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1 I . INTRODUÇÃO Este trabalho procura, a partir da análise da peça “Novas Diretrizes em Tempos de Paz” 1 , discutir a importância do teatro num mundo como o de 1997 (quando a peça foi lançada); o de 1945 ( tempo em que se passa a peça) e o de 2007( o leitor de hoje). O empreendimento teatral é feito de contradições. Ele custa cada vez mais caro, está submetido às áleas econômicas e depende estritamente das subvenções estatais. Deve assumir sua função de espetáculo atingindo o maior público possível e, no entanto, manter sua função primeira de arte que denuncia e incomoda. (RYNGAERT, 1998, p. 39-40) Jean-Pierre Ryngaert é professor de estudos teatrais na Universidade de Nantes e diretor teatral, em seu livro “Ler o Teatro Contemporâneo” ele acompanha a evolução da dramaturgia contemporânea e auxilia a tentar desvendar textos que a princípio parecem encriptados. O texto aqui analisado não precisará dessa ajuda, pois se trata de um texto linear e com objetivos bastante claros, mas se enquadra dentro da questão que é sugerida por todo o livro de Ryngaert, o fato de o teatro estar perdendo sua função dentro da sociedade. A citação acima sugere uma das facetas dessa “contradição”: é preciso que o teatro agrade para que este gere renda e assim possa se auto- sustentar, no entanto, como agradar e “incomodar” ao mesmo tempo? Se pararmos um segundo para analisar o mundo como se encontra hoje, em que o mercado dita as regras, uma arte como o teatro que não gera lucros – que na verdade depende majoritariamente do dinheiro doado à peça, e não do dinheiro produzido pela peça-, pode ser considerado um grande elefante branco num mundo que não aceita mais mitologias. E a grande crise de consciência do teatro está no fato de que as peças que têm lucro normalmente não são aquelas que tentam acrescentar algo de cultural ou 1 O texto utilizado é uma versão cedida pelo autor Bosco Brasil para essa monografia, um arquivo digital, já que o mesmo não tem uma publicação editorial. Referências sobre páginas se basearão nesse arquivo.

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I . INTRODUÇÃO

Este trabalho procura, a partir da análise da peça “Novas Diretrizes em

Tempos de Paz”1, discutir a importância do teatro num mundo como o de 1997

(quando a peça foi lançada); o de 1945 ( tempo em que se passa a peça) e o de

2007( o leitor de hoje).

O empreendimento teatral é feito de contradições. Ele custa cada vez mais caro, está submetido às áleas econômicas e depende estritamente das subvenções estatais. Deve assumir sua função de espetáculo atingindo o maior público possível e, no entanto, manter sua função primeira de arte que denuncia e incomoda. (RYNGAERT, 1998, p. 39-40)

Jean-Pierre Ryngaert é professor de estudos teatrais na Universidade de

Nantes e diretor teatral, em seu livro “Ler o Teatro Contemporâneo” ele acompanha

a evolução da dramaturgia contemporânea e auxilia a tentar desvendar textos que a

princípio parecem encriptados.

O texto aqui analisado não precisará dessa ajuda, pois se trata de um texto

linear e com objetivos bastante claros, mas se enquadra dentro da questão que é

sugerida por todo o livro de Ryngaert, o fato de o teatro estar perdendo sua função

dentro da sociedade. A citação acima sugere uma das facetas dessa “contradição”:

é preciso que o teatro agrade para que este gere renda e assim possa se auto-

sustentar, no entanto, como agradar e “incomodar” ao mesmo tempo?

Se pararmos um segundo para analisar o mundo como se encontra hoje, em

que o mercado dita as regras, uma arte como o teatro que não gera lucros – que na

verdade depende majoritariamente do dinheiro doado à peça, e não do dinheiro

produzido pela peça-, pode ser considerado um grande elefante branco num mundo

que não aceita mais mitologias.

E a grande crise de consciência do teatro está no fato de que as peças que

têm lucro normalmente não são aquelas que tentam acrescentar algo de cultural ou

1 O texto utilizado é uma versão cedida pelo autor Bosco Brasil para essa monografia, um arquivo digital, já que o mesmo não tem uma publicação editorial. Referências sobre páginas se basearão nesse arquivo.

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estético para o seu público. Peter Brook em seu texto As Artimanhas do Tédio

explicita:

Isto é sempre muito difícil de admitir para aqueles que vêm lutando, geralmente com grandes dificuldades, para encontrar meios de levar obras de nível cultural elevado para um público indiferente. Sentimo-nos quase sempre obrigados a defender a tentativa, e ficamos freqüentemente muito desapontados porque platéias, em todos os países, geralmente desdenham essas obras e preferem aquilo que consideramos de qualidade inferior. (BROOK, 1999, p.11) Brook é muito correto em salientar que “platéias, em todos os países” não

procuram o teatro como um veículo de aprimoramento cultural, mas sim como um

meio de entretenimento. Não que o teatro não aceite essa alcunha com facilidade,

na verdade por séculos o teatro foi o meio de entretenimento das massas junto com

o circo romano, as missas católicas, os folhetins semanais. A história do teatro

brasileiro é prova dessa tese, consagrando para a posteridade aqueles que

escreveram para o prazer das platéias aportuguesadas e burguesas que existiam no

Brasil, e que hoje sustentam por décadas peças como “Tangos e Tragédias”, ou

sendo mais bairrista, “Casa do Terror” em todas as suas versões. Entenda-se que

aqui não se pretende levantar o libelo do teatro intelectual e por vezes ininteligível,

só se levanta o fato de que é uma tendência mundial o repúdio pelas peças que

tentam dar ao seu público algo a mais que risadas vazias.

Some-se a essa tendência o fato que o mundo contemporâneo foi

presenteado com o advento do cinema – arte que ainda se debate entre o industrial

e o independente, e a televisão – meio mais massificante. E criou um público

acostumado à facilidade de digestão das idéias veiculadas por estes.

Conseqüentemente, quando deparados com um entretenimento que se propõe a

veicular alguma idéia, o público se ressente e estranha um veículo mais lento, mais

simbólico e que o obriga a sair do papel exclusivamente passivo e pede que se

posicione ideologicamente. O resultado dessa união de fatores é que o público se

torna cada vez mais “indiferente” e cada vez menor. (...) o teatro perdeu irremediavelmente a contemporaneidade. O cinema e a televisão substituíram-no como espetáculos do nosso tempo. (...) Depois, por mais que uma montagem obtenha êxito, ela se destina a uma parcela da população, e raramente atravessa a fronteira da cidade que a viu nascer. Agora que o cinema e a TV sobrepujam o teatro como artes coletivas, talvez seja mais oportuno refletir sobre o papel social do palco. (...) A circunstância de processar-se idealmente o teatro com uma platéia pequena não recomendaria que ele aceitasse em definitivo a condição de arte para poucos espectadores? (MAGALDI, 199 ,p 116 -117).

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Os “dois veículos“ citados possuem a suprema concretização – que o teatro

naturalista perseguiu tão avidamente – de poder mostrar a vida como ela é, com

seus pequenos detalhes (a poeira na rua, uma selva, um elefante2, que sem muito

esforço, podem ser captados por uma lente de uma câmera, ou mesmo serem

introduzidos via efeitos visuais). Essas mídias conseguem o prodígio que o teatro

nunca vai conseguir que é captar a vida em sua realidade mais abrangente. Que

fique certo que tudo aqui se restringe ao seu âmbito visual, e não ao seu contexto

ideológico.

Portanto, o teatro se encontra em extrema desvantagem, se for para

considerá-lo de maneira antiquada, mas ainda desejada pelo público, como

veiculador de estorinhas, pequenos vislumbres sobre a vida. Visão esta herdada do

teatro burguês que entre 1840 e 1950 encheu os edifícios teatrais com seus

melodramas de um só enredo, e que ainda hoje deixam vestígios nos maiores caça-

níqueis da cidade.

Contribuindo com o paradigma está o fator da abrangência. Os teatros se

acomodam cada vez em lugares menores, mais intimistas – necessários – mas que

ao mesmo tempo limitam a quantidade de olhares que chegarão à peça. Que

melhor expressão do que a do blockbuster, para exemplificar essa discrepância

entre esses entretenimentos modernos? Explodindo os quarteirões do mundo, os

filmes possuem rendas bilionárias em apenas algumas semanas. Sem falar do

registro do Censo 2000 de que cada casa possui em média 1,5 televisores. A

abrangência desses meios de comunicação, a facilidade deles – num mundo como o

de hoje: você poder conseguir entretenimento sem precisar sair do conforto do seu

lar, sem precisar enfrentar os perigos que se encontram do lado de fora – fazem

desses entretenimentos não só de fácil acesso, como também mais seguros.

Seguindo o pensamento de Magaldi, perdido o título de entretenimento para

as massas, o teatro talvez agora possa respirar e pensar em seu significado como

arte, como modificador social, nem que seja para atingir as poucas almas que ainda

se importam com isso. Parece que se volta para a contradição de Ryngaert, e é com

verdade que se pode contestar a necessidade do teatro no mundo de hoje. Assim o

2 Caso clássico na história do teatro naturalista, já que muitas peças que faziam menção ao animal no final do século XIX e início do século XX utilizavam animais de verdade no palco, tudo em prol da verossimilhança.

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faz Bosco Brasil, de modo sensível em sua peça, e assim podem atestar friamente

aqueles que convivem com a realidade do fazer teatral, principalmente numa cidade

como Curitiba, que ainda procura criar a sua vida cultural. Fica fácil se tornar

pessimista. Mas, observando um pouco mais de perto as platéias espalhadas pela

cidade, se encontra um pequeno grupo constante (normalmente formado por

aspirantes a atores, diretores, e alguns intelectuais idealistas), pode-se verificar que

ainda há uma esperança, ainda existe a sensibilidade necessária ou um público que

se importe.

É Denis Guénoun em seu “O Teatro é necessário?” (2004) que vai trazer essa

discussão mais bem pormenorizada.

Ele não funciona mais como centro: os poderes dominantes não usam mais seu brilho para exibir-se, ostentar os signos de sua dominação simbólica e de sua hegemonia. Ele ficou órfão das revoluções. Sua função se embaralha. (...) Porque o teatro, em suas formas estabelecidas não encontra nenhum recurso para responder à necessidade de teatro que a vida coletiva produz de forma tão intensa. (GUÉNOUN, 2004, p.11-13)

Ele vai discutir a crise do teatro dentro de duas realidades: a da fuga do

público dos teatros para as poltronas dos cinemas ou ao aconchego de suas casas,

por meios de entretenimento que fazem do teatro “um artesanato superado, uma

peça de museu, vestígio de um mundo ultrapassado” 3; Ao mesmo tempo, há uma

procura cada vez maior de pessoas interessadas em fazer teatro. Como citado

acima, proliferam até mesmo aqui em Curitiba espaços cênicos. Na década de 80

existiam uns 5 espaços para realização de peças , enquanto que hoje há pelo

menos 30 espaços para a função, sem contar os inumeráveis cursos de formação de

atores. Mesmo de forma amadora, há um grande interesse pela vida nos palcos.

A crise do teatro tem que ser compreendida a partir do elo que estas duas séries de fatos heterogêneos estabelecem entre si. A confusão das “instituições” nada seria sem o surgimento de contra - legitimidades proliferantes que as cercam e as perseguem. Enquanto este outro teatro, difuso e lábil, se refere, por mimetismo ou rejeição, ao modo de produção dominante na vida teatral instituída. Sobretudo – sim, sobretudo, porque é aí que a ferida supura – o congelamento estético e moral no qual o teatro está encerrado, sua impotência formal, a esterilidade de seus conteúdos, a letargia que entorpece, pondo em risco todos os que o servem, não podem ser pensados, nem, por conseguinte, afastados, sem que apreendam em conjunto os dois lados do problema, os dois componentes da crise e o sistema de crise que os mantêm unidos. (GUÉNOUN, 2004, p.13)

3 GUÈNOUN, 2004, p. 12

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Guénoun discute a crise, não só no âmbito da fuga do público, mas também

no que toca a perda estética e ideológica de um teatro praticado por grande numero

de amadores, fazendo com que o estudo da arte e sua aprimoração estética não se

desenvolvam de maneira plena. Complementando a sua descrição sobre a crise no

teatro, Guénoun passa para a caracterização da “necessidade” e descobre suas

duas formas: a física – que coloca em jogo a nossa manutenção da vida, há

necessidade de se respirar; e há a necessidade que é o nome dado a brutalidade do

chamado, “a necessidade que não designa nada além da prevalência do vivente

sobre a morte”4·. Ele se pergunta se algo dentro do ser humano pode morrer com a

ausência do teatro?

