que essa advém da comunicação, da informação que invade o direito e as
normas legais, ao passo que o quarto valor levantado pelo autor é um retorno dos
sentimentos no discurso jurídico (MARQUES; CHAPACUZ e VITÓRIA, 1999).
A fluidez e a volaticidade das coisas, das relações e até mesmo das pessoas e das crises
impressionam no contexto atual, em que as calmarias e também as tempestades ocorrem com
enorme velocidade. Nesse mundo em que todas as certezas antigas ruíram rapidamente, no
qual a riqueza também sofre radical transformação, pois ter riqueza não mais significa
acumular bens materiais, o homo faber de Arendt (2010) foi substituído em grande parte por
um homem que anseia por serviços, por bens imateriais e por acesso ao crédito, homem esse
que, ademais, se encontra inserido num mundo em que o avanço da técnica em escala
mundial abala todas as estruturas, modifica comportamentos e ideias, e torna as inovações de
ontem ultrapassadas hoje.
Nesse mesmo mundo em que a riqueza não mais está ligada aos bens móveis e materiais, no
qual a propriedade de terras e de bens móveis perde a relevância que historicamente teve, é
tranquilo afirmar que as inovações nunca surgiram tão rapidamente quanto agora. Tudo num
piscar de olhos e, não raras as vezes, ao mesmo tempo. Hoje, quando os dados relevantes
sobre a vida de uma pessoa e até o seu patrimônio podem estar em uma nuvem, a economia
também toma novos rumos, e o Direito, assim, precisa mudar, e alcançar os fatos
cotidianamente urgentes e muitas vezes breves, mas nem por isso todos necessários, da vida.
De uma sociedade de massa tão refletida por pensadores importantes como os da Escola de
Frankfurt, passamos para uma sociedade da hiperabundância, na qual os excluídos são todos
aqueles que estão alheios à sociedade de consumo. Como explica Bauman (1998), ao distinguir
a sociedade moderna, sólida, da sociedade pós-moderna, líquida, se anteriormente a
sociedade dita moderna era vivida como sólida com projetos sociais e ideologias condutoras
de rumos para os homens, na pós-modernidade não se tem mais isso.
Na pós-modernidade vive-se, como ele denomina, uma espécie de modernidade líquida,
fluida, desapegada de promessas ideológicas, de compromissos sociais e políticos e com um
consumismo exacerbado. O que importa neste tempo é consumir sem pensar nas
consequências das compulsões estimuladas pelo mundo atual. Essas compulsões levam cada
vez mais à individualidade e ao isolamento afetivo como formas de proteção.
Neste contexto em que o ligeiro desenvolvimento da tecnologia de hoje devasta e torna
obsoletas as inovações de ontem, no qual como nunca a proteção do consumidor pelos
ordenamentos jurídicos tornou-se imprescindível, porque ser consumidor é uma condição
comum a quase todos os seres humanos, e que diferencia os incluídos dos excluídos, é que, na
economia, surge a sharing economy, que emerge e cresce de modo surpreendente não só
como decorrência da crise que abateu o mundo a partir de 2008, como também em razão do
próprio avanço tecnológico. Falamos não só em economia compartilhada como também em
consumo colaborativo numa economia igualmente colaborativa, num mundo em que ter
propriedade, especialmente de bens imóveis, é menos importante do que desfrutar dos bens e
serviços e, preferencialmente, desfrutar de modo compartilhado.
A sharing economy ou economia compartilhada, que foi definida por Thomas Friedman (2013),
é caracterizada por ser um jeito novo de oferecer produtos e serviços, que tem relação com a
crise, com a escassez de recursos e com a saturação dos recursos naturais eo próprio mercado.
Nessa economia a propriedade não tem a mesma importância de antes, não exerce papel
preponderante. A ideia é compartilhar, dividir o uso de bens e de serviços com outras pessoas.
Trata-se de compartilhar serviços e produtos. E é daí que emergem, por exemplo, o Uber e o
Airbnb.
Hoje, falamos em financiamento coletivo de projetos (crowfunding) como livros, patrocínios
esportivos, filmes, turismo sustentável; e também já falamos em crowdsourcing (divisão de
trabalho e de tarefas). É possível, ademais, compartilharmos carros (carsharing), bicicletas
(bikesharing), carona (carpooling ou carona solidária), trabalho (coworking), brinquedos,
condomínios, músicas, jogos, roupas (clothing swap), calçados, tempo, viagens,
eletroeletrônicos, imóveis etc.
Essa economia compartilhada obviamente traz importantes mudanças no sistema capitalista,
que é historicamente fundado no acúmulo de bens materiais, porque naquela o que importa é
desfrutar dos bens, de forma que compartilhar bens e serviços é o que interessa à sharing
economy, que, por sua vez, deve ser pensada no Brasil, à luz do art. 5.º, XXXII, que claramente
estabelece o consumidor como sujeito especial de direitos, e exige que o Estado proteja os
direitos do consumidor.
É, assim, nesse cenário, que a reflexão sobre os impactos das inovações – que não são apenas
tecnológicas, embora as tecnológicas tendam a preponderar – sobre os direitos fundamentais
torna-se necessária, posto que as inovações, não raras as vezes, geram conflitos sociais e
aglomeram em torno delas um feixe de interesses que podem ser até colidentes, permitindo,
ainda, que direitos fundamentais sejam por meio delas exercidos.
E o aplicativo Uber é precisamente uma inovação que, nos mercados onde ingressa, impõe
reflexões, mudanças de paradigmas e gera controvérsias.
Por tudo isso, no presente trabalho pretendemos empreender uma análise a respeito do
impacto do aplicativo Uber no mercado consumidor brasileiro, na perspectiva dos reflexos que
essa inovação ocasiona sobre os direitos fundamentais.
Buscamos pensar em que medida o Uber, enquanto inovação que é, atinge direitos
fundamentais, averiguando se o referido aplicativo provoca colisões de direitos fundamentais
ou se os problemas jurídicos que surgiram com seu ingresso no mercado situam-se apenas no
âmbito da interpretação das normas infraconstitucionais à luz da Constituição da República.
Para isso, a metodologia aqui utilizada consiste na análise conceitual do que vem a ser
inovação, a fim de que se possamos compreender seu impacto sobre o direito e,
concretamente, o impacto do Uber sobre o direito, quando, ademais, faremos uma análise
crítica acerca do tratamento dado ao transporte individual de passageiros pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
2. O Uber e as inovações
No mercado brasileiro a entrada em operação do aplicativo Uber tem gerado, desde o início,
controvérsias, e, não raramente, até mesmo conflitos violentos, sobretudo entre taxistas,
prestadores do serviço de utilidade pública de transporte individual de passageiros e os
motoristas que aderiram ao aplicativo da empresa estadunidense.
O Uber é um aplicativo móvel (application software) para smartphones lançado no mercado
consumidor pela empresa estadunidense Uber Technologies Inc., em 2009. No Brasil, a pessoa
jurídica de direito privado Uber Brasil Tecnologia Ltda. entrou no mercado no ano de 2014,
permitindo que usuários do serviço de transporte individual de passageiros contratem esse
serviço porta a porta ou por demanda, exclusivamente por meio do aplicativo, sem uso de
telefone e sem a utilização de pontos fixos. A Uber, atualmente, atua em mais de cinquenta
países, e já está abrindo para o transporte não apenas por meio de carro como também por
motos.