A exigência que sustenta a reflexão aqui apresentada não é, portanto, a de preservar, conservar “o teatro” a qualquer preço: é possível conservar múmias, cadáveres. Perguntamo-nos se uma vida, e que tipo de vida, quer (eventualmente) o teatro. E como, se lhe faz falta, esta falta pode ser satisfeita. (GUÉNOUN, 2004, p.16)

E é dentro desse contexto de contradições que este trabalho vai ser

conduzido. Procurando argumentar entre a teoria do que se espera para o teatro e

como ele próprio se vê. Partindo da pergunta que Bosco Brasil faz ao seu público no

texto Novas Diretrizes para Tempos de Paz, procura-se descobrir junto com

Clausewitz se num mundo como o de guerras, ou no mundo do capitalismo, não

mais selvagem, mas sim completamente idolatrado, se ainda há espaço para uma

arte como a do teatro. Afinal é mais fácil o mundo precisar de braços para o campo5

do que vozes na ribalta.

É somente escapando a toda obrigação de agradar, divertir, produzir e ser produzido, conformar-se, conseguir alimentar sua família, que o autor de teatro pode esperar ocupar seu lugar- que é na marginalidade- e pode cumprir seu papel- que é suscitar o abalo ou fissura na ordem estabelecida. Acredito na necessidade que existe, para o autor de teatro, de estar, a priori, excêntrico. De executar sua função por contínuos saltos para o lado. (VINAVER, 1982, p.41)

4 Ibdem, p. 16. 5 BOSCO, 1997, p. 3.

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II. A procura de uma razão Antes de analisar o texto, é preciso contextualizá-lo em mais de dois milênios

de história filosófica que pensou a estética e a importância do Teatro.

Não é uma novidade o homem se perguntar sobre a razão de suas próprias

ações. Somos seres que conquistaram o mundo físico que nos cerca, no entanto

continuamos - cada vez mais- perdidos dentro de nossos próprios corpos. Não

temos ainda uma razão para habitarmos esse mundo e preenchemos o tempo

criando “coisas” e algumas dessas não fazem muito sentido, assim acontece com o

teatro. Talvez por ele mexer com partes dentro do caos psicológico - fazendo sentir

algo dentro de um mundo de passividade, ou ajudando a expô-lo - o teatro se figura

como todas as outras artes, é parte de uma necessidade, que como Guénoun

expõe, não é necessária para a sobrevivência física dos seres humanos, mas sim é,

ou deveria ser, um alimento intelectual, uma distração ou deflagração da realidade,

etc. Por seu caráter abstrato o teatro pode satisfazer os mais exigentes e bizarros

desejos humanos e nem por isso justifica sua razão de existir.

Guénoun em sua introdução levanta o dado de que há várias civilizações que

não possuíam teatro como prática artística, ou religiosa, em sua estrutura social,

apesar de que se pode argumentar o fato de que em todas elas existiu a

representação, pois cada ritual religioso é uma espécie de espetáculo para se levar

ao êxtase. No entanto, é certo que elas não existiam com o propósito específico de

recriar uma ficção, e nem por isso sucumbiram a um destino terrível, uma civilização

não morre pela falta de um teatro, mas sempre possui suas ritualizações. O que

ocorre é o contrário, o teatro com a presença de Artaud (1896-1948), em seu Teatro

da Crueldade, é que buscará introduzir o conceito do ritual e da busca desse efeito

mais visceral do que lógico, como alternativa de revitalização do mesmo.

A verdade é que o teatro é sempre um paradoxo para aquele que tenta

pensar sobre ele. Ele não é uma pintura, que de igual imitação do real, irá durar e

até mesmo poderá enfeitar paredes burguesas ou Museus. Imortalizando pessoas e

nomes, a pintura, assim como a escultura, tem o poder de transcender, vencer o

teste do tempo. Assim como a arquitetura tem uma função prática e duradoura. Até

mesmo a literatura, em sua forma impressa, apresenta uma validade que se perde

dentro do teatro, pois mesmo sendo texto escrito o teatro só está em sua completa

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forma quando nos minutos passados frente a frente com o ator que declama o texto,

com a iluminação e fundo sonoro que lhe foram especialmente designados. A

efemeridade da arte do teatro é a característica que a faz especial, e que ao mesmo

tempo a condena. E num mundo que cada vez mais se perde na procura de

entretenimentos fáceis, como se à procura de uma venda e não de uma luz, o teatro

já não consegue justificar sua presença, ainda mais se ele se faz engajado.

No entanto, a briga sobre o que seria o teatro e para que ele serviria sempre

fez parte dos tratados filosóficos. Responsáveis por influenciarem a alma humana,

as peças teatrais já foram condenadas por essa mesma razão, já foram utilizadas

como veiculador ideológico e estético, assim como já foram apenas a maneira de

ganhar dinheiro. Transitando entre o “ser ou não ser” o teatro ainda procura o seu

espaço, assim como aqueles que trabalham com ele procuram justificar essa “perda

de tempo”.

Podemos, pois, com justiça censurá-lo e considerá-lo como o par do pintor; assemelha-se-lhe, por produzir apenas obras sem valor do ponto de vista da verdade e assemelha-se-lhe, ainda por ter comércio com o elemento inferior da alma, e não com o melhor. Assim, eis-nos bem fundamentados para não recebê-lo em um Estado que deve ser regido por leis sábias, já que acorda, nutre e fortalece o mau elemento da alma, e arruína, destarte, o elemento razoável, como acontece numa cidade que é entregue aos malvados, ao se lhes permitir que fiquem fortes e ao fazer que pereçam os homens estimáveis; do mesmo modo, do poeta imitador, diremos que introduz mau governo na alma de cada indivíduo, lisonjeando o que há nela de irrazoável, que é incapaz de distinguir o maior do menor, que ao contrário, encara os mesmos objetos, ora como grandes ora como pequenos, que produz apenas fantasmas e está a uma infinita distância do verdadeiro. (PLATÂO, 1965, p.235)

Falando em perda de tempo, Platão via o teatro como algo que não poderia

edificar as pessoas, e que na verdade as corrompia quando causava sensações que

não são próprias ao homem sensato e lógico. Copiador de “3º grau”6 das Formas, o

teatro – como ele sugere- deveria não ser aceito num Estado que preza sua

condição moral e filosófica, o que é bastante democrático da parte dele. Mas ele se

baseia em algo que vai dar sentido à peça de Bosco Brasil, que é o fato de que o

homem em sua vida normal não vai dar a importância às tragédias da vida cotidiana

como vai dar às tragédias dramáticas. Para uma pessoa que filosofa sobre a

sobriedade dentro da vida o teatro será mesmo um grande perturbador, pois ao

figurar a hibris de Édipo, ou a incoerência das peças de Aristófanes – de quem

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Platão não era apreciador – o público tinha contato com sua dor, com sua raiva, com

seu ciúme ou com o que sua sociedade tem de corrupta. Rompendo com a

harmonia imposta pela filosofia, que por todo o diálogo X da República, de onde

esse excerto foi retirado, tenta ser ressaltado e confirmado. No entanto ele ainda

deixa um suspiro de possibilidade para o teatro:

Permitiremos mesmo a seus defensores que não são os poetas, mas que amam a poesia, falar por ela em prosa, e nos mostrar que não é somente agradável, mas ainda útil ao governo dos Estados e à vida humana; e haveremos de ouvi-los com benevolência, pois para nós será proveitoso que ela se revele tão útil quanto agradável. (PLATÃO, 1965, p. 239)

Um possível uso, mas principalmente uma arte que seja útil. E essa vai ser

sempre a linha da maior parte dos pensadores que se seguiram, para o teatro poder

existir sem sentimentos de culpa, ele deve apresentar uma função, ele deve dizer

algo para o público de seu tempo.

Aristóteles em sua Poética (cerca de 330 a.C), parece conseguir entender um

pouco melhor, talvez por seu texto ser mais descritivo, o que o desvia de fazer

julgamentos morais, a razão abstrata que se esconde pelo interesse dos homens

pelo teatro, e conseqüentemente sua função:

“Duas causas, e duas naturais, parecem estar na origem de toda a poesia. Primeiro, a imitação faz parte da natureza dos homens desde sua infância. É precisamente nisto que reside à diferença entre o homem e outros animais: ele é o maior dos imitadores, e a imitação é o meio pelo qual adquire os seus maiores conhecimentos. Em segundo lugar, para todos os homens a imitação é uma fonte de prazer. É isto que demonstra o que acontece nas obras de arte: se os espetáculos em si são repugnantes, as suas imagens perfeitamente exatas dão, contudo prazer a nossa vista; tal acontece com as formas dos animais mais repugnantes, ou dos cadáveres. Existe uma outra razão: não é apenas para os filósofos que aprender é um grande prazer, tal é igualmente verdadeiro para os outros homens, embora a sua participação no saber seja reduzida . Ora eles gostam de ver as imagens porque, olhando-as têm oportunidade de aprender e de raciocinar sobre cada um dos elementos, por exemplo, de identificar um indivíduo. Se acontece que o objeto não foi visto anteriormente, o prazer não nascerá da imitação, mas da execução, da cor, ou de uma outra causa deste gênero.” (ARISTÓTELES, 20047, p 21-22)

Não é sem razão que o texto aristotélico era, até o início do século XX, a

“Bíblia Teatral”, não só por suas descrições acuradas de como devia ser o teatro,

mas principalmente por causa de partes como essa de fácil identificação para

6 PLATÃO, 1965, p.223 7 Os excertos serão retirados da coletânea de textos sobre estética teatral, do livro Estética Teatral, de 2004;

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aqueles que trabalham com teatro. Há nessa afirmação incontestáveis realidades

que vigoram, talvez atavicamente, no ser humano. A necessidade da imitação é que

nos faz aprender a falar, e o prazer que isso nos dá é recompensador e “prazeroso”.

Ele também lida com o gosto pelo grotesco, que será recuperado pelos românticos,

usado com fervor científico pelos naturalistas, e que ainda hoje mantém programas

de auditórios e dão lucros para filmes que o exploram. O homem tem uma

curiosidade natural por ver aquilo que não acontece diretamente a ele, ver o outro

sofrer, rir do outro, são maneiras de desviarmos a atenção do foco central de nossas

vidas: “nós mesmos”. E quando desviamos o olhar, aprendemos que não somos os

únicos que sofremos, que não somos os únicos perdidos, como também o fato de

não sermos “únicos”. Para Aristóteles, o teatro ensina através da identificação,

assim, como no Teatro do Absurdo, a negação da identificação direta simbolizará o

quanto o mundo perdeu seu sentido. E ainda assim o teatro continua ensinando:

Depois pensa: vou fazer um quinto livro sagrado sobre o teatro, servindo-me dos livros históricos. Ele mostrará o caminho em direção à virtude, à riqueza, à glória, conterá bons conselhos morais, guiará os homens do futuro em todas suas ações, será enriquecido pelo ensinamento de todos os tratados, e passará em revista todas as artes e todos os ofícios. (...) Ele ensina o dever àqueles que o ignoram, o amor àqueles que a eles aspiram. Ele pune os maus, aumenta o domínio dos que são disciplinados, dá coragem aos cobardes, energia aos heróis, inteligência aos fracos de espírito, e sabedoria aos sábios. (...) O teatro que eu inventei é uma imitação das ações variadas, e descreve diferentes situações. As ações dos homens que ele relata são boas, más ou indiferentes. Ele dá coragem, divertimento, felicidade e conselhos a todos. (BHARATA, 2004, p 33 -37)

Bharata (da época de Jesus), na Índia, escreve sobre o Livro do Teatro, o

quinto livro, de uma série que explica a origem do mundo, dos deuses, do

pensamento, entre outros. Aqui o teatro se apresenta com uma aura de importância,

pois será o compilador de todas as artes – uma semente para o teatro total- e será o

grande encaminhador do povo, um instrutor para as grandes ações, uma fonte de

inspiração para o homem. A idéia de que o teatro oferece conselho a todos, se

entrelaça com a idéia de Aristóteles de que há sempre algo a aprender na

experiência teatral. E Bharata consegue ser bastante imparcial, muito mais que

Aristóteles ou Platão, lógicos por natureza e filhos de uma democracia de

privilegiados, ele verá no teatro não só sua importância como professor, mas

aceitará qualquer emoção que o teatro possa conduzir, seja “coragem, divertimento,

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felicidade”. É a capacidade das mais variadas emoções que uma estória encenada

cria naquele que a assiste, que foi copiada do teatro, pelo cinema e pela televisão, e

é um dos seus grandes trunfos. Agora, entretanto, não há outras formas de atingir

essa sublime variedade de sentimentos, eles escreviam num outro mundo, que

ainda não conhecia metralhadoras, ataque aéreo e bombas atômicas; E não

conheciam um mercado de consumo que faz com que as pessoas se sintam mal

sendo simplesmente o que são, você não precisava “comprar” sua personalidade.

Naquele mundo o teatro podia servir melhor ao seu público? (É difícil tentar afirmar

algo do tipo, pois somos uma geração que perdeu o respeito pelo sagrado, olhamos

tudo com cinismo e ironia).

Vem o mundo cristianizado, e o teatro como era claramente um artifício

pagão, será a princípio barrado, mas como toda a estória de apropriação da igreja

católica, é depois adotado como forma de ensinar - mais propriamente, catequizar.

Esse é um ponto que não pode ser esquecido, o teatro sempre teve o poder não só

de introduzir ideologias, como de moldar o pensamento de uma massa ignorante

que não tem, nem a habilidade de ler, nem o discernimento crítico para questionar.

As peças eram completamente religiosas e apresentavam o tipo de resignação

desejada pela Igreja. Ciclo que afinal não se esgota: foram burguesas nos séculos

XVIII e XIX, assim como foram proletárias no início do século XX e são amorfas no

presente.

“Esforçar-se-á por colocar todas as personagens no estado mais agradável que possam experimentar; utilizará as mais ilustres figuras da retórica, e as mais fortes paixões da moral; nada esconderá de tudo o que se deve saber, e que pode agradar; e nada mostrará de tudo que se deve ignorar, e que pode chocar. Enfim, ele procurará usar todos os meios para conquistar a estima do espectador, o que nesse momento ocupa todo seu espírito.” ( HÉDELIN, 2004, p.95)

Hédelin D’Aubignac (1604-1676) em “A Prática do Teatro” (1657), abade de

Aubignac – escreveu a pedido do cardeal Richilieu esse ensaio em que descreve as

habilidades do dramaturgo e da arte teatral. Começa a fase de agradar o “criterioso”

público nobre, que logo depois será trocado sem muita diferença pelo burguês. Há

aqui uma clara indução ao que é apropriado para o teatro, afinal não se pode

“chocar” um público tão “refinado”. Podemos não achar refinado esse público que

fazia suas fezes enquanto jantava, mas isso é porque sempre olhamos o passado

com um desdém de quem acha que evoluiu. E, no entanto ainda assim os tais tabus

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ainda estão vigentes, as pessoas ainda se chocam com idéias estranhas a elas, e

ao invés de se abrirem para pensar – que acredito ser a intenção da maior parte

daqueles que fazem uso do mesmo- se fecham e condenam.

Nesta geração vivem os textos cheios de rimas, contando estórias que

seguiam o método aristotélico de unidade temporal, temática e espacial. Com regras

rígidas de verso e moral, nada que ofenda a ordem do dia- poucas são as vozes na

história que algum dia tentaram dizer o contrário.

Antes de entrar nas definições e divisões do verossímil e do necessário, farei ainda uma reflexão sobre as ações que compõem a tragédia e penso que podemos fazer aí entrar três tipos, segundo melhor acharmos conveniente: umas seguem a história, as outras acrescentam a história, as terceiras falsificam a história. As primeiras são verdadeiras, as segundas por vezes verossímeis e por vezes necessárias, e as últimas devem ser sempre necessárias. (CORNEILLE, 2004, p.112)

Pierre Corneille (1606-1684) dramaturgo e teórico, em seu ensaio “Discursos”

(1660), incluiu uma repetição das diretrizes conhecidas, mas aqui já existe uma

tradição dramática. Há uma história de dramaturgia a ser considerada e a idéia de

que as estórias que “falsificam” a história precisam ser “necessárias”, está de acordo

com o texto que vai ser analisado. Há uma falsificação na história que ele narra, mas

não há como desconsiderar a relevância de sua estória como retrato de sua

realidade. Corneille assim o fez, para o seu público. Se for contar uma mentira que

seja para o bem de todos, é nisso que se baseia a arte teatral, e para que não se

perca completamente no seu caráter efêmero ou de mentira, que semeie alguma

semente dentro da mente dos que o assistem.

(...) que em todos os discursos a paixão comovente Busque o coração, o perturbe e aquente Se um belo movimento do agradável furor Não nos encher sempre de um doce terror, Nem excitar na alma a piedade encantadora, Em vão exibireis uma cena sabedora: Os frios raciocínios só irão esfriar O espectador sempre lento a aclamar Que, dos esforços vãos da sua retórica Justamente cansado, adormece ou vos critica. O segredo está primeiro em agradar e comover Inventai situações que me possam prender. (BOILEAU,2004,p.130)

Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), em sua tentativa de imitar Horácio,

escreve sua Arte poética (1674), um poema didático, que ensina não só que a boa

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peça precisa prender a atenção de seu público, quanto que não faz bem perder

tempo com assunto muito lógico ou de impacto crítico, pois vale mais uma lágrima

que enfadar as pessoas, fazendo-as pensar. Boileau vai ao encontro do que Platão

também pensava em seu décimo livro, ele acreditava que o autor sempre tinha de

“rebaixar-se do seu nível para agradar o público”8. Essa leviandade para com o

público que foi herdada pela televisão e pelo cinema, faz com que seja um desafio,

quase idealista, realizar um teatro com conteúdo, pois foram anos ensinando ao

público que não é preciso que ele pense. Então, Boileau talvez não seja só um

burguês superficial e sim completamente sincero com a realidade que envolve o

teatro. Concluindo que para atender aos anseios do público é necessário dar a ele

aquilo pelo qual ele pagou para ver e não perder tempo em tentar fazer do teatro um

discurso político, afinal é para isso que os discursos existem, e quando o teatro o faz

só afasta seu público alvo. Essa é a realidade do século XVII ou de hoje? Ser raso

não é uma novidade.

É nessa fase, começando no século XIV, que o teatro cada vez mais vai

perdendo seu status de levar informação, para só levar emoção. Não que a emoção

deva ser descartada, mas deve-se relembrar de como se consegue que um público

atinja essas emoções, conseqüentemente, começam as fórmulas estereotipadas e

vazias.

(...) porque o sublime, seja na pintura, seja na poesia, seja na eloqüência, não nasce sempre da exata descrição dos fenômenos, mas da emoção com que o gênio espectador tenha experimentado perante eles, da arte com que ele me comunicará o frêmito da sua alma, das comparações que fornecer, da escolha das suas expressões, da harmonia com que tocará os meus ouvidos, das idéias e dos sentimentos que saiba acordar em mim. O sentimento do belo dá uma nova direção aos movimentos impetuosos da tristeza, da piedade, e da cólera: apodera-se de toda a capacidade da alma, domina sobre todas as emoções, converte-as na sua própria natureza, ou pelo menos dá-lhes um tom suficientemente forte para transformar por completo a sua natureza. A alma é ao mesmo tempo agitada pela paixão e transportada pela Eloqüência, estas duas impressões confundem-se numa só, que é deliciosa. (DIDEROT, 2004, p.181- 182 - 186)

Denis Diderot (1713-1784) filósofo, foi também dramaturgo que escreveu o

texto Conversas sobre o filho Natural e outras Obras (1757). Transmite bem o gênio

de sua época, o belo do teatro está a fazer as pessoas sentirem o drama que se

passa no palco, sofrer junto de suas personagens, é isso que causa o prazer. O

8 Notas de Robert Baccou in República, 1965, p. 234

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texto de Bosco Brasil namora essa tradição, é um texto com uma estória que brinca

com melodramático, e com a idéia de que o teatro “tem” que emocionar. O

enciclopedista Diderot não vai atrás de uma função maior para o teatro além de

entreter as massas, fazendo-as viver suas emoções; só aponta que assim pode

haver alguma mudança na natureza daquele que é tocado pela ação e pela

Eloqüência.

Será seu contemporâneo e colaborador na Encyclopédie, Jean-François

Marmontel (1723-1799) dramaturgo, ensaísta e romancista, em seu texto Poética

Francesa e Outras obras (1763), que vai esbarrar na idéia de se ler o teatro de

maneira um pouco mais crítica, retornando aos ensinamentos de Aristóteles. O

teatro deve ocasionar uma reação posterior:

A dor que me terá causado um espetáculo aflitivo deve ser aliviada pela reflexão: e este alívio consiste em poder dizer-me a mim mesmo que o homem é livre de evitar a infelicidade cuja pintura acabo de ver; que o vício, a paixão, a imprudência, a fraqueza que a provocam, não é um mal necessário; e que eu próprio posso preservar-me dele ou curar-me. (MARMONTEL, 2004, p. 203)

Os anos de evolução do teatro fizeram-no passar de ritual religioso, a

edificador de mentes, catequizador e entretenimento de massas nobres enfadadas

com sua vida, e traz para a virada do século XVIII mais alguns suspiros de vida

inteligente, e tenta sair de seu estigma de simples entretenimento. É o Século das

Luzes e isso vai afetar a maneira de se olhar para o teatro.

Samuel Johnson (1709-1784) ensaísta, romancista e autor de um importante

dicionário da língua inglesa, possui um bom exemplo dessa mudança de olhar em

Prefácio a Shakespeare.

O objetivo da escrita é instruir; o objetivo da poesia é instruir deleitando.Não se pode negar que o drama misto possa transmitir as lições da tragédia ou da comédia, porque contêm os dois na alternância das cenas, e que ele toca mais de perto que nenhum dos dois os aspectos da vida, mostrando como grandes maquinações e intenções mesquinhas podem estar de acordo ou contrariar-se , e o alto e o baixo cooperarem com o sistema geral através de um encadeamento inelutável. (JOHNSON, 2004, p.207)

E Louis-Sébastien Mercier (1740-1814), polígrafo, dramaturgo, escreve o

Sobre o Teatro (1773), e em seu ponto de vista o objetivo da arte dramática era:

No entanto, o meio mais ativo e mais pronto de armar invencivelmente as forças da razão humana e de lançar de repente sobre um povo uma grande massa de luzes,

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seria seguramente, o teatro; é lá que semelhante ao som da trombeta penetrante que deve um dia acordar os mortos, uma eloqüência simples e luminosa poderia acordar um instante uma nação adormecida: é aí que o pensamento majestoso de um só homem iria inflamar todas as almas com uma comoção elétrica: e aí, enfim, que a legislação reencontraria menos obstáculos e operaria as maiores coisas sem esforço e sem violência. O governo, dizem, opor-se-ia a isso? Que a peça seja feita primeiro, e bem feita, a hora da representação não tardará, e o governo aceitará a lei. (MERCIER, 2004, p. 224)

O teatro agora passa a ser revolucionário e romântico - por isso idealista. As

palavras são usadas para um bem maior, fomentar a revolução, criar a necessidade

de mudança, o meio natural desse período de manipular as mentes de sua geração.

Isso demonstra o poder que essa arte possui. O teatro passa a ter uma função, uma

razão de existir porque agora há um motivo para falar, uma ideologia a ser

defendida.

Claude- Nicolas Ledoux (1736-1806), arquiteto que construiu as Barreiras de

Paris, as célebres Salinas d’Arc-et-Senans e o teatro Besançon, em “A Arquitetura

Considerada em Relação Com a Arte, os Costumes e a Legislação” (1804), faz um

comentário interessante- dentro de sua visão burguesa - sobre os ânimos do povo

dentro dos teatros:

A forma dos teatros assemelha-se à dos lugares destinados ao jogo da péla; é um carreiro a pique onde paixões de todos os tipos remexem o seu lodo, onde o sopro do espectador exala corrupção, e repercute sem cessar os venenos que engole. A cupidez mantém uma parte do público de pé durante duas horas num redil, que se chama platéia, não sei por quê. É aí , sim aí, onde nossos semelhantes, onde a espécie menos favorecida da fortuna, fica de tal modo refreada, comprimida, que sua sangue; espalha em torno de si um vapor homicida. ( LEDOUX,2004, 252)

Era uma época de agitação política e social, e o teatro como fruto único de

seu tempo por conta da sua efemeridade, acompanha suas tendências como grande

aliado ou como grande aliciador.

Mas esse foi um momento, logo arrefecidos os humores das revoluções, a

ordem retorna e com isso o teatro vai retornar para o momento ainda mais passivo.

A maioria dos homens, devido à sua situação ou porque não são capazes de fazer grandes esforços, vivem fechados no círculo monótono das pequenas ocupações insignificantes. Os seus dias repetem-se seguindo as leis uniformes do hábito, têm dificilmente o sentimento da existência; as paixões da sua juventude faziam correr a sua vida como uma torrente rápida, pouco depois ela enlanguesce sem movimento; oprimidos por um descontentamento secreto, buscam escapar-se-lhe tentando diversos meios de distração, que todos concorrem para dar algum exercício às faculdades ociosas, fazendo-as lutar com ligeiras dificuldades. Nenhum destes divertimentos pode

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entrar em comparação com o espetáculo. Privado do prazer de exercer qualquer influencia pelas nossas próprias ações, olhamos , pelo menos com interesse, as dos outros. (...) Apresenta-nos, assim, o quadro embelezado da vida; a elite dos momentos mais tocantes e mais decisivos do destino do homem. (SCHLEGEL, 2004. p. 260)

August-Wilhem Schlegel (1767-1845), preceptor dos filhos da Madame de

Staël, fez parte do grupo de Copet. –que fazia oposição entre a literatura clássica e

romântica. Em “Curso de Literatura Dramática” (1808), vai levantar o dado já

discutido antes do interesse pela vida dos outros (não mais com a perspectiva

aristotélica de aprendizado pela imitação), mas com o adendo bastante coerente

com o momento, que nasce nesse instante e vai explodir no Simbolismo de

Baudelaire, que é a do spleen , o tédio que a vida moderna pós- Revolução

Industrial vai propiciar nos homens abastados. O senso de uma vida de trabalho vai

ser exaurido com o fato de jovens nascerem ricos e não precisarem mais pensar

num futuro, e não terem um mundo que podem mudar. As revoluções já acabaram,

nem a Primavera de Praga de 1848 consegue reacender o ânimo idealista, o mundo

corre em busca da corrida industrial, e o capitalismo usurpa a alma de cada vez

mais pessoas. .