Os motoristas, que somente podem se credenciar por meio da plataforma Uber, sem que a
relação entre eles e a empresa Uber possa ser configurada como sendo uma relação de
trabalho, depois de credenciados serão mantidos assim até que a avaliação negativa dos
usuários os exclua. O usuário, que também se credencia no aplicativo para usá-lo, deve avaliar
os motoristas atribuindo de zero a cinco estrelas.
A Uber, que distingue seu serviço dizendo ser um serviço por demanda, exige dos motoristas
segurança, conforto e luxo, o que guarda relação com os tipos de veículos que ela permite que
sejam utilizados, sendo que o preço do serviço fica ao alvedrio da empresa, que diz calculá-lo
conforme a distância e o tempo da viagem. A informação sobre o preço deve ser dada ao
usuário, enquanto o pagamento pode ser feito em dinheiro ou por meio de cartão de crédito.
No momento do pagamento realizado com cartão de crédito, a Uber desconta sua
remuneração.
O Uber é evidentemente uma inovação.
Quanto ao conceito de inovação, por sua vez, esse depende da aplicação. No senso comum a
inovação é a exploração bem-sucedida de ideias novas. Aprofundando no conceito,
entendemos que é possível inovar tecnologicamente, quando o que se inova são produtos ou
processos, sendo que as inovações podem estar relacionadas também a novos mercados,
métodos de organização, negócios etc.
Segundo Hoffmann-Riem (2015, p. 11-13), “inovações são consideradas melhorias
significativas e sustentáveis, que contribuem para lidar com a gestão de conhecidos ou novos
problemas”. O autor diz que inovações não são apenas tecnológicas, pois podem ser também
sociais.
Inovações podem ser relevantes a ponto de produzirem impactos sobre os preços, as
empresas, os mercados e até sobre a economia. E, em razão da relevância que uma inovação
pode ter, pode ser que ela também ocasione impactos nos direitos fundamentais. Aqui é
preciso considerarmos que uma inovação pode possibilitar que direitos fundamentais sejam
exercidos por meio delas, o que obviamente permite que as inovações acarretem riscos aos
direitos fundamentais e, inclusive, colisão de direitos fundamentais, o que depende de como
são compreendidos esses direitos, tal como adiante veremos. Inovações apresentam, assim,
desafios para o direito, afetando esse com relação à fiscalização, à regulação e à aplicação.
A respeito da inovação Uber, há divergências entre analistas de mercado e estudiosos do
empreendedorismo sobre a natureza da inovação, que para alguns é disruptiva, enquanto
outros negam tal característica. Embora essa discussão não tenha grande relevância para o
direito, é preciso destacarmos que o Uber, no Brasil, não é o único aplicativo utilizado no
serviço de transporte individual de passageiros, pois por aqui o serviço de utilidade pública de
transporte individual de passageiro já experimenta o uso de aplicativos, tal como acontece
com o Easy Taxi e o 99 Taxi.
De qualquer sorte, quem desenvolveu o conceito de inovações disruptivas, a partir da década
de 90, foi Clayton Christensen, em sua obra The Innovator´s Dilemma (1997), quando, ao tratar
dos ciclos, inspirou-se no conceito de destruição criativa do economista Joseph Shumpeter,
para descrever o ciclo das inovações avassaladoras. O autor procurou, ademais, diferenciar as
inovações disruptivas das inovações sustentadoras. Segundo ele, há dois tipos de inovação, as
disruptivas e as sustentadoras, sendo aquelas as que originam novos mercados e novos
modelos de negócio, ao passo que essas apenas resultam em produtos ou serviços que
alcançam as expectativas dos clientes já estabelecidos.
Christensen e Raynor (2003) distinguem as inovações disruptivas em duas, a new market e a
low-end. A primeira é caracterizada por uma busca de novos consumidores e a criação de
novos atributos e valores ao produto ou ao serviço, enquanto a última tem como característica
o baixo custo, de sorte que seu público consiste nos consumidores menos atrativos para as
empresas já existentes no mercado.
Tendo em vista o conceito de inovação disruptiva, o Uber, no Brasil, até o momento, não se
apresenta exatamente como uma inovação disruptiva, porque ainda não criou mercado novo
que até então era desprezado pelas empresas existentes no mercado consumidor, ao mesmo
tempo em que não tem atingido segmentos baixos de mercado disponíveis, caracterizados por
consumidores menos exigentes a serem beneficiados com o baixo custo do que é ofertado
como novo. O serviço prestado por meio do Uber, no Brasil, concorre claramente com o
serviço prestado pelos taxistas.
A empresa Uber e os motoristas particulares a ela credenciados prestam serviço que pode ser
chamado de carona paga, de serviço por demanda etc. A denominação, contudo, é o que
menos interessa, pois, até o momento, considerando as normas que regem o serviço ofertado
e sua prestação efetiva, ainda que os usuários possam aceitar outros passageiros na mesma
corrida, dividindo o valor a ser pago pelo serviço, o uso do app Uber no Brasil não tem indicado
que estaria sendo criado um mercado novo e nem mesmo que tenha sido encontrada uma
oportunidade num segmento baixo no qual estaria sendo feita a oferta do serviço de
transporte a baixo custo.
Ainda não é possível dizer com absoluta certeza, portanto, que por meio do Uber a empresa
Uber localizou uma oportunidade num segmento baixo, porque isso implicaria dizer que os
fornecedores de serviços de táxi teriam deixado de considerar um grande número de usuários
do serviço de transporte, que teriam suas necessidades desatendidas pelo serviço de táxi.
Além disso, a empresa Uber até o momento tem atingindo o mesmo público que faz uso do
serviço de táxi, o que, aliás, não é desmentido por sua estratégia de ingresso no mercado
consumidor brasileiro.
Na verdade, a estratégia da Uber evidencia a concorrência direta com o serviço de táxi, pois
raramente é possível notarmos a descrição do serviço como sendo inferior ao serviço de
transporte feito pelos táxis. Aliás, até o momento, parece ser até superior a esse último em
qualidade, ao mesmo tempo em que o preço efetivamente não indica serviço de baixo custo
nem serviço de valor menor do que o serviço de táxi.
De qualquer modo, os conflitos que se seguiram à inserção do aplicativo Uber no mercado
brasileiro, caracterizados por algumas iniciativas legislativas localizadas no sentido de vedar a
utilização do aplicativo, e, sobretudo, pela violenta reação de taxistas contra motoristas
ligados ao Uber, não deixam dúvida acerca do peso, pelo menos momentâneo, da tratada
inovação.
Como não poderia deixar de ser, num cenário em que o Congresso Nacional, que realmente
tem atribuição para legislar sobre transporte e informática, permanece inerte, as demandas
individuais e coletivas1 começaram a chegar ao judiciário discutindo a legalidade do serviço de
transporte prestado por meio do Uber. Mas esse não é o principal motivo para tantos
conflitos. A verdade é que, como aqui será visto, a dificuldade reside na interpretação das
normas constitucionais e, sobretudo, das normas infraconstitucionais que versam sobre o
tema.
Se por um lado é evidente que, até por ainda ser novidade, somente o tempo poderá
efetivamente permitir constatar se o Uber é uma inovação disruptiva, por outro lado fica claro
que, de fato, a interpretação e a aplicação do direito nessa sociedade de informação é um
problema, não só porque os fatos ocorrem com velocidade e atropelam o direito como
também porque numa sociedade de informação pluralista e complexa há, geralmente, grupos
atentos e com interesses distintos e até colidentes.
3. Inovações e os direitos fundamentais
Os direitos fundamentais são fruto de construção histórica. Concebidos inicialmente na
dimensão subjetiva, enquanto direitos subjetivos oponíveis pelo titular contra o Estado, que
deveria se abster para assegurar direitos fundamentais, foram a revolução industrial e suas
consequências e, mais adiante, as experiências dos estados totalitários, o nazismo e o
fascismo, que fizeram aflorar a dimensão ou eficácia objetiva dos direitos fundamentais,
relacionada com o surgimento da segunda dimensão dos direitos fundamentais, os direitos à
prestação por parte do Estado.
Foi, assim, também historicamente, que os direitos fundamentais passaram a ser apreciados a
partir da eficácia positiva ou negativa, da eficácia horizontal ou vertical e da eficácia subjetiva
ou objetiva.
Quando falamos em eficácia ou dimensão subjetiva das normas de direitos fundamentais ou
dos direitos fundamentais propriamente, o que pretendemos dizer é que essas normas
conferem aos seus titulares o poder jurídico de exigir algo, uma abstenção ou até uma ação,
implicando o reconhecimento de um poder dado ao titular no sentido de exigir algo e na
hipótese de não cumprimento espontâneo pode ir, até mesmo, ao poder judiciário, quando
fará valer sua pretensão. Nessa dimensão, temos a concepção clássica dos direitos
fundamentais relacionada à ideia de direitos subjetivos. Nesse sentido, os direitos
fundamentais possuem cunho individualista e são oponíveis ao Estado.
A esse respeito temos que:
Isso leva a crer que os direitos fundamentais não podem ser entendidos apenas do ponto de
vista de certas concepções individualistas, pelo que acabariam sendo resumidos a um
emaranhado de posições jurídico-subjetivas em face do Estado. Os direitos fundamentais são a
expressão normativa do conjunto de valores básicos de uma sociedade. (VALE, 2009, p. 167).
A eficácia ou dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que está ligada à efetivação dos
direitos fundamentais, diz respeito ao fato de que certos valores que permeiam a ordem
jurídica condicionam a interpretação e aplicação de outras normas, ao que se denomina
eficácia irradiante, e ainda criam o dever geral de proteção sobre aqueles bens jurídicos
salvaguardados pelo ordenamento jurídico. Assim, enquanto na dimensão subjetiva o Estado é
parte adversa, agora, na dimensão subjetiva, o Estado torna-se um protetor dos direitos
fundamentais. Nessa perspectiva, tem sentido discutir, além da própria dimensão objetiva dos
direitos fundamentais, os termos que com essa se relacionam, a eficácia irradiante, a eficácia
horizontal e a vinculação positiva do Estado aos direitos fundamentais.
Importa dizermos que os direitos fundamentais surgem historicamente no processo de
superação do estado absolutista pelo estado liberal e burguês. Sucede que, adiante, o estado
liberal também passou a ser contestado, dada a evidente incapacidade de cumprir suas
promessas e de efetivar direitos fundamentais. Sobrevieram, assim, logo no início do século
XX, as primeiras constituições que previram direitos sociais, a do México e a deWeimar. A
partir de então, o debate acerca da efetividade dos direitos fundamentais, agora, também, de
cunho social, foi sendo fortalecido cada vez mais.
É nesse contexto que tem sentido pensarmos na dimensão objetiva dos direitos fundamentais,
que surge destacando o conteúdo axiológico dos direitos fundamentais, de sorte que esses
norteiam a interpretação e a aplicação das normas jurídicas existentes no sistema jurídico
(PEREZ LUÑO, 1998).
E essa dupla dimensão dos direitos fundamentais é tema importante para que possamos
entender a relação e os impactos das inovações sobre o direito. Isso guarda ligação com o fato
de que os direitos fundamentais, em sua dupla dimensão subjetiva e objetiva, pilares que são
do ordenamento jurídico brasileiro, podem ser afetados pelo advento das inovações, podendo
até mesmo ser exercidos por meio dessas, sendo que é possível e necessário, nesse cenário,
vislumbrarmos que, por vezes, uma ou outra dimensão ou até ambas podem ser afetadas
pelas inovações.
E, mais do que isso, como o direito não pode estar alheio ao que ocorre na sociedade, é
importante que ele esteja aberto às inovações, e que não as iniba, pois elas, que sempre
portam o risco de que sejam boas ou más, podem modificar a sociedade. Deve o direito, desse
modo, ao tempo em que deve cumprir sua função de estabilizar, estar aberto à criação de uma
estrutura que esteja igualmente aberta às inovações, às novas oportunidades.
4. A inovação Uber e o direito brasileiro
O Brasil fez evidente escolha pela construção de direitos civis na internet, quando optou, na
Lei do Marco Civil da Internet, pela consagração, enquanto princípios relativos à internet, da
promoção da liberdade de expressão, da privacidade, da neutralidade de rede, do direito de
acesso à internet, dos limites de responsabilidade dos intermediários e da defesa da abertura
da rede, que é de fundamental importância para as inovações. O indicado Marco Civil é,
claramente, uma lei favorável aos direitos civis e às inovações (LEMOS, 2014).
Essa escolha, aliás, é o pressuposto que deve ficar evidente, para que possamos discutir,
interpretar e aplicar a legislação infraconstitucional sobre as inovações ligadas à internet e
seus impactos.
Conforme Lemos (2014, p. 4.) explica:
Foi aí que decolou a ideia do Marco Civil da Internet. Em vez de tratar da regulação da internet
criminalmente, o passo natural, seguido por diversos outros países, seria primeiro a
construção dos direitos civis na internet. Em vez de repressão e punição, a criação de um a
moldura de direitos e liberdades civis, que traduzisse os princípios fundamentais da
Constituição Federal para o território da internet.
É perfeitamente possível compreendermos que essa preocupação do Marco Civil da Internet
com a proteção e o estímulo à inovação está relacionada ao fato de que, se por um lado há
sempre o risco de que uma inovação possa ser indiferente ou até maléfica à sociedade, por
outro lado existe também sempre o risco de que uma inovação seja extremamente benéfica e
até revolucionária socialmente. Na verdade, o risco de que as inovações sejam fator de
desenvolvimento social e de melhoria de vida é que as torna tão importantes, de sorte que
não as prestigiar, assim como negá-las, impedindo que uma inovação surpreenda, altere a
ordem das coisas e impacte positivamente a sociedade, significa engessarmos uma importante
possibilidade de desenvolvimento social.
É, portanto, partindo do valor que o estímulo às inovações possui, que devemos compreender
o Uber e sua relação com os direitos fundamentais e o direito propriamente, hoje, no Brasil.
A respeito do transporte, que, enquanto serviço, foi impactado pelo Uber, temos que esse é
um direito social previsto no caput do art. 6.º da CF, a qual, ao tratar do tema, ainda prevê a
competência da União para legislar privativamente sobre diretrizes da política nacional de
transportes e sobre trânsito e transporte, conforme dispõe no art. 22, IX e XI, respectivamente.