É dentro dessa geração que o teatro brasileiro vai nascer, Martins Pena, irá

escrever peças de costume, que incluem um pouco de crítica em suas ironias, mas

naquela época não havia nada mais “chique” que rir de si mesmo. Mas ainda será

uma cópia provinciana, meio pornochanchada do que na Europa encontrará, um

pouco mais tarde, seu ápice em Oscar Wilde.

O autor suíço Benjamin Constant (1767-1830), também parte do grupo de

Copet. Ele contribuiu para a comunicação das literaturas européias entre si, como

um primeiro passo em direção ao que vai ser a França para o Modernismo, em

”Algumas Reflexões sobre a Tragédia de Wallstein e sobre o Teatro Alemão e

Outras Obras” (1809), expõe uma síntese dos princípios do teatro de costumes:

O que é, com efeito, uma composição dramática? É o quadro da força moral do homem combatendo um obstáculo. Pode dar-se a essa força moral diversos nomes, segundo a causa que a põe em movimento. Assim, chama-lhe sucessivamente amor, ambição, vingança, patriotismo, religião, virtude; mas é sempre a força interior lutando contra um obstáculo exterior. Da mesma maneira nomear-se-á diversamente o obstáculo ao qual essa força moral tenta resistir; esse obstáculo poderá ser designado pelo nome de despotismo, opressão religiosa, leis, instituições, preconceitos, costumes: pouco importa, no fundo é sempre a sociedade a pesar sobre o homem e carregando-o de cadeias. É evidente que esta ação da sociedade é o que há de mais importante na vida humana. É dela que tudo parte; é nela que tudo termina; é a esta preliminar, não consentido,

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desconhecido, que é preciso submeter-se sob pena de ser-se quebrado. Esta ação da sociedade decide de o modo como a força moral do homem se agita e se exibe. (...) Não é para dizer que é preciso limitar-se à pintura da sociedade contemporânea. O próprio da arte é transportar o homem para situações em que ele não está. O autor tem mesmo muitas vezes necessidade de personagens secundárias. O espectador deve saber qual é o estado da sociedade em si mesma independentemente do herói; porque ela não pesa nada sobre esse herói só, mas sobre tudo o que cerca, tudo o que coexiste com ele. É quando o auditório é penetrado por esta impressão, por assim dizer, abstrata, e do domínio da ordem social sobre todos; que ele vê, com mais emoção, acabrunhar com seu peso a personagem pelo qual é instado interessar-se. (CONSTANT, 2004, 278-280-281)

Como todo o princípio de uma nova tendência, ele expôs aqui a idéia de que

o que se pretende é mostrar a sociedade, já que como arte que retrata o homem,

não pode se desvincular do mesmo. Como Schlegel já havia sugerido, o público

quer ver a vida dos outros, e Constant vai pensar nisso de maneira sociológica. O

teatro vai encontrar sua razão no fato de estar entregando para seu público

situações limites, com as quais eles não deparam realmente em suas vidas, mas

poderiam ( não se pode perder de toda a verossimilhança).

O problema nasce do fato de que ao longo da prática desse tipo de teatro a

intenção perdeu seu senso crítico, certas peças agradaram tanto ao público que

deram origem, mais uma vez, a fórmulas em que era só trocar os personagens e um

ou dois detalhes do enredo e já se tinha o próximo melodrama. E o exagero na

esperança de oferecer um grande espetáculo também contribui para a perda do

rumo.

Outros, segundo nos parece, já o disseram: o drama é um espelho onde reflete a natureza. Mas se este espelho for um espelho vulgar, uma superfície plana e lisa, não devolverá dos objetos senão uma imagem baça sem relevo, fiel, mas descolorida; sabe-se que a cor e a luz perdem com a reflexão simples. É preciso então que o drama seja um espelho de concentração que longe de as enfraquecer, recolha e condense os raios coloridores, que faça de um luar uma luz, de uma luz uma chama. Só então o drama é declarado como arte.9(HUGO, 2004, p.309)

Claro que essa é uma visão simplista do movimento romântico no teatro, mas

a idéia é ressaltar como mais uma vez o teatro perde sua vontade de ter uma razão

maior do que encher os teatros. Alfred de Vigny (1797-1863) poeta e romancista,

dramaturgo, em “A Carta a Lord ***” (1829), faz uma declaração visionária: “O poeta

saberá então no futuro que, mostrar o homem como tal como ele é, é já comover.”

9 Victor Hugo (1802-1885)- “Prefácio de Cromwell” (1827)

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(VIGNY, 2004, p. 315). O homem será explorado como ele é, e achará em James

Joyce a supremacia do homem através do seu “épico da carne”, Ulisses (1922).

A mesma corrente que vai resultar em Joyce, vai resultar no teatro naturalista,

expressionista, existencialista, futurista, do absurdo, experimentalismos que vão

gerar as obras contemporâneas.

O trabalho deve tornar-se fácil , agradável e contínuo, e a arte deve ser utilizada pela nova classe como qualquer coisa de essencial e de necessário que, em vez de simplesmente uma distração, ajude o operário no processo do seu trabalho. É por isso que será preciso mudar não apenas as formas da nossa arte, mas também o seu método.10 (MEYERHOLD, 2004, p 404)

Esse é exemplo da linha marxista, que será mais bem exemplificado com

Brecht, o teatro agora estará a serviço do proletariado. Com esse perfil ele acaba

por resgatar uma função, pois não servirá somente para entreter esse homem, mas

para informá-lo da mudança. E será nesse século em que nascerá a vontade de

voltar a pensar, ou finalmente pensar no teatro como uma das artes estéticas e não

mais só entretenimento. Repensar o seu “método” abriu caminho para a miscelânea

de nosso tempo e confere ao teatro um estudo verdadeiramente estético, que em

outras épocas ficava em segundo plano.

Um exemplo é o expressionismo alemão, ansiosos por exprimir e não

reproduzir, entraram em combate com o vigente Naturalismo e Realismo – que com

seu cientificismo acabaram por limitar o teatro a uma esfera de “realidade forçada”,

sem nuca se questionarem sobre o princípio paradoxal desse ato: já que o teatro é

em sua essência imitação. Desilusão com a vida exterior ao teatro – e dentro dele –

fazem com que artistas procurem uma visão mais ilusória da vida, até mesmo mais

espiritual.

E estes seres nus que proferem discursos poderosos com gestos grandiosos, que se rolam na terra presas da dor, que exprimem o infortúnio e a felicidade unicamente erguido, todos estes descarados que parecem tão estranhos ao homem banal, são no entanto, eles, a banalidade porque são primitivos. E o espectador que os acha estranhos, é ele corrompido. Aquele que não reconhece o seu irmão em cada uma dessas personagens está perdido porque não reconhecerá nada dos seu ser verdadeiro , é, no verdadeiro sentido da palavra, inconsciente; caiu da árvore da

10 Vsevolod Meyerhold (1874-1942) ator e encenador russo – pupilo de Stanislavki, O Ator e a Biomecânica, de 1922 in “ Escritos sobre o Teatro ( textos de 1907,1912 e 1922)”

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humanidade como fruto apodrecido porque já não tem qualquer laço a ligá-lo ao mundo, ao centro do mundo e sua existência será para sempre terrestre. Torna-se particularmente urgente para nossa época em que o conhecimento da nossa natureza parece desenvolver-se tanto que os homens se rodeiam dessas personagens a fim de que lhe recordem suas origens e que dirijam a sua atenção para verdades mais importantes. (KORNFELD, 2004, p 417) Tal poderia ser a missão, o sentido último de toda a arte, e unicamente isto: recordar à humanidade que ela é composta por homens e recordar ao homem que ele pertence a Deus e que tem uma alma, que nela está o certo, o seu único ser, e o resto não é resto não é mais que o fardo que a força a rebaixar-se, o laço no qual deve estar encerrada para residir na terra. Tal poderia ser o sentido último de toda a arte: mostrar como todo o real não é mais que aparência que se evolva diante da existência humana autêntica. Sim, todo o real não é mais que erro porquanto a verdade é a espiritualidade.11 (KORNFELD, 2004, p. 418)

Em a outra vertente, está o uso aproximado a Meyerhold, está Erwin Piscator

(1893 – 1966), encenador alemão que introduziu as idéias de teatro político e de

forma épica em “ O Teatro Político” (1929):

Para nós, o homem tem sobre a cena importância de uma função social. Não é a relação do homem consigo mesmo, nem a sua relação com Deus que terá centro das nossas preocupações, mas suas relações com a sociedade. (...) Mas uma época em que as relações no interior da coletividade, a revisão de todos os valores humanos, a perturbação de todas as relações sociais estão na ordem do dia, não pode ver o homem de outro modo a não ser na sua posição face à sociedade e aos problemas sociais de seu tempo; de outro modo senão como ser político. A missão do teatro revolucionário consiste em tomar a realidade como ponto de partida, em intensificar o desacordo social para fazer dele um elemento de acusação e assim preparar para a revolução e a ordem nova. (PISCATOR, 2004, p.443-444)

Em continuação aos processos revolucionários, passada uma Grande Guerra

e todas as conseqüências que esta acarreta, o teatro não pode mais virar suas

costas a uma realidade sufocante de destruição em massa e de perigo eminente. A

realidade não pode mais ser posta no palco, é impossível.

O teatro vai perseguir sua forma mais abstrata, vai tentar passar a agonia de

seu tempo por meio da ritualização do teatro, buscando sua forma mais “visceral”. É

com Antonin Artaud (1896-1948), escritor, encenador e ator francês, que participou

do teatro surrealista e criou o Teatro da Crueldade, teoria que dialoga de maneira

sensorial com as aflições do momento, em “O Teatro e seu Duplo (1938), que se

verá essa leitura do mundo para a arte:

11 Paul Kornfeld (1889 – 1942), parte do expressionismo alemão – “O Homem Espiritual e o Homem Psicológico” (1918)

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A operação teatral de fazer ouro, pela intensidade dos conflitos que provoca, pelo número prodigioso de forças que atira uma contra a outra e que ela comove, por esse apelo a uma espécie de pregueado essencial a extravasar de conseqüências e sobrecarregado de espiritualidade, evoca finalmente, ao espírito, uma pureza absoluta e abstrata, após a qual não há mais nada, que se poderia conceber como uma nota única, uma espécie de nota limite, apanhada em vôo e que seria como a parte orgânica de uma vibração indescritível. (ARTAUD, 2004, p. 451-452)

... O teatro, isto é, a gratuidade imediata que leva a atos inúteis e sem proveito para o momento presente. (...) Enquanto as imagens da peste em relação com um poderoso estado de desorganização física são como os derradeiros jorros de uma força espiritual que se esgota, as imagens da poesia no teatro são uma força espiritual que começa sua trajetória no sensível e dispensa a realidade. Uma vez lançado em seu furor, é preciso muito mais virtude ao ator para impedir-se de cometer um crime do que coragem ao assassino para executar seu crime, e é aqui que, em sua gratuidade, a ação de um sentimento no teatro surge como algo infinitamente mais válido do que a ação de um sentimento realizado. (...) e a desordem da guerra, ao passarem para o plano do teatro, se descarreguem na sensibilidade de quem os observa coma força de uma epidemia. (o teatro) aproveitou alegremente a ocasião para introduzir um flagelo muito mais perigoso, pois atinge não os corpos, mas os costumes. (...) Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que, aliás, só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heróica e difícil.12 (ARTAUD, 1993, p 18,19,20,22)

Ou mais prático como o Teatro Épico de Bertolt Brecht (1898-1956) que

dedicou toda sua estética tentando criar um teatro que pudesse causar alguma

modificação social- o teatro épico; criando ou enfatizando técnicas para um teatro,

que Walter Benjamin (1892-1940) chama de teatro político- clamando para que o

palco se torne uma tribuna. O texto passa a ter “função instrumental” em que pode

“estar a serviço da preservação da atividade teatral” e “a serviço de sua

modificação”.13

Outro elemento essencial da cena de rua, também necessário na cena teatral- se pretendermos apresentar teatro épico-, é a circunstância de a descrição ter uma projeção no domínio prático, no domínio social. (...) a descrição obedece a uma finalidade prática, há um compromisso social. (...) a perspectiva social ganhará, assim maior evidência. (...) Este teatro que preconizamos tem, simultaneamente, de divertir e de ensinar.14

Nº 35 – Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo período histórico das relações humanas (o conceito em que as ações se realizam), mas, sim, que

12 Excerto retirado de outra tradução do “Teatro e seu Duplo” – Teixeira Coelho. 13 Walter Benjamin,1994 14 Bertolt Brecht As Cenas de Rua in Estudos sobre o Teatro (1963)

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desempenhem um papel na modificação desse contexto.15 (BRECHT, 2005, p. 92, 99, 142)

O teatro brechtiniano por suas características também ficou conhecido como

didático, procurou fazer uso da arte com o propósito de ensinar o seu público a ser

mais crítico, utilizando das técnicas de distanciamento, ele vai introduzir uma voz,

um canto, um gestus para chamar a atenção de seu público de que não se pode

simplesmente se deixar levar pela estória, algo está sendo descrito com um

propósito final. Apesar de por vezes essa mesma qualidade didática fazer do teatro

de Brecht caricato, há aqui a ascensão do plano de funcionalidade do teatro. Ela vai

servir a um propósito.

Assim como o Teatro do Absurdo vai servir de reflexo da paralisia de um

mundo ainda mais embasbacado após uma Segunda Guerra Mundial e a

aniquilação causada pela bomba atômica. Esses fatos vão deixar o mundo sem

palavras e sem direção, e o Teatro do Absurdo será sua conseqüência mais

inteligente:

(...) um fenômeno como o teatro do absurdo não reflete desespero nem retorno a forças obscuras e irracionais: antes expressa a preocupação do homem moderno de dialogar com o mundo em que vive, Esse tipo de teatro tenta fazê-lo enfrentar a condição humana tal qual é, libertá-lo de ilusões fadadas a causar desajustamentos e desapontamentos constantes. Há pressões imensas em nosso mundo buscando levar a humanidade a suportar sua perda de fé de certezas morais por meio de entorpecentes que façam esquecer: pelos entretenimentos de massa, por pseudo-explicações da realidade, por satisfações materiais superficiais, por ideologias barata.(...) e quando a vida está ameaçada de ser sufocada pelo consumo maciço da vulgaridade mecanizada e hipnótica, a necessidade de confrontar o homem com a realidade de sua condição é maior que nunca. Pois a dignidade do homem com a sua capacidade de enfrentar a realidade em toda sua insensatez, aceitá-la livremente, sem medo, sem ilusões – e rir-se dela.”16 (ESSLIM, 1962, p 11)

Enfim o teatro chega ao século XX, após oscilar entre tentar ser mais que um

entretenimento e afundar dentro desse conceito, contrapondo ainda esses dois

ideais. Há várias outras teorias que não foram abordadas nesse capítulo e que

viriam de encontro a umas dessas ultimas três grandes linhas, que só

demonstrariam o quanto o teatro ainda está à procura de seu real propósito. Ser a

arte da performance; ser a arte do conteúdo; não ter palavra; a palavra não diz nada;

15 Brecht Pequeno Órganon para o Teatro in Estudos sobre o teatro. 16 Teatro do Absurdo (1962) – termo cunhado por Martin Esslim (1916-2002) em sua análise das peças produzidas na época.

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o encenador é grande maestro; a criação coletiva é a saída; dar ao público o que ele

quer; chocar o público mostrando o que ele não quer.

O teatro se encontra tão perdido quanto o homem, por ser seu reflexo e só

dele nascer, o teatro procura sua razão de ser desde que foi criado, assim como

homem que tenta não se afogar na fúria avassaladora do capitalismo, da falta de

comunicação, do isolamento virtual, da violência atávica ao homem que não

conseguiu ser domado, da destruição dos conceitos e dogmas. O homem começou

a ser crítico, e saiu criticando tudo a sua volta e quando faltou assunto, começou a

criticar a si mesmo e depois disso nunca mais se curou. Deus não existe, assim

falou Zarathrusta.

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III . Um pouco de Bosco Brasil Infelizmente há pouca literatura confiável sobre teatro brasileiro, e os poucos

focalizam a análise da história do teatro. É bastante escasso o número de livros que

analisam o teatro contemporâneo. Por isso fica difícil fazer uma pesquisa confiável

sobre os autores que estão escrevendo no momento presente, sem utilizar o

material veiculado pela internet e revistas sobre o assunto. Conseqüentemente se

escolhe trazer “um pouco” somente de Bosco, mesmo porque a leitura que será

efetuada aqui não compreende uma análise biográfica.

Bosco José Lopes Rebello da Fonseca Brasil (São Paulo SP 1960). Autor. Integrado ao movimento de renovação dramatúrgica dos anos 90, privilegia os temas da juventude e suas contradições. Formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP, Bosco tem uma bem-sucedida estréia em 1994 com Budro, [com essa peça] arrebata os prêmios Shell e Molière de melhor autor. Funda o Teatro de Câmara de São Paulo, na Praça Roosevelt, juntamente com Ariela Goldmann, Jairo Mattos, Lavinia Panunzio e Luis Fruguli. Inspirado no Teatro de Câmara de Estocolmo, fundado por Strindberg, ambiciona criar uma companhia onde a direção sirva mais como um "guarda de trânsito" da criação artística dos integrantes do grupo, à maneira dos grupos de música de câmara. O repertório é dedicado integralmente à dramaturgia contemporânea. Em 1995, estréia o novo espaço como autor e diretor de Atos e Omissões. (...) Em 1996, é a vez de Qualquer Um de Nós subir à cena, novamente encenado pelo próprio autor. O Teatro de Câmara apresenta, ainda, Balada de um Homem Ridículo, de Vadin Niktin, inspirado em Dostoievski, e o Homem da Flor na Boca, de Pirandello, com Cacá Carvalho, artista convidado, encerrando o histórico deste espaço. Em 1998, Os Coveiros, mais uma comédia. (...) O Acidente, escrito em 1995, é dirigido por Ariela Goldmann, em 2000, afirmando as virtudes do jovem autor e seus temas preferenciais: a discussão de seu tempo e sua geração. Em 2001, um texto curto entusiasma público e crítica: Novas Diretrizes em Tempos de Paz, apresentada num ciclo de nova dramaturgia promovido pelo Ágora, Centro para o Desenvolvimento Teatral. Através da delicadeza da encenação de Ariela Goldmann, a obra revela sua terna magia e complexa rede de intenções deflagradas entre um imigrante polonês e o agente policial que faz a triagem na imigração. Com esta montagem, ganha o prêmios Shell e APCA de melhor autor em 2002. Escrito no mesmo ano, Blitz, também sob o formato de texto curto para a Mostra de Dramaturgia Contemporânea, empreendida por Renato Borghi, contrapõe um soldado e sua mulher, num momento de exasperação de suas vidas. Medo de Chuva, também encenado em 2002, é dirigido por Marco Antonio Rodrigues.17

As peças de Bosco Brasil são: Budro (1994), Atos e Omissões (1995),

Qualquer Um de Nós (1996), Os Coveiros (1998), O Acidente (2000), Novas

Diretrizes em Tempos de Paz (2002), Blitz (2002), Medo de Chuva (2002), À

Putanesca (2002), O Dia do Redentor (2003), O Acidente (2003), Abelardo e Berilo

(2005), Cem gramas de dentes (2006), Corações encaixotados, 2007.

17 http://www.itaucultural.org.br

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Ele também escreveu telenovelas para as redes televisivas Globo, Record e

Sbt.

São características de Bosco Brasil, apresentadas por Nelson de Sá em seu

Divers/idade - um guia para o teatro dos anos 90:

Bosco traz a coisa urbana. É uma reflexão em relação à cidade, ao urbano. Ele vai fundo em algumas feridas, que eu não sei se as pessoas querem comungar, mas que sempre têm um resultado forte, no teatro. (...) Uma das referências mais constantes da nova dramaturgia, confirmada em Bosco Brasil, é certamente a temática urbana e, com ela a violência. Desde uma primeira peça experimental, ainda no Espaço Off, ainda nos anos 80, o que interessa ao autor é a temática urbana. Diz Bosco que não consegue se ver em outro meio que não a cidade grande, e não consegue escapar da violência da cidade. “_ Sempre foi uma obsessão minha, não sei por quê. Talvez tenha a ver um pouco com o fato de eu ter estudado num colégio do centro da cidade. A impressão que se tinha era que a violência era maior no centro. Hoje acontece o inverso.” (NELSON DE SÁ, 1997, p. 379)

Geração esta fruto de uma longa trajetória. A história do teatro no Brasil

contou com a hegemonia do encenador, devido à grande quantidade de artistas

europeus que aportaram no Brasil e trouxeram consigo uma visão diferente e uma

nova maneira de fazer teatro. Depois há o advento da ditadura e uma produção

teatral que será voltada para o combate político, fazendo com que as décadas de 60

e 70, ficassem conhecidas por seu teatro engajado. Já na década de 80, vem a crise

que nas palavras de Sábato Magaldi: “Explicação verossímil para certo declínio da

dramaturgia na década de 80, é que, desmobilizados os autores na sua faina

política, e requeria um tempo razoável para se reabastecerem com novos materiais

de interesse público18”; A década de 90 traz a “nova dramaturgia” da qual Bosco faz

parte, é composta por uma nova leva de autores que surgiram como conseqüência

dessa caminhada. É nessa década, que se aponta o retorno dos dramaturgos como

figuras importantes para o teatro, e juntamente com os artistas que vivem dessa

arte, tentam dar suspiros de sobrevivência ao teatro, e principalmente à dramaturgia

brasileira que segundo alguns autores é volumosa, mas sem qualidade.

Fazendo uso das temáticas contemporâneas mais freqüentes, como a

violência, o amor, a vida nas cidades, a nova dramaturgia tenta falar com seu

público, e seduzi-lo com seu canto para as profundezas de suas platéias.

18 MAGALDI, 1999, p. 315

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24

Sobre as peças dos anos 90 de Bosco, Nelson de Sá descreve algumas

qualidades e defeitos. Vejamos alguns exemplos destes:

Budro é o maior acúmulo de clichês recentemente produzido pelo teatro. É a cópia mal adaptada de um filme americano de sete anos atrás, Abaixo de Zero (Less than Zero), em que buscava retratar a juventude dos anos 80, em Los Angeles, com muito dinheiro, muita festa, muita cocaína e nenhum futuro. Entre as singularidades da nova dramaturgia no mundo e no Brasil neste fim de milênio, está o espelho da cidade grande em deterioração econômica, em dissolução social e moral. No Dizer do crítico inglês Benedict Nightingale, são peças “que se passam em cidades onde qualquer coisa é possível, menos a atenção aos outros e o sentido de comunidade. São peças que ampliam “ o ataque a uma sociedade egoísta e corrupta”. No mundo, é o que se assiste nas peças do americano Tony Kushner, do canadense Brad Fraser, do francês Bernard- Marie Koltès. No Brasil, é o que se assiste em Atos e Omissões, de Bosco Brasil, no Teatro de Câmara de São Paulo. (...) com todos os seus equívocos e imperfeições formais, e imperfeições formais é o que não falta a nova dramaturgia, não só no Brasil, é uma peça que reflete melhor, um espelho mais definido do que se passa com as pessoas, hoje. (...) sobem ao palco a banalização da violência na metrópole, desilusão dos ( já não tão) jovens com seus sonhos de amor e arte, o racismo, a morte. (...) Uma dramaturgia que não é do gosto dos últimos sobreviventes da vanguarda modernista, assustados com o convencionalismo formal dos novos autores, mas também uma dramaturgia que conseguiu livrar o teatro do marasmo em que estava preso há tempos. (NELSON DE SÁ, 1997, p. 229, 314, 315)

Outra característica que parece ter aparecido com o andar de sua obra foram

as peças curtas, em que dois personagens se embatem a tal ponto que conseguem

se desnudar, ou desnudar alguma situação, através do que é dito. Sempre

transitando entre o tema da violência e da palavra não dita. Bosco em suas novas

peças coloca um coveiro e um supervisor debatendo sobre a corrupção que ocorre

ali (o coveiro ganha dinheiro mentindo sobre uma cova que guarda uma santinha),

ou um policial da PM que precisa convencer uma mãe de que ele é inocente no caso

do assassinato do filho dela, ou ainda do matador de aluguel que se encontra com

sua vítima, só que ela é o negociador da polícia que quer tirá-lo de lá com vida.

Falando do mundo por meios desses encontros, Bosco tem conseguido se

destacar por sua preocupação em fazer um teatro de tese, com o objetivo de

desvelar a seu público os problemas do mundo de hoje, sejam os de ordem

emocional, seja os de ordem política. Por vezes derrapando formalmente, e caindo

na tradição melodramática, que deve ser apreciada em suas telenovelas, suas

peças normalmente contam com uma boa dose de sensibilidade e bom senso.