A referida Constituição não tratou do transporte individual de passageiros, sendo que a Lei
Federal 12.587, de 03.01.2012 (modificada pela Lei Federal 13.146/2015), e a Lei Federal
12.468, de 26.08.2011, dispõem sobre o indicado transporte.
Ao tratar dos direitos fundamentais, a Constituição da República estabelece que é dever do
Estado realizar a defesa do consumidor, no art. 5.º, XXXII, ao mesmo tempo em que prevê a
liberdade profissional, no art. 5.º, XIII, quando diz que é livre o exercício de qualquer trabalho,
ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Além do
mais, a livre iniciativa é um dos fundamentos da República Federativa (art. 1.º, IV; art. 170,
caput), enquanto a livre concorrência (art. 170, IV) juntamente com a defesa do consumidor
(art. 170, V) são princípios da ordem econômica. Não bastasse tanto, no art. 170, parágrafo
único, está previsto o princípio da livre empresa.
No art. 30, V, da CF, ainda está disposto que compete aos Municípios organizar e prestar,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local,
incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial. Essa competência,
evidentemente, é material, e não se confunde com a competência privativa da União de
legislar, por exemplo, sobre transporte e trânsito.
É importante lembrarmos, ademais, que os Municípios não podem tratar de matérias de
competência privativa da União previstas no art. 22 da referida Constituição, nem sob o
amparo do art. 30, I, da CF, que versa sobre a atividade legislativa ligada a assuntos de
interesse local.
De fato, nem os Estados nem os Municípios podem legislar sobre assuntos de competência
privativa da União, tal como acontece com o transporte, respeitada a exceção dirigida aos
Estados, que está prevista no parágrafo único do art. 22.
Sobre a precisa identificação do que vem a ser o serviço público, desponta, na atualidade,
fundamentadamente, a posição no sentido de que o que deve caracterizar um serviço como
público é que a atividade prestada esteja diretamente vinculada a um direito fundamental e
que, ademais, não seja suscetível de adequada satisfação pela iniciativa privada (JUSTEN
FILHO, 2014).
A evolução da doutrina administrativista sobre os critérios de identificação do serviço público
após 1988 tem evidenciado a força dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência
esculpidos no texto constitucional, sendo essa uma questão importante diante do fato de que
a Constituição não especificou exaustivamente quais são os serviços públicos no Brasil, o que
não impede que o legislador infraconstitucional o faça, desde que respeitando princípios e
regras constitucionais.
Aqui é preciso considerarmos, em se tratando do Uber, que é uma inovação utilizada para o
serviço de transporte, que o Marco Civil da Internet, Lei Federal 12.965/2014, tem como
princípios a promoção da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e
modelos de uso e acesso, no art. 4.º, III, o que possui enorme importância por si só e também
quando relacionado com os fundamentos que disciplinam o uso da internet no Brasil, que são
a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor, conforme o disposto no art.
2.º, V, da Lei do Marco Civil da Internet.
No nível infraconstitucional, foi a Lei Federal de Política Nacional de Mobilidade Urbana, Lei
12.857/2012, que, em seu art. 3.º, classificou as modalidades de serviço de transporte,
dizendo que, quanto ao modo, o serviço de transporte divide-se em motorizado e não
motorizado; quanto ao objeto, em serviço de transporte de passageiros e serviço de
transporte de cargas; quanto à característica do transporte, em coletivo e individual; e, por
fim, quanto à natureza do transporte, em público e privado.
No art. 4.º, a Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana, ao definir diversos termos
tratados pela referida lei, destacou o que vem a ser o transporte público coletivo, o transporte
privado coletivo, o transporte público individual, o transporte urbano de cargas, o transporte
motorizado privado, o transporte público coletivo intermunicipal de caráter urbano, o
transporte público coletivo interestadual de caráter urbano e o transporte público coletivo
internacional de caráter urbano.
Disso concluímos que a citada lei, que tem, claramente, uma péssima redação, não disse
literalmente o que considera ser transporte privado individual. Contudo, a Lei de Política
Nacional de Mobilidade Urbana, no art. 4.º, X, prescreve que o transporte motorizado privado
é o meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens
individualizadas por intermédio de veículos particulares, o que significa dizer que a lei trata de
um transporte privado – que não se confunde com o transporte privado coletivo já previsto no
art. 4.º, VII – prestado por veículos particulares motorizados.
Extraímos, portanto, da confusa redação da Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana,
que, tanto no art. 3.º quanto no art. 4.º, foi previsto o transporte privado individual de
passageiros. Aliás, ainda que não tivesse sido previsto, o silêncio do legislador não impediria
que esse transporte existisse e que pudesse ser prestado por meio de veículos particulares,
porque é preciso interpretar a referida lei à luz da Constituição, quando o direito fundamental
à liberdade de profissão, trabalho ou ofício, e os princípios da livre iniciativa e a livre
concorrência. Assim, se a lei vedasse o transporte privado individual de passageiros, poderia
ter discutida perfeitamente sua constitucionalidade nesse tocante.
A esta altura há sempre de ser lembrado que, na ordem jurídica brasileira, a definição de um
serviço como sendo público e o impedimento de sua prestação pelo particular não podem
desrespeitar os princípios constitucionais que regem a ordem econômica, os fundamentos da
República e, sobretudo, os direitos fundamentais.
A Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana, por sua vez, não é imperfeita apenas nesse
aspecto, porque, adiante, houve nela uma alteração introduzida pela Lei Federal 12.865/2013,
quando o art. 12 foi modificado, passando a ser redigido de modo a reconhecer o serviço de
táxi – antes tratado pelo referido dispositivo como serviço público – como serviço de utilidade
pública, ao mesmo tempo em que possibilitou que, no caso de falecimento do que denominou
outorgado, o direito à exploração do serviço seja transferido a seus sucessores legítimos.
Tudo está imperfeito e confuso na Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana, se bem
entendidos, especialmente, os institutos do direito administrativo da outorga e da delegação.
Na verdade, a outorga e a delegação estão ligadas à prestação centralizada ou descentralizada
do serviço público, sendo que a outorga ocorre com a transferência da titularidade e da
execução do serviço, somente podendo se constituir por meio de lei, para entes da
administração indireta, porque a transferência de titularidade da administração direta para o
particular não pode ocorrer. Já na delegação transfere-se apenas a execução do serviço,
enquanto a titularidade persiste sendo da administração, caso em que a transferência não
necessariamente precisa ser feita por lei, pois pode ser realizada por contratos ou atos
administrativos, tal como ocorre com os prestadores de serviço de telefonia, dentre outros.
O que o legislador fez ao elaborar a Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana, portanto,
foi uma imensa confusão. A lei pretendeu inicialmente tratar o táxi como serviço público, o
que já era por si só um equívoco sob o ponto de vista do direito administrativo, e foi alterada
para dizer que tem a natureza de serviço de utilidade pública apenas, embora mencione
outorga, o que não ocorre. Assim, a Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana deixa
evidente que, inicialmente, o que se pretendia era classificar o serviço de táxi como serviço
público de transporte individual de passageiro, ao passo que, adiante, com a modificação do
art. 12 e com o advento do art. 12-A, o que se tem é a expressa classificação do indicado
serviço como sendo apenas de utilidade pública.
A indicada lei trata de outorga, mas não é o caso, dá tratamento ao serviço de táxi como se
serviço público fosse, mas depois o classifica como serviço de utilidade pública, e ainda
possibilita que o direito à exploração do serviço seja transferido a seus sucessores legítimos
(art. 12-A, § 2.º) no caso de morte.
De qualquer sorte, apesar de toda a confusão, é evidente que o legislador infraconstitucional
findou por tratar o serviço de táxi como serviço de utilidade pública, na definição de Justen
Filho (2014, p. 845), o que importa para a justificação da legalidade ou não do serviço prestado
por meio do Uber, porque é preciso saber se os dois serviços possuem a mesma natureza, o
que impediria tratamento distinto a ambos os prestadores.
Já a Lei Federal 12.468/2011, ao tratar da regulamentação da profissão de taxista, previu que a
profissão é “atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor,
próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja
capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros”. É óbvio que a interpretação devida da
norma indicada exige que não se considere vedado qualquer serviço privado de transporte
individual de passageiro, o qual não foi vedado pela Lei de Política Nacional de Mobilidade
Urbana, porque o que a Lei Federal 12.468/2011 fez foi tornar privativo de taxistas apenas o
serviço de utilidade pública de transporte individual de passageiro, que é prestado por táxi. E,
como a lei versa sobre a regulamentação da profissão de taxistas, ela deixou, com razão, de
tratar do transporte privado individual e remunerado de passageiros.
Portanto, apesar da denominação de carona paga, de corrida por demanda ou seja lá qual for
o nome que se pretenda dar ao serviço prestado por meio do Uber, que é caracterizado pelo
porta a porta e pela execução exclusivamente por meio do aplicativo, o que efetivamente
interessa é saber se esse serviço tem a mesma natureza do serviço de táxi, que é serviço de
utilidade pública de transporte individual de passageiros.
O serviço de táxi, cuja competência para organizar, no Brasil, é do ente municipal, enquanto
serviço de utilidade pública, é prestado pelo particular sob forte regulação do poder público.
Os taxistas permissionários devem pagar taxas e tributos pertinentes à atividade, podendo
prestar o serviço por meio de pessoa física ou jurídica, após processo licitatório. Ademais, os
taxistas que disponibilizam o serviço não podem rejeitar passageiros ou discriminá-los, pois é
característica desse serviço de utilidade pública o fato de que é aberto ao público, em que
pesem não estejam compelidos às mesmas exigências referentes ao serviço público de
transporte coletivo, quando se soma a isso a vedação da recusa de atendimento à demanda do
consumidor prevista no art. 39, II do CDC, ao mesmo tempo em que a remuneração pelo
serviço é completamente regulamentada também pelo poder público.
No serviço prestado por meio do uso do aplicativo Uber as características do serviço de táxi
inexistem. Inicialmente, tanto o motorista que pretende prestar serviço quanto o usuário
devem se cadastrar por meio do aplicativo. A principal característica do serviço que utiliza a
inovação em comento é que ele é realizado porta a porta. O motorista não tem ponto, ele
deve apenas cumprir exigências impostas pela Uber no momento do cadastramento, as quais
dizem respeito à qualidade do serviço e do carro, submetendo-se ao modo de remuneração
fixado pela empresa que desenvolveu o app. Nesse tocante, o passageiro, que somente
contratará o serviço pelo aplicativo, deverá remunerar o motorista em dinheiro ou por meio
de cartão de crédito, no valor definido pelo aplicativo, que debitará, no ato do pagamento com
o cartão, o valor referente à remuneração da empresa. O pagamento pelo serviço é feito
levando em consideração a distância e o tempo percorrido, existindo uma tabela de valor fixo,
consoante a categoria e a localidade onde o serviço é operado.
Aqui é preciso distinguirmos o que vem a ser transporte clandestino de passageiros do serviço
prestado por meio do Uber. O que nas cidades brasileiras tornou-se um sério problema e que
desafia, sobretudo, o sistema de transporte coletivo urbano é o transporte clandestino de
motos, carros e vans que faz exatamente o mesmo que fazem os ônibus do serviço público de
transporte coletivo de passageiros ou os táxis. Nesses casos é evidente a ilicitude, que deve ser
combatida.
Neste contexto é clarividente que, se a economia compartilhada e as inovações impõem
desafios à interpretação e à aplicação do direito, pelo menos no caso do serviço prestado por
meio do Uber, que não tem a mesma natureza do serviço de táxi, embora ambos sejam
evidentemente concorrentes, incide o Código de Defesa do Consumidor, porquanto a relação
entre o motorista e a Uber e o usuário, passageiro, é uma relação de consumo, uma relação
remunerada entre o destinatário final e o fornecedor.
No caso do serviço de transporte porta a porta ou por demanda prestado por intermédio do
aplicativo Uber, serviço privado de transporte individual de passageiros, ainda é preciso
reconhecer que, no Brasil, a cláusula do contrato entre a Uber e os motoristas que exime a
empresa de responsabilidades não tem qualquer valor para o ordenamento jurídico brasileiro,
porque se está a tratar de responsabilidade decorrente da relação de consumo sobre a qual
incide o Código de Defesa do Consumidor, ainda que no contrato mencionado esteja previsto
que:
Limitation of liability.
Uber shall not be liable for indirect, incidental, special, exemplary, punitive, or consequential
damages, including lost profits, lost data, personal injury, or property damage related to, in
connection with, or otherwise resulting from any use of the services, even if uber has been
advised of the possibility of such damages. Uber shall not be liable for any damages, liability or
losses arising out of: (i) your use of or reliance on the services or your inability to access or use
the services; or (ii) any transaction or relationship between you and any third party provider,
even if uber has been advised of the possibility of such damages. Uber shall not be liable for
delay or failure in performance resulting from causes beyond uber's reasonable control. You
acknowledge that third party transportation providers providing transportation services
requested through some request brands may offer ridesharing or peer-to-peer transportation
services and may not be professionally licensed or permitted. in no event shall uber's total
liability to you in connection with the services for all damages, losses and causes of action
exceed five hundred U.S. dollars (us $500).2
E mais, é claro que, no Brasil, a responsabilidade entre o motorista que usa o Uber e a empresa
é solidária em face do consumidor do serviço, porque a relação jurídica entre o usuário do
serviço de transporte e o motorista e a empresa Uber é de consumo e regida pelo Código de
Defesa do Consumidor.
É até possível que determinadas relações jurídicas estabelecidas no caso de economia
compartilhada não possam ser definidas como relação de consumo, o que afastará a incidência
do Código de Defesa do Consumidor, e que, à míngua de regulamentação específica, deverão
ser tratadas pelo Código Civil, todavia, isso não acontece com relação ao serviço de transporte
individual privado de passageiros prestado por meio do aplicativo Uber.
Nesse caso, há o consumidor usuário do serviço remunerado – remuneração essa que é feita
ao motorista e à Uber –, que dele faz uso como destinatário final, de mesmo modo que
existem os fornecedores, o motorista e a empresa Uber, os quais respondem solidariamente
pelos danos causados ao consumidor, nos moldes do que dispõe o Código de Defesa do
Consumidor.