Sobre a peça aqui em questão há o release liberado a todos os sites sobre a

peça:

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25

O espetáculo Novas Diretrizes em Tempos de Paz narra a história de um polonês refugiado que tenta conseguir seu visto de entrada no Brasil, durante a ditadura de Getúlio Vargas, iniciada final da década de 30. O embate entre o interrogador alfandegário e ex-torturador da Polícia Política de Vargas e o polonês, que viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial, ocorre na sala de imigração do porto do Rio de Janeiro, em 1945. Os dois personagens dão início a um intenso e comovente diálogo em que desvelam suas vidas, suas perdas e suas esperanças. Muito mais que uma discussão sobre os horrores dos sistemas totalitários, o texto propõe uma reflexão sobre o ser humano, seus demônios e suas virtudes. Escrita por Bosco Brasil, a peça recebeu, em 2002, os prêmios Shell de Teatro e da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). 19

IV. Novas Diretrizes em tempos de Paz

a) Uma amostra

19 http://www.palaciodasartes.com.br/noticias_novas_diretrizes.asp

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Segundo o relato de Valmir Santos, num artigo para a Folha de São Paulo:

Clausewitz (Dan Stulbach) desembarca de um navio cargueiro. Horrorizado com os crimes de guerra na Polônia, ele quer abraçar uma nova profissão, a de agricultor, e esquecer os dez anos de atuação no teatro. Atrás da mesa, Segismundo (Jairo Mattos), um torturador da polícia política do governo, obviamente não tem tato para lidar com estrangeiros. O cruzamento das lembranças de um (que teve familiares e amigos brutalmente assassinados) e de outro (que espancou sob as ordens do chefe), pêndulo de frieza e sensatez, expõe máscaras humanas e teatrais. Segismundo vê contradições no depoimento do homem que se diz agricultor, mas não tem calos nas mãos; fala português do Brasil, mas nunca pisou no país. Contudo, deixa-se envolver. Provoca Clausewitz com a aposta de que só permitirá sua entrada se o fizer chorar, por meio de algum relato, nos dez minutos que restam para o navio voltar. A partir de então, dá-se um jogo de convencimento do outro, busca e negação de identidades. Segismundo abre o jogo sobre o trabalho sujo de torturador. O polonês, para afastar a suspeita de espião nazista, lança mão do teatro, especialmente da idéia barroca do grande teatro do mundo, como descreve Calderón de la Barca, e leva o interlocutor aos prantos quando 'interpreta' uma das passagens do clássico A Vida É Sonho, no qual o protagonista, não por acaso, chama-se Segismundo.20

Aqui há um bom resumo da estória da peça, que parece ter surgido de uma

conversa entre o ator Dan Stulbach – que interpretou Clausewitz em todas as

apresentações- e o autor. Após os atentados de 11 de setembro os teatros se

fecharam em sinal de luto e ele se perguntou qual seria a importância de sua

profissão em tempos de guerra. Essa angústia será a principal mensagem que será

analisada neste trabalho, no entanto, e que fique bem claro, a peça não pode ser

resumida neste assunto, assim como não foi essa a grande e única intenção do

autor.

A peça ganhou prêmio Shell em 2002 e acabou sendo patrocinada pela

Petrobrás, o que acabou transformando uma peça de apresentação única- como era

a intenção, uma apresentação no projeto agora de São Paulo em 2001, acabou por

se transformar em 15321 apresentações, atingindo mais de 60.000 pessoas por todo

o Brasil.

A estória é simples, assim como resumiu Valmir Santos, é curta: nada mais

que 20 páginas de texto escrito, que resulta em 50 minutos de peça. O enredo como

é comum nos textos que vieram depois do modernismo não precisa ter uma estória

linear e de grandes acontecimentos. As peças hoje em dia podem falar de tudo e de

nada ao mesmo tempo. Bosco não se aprofunda em experimentalismo nessa peça,

20 .SANTOS, Valmir. Peça vê terror histórico e pessoal da guerra. Folha de S.Paulo, São Paulo, 5 dez. 2001. Ilustrada, p. E-5.

21 Dado retirado do site oficial http://www.novasdiretrizes.com.br/

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ela é bastante linear, sendo que o acontecimento em si poderia ser ínfimo ou até

mesmo um clichê: o homem saído da guerra, após perder tudo ainda tem que sofrer

nas mãos do tirano supervisor da alfândega; é por esse motivo que anteriormente,

neste trabalho, havia dito que Bosco namora o melodrama, mesmo que o olhe de

maneira crítica. O que irá fazer a estória crescer, e que é a base do teatro – sem que

se mencione a tendência pós-dramática22 - será o seu diálogo, que tece uma tênue

linha entre o drama e a crítica, fazendo com que suas palavras atinjam o poder

dramático de um grande melodrama, enquanto na verdade desvenda críticas

comportamentais, humanas, lingüísticas e , por que não dizer, profissionais.

A estória vai seguir as bases aristotélicas de unidade de tempo, lugar e

ação, não que se possa determinar que seja proposital, na verdade parece mais

uma marca do autor que apresenta em outras peças um núcleo de ação, onde é

dado um estopim e espera-se que a explosão verborrágica faça o resto. O clímax

do enredo é dado no momento em que tendo que fazer chorar Segismundo, a

poesia de Calderón de la Barca ganha espaço e ganha a aposta.

Intertextualidade óbvia esta, e há outras no corpo do texto, marcando mais

uma característica da nova geração de escritores, apesar da tradição literária ser

marcada pelo reaproveitamento de outros textos, a nova geração a usa como senso

comum- mesmo a realidade não comprovando que o seja. Foi Borges que disse que

a literatura só fala de si mesma, e essa peça não escaparia, mesmo em sua curta

duração há menções a outras peças , assim como o texto se faz bastante

metateatral, afinal discute a necessidade do teatro dentro de uma peça.

b) o texto

A análise do texto será feita como uma leitura pormenorizada de suas partes,

sendo apresentadas em sua ordem natural.

O texto começa pelo título e leva a alcunha de ser uma “fábula por Bosco

Brasil”:

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Fábula: palavra de origem latina cujo significado é narração. (...) No teatro do século XX a palavra foi retomada pelos formalistas russos, que a usaram como equivalente a história. (...) Em literatura, trata-se de uma narrativa em geral de pequena dimensão, que serve como ilustração de uma lição de cunho moral. (VASCONSELLOS, 1987, p.87)

O sentido que Bosco vai utilizar é o da narrativa com intenção didática. Esse

tipo de teatro teve seu ápice com Brecht e chega a Bosco de maneira menos

distanciada, mas ainda assim alegórica. Esse tipo de literatura se preocupa com a

forma como é apresentado o enredo, pois há dentro dele uma intenção moralizante.

Nas fábulas antigas era uma moral da estória única, em Brecht mostrava a luta das

classes, no mundo contemporâneo é uma miscelânea crítica que tenta fugir do

maniqueísmo:

SEGISMUNDO - (TEMPO) Deve ser difícil pensar que nós somos iguais. O senhor pode aceitar que é pior do que eu. Mas não pode aceitar que nós somos iguais. (BOSCO, 2001, p 14)

O importante para o contemporâneo é a sua visão honesta, despida de preconceitos e consultando os valores que lhe parecem permanentes. (MAGALDI, 1999, p. 300)

Não há bons ou maus, as pessoas são simplesmente pessoas cometendo

seus atos incoerentes ou seus lapsos de bondade. O texto contemporâneo não pode

mais cometer o erro de julgar o homem dentro de categorias tão específicas - e

cristianizadas. Ao mesmo tempo em que o texto não se exime de se posicionar de

maneira bastante sensível contra a violência, seja ela originada por várias razões e

direcionada a vários personagens, e como isso modifica o homem.

Um texto que não foge do seu papel social, procura não só emocionar sua

platéia, como propõe o limitado Segismundo, mas a leva a refletir sobre as nuances

de violência e suas conseqüências dentro dos homens, uma violência que pode ser

a da Guerra ou da repressão “fascista” de Getúlio, e ainda do terrorismo

contemporâneo, das desigualdades, e assim por diante. Afinal, a fábula, guarda

ainda mais um trunfo, é atemporal. Seu trabalho por alegoria faz com que seu

simbolismo possa ser entendido nas mais diversas épocas.

22 Teoria de Hans-thies Lehmann, sobre as novas tendências teatrais que tentam se desvincular da teorias aristotélicas e hegelianas de pensar o teatro, uma dessas tendência é destruição do diálogo.

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Há uma fábula, constituída por dois personagens: Segismundo que é o

“interrogador na sala da alfândega”23, uma referência direta ao texto de Calderón de

Lá Barca e Clausewitz, o imigrante polonês que está chegando ao Brasil, para fugir

da Guerra. Esses dois homens têm aproximadamente 40 anos, a cena ocorre no Rio

de Janeiro na década de 40, numa sala da alfândega. Não há mais detalhes

explicitados pelo autor, característica comum a vários dramaturgos da década de 90,

em que deixam para o figurinista e cenógrafo a criação completa de suas funções. O

autor só contribui com o que faz parte de seu trabalho, assim como fazia

Shakespeare que não escrevia didascálias porque ele estaria lá no momento de

encenar, o dramaturgo de grupos teatrais tende a entregar um texto mais enxuto

quanto à ambientação e figurino, pois sabe que isso fará parte do processo criativo

do grupo.

Para o leitor, no entanto, ainda assim não é um processo difícil, acostumado –

se com um pouco mais de leitura- a textos que não se preocupam em ambientar,

mas sim com o que é dito, um texto assim já dá suficientes pistas para que se possa

caracterizar a cena e o figurino. Na apresentação que veio para o Festival de Teatro

de Curitiba em 2001, contava com um palco tão enxuto quanto o texto: uma mesa,

duas cadeiras na mesa uma máquina de datilografar – imprescindível para a cena e

para qualquer órgão público, um porta retrato. Sem mais cenário, com a rotunda

fechando a cena, onde o grande impacto era causado pela iluminação. Diria que era

um tipo de encenação que privilegiava o texto. O que é bastante coerente, pois seu

coração se encontra nas confidências trocadas, não é um teatro performático.

É década de 40, e um pouco mais a frente no texto temos o dia correto “18 de

abril de 1945” 24, data essa de dois grandes eventos: 2 milhões de soldados russos

chegaram a Berlim, tornando o fim da Guerra um fato e o decreto lei 7474 que

“concede anistia aos que tinham praticado delitos de natureza política desde

16/06/1934 a 18/04/1945”25 e que ainda em seu artigo nº 3 instituia:

“Os funcionários civis poderão ser aproveitados nos mesmos cargos semelhantes, à medida que ocorrerem vagas e mediante a revisão oportuna de cada caso, precedida por uma ou mais comissões específicas de nomeação do presidente da Republica”. (Decreto Lei 7474, 18/04/1945)

23 BOSCO,2001, p.1. 24 BOSCO, 2001, p.1. 25 www.soleis.adv.br/anistiapolitica.htm

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Este ato vai ter grande influência no estado de ânimo de Segismundo e em

seu futuro, afinal ele nem se enquadraria nesse artigo da lei, mas quem revisaria o

seu caso? Quem vai se comprometer? Isso será discutido melhor quando o

momento na peça chegar.

A cena começa realmente com :

Segismundo está limpando as unhas nervosamente. Clausewitz abre a porta com cuidado. Segismundo sinaliza para que ele entre. Clausewitiz entra e fecha a porta atrás de si. De fora, chega o apito rouco e insistente de um cargueiro que se prepara para zarpar. (BOSCO, 2001, p.1)

O “nervosamente” fica explicado pelos acontecimentos do dia, e o cargueiro

será o grande pressionador do ânimo dos dois, é através dele que Segismundo

torturará Clausewitz.

A primeira fala de Segismundo transcreve o tipo básico de funcionário público,

bastante comum na história da colônia chamada Brasil. Ele está bravo tanto pelo

homem aparecer nos últimos minutos de seu dia de trabalho, quanto pelo fato que

de ele “tem que ir embora mais cedo”26 , há ordens para que ele abandone seu

posto mais cedo, num dia de mudança política. No dia em que se libertam os presos

políticos pode haver represália, ironia da circunstância. No entanto, na primeira

leitura só é possível sentir uma ansiedade e indícios de que algo está acontecendo

para fora daquelas portas.

De Clausewitz se estabelece a impressão de que ele é um homem

sensível logo na sua primeira reação, pois ele vai reagir à palavra “sujeito”, como

menciona a didascália. Numa encenação é possível que não fique tão claro que sua

reação foi a palavra em si, mas para o leitor fica clara a intenção. Ao menos já se

cria uma situação de choque, um homem bruto contra um homem sensível.