5. Inovação e a possibilidade de colisão de direitos fundamentais:
o Uber Na teoria dos direitos fundamentais duas teorias são importantíssimas para a
compreensão das normas jusfundamentais e dos direitos fundamentais propriamente, a Teoria
Externa e a Teoria Interna. Ambas são imprescindíveis à compreensão e à admissão ou não da
possibilidade de colisão de direitos fundamentais.
As duas teorias estão relacionadas ao âmbito de proteção dos direitos fundamentais e à
possibilidade ou não de sua restrição. Segundo a Teoria Externa, os direitos fundamentais, que
são transcendentes de tal sorte que a constituição apenas os declara, são como estrelas que se
projetam para todas as circunstâncias, irradiando seus efeitos para todas as direções, sendo,
ademais, direitos inerentes aos seres humanos. Para os que defendem essa teoria, os direitos
fundamentais existem ainda que não estejam previstos expressamente. Aqui os direitos
fundamentais podem sofrer restrições excepcionais. De acordo com a Teoria Externa o
legislador sempre articula restrições que poderão ser reavaliadas pelo Judiciário por meio do
controle de constitucionalidade.
Na Teoria Interna os direitos fundamentais já nascem enclausurados, eles não têm efeito
irradiador e a Constituição já estabelece as suas fronteiras, de sorte que direitos e restrições
não são categorias autônomas. Os direitos fundamentais, enquanto criação do Estado que são,
só existem dentro de espaço limitado, pois além dos limites impostos não há direitos
fundamentais. Para os adeptos dessa teoria, é decisão política definir direitos fundamentais, e
a baliza para tanto é a história. De acordo com a Teoria Interna, além do mais, os direitos
fundamentais podem ter limitações impostas pelo legislador, mas não sofrem restrições. Aqui
o controle de constitucionalidade só é possível muito excepcionalmente, pois é o legislador
que cria os direitos fundamentais, os quais são uma necessidade histórica e não são
transcendentais.
A importância da compreensão de ambas as teorias tem relação com o fato de que, quando
tratamos de direitos fundamentais, os quais podem ser exercidos por meio de inovações, que
a eles podem ocasionar impactos, o que no fundo está em jogo, efetivamente, é como são
entendidos tais direitos, o que faz toda diferença. Esse entendimento implica na possibilidade
de reconhecermos se os direitos fundamentais podem ou não colidir, o que é admissível para
os que são adeptos da Teoria Externa, para os quais a solução da colisão de direitos
fundamentais é a ponderação.
Ademais, algumas outras teorias referentes aos direitos fundamentais devem ser apontadas,
porque guardam relação com o modo como são entendidas as normas de direito fundamental.
Sobre os direitos fundamentais e o seu âmbito de proteção existem duas teorias básicas, a
Ampla e a Restrita. Propugna a Teoria Ampla a abertura da norma, de modo a abarcar
situações amplas, enquanto a Teoria Restrita concebe as normas fundamentais com limites
imanentes.
Já quanto ao conteúdo essencial do direito há duas teorias a serem consideradas, a Teoria
Relativa e a Teoria Absoluta. De acordo com a primeira, o conteúdo essencial, o núcleo do
direito fundamental não é algo preestabelecido, sua conformação depende do confronto com
outros direitos, bens e valores.
Para a segunda, existe conteúdo fixo, predeterminado e permanente do direito fundamental,
que constitui o seu conteúdo essencial. A consideração dessas teorias tem relevo aqui, onde se
está a refletir a respeito do impacto das inovações sobre os direitos fundamentais, porque
somente é possível conceber a colisão de diretos fundamentais quando se adere à Teoria
Ampla do âmbito de proteção, à Teoria Relativa quanto ao conteúdo essencial do direito
fundamental e à Teoria Externa sobre as restrições.
Se direitos fundamentais podem ser atingidos pelo advento de inovações, e se direitos
fundamentais podem ser exercidos por meio de inovações, é pertinente refletirmos acerca de
possíveis reflexos do Uber, na prática, sobre os direitos fundamentais, e, também, a respeito
da possibilidade ou não de colisão de direitos fundamentais no caso do Uber.
Para tanto, é de fundamental importância que demonstremos o modo como são entendidas as
normas de direitos fundamentais e também como concebemos a própria Constituição.
Interessa-nos, quanto à teoria dos direitos fundamentais, que sejam adotadas a Teoria Ampla,
a Teoria Relativa e a Teoria Externa, e que as normas de direitos fundamentais sejam
concebidas enquanto possuidoras da estrutura de princípios que podem colidir, de forma que
a solução para essa colisão é a ponderação. Disso devemos extrair que as normas de direito
fundamental são aqui compreendidas simultaneamente como possuidoras de conteúdo
deontológico e axiológico.
Quanto à Constituição, na mesma linha de raciocínio, essa deve ser compreendida como
manifestação da ordem jurídica de uma sociedade, que expressa o tempo em que foi
elaborada, ao mesmo tempo em que está aberta ao futuro, de modo a se caracterizar como
um documento histórico, político e jurídico repleto dos mais caros valores do ordenamento
jurídico. Essa Constituição funciona como parâmetro para a validade de todas as demais
normas do sistema jurídico que estão abaixo dela, e as normas de direitos fundamentais com
forte carga axiológica, em sua dimensão objetiva, atuam como norte de todo o ordenamento
jurídico, condicionando a interpretação e a aplicação de outras normas, e criando o dever geral
de proteção sobre os bens jurídicos salvaguardados.
Há, dentro dessa perspectiva, direitos fundamentais atingidos pelo advento do Uber? Ou o
Uber impacta normas constitucionais que não versam sobre direitos fundamentais e normas
infraconstitucionais?
A compreensão dessas questões exige que, diante de uma inovação, aqui especificamente
tecnológica, e da relação dessa com os direitos fundamentais, detectemos a constelação de
interesses em jogo no caso concreto. Além do mais, devemos apreciar de antemão,
considerando a dupla dimensão dos direitos fundamentais, se a dimensão subjetiva e/ou a
dimensão objetiva foram afetadas.
Enquanto a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais está relacionada ao fato de que
esses pertencem ao indivíduo e são oponíveis ao Estado, inicialmente entendido como o único
potencial agressor dos direitos fundamentais, na dimensão objetiva os direitos fundamentais
são vistos como norte para todo o ordenamento jurídico, de forma que operam no sentido de
orientar a interpretação da legislação infraconstitucional e também impondo limites à dita
legislação, que não pode contrariar a efetividade dos direitos fundamentais.
É a partir do reconhecimento dessa dimensão objetiva dos direitos fundamentais que ao
Estado não basta apenas abster-se de violar esses direitos, sendo necessário também que ele
proteja os direitos fundamentais contra agressões e ameaças de terceiros, e que assegure as
condições materiais para que os direitos fundamentais sejam efetivamente gozados por todos
(SARMENTO, 2003).
No caso do Uber, na dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, em que podemos apontar
o dever do Estado de promover a defesa do consumidor, que implica no reconhecimento de
direitos dos consumidores, e a liberdade profissional, é forçoso reconhecermos que tais
direitos não foram agredidos pelo ingresso da inovação Uber no mercado consumidor, sendo
que é bastante claro que inexiste colisão de direitos fundamentais neste caso, porque o
conflito gerado pela inovação não atinge direitos fundamentais dos prestadores do serviço de
táxi, embora interesses econômicos desses possam ser atingidos.
Na dimensão objetiva dos direitos fundamentais, o advento do Uber na prestação do serviço
privado de transporte individual de passageiros deve estar cercado pela certeza de que as leis
a esse respeito não atingirão os direitos fundamentais, de sorte que lei futura sobre o Uber
deverá, além de respeitar os dois direitos fundamentais acima mencionados, obedecer os
princípios da ordem econômica da livre concorrência e da liberdade de empresa, além da livre
iniciativa, que é princípio da ordem econômica e, também, fundamento da República, os quais
estão relacionados com os direitos fundamentais em jogo.
Se pensada a constelação de interesses em jogo, havemos de notar que esses são
inegavelmente dos consumidores, que nutrem interesse em fazer escolhas, escolhas essas que
serão tanto potencialmente melhores quanto maior a concorrência no mercado, além de
interesses na livre concorrência, que os tem diretamente como destinatários. Ademais, os
taxistas que prestam o serviço de transporte individual de passageiros de utilidade pública têm
interesse em que inexista concorrência desleal, além de interesse econômico propriamente
em realizar sua atividade, ao passo que os motoristas que operam por meio do Uber e a
empresa Uber possuem interesses econômicos e também interesses na preservação da livre
concorrência, na livre empresa e, acima de tudo, na liberdade de profissão.
Nesse sentido, é fácil vislumbrarmos que, embora haja conflitos entre os motoristas que usam
o Uber e os taxistas, não há colisão de direitos fundamentais na inserção do serviço privado de
transporte individual de passageiros por meio do aplicativo Uber no mercado consumidor, haja
vista que direitos fundamentais dos taxistas não são atingidos pelo ingresso do serviço privado
de transporte no mercado, em que pese os prestadores do serviço de táxi argumentem que
são vítimas de concorrência desleal. Essa concorrência desleal3 não é verificada neste caso,
por mais que o senso comum queira enxergá-la, pois o serviço prestado por meio do Uber,
embora concorra diretamente com os táxis, não configura um serviço semelhante ao de táxi
prestado clandestinamente.
Impende apontarmos que taxista é uma profissão, e que por isso tem o motorista de táxi o
direito fundamental à liberdade profissional, respeitados os limites impostos pela legislação
que regula a profissão e, além desses, obedecidos todos os limites decorrentes do fato de que
o serviço tem natureza de serviço de utilidade pública. Todavia, não há agressão a esse direito
em razão do serviço privado de transporte particular, ou seja, dentro da legislação em vigor
que regulamenta a profissão de taxista, o profissional taxista pode perfeitamente realizar sua
atividade, pois o surgimento de concorrência não se confunde com ofensa à liberdade de
profissão.
Sem dúvida o serviço de transporte foi prestigiado pelo constituinte, quando, no art. 178 da
CF, foi positivada a reserva de lei para a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre.
A Constituição de 1988, por sua vez, não cuidou de tratar taxativamente de todos os serviços
públicos, o que pode ser feito pelo legislador infraconstitucional, desde que respeitadas as
normas constitucionais. Na Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana, no seu art. 3.º, §
2.º, I, a, c/c incs. II, b e III, b; e no art. 4.º, X, restou evidenciado que o serviço privado de
transporte individual de passageiros não foi vedado pelo legislador infraconstitucional. Aliás, a
lei sequer poderia vedar esse transporte, haja visto que isso seria inconstitucional,
considerando que o Estado brasileiro tem limites, quando se trata da definição de serviços
como sendo públicos, porque, além do regime jurídico, o que deve caracterizar um serviço
como sendo público deve ser o fato de estar relacionado com o exercício de direitos
fundamentais (JUSTEN FILHO, 2014).
Prevalecem na ordem jurídica brasileira a livre empresa, a livre iniciativa e a livre concorrência,
embora a atividade econômica inclua a atividade econômica em sentido estrito e também a
prestação de serviço público, sendo que “a separação entre os dois campos – serviço público,
como setor pertencente ao Estado, e domínio econômico, como campo reservado aos
particulares, é induvidosa” (MELLO, 2001, p. 610).
Adotado o capitalismo como sistema econômico pelo constituinte, em regra, a atividade
econômica deve ser exercida pela iniciativa privada, de forma que, conforme o art. 173 da CF,
o Estado somente poderá explorar diretamente a atividade econômica quando a segurança
nacional ou o interesse coletivo exigirem, conforme regulamentação que o legislador
constituinte deixou a cargo do legislador infraconstitucional.
Pode o Estado, também, realizar intervenção indireta na atividade econômica, nos termos do
art. 174 da CF, quando, enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica,
exercerá, nos moldes da lei, funções de fiscalização ligadas, portanto, ao poder de polícia, e de
incentivo, ao passo que a função de planejamento é apenas indicativa para o setor privado.
Assim, embora seja perfeitamente possível ao Estado, diante de uma atividade econômica
strictu sensu, tal como ocorre com o serviço privado de transporte individual de passageiros
prestado pelos motoristas que utilizam a plataforma tecnológica Uber, fixar limites para essa
atividade, em nome do interesse da coletividade ou até mesmo para preservar direitos de
terceiros, o Estado não pode ir adiante, como pode fazê-lo quando se trata de um serviço
público ou de um serviço de utilidade pública.
É pertinente repisarmos que, em caso de regulação do serviço privado de transporte individual
de passageiro prestado pelos motoristas que usam o Uber, compete à União, nos termos do
art. 22, XI, da CF, legislar a respeito de possível regulação do serviço, que, por sua vez, não
pode ser realizada tal como a que ocorre com o serviço de táxi, que é serviço de utilidade
pública prestado por particular, ao mesmo tempo em que é preciso considerarmos que
nenhuma regulação de uma inovação pode vir a restringi-la de modo que perca sua essência,
porque assim exige a Lei do Marco Civil da Internet.
Conforme antes dito, a competência da União está prevista no art. 22, IX e XI, da Constituição,
os quais, respectivamente, dizem que compete privativamente à União Federal legislar sobre
as diretrizes da política nacional de transporte e, também, sobre trânsito e transporte, sendo
que, no caso do Uber, ainda precisamos considerar a competência legislativa privativa da
União para tratar de informática, esculpida no inc. IV do referido art. 22.
O que temos a considerar, ao analisarmos o caso do Uber, é que o transporte no Brasil, pela
sua própria natureza, constitui uma atividade econômica, ao passo que, no caso do transporte
individual de passageiros, esse, que não tem o mesmo status do serviço de transporte coletivo,
que é de necessidade pública, hoje, no país, é serviço de utilidade pública prestado pelos
taxistas, sem qualquer impedimento constitucional e legal de que haja um serviço privado de
transporte individual de passageiros, desde que, obviamente, não venha a ser prestado
clandestinamente com as mesmas características do serviço de táxi.
Assim, se por um lado o serviço de transporte individual de passageiros de utilidade pública é
fortemente regulado, regulação essa que, aliás, ao longo do tempo, não tem prestigiado a
qualidade do serviço, por outro lado, no que toca ao serviço de transporte individual privado
de passageiros, o poder público, sempre que atuar, deverá assegurar o direito de escolha livre
e informada dos consumidores e a liberdade de profissão, nos limites da legislação, além da
livre concorrência, da livre empresa e da livre iniciativa.