A brincadeira feita com as palavras (a reação de Clausewitz sobre ser

chamado de “sujeito”, vai ser suavizada com a fala dele “sujeito... predicado...27”) vai

fazer parte de todo o texto, pois temos um estrangeiro que vê a língua sob outro

ponto de vista, mais distanciado do uso comum, as palavras vão ter significados

26 Ibdem 22 27 Ibdem 22

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estranhos e ambíguos que o falante que a tem como língua materna não é capaz de

discernir. Essa força das palavras vai ter seu acréscimo quando Clausewitz precisar

usar o português, que ele vê como “língua de bebês e velhinhos28“, para falar sobre

o que ele viu na Guerra. O uso da palavra em uma dada língua vai tomar proporções

de importância, depois de ter perdido o seu sentido no Teatro do Absurdo, Bosco vai

procurar por uma honra dentro das palavras como se elas realmente pudessem

afetar o mundo.

Nessa introdução fica marcada o primeiro traço de suspeita de Segismundo,

Clausewitz não quer admitir que fala português – seja porque ele é uma pessoa que

tem outra língua materna, nunca vai falar fluentemente outra língua, seja pelo fato de

que ele não quer se estender demais no assunto – isso vai gerar suspeita em

Segismundo, uma pessoa ignorante, mas que é capaz de fazer esse tipo de análise,

talvez só esse tipo de análise – a que ensinaram para ele: descobrir quando alguém

está mentindo. A conversa não parece corriqueira nesse momento, mas na verdade

Segismundo está cadastrando cada detalhe do que é dito, ou não dito. Ele é o

perscrutador.

No porta-retrato só existe a foto da irmã, que entrará na trama posteriormente,

mas já indica que Segismundo é um homem solitário e trancado num lugar distante,

como seu homônimo de Calderón de la Barca. Os dois personagens têm o poder de

causar a violência em suas vidas, são destinados a isso, o da peça contemporânea

por ser órfão e pobre e o da peça renascentista pela maneira com que foi tratado por

toda sua vida, enfim os dois frutos de sua criação pelo mundo.

Clausewitz reconhece de imediato o homônimo teatral, mas há a decepção

dentro dele com a arte, Segismundo não se interessará, ele não se interessa mais,

ninguém mais se interessa. É uma arte morta, num mundo de mortos.

A guerra enterra definitivamente o individualismo burguês sob um dilúvio de aço e avalanches de fogo. O homem, o indivíduo independente ou aparentemente livre de todos os laços sociais e, por egocentrismo, andando às voltas em torno do seu próprio Eu, este homem repousa sob a laje de mármore do Soldado Desconhecido. Dito de outra maneira, segundo a fórmula de Remarque: a geração de 1914 morreu na guerra mesmo que tenha escapado aos obuses. Os que regressaram não tinham mais nada em comum com esses conceitos de homem, de humanidade, de grandeza humana, em resumo, com todos esse objetos de luxo que simbolizavam, nos salões das casas burguesas de antes da guerra, a eternidade de um mundo conforme à vontade de Deus. (PISCATOR,2004,p.441)

28 BOSCO, 2001, p12.

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Piscator (1893 – 1966) apresenta aqui suas idéias em 1929, apesar de sua

apresentação marxista, a verdade é que a Guerra destrói a humanidade mesmo

daqueles que sobrevivem aos seus “obuses”, e ele escreveu antes de conhecer o

genocídio causado pela Segunda Guerra. O mundo virou lugar para fantasmas, o

que fez o teatro procurar uma maneira de figurar essa realidade no Teatro do

Absurdo, não há mais espaço para uma arte que depende de seu público, quando

este está anestesiado, cego ou morto.

Clausewitz não se importa mais, é um reflexo de sua geração histórica, é um

reflexo da geração de agora que resultou da letargia que a Revolução Industrial

proporcionou nas pessoas, a perda de suas funções, cada vez mais as pessoas não

têm por que lutar, nossa geração tem todos os aparelhos do mundo e continuam se

destruindo por causa de religião e poder, nada mudou, só o vazio se tornou mais

constante, mais profundo. Por isso a busca dos entretenimentos fáceis, pensar só

aumenta a angústia – “Docta ignorantia” 29.

As personagens continuam numa interessante ambigüidade que surge da

conversa dos dois quando Clausewitz conta como aprendeu português: “Claro, um

funcionário do consulado do seu país em Manchester me emprestou alguns livros.

Ele também repetiu “não” muitas vezes. Agora eu falo: não“ (BOSCO, 2001, p.2). A

resposta de Segismundo é natural, pois como todo o funcionário público – ainda

mais em tempos de guerra - está acostumado a dizer não, quando na verdade o

funcionário o fazia para ajudá-lo a conseguir falar os sons nasais, que é logo

entendido por Segismundo como “nazistas”. Toda essa seqüência tem um pouco de

sua raiz nos textos de Beckett em que suas personagens não se entendem, assim

como reflete bem o estado de ânimo de um interrogatório, tudo pode ser interpretado

como uma ameaça. As pessoas não se entendem, não o querem, a comunicação é

um meio de vinculação de idéias ultrapassado, as palavras não possuem significado.

Ao mesmo tempo, Segismundo quer ouvir uma palavra que condene Clausewitz, ele

foi treinado para isso, ele só necessita de um deslize para fazer o que já está

acostumado.

29 BOSCO,2001, p. 3.

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Quando falam sobre o latim, Clausewitz tenta aproximar os dois mundos

informando que a Polônia assim como Brasil é católica, e assim como Brasil não é

partidária dos paises do Eixo, assim como ele. Mas Segismundo lhe diz que foi

criado como Luterano, assim como em 1934 o presidente Getúlio Vargas promulga

uma Constituição com fortes influências fascistas, o Brasil é um país de

idiossincrasias, só foi se aliar aos Aliados por causa de dependência política e

econômica com os Estados Unidos. Destrói-se o vínculo que a custo Clausewitz

tenta criar, e explicita a história brasileira que esteve bem próxima do mesmo abuso

autoritário que Hitler e Mussolini impuseram à Europa.

O professor Cracowiack, que ensina latim para ele no seminário e que acaba

sendo preso como judeu pelos nazistas, é um personagem que só toma forma nas

palavras de Clausewitz, exemplifica a perseguição aos intelectuais tanto de uma

nação quanto de outra, em governos autoritários. Ele falava várias línguas, era um

erudito que conhecia muito, mas na sua hora final não vai falar nada: “Ele falava

dezessete línguas e o último som que emitiu não foi nem uma palavra30”. Ele viveu

das línguas e não achou nada mais importante em todo o seu vasto conhecimento

para perpetuar. A intelectualidade sucumbe ao violento mundo da ação, se

demonstra falho e sem força para lutar contra o mundo irracional e mecânico que

move as políticas do mundo.

Clausewitz conhece mais sobre a cultura brasileira que Segismundo, mais

uma vez distanciando os dois personagens por seus interesses intelectuais. Eles

falam de Carlos Drummond de Andrade, que Segismundo só conhece como chefe

de gabinete do Ministério de Educação de Gustavo Capanema, que ele assumiu

junto com a nova Constituição em 1934 e só abandonou quando Getúlio saiu do

governo; enquanto Clausewitz só conhece o poeta. Por comparação e dedução,

Segismundo acredita que ele deva ser um escritor, ou algo ligado a estudos, afinal é

só sobre isso que o outro fala. Mas Clausewitz se diz agricultor, que aprendeu

português sozinho – esse impasse entre o que um acha e outro diz, cria uma

valoração da parte de Segismundo, ele está catalogando Clausewitz, é seu trabalho,

é só o que ele sabe fazer. São opostos intelectuais, são vidas opostas, pelo menos

neste princípio.

30 BOSCO,2001, p.16.

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SEGISMUNDO - Deve ser. (TEMPO) Escute, o senhor chegou num dia um pouco agitado. Precisamos resolver esta confusão logo. O senhor sabe que pela lei ainda estamos em guerra. Eu sei, eu sei... Na Europa a coisa parou. Logo vem o armistício. Mas para nós, aqui na Imigração, tudo continua o mesmo. Estamos esperando novas diretrizes para tempos de paz. Enquanto não chegam: continua o mesmo. Se quer ficar no país, como estrangeiro, o senhor precisa de um salvo-conduto. O senhor quer ficar no país, não é? (BOSCO, 2001, p 4)

É deste comentário, e de outros que se seguirão, que se tira o título do

texto, nada pode ser feito, tudo está nas mãos e na consciência de Segismundo, não

há conduta ditada por um superior e mesmo que se saiba que a guerra acabou, que

a ditadura de Getúlio acabou, as pessoas que ocupam esses cargos só seguem

ordens, e enquanto ordens não sejam promulgadas ele nada pode fazer, tem que

agir como dita sua experiência.

Toda a maneira como Segismundo mantém a conversação é agressiva,

porque ele não é somente um entrevistador da alfândega, ele é o interrogador e se

utiliza das técnicas aprendidas para assustar o seu interlocutor. Por isso sua fala é

constituída basicamente de ameaças e logo seu ego se descortina na constatação

”Eu digo se o senhor fica ou segue viagem”31. É o poder que ele tem, quando ele já

perdeu tudo. Neste momento pode-se vincular juntamente a idéia do funcionário

corrupto, querendo algo em troca por seu trabalho, mas a peça deixa claro que não

é só isso.

SEGISMUNDO - E o que o senhor veio fazer aqui? CLAUSEWITZ - Aqui? No Brasil? Trabalhar. SEGISMUNDO - No seu passaporte diz que o senhor é agricultor. CLAUSEWITIZ - O seu país precisa de braços para a lavoura... SEGISMUNDO - O meu país precisa de muita coisa. Posso ver suas mãos? (BOSCO, 2001, p. 4-5)

Aqui há mais uma valoração, mas desta vez feita por Clausewitz, quando ele

diz que o Brasil precisa de braços para a lavoura, ele está pondo em destaque o fato

de que o trabalho na lavoura é mais importante do que ele realmente faz; o mundo

agora necessita da reconstrução das sociedades destruídas pela guerra, de

alimentar as grandes massas famintas. O teatro não alimenta, não constrói edifício e

casas, por isso é um item supérfluo.

31 BOSCO, 2001, p.4

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A resposta é clara e conhecida, o Brasil precisa de muitas coisas, e há

sempre um estrangeiro querendo dizer o que nós precisamos, o povo nunca

entende, mas os políticos sempre parecem precisar desses conselhos - e ninguém

sabe por que ainda não temos o que precisamos.

No seguimento da peça, Segismundo, farejando uma mentira, olha para as

mãos de Clausewitz e sabe que ele não é agricultor, ele conhece mãos de

agricultores, não são delicadas como as mãos de uma pessoa que só as usou no

teatro. Em tempos de guerra, o que um agricultor pode fazer, também? Só a

burocracia sobrevive.

CLAUSEWITZ - O Brasil precisa de braços para a agricultura. SEGISMUNDO - O Brasil sempre precisa de alguma coisa. Uma hora, precisa plantar; outra hora precisa temperar o aço; outra hora o Brasil precisa de nós. Outra hora não precisa mais de nós... (TEMPO) O senhor não trouxe nenhuma bagagem? (BOSCO, 2001, p. 5)

Aqui há a continuação da mesma linha de interrogatório, mas vai apontar para

aquela lei nº 7474. O governo necessitou dele para fazer aquilo que eles não tinham

coragem de fazer, mas quando o mesmo se dissolve eles são tratados como

criminosos. Parece que tudo em momentos como esses é dispensável. A política em

tempos ditatoriais comete seus excessos se utilizando da ignorância do seu povo e

de seus “mandados”, ou da necessidade das pessoas por emprego e depois se

desvincula do erro, professando o fato de que não cometeram nenhum ato do qual

são acusados. Foi assim no julgamento de Nuremberg, e é assim com todos os

julgamentos de violência política, os mandantes que sempre são os verdadeiros

idealizadores do ato, nunca são punidos. É o ato que condena e não o pensamento.

Como texto alegórico, cada vez mais Clausewitz vai assumir uma posição

mais idealizada e mais estereotipada. Ele é o homem que veio da guerra, ele não

possui nada além dele mesmo. Ele veio cheio de sonhos, ele é mais humano do que

os homens em geral, o que é terrível de se afirmar, pois a sensibilidade de

Clausewitz deveria ser aceita como sendo simplesmente coerente com sua situação,

mas isso não parece condizer com a realidade comumente conhecida. Talvez

porque a peça transcorra em outra época, num espaço perdido entre o tempo e a

realidade, não seja necessário analisar o quanto de Clausewitz existe na

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humanidade hoje ou antes, mas é preciso louvar sua inocência após tudo que ele

passou.