Desse modo, na dimensão objetiva dos direitos fundamentais o que aqui temos é que a defesa
do consumidor e a liberdade de profissão nortearão todo o ordenamento jurídico, no que
tange à prestação do serviço de transporte privado individual de passageiros, operando no
sentido de orientar a interpretação da legislação infraconstitucional que verse sobre o Uber e
também impondo limites à dita legislação.
À míngua da existência de colisão de direitos fundamentais decorrentes do ingresso do
aplicativo Uber no mercado consumidor brasileiro, é forçoso reconhecermos que as inovações
podem ou não refletir sobre os direitos fundamentais – os quais, em muitos casos, poderão
até ser exercidos por meio de inovações – o que não acontece com o Uber, apesar dos
conflitos que o aplicativo tem ocasionado no Brasil.
Devemos considerar, especificamente no caso do Uber, no momento da interpretação e da
aplicação do direito, a proteção dos direitos do consumidor, que é diretamente tutelada pela
Constituição no art. 5.º, XXXII, e a liberdade de profissão, pois são ambas direitos
fundamentais, ocasião em que também deverão ser observados os princípios da ordem
econômica, ou seja, a livre iniciativa, a livre concorrência, que, evidentemente, se conecta com
a vedação da concorrência desleal, e a livre empresa.
Analisando, portanto, a natureza jurídica do novo serviço, a constelação de direitos
fundamentais em jogo no caso concreto e as normas jurídicas sobre transporte no Brasil, é
possível concluirmos que não há colisão de direitos fundamentais provocada pela entrada do
aplicativo Uber no mercado consumidor, embora as inovações possam ocasioná-las, ao passo
que, no caso, o que de fato existe são problemas no âmbito da interpretação das normas
infraconstitucionais que regem o tema, normas que devem ser todas interpretadas conforme a
Constituição.
6. Conclusão
É clarividente o fato de que inovações, inclusive as tecnológicas, podem ocasionar impactos
sociais,4 econômicos e também sobre o direito, especialmente porque direitos fundamentais
podem até mesmo ser exercidos por meio de inovações.
No contexto atual em que a internet tornou-se extremamente indispensável, novos problemas
deverão surgir ligados às inovações tecnológicas, de mesmo modo que soluções serão
encontradas para os novos problemas, sem que as velhas dúvidas e os antigos problemas
devam ser desconsiderados.
O direito, que deve trazer estabilidade, tem importante papel nesse tempo veloz, ao mesmo
tempo em que tem pela frente enormes desafios, porque deve não só cumprir suas funções
tradicionais ligadas ao estabelecimento de preceitos e de proibições como também deve
operar ofertando incentivos. É isso, inclusive, que diz Hoffmann-Rien (2015, p. 21), quando
afirma que “Apesar das vantagens de um direito orientado por incentivos, deve ser enfatizado
que, mesmo nas condições atuais, é essencial o tradicional direito imperativo, que opera com
preceitos e proibições (...)”.
Aliás, sobre a relação entre o direito e as inovações, é preciso termos em mente que já se
discute hoje o direito de inovar. A respeito da referida relação é preciso considerarmos que:
Isso requer estruturas de incentivo adequadas, o que foi corretamente reconhecido pelo
norte-americano Richard Stewart, no início de 1980, quando ele publicou um artigo seminal
sobre a importância do direito de inovar.
No ordenamento jurídico, nas últimas décadas, mais e mais instrumentos de incentivo foram
criados. Nisso, a lei alemã e europeia tomou muitas sugestões nos EUA sobre a reforma da
regulação estatal e o crescente uso de instrumentos baseados no mercado. (HOFFMANN-
RIEM, p. 21).
No Brasil, o ordenamento jurídico exige que a interpretação das normas jurídicas não deva ser
conduzida no sentido de criar impedimentos ou obstáculos ao surgimento das inovações, que
devem ser incentivadas inclusive pelo direito, especialmente porque podem produzir impactos
sociais positivos. É aqui preciso considerar que a Lei do Marco Civil da Internet, inspirada nos
princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência e da livre empresa,
considerando que a defesa do consumidor e a liberdade profissional são direitos
fundamentais, positivou os princípios da promoção da inovação e do fomento à difusão de
novas tecnologias e modelos de uso e acesso, no art. 4.º, III, da Lei Federal 12.965/2014.
No caso do tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro aos transportes, sabendo
que o serviço de transporte coletivo de passageiros é público e de caráter essencial, prestado
pelo particular sob o regime de concessão, e que o serviço de transporte individual de
passageiros é tratado, apesar da confusão legislativa, como serviço de utilidade pública, e
considerando a Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana, é evidente que não há qualquer
ilicitude na prestação do serviço privado de transporte individual realizado por meio do
aplicativo Uber, nos moldes em que vem sendo realizado.
Nesse caso, se por um lado inexiste colisão de direitos fundamentais, no que toca à entrada no
mercado consumidor brasileiro do serviço privado de transporte individual de passageiros
prestado por meio do Uber, por outro lado o que podemos apontar é a existência da
possibilidade de uma regulação do novo serviço, considerando apenas o poder de polícia do
Estado, quando a livre iniciativa, a livre empresa e a livre concorrência impedirão uma
interferência no serviço que possa vir a restringi-lo severamente ou que possa impedir seu
funcionamento, dada a sua natureza privada. Para isso, é preciso sempre considerarmos dois
direitos fundamentais que têm o condão de assegurar o novo serviço, o direito do consumidor
e a liberdade de profissão.
No mesmo caminho, devemos levar em consideração o fato de que o serviço prestado por
meio do Uber não exige, assim, autorização do poder público para ser ofertado no mercado
consumidor, nem de lei prévia que sobre ele verse, porque, embora obviamente exista
concorrência com o serviço de táxi, ele não tem a mesma natureza desse derradeiro.
Dessa maneira, o poder público não tem a opção de proibir o novo serviço, com fundamento
no argumento de que qualquer serviço de transporte individual de passageiro deva ser público
ou de utilidade pública, porque a Constituição e seus princípios da ordem econômica, além das
normas atinentes ao direito administrativo, impedem que o poder público crie arbitrariamente
serviços de natureza pública sem critério algum, quando sabemos que um serviço público deve
realmente ter relação com a efetividade de direitos fundamentais, o que não ocorre no caso
do Uber, pois o transporte individual de passageiros porta a porta não tem nem de longe a
mesma relevância que o serviço de transporte coletivo possui, estando esse ligado a uma
necessidade coletiva esencial.5
Diante de tudo isso, embora no presente trabalho não tenhamos por objetivo analisar as mais
distintas decisões judiciais já proferidas em ações individuais e coletivas que versam sobre o
Uber, de mesma forma que não pretendemos apreciar as leis estaduais e municipais que já
foram aprovadas recentemente sobre o tema e que desafiam até o controle de
constitucionalidade, é indispensável reconhecermos que nem essas demandas nem essas leis –
sob pena de terem a constitucionalidade discutida –, podem desconsiderar os direitos
fundamentais da defesa do consumidor e da liberdade de profissão, os princípios
constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência e da livre empresa e a Lei do Marco Civil
da Internet, que asseguram a prestação do serviço privado de transporte individual de
passageiros porta a porta prestado por meio de aplicativo como o Uber, independentemente
de lei que o autorize, sem prejuízo de que lei federal possa regular o novo serviço sob a
perspectiva do exercício do poder de polícia do Estado.
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