Um homem desprovido de bens materiais, que só conta com o que há em sua

memória para continuar a viver, isso é idealismo. Mas o teatro existe para isso, para

nos acordar ou nos apresentar para um ideal:

SEGISMUNDO - Isso é muito estranho. Quase todos que tem desembarcado aqui, nos últimos tempos, vêm trazendo móveis, tapetes, pianos... Alguns até trazem carros. CLAUSEWITZ - Eu sei. Essas pessoas vão vender esses objetos para pagar por uma vida nova. Me falaram em construir fábricas, em comprar fazendas. E depois vão comprar outros objetos outra vez. Outros tapetes, outros pianos. Objetos. Parece que estão se preparando para fugir de novo. E quando isso acontecer vão precisar de objetos para vender. SEGISMUNDO - Mas o senhor não trouxe nada. CLAUSEWITZ - Meus braços. (BOSCO, 2001, p.6)

A transitoriedade do material, sua vida como uma mercadoria, que pode ser

comprada novamente. As pessoas refazem a vida através da compra e venda, não

importam suas experiências, não houve aprendizado – ou talvez tenham aprendido

bem demais, nenhum lugar é mais seguro, a humanidade perdeu sua razão e num

mundo assim não há como criar raízes. As pessoas se tornam nômades, não há

mais uma consciência nacionalista - se concretizando ainda mais em nosso tempo,

cada vez mais cosmopolita e a conseqüência disto só o tempo poderá dizer, se é

que haverá uma. O que aumenta, no entanto, é só a consciência do vazio, do medo.

E Clausewitz personifica a crítica quanto essa tendência capitalista do mundo, ele

tem seus braços, suas lembranças.

Segismundo não fica contente com o que ouve, sabe que ele está mentindo,

mas pensa que ele é um nazista tentando entrar no Brasil – fato bastante conhecido

este, pois ainda hoje há vários oficiais nazistas que se refugiaram em países

subdesenvolvidos, ou como é politicamente correto dizer “em desenvolvimento”,

para fugir das suas sentenças, e muito deles vivem pacificamente e morreram sem

nunca prestar suas dívidas com as famílias para as quais eles infligiram algum mal.

Mas isso não é privilégio de criminosos políticos, todo o tipo de criminoso tem

entrada livre contanto que não interfira nos crimes federais. É o sistema do dia que

diz quem é criminoso ou não, o que fica claro na fala de Segismundo:

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SEGISMUNDO - Por favor... Não tenho nada contra o senhor. Mas agora nós vencemos uma guerra contra o nazi-fascismo. É o que estão falando. O senhor não imagina a confusão que foram estes últimos anos... Uma hora diziam para barrar os judeus, outra hora para barrar os alemães. Enquanto não chegam as novas diretrizes para tempos de paz tenho que resolver tudo por mim mesmo. (BOSCO, 2001, p 7)

Clausewitz ao ser acusado daquilo do que na verdade está fugindo, se

desespera, tenta dizer que ele é polonês. Mas é de se acreditar que Segismundo

nem saiba qual era a situação da Polônia nas mãos dos nazistas, pois a informação

não causa nenhum tipo de reação nele. E há a informação de que ele fazia algumas

maldades. E então ele revela a verdade.

CLAUSEWITZ - Na viagem, eu conheci. Ela me conhecia. Do palco! Do palco... No Teatro! Está claro? (PAUSA) Eu era ator. SEGISMUNDO - O senhor não disse que era agricultor? CLAUSEWITZ - Eu era ator. Agora sou agricultor. SEGISMUNDO - (TEMPO) Desde quando o senhor é agricultor? CLAUSEWITZ - Faz uns... uns quinze meses. Quando eu desisti de se ator, tinha que escolher uma profissão. Agora sou agricultor. SEGISMUNDO - Mas nunca plantou nada... CLAUSEWITZ - A Europa estava na guerra. O Brasil precisa de braços para a agricultura. (BOSCO, 2001, p 7)

Ele escolheu a profissão de agricultor, não o faz por vocação, mesmo porque,

como Segismundo afirma, ele nem exerceu a profissão ainda.

“Aquele que na sociedade se propõe a tal, e tem infeliz talento de agradar a todos, não é nada, não tem nada que lhe pertença, que o distinga que entusiasme uns e canse os outros. Ele fala sempre, e sempre bem; é um adulador profissional, é um grande cortesão, é um grande ator “ O meu objetivo não é caluniar uma profissão que estimo; falo da do ator. (...)Ficaria desolado se as minhas observações, mal interpretadas, atraíssem a sombra do desprezo sobre homens de um talento raro e uma utilidade real, os flageladores do ridículo e do vício, pregadores mais eloqüentes da honestidade e das virtudes à vara que o homem de gênio usa para castigar os maus e os loucos.” (DIDEROT, 2004, p. 177-178)

A imagem de Clausewitz parece se inserir nessa descrição de Diderot (1713-

1784), o ator é desprovido de tudo, como ele, que não possui nada além dos braços

e da memória - como um bom ator. Ele vai agir como um cortesão vendendo sua

arte para conseguir o salvo conduto. Ele deveria ser o portador da acusação, mas

está convencido de que não é mais um ator, afinal o mundo que ele conhece não

precisa da sua profissão, sua arte perde o sentido quando as atrocidades se tornam

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tão desumanas, o homem só tende a ficar cada vez mais endurecido, e

conseqüentemente menos apto a presenciar uma arte delicada como a do teatro.

Segundo Sábato Magaldi em seu Panorama do Teatro Brasileiro, com a

Segunda Guerra, vem a hegemonia do encenador, mas “a crise da criação literária

não poderia poupar milagrosamente o Brasil, que nem dispunha de tradição para

servir-lhe de apoio32”. Lembra que “bom teatro” é exceção no mundo, e que a

maciça produção se esconde na “montagem bem cuidada”, mas que só se importa

com o comercialismo. O teatro luta por sua sobrevivência no mundo.

CLAUSEWITZ – Eu decidi ser agricultor. Eu não quero mais saber do Teatro. O senhor acha que tem lugar para o Teatro no mundo, depois desta Guerra? (...) CLAUSEWITZ - É o que eu estava dizendo. O mundo que eu vi... O Teatro nunca vai falar do mundo que eu vi. O senhor não imagina o que é uma guerra dentro da sua própria casa. (BOSCO, 2001, p. 8)

O questionamento de Clausewitz é pertinente com o momento histórico na

qual a peça está inserida, assim como no momento em que foi encenada, “Tem

lugar para o teatro no mundo?”, depois de tudo que a humanidade fez consigo

mesma, parece difícil imaginar lugar para qualquer outra coisa além de desolação.

No entanto, como Brecht vai levantar em seu ensaio “Pequeno órganon para

o teatro”, em que dita várias diretrizes para o seu teatro, ele diz que o teatro deve

divertir, muito mais depois da destruição que eles conheceram na Europa, deve

haver o efeito moralizante, mas só se divertir. A arte como diria Pound, é antena de

seu tempo, e é nesse momento que a arte deve se levantar, mais furiosa ainda e

combater a loucura que um mundo que entra em guerra causa.

Mas o que dizer da mesma análise para o tempo de hoje, em que as guerras

são espalhadas e pormenorizadas, há vários motivos para se indignar contra o

mundo, e ao mesmo tempo não há a força, não há vontade de fazê-lo; as pessoas

estão se tornando as baratas kafkanianas, mas não é mais só um sentimento, e sim

um modo de ver e viver a vida. E num mundo tão apático, em que pensar parece

custoso ou doloroso, há espaço para um teatro de idéias ou para o teatro em geral?

Desistir de ser ator, num mundo em que a palavra já perdeu seu sentido, em que as

platéias estão cada vez mais rarefeitas, 1945, 2001, 2007, parece um continuum... é

32 Magaldi, 1999, p.10.

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algo que qualquer ator nos dias de hoje já pensou. Apesar de que, como Guénoun

analisa, há uma tendência maior pela procura em se tornar ator, poucos são aqueles

que seguem a profissão por vocação. E aqueles que o fazem sempre estão sujeitos

ao emprego informal para sustentar suas vidas. O teatro chama mais atenção pelo

status de prover a sensação de ser o centro das atenções, do que pelo seu poder de

mudar a visão daquele que o observa.

E a idéia de tradução do mundo, a mimese de Aristóteles, que é usada aqui

como senso comum, implica o questionamento de como o teatro deve traduzir esse

mundo, pois faz parte da sua função estética questionar a realidade, ou não? Essa

pergunta ganha sentido se analisado o teatro como acolhedor de público, pois

aquele que segue as prerrogativas clássicas tem maior poder de atração do que se

for tomado por base à produção independente que seguem as teorias de Gordon e

Craig, ou do pós-dramático, em que o teatro pode ser todo performático, fugindo do

mundo que deu origem a ele, o que lhe dá valor estético, mas tende a afugentar o

público. No entanto, é preciso dar o crédito que mesmo na subversão ainda há no

teatro alguma forma de tradução do mundo, seja da sua vida cotidiana, seja da sua

incoerência.

Seguindo o texto, Segismundo não muito comovido pelo argumento de

Clausewitz ainda desejava que ele tivesse algo mais que lembranças para oferecer

aos rapazes da alfândega. É a costumaz propina, e isso não impressiona os olhos

do século XXI, pois é considerada como praxe.

E a seguir há a continuidade da discussão metateatral:

SEGISMUNDO - Perda de tempo. O que vocês podem me contar que me cause alguma emoção diferente? É como o Teatro que eu ouvi no rádio... CLAUSEWITZ - O teatro não pode tocar o senhor. Estou de acordo. Não, depois desta guerra. Mas as lembranças... Eu vivi estas lembranças. Foi... foi um tempo difícil. (BOSCO, 2001, p.8)

Segismundo começa a se mostrar ainda mais insensível, se antes ele parecia

um funcionário público cansado da vida, e que se divertia abusando de seu papel

de autoridade, agora sua verdadeira personalidade - a dele e a de muitas outras

pessoas - se descortina para o público: há uma pessoa falando dos horrores da

guerra , mas eles não significam nada para ele, aconteceram em outro lugar. Assim

como o teatro não representará nada para ele, afinal é uma pessoa que não se

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deixa levar pelas palavras, em contrapartida as palavras são tudo que restam para

Clausewitz. O embate fica claro, quase maniqueísta, será um pouco mais à frente

que Bosco conseguirá fazer a quebra desse maniqueísmo que por enquanto ele

ainda tenta cultivar. A partir dessa cena vão se criar dois pólos antagônicos bastante

evidentes, que é a característica dos textos do Bosco. Eles estavam se confrontando

até agora, mas se mantinham no campo das aparências, a partir da hora que

começam a notar suas diferenças – ou não – eles passam a desvelar suas

personalidades até o ponto de mutação, em que se atinge o clímax epifânico de

suas experiências.

É feito o trato, Clausewitz tem 10 minutos para fazê-lo chorar, já que é isso

que todo o estrangeiro tenta fazer quando chega ali. E esse é um grande desafio,

afinal as descrições das torturas que Segismundo realizou, acabam por fazer o seu

interlocutor chorar – seja Clausewitz ou platéia, seja por causa de sua violência

imagética, seja de medo.

Clausewitz está à mercê do desejo de Segismundo, como na frase de Luis

XIV, Le Etat cest moi, e assumindo todas as conseqüências dessa aproximação,

Segismundo diz “o regulamento sou eu”33.

Ainda, Clausewitz tem outro problema, idealizando a língua portuguesa ele

acha impossível traduzir os horrores que presenciou numa língua tão pacífica, tão

ingênua. É a barreira lingüística estudada em todo o aprendizado de segunda língua,

sendo metaforizada em um sentido muito mais humanitário do que as línguas

realmente assumem. A língua adquire alma, e parece refletir – para Clausewitz, a

índole de todo um povo. E será Segismundo um grande exemplar da brasilidade que

irá apresentar um retrato mais realista desse conceito. Com toda a boa vontade do

brasileiro, Segismundo “empresta” palavras para que Clausewitz possa descrever

melhor aquilo que ele presenciou na guerra.

Nesta parte do texto, Bosco vai utilizar seu gosto por fazer diálogos violentos,

uma tendência que, como Nelson de Sá exemplificou, parece ter como fonte Bernard

Marie Koltès e seu Roberto Zucco, bastante popular nos anos 90. A violência, em super-exposição de imagem, em super-oferta, mexe com a moral das pessoas e passa a ser uma coisa comum. Ela está na conversa, as pessoas falam da

33 BOSCO, 2001, p 9.

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violência, e a violência acontece. E as situações são violentas, mas elas são vividas com passividade. (SÁ, 2003, p 380)

Depoimento de Pedro Vicente, outro autor da geração de Bosco, reflete essa

tendência que combina de fato com as circunstâncias próprias de uma geração

rodeada por violência. Em seu depoimento, já citado, Bosco acredita que a razão

pela qual ele escreve sobre violência tenha nascido do fato de estudar no centro da

cidade. A violência está impregnada na vida das pessoas, de forma diferente do da

tortura, mas não muito distante dela.

SEGISMUNDO - Fazer aquele pessoal falar. Às vezes não queriam nem que aquele pessoal falasse. Era só dar um susto. Sabe, eu sempre gostei de dar um bom susto. (TEMPO) É... Enquanto precisaram de mim eu fiz muita coisa para eles. (SEM QUALQUER EMOÇÃO) Cansei de ver o sujeito chegar de cinqüenta dias sem ver o sol, mijando na mesma bacia esse tempo todo, e ainda ter de ficar mais vinte horas de joelhos. Os meus rapazes raspavam os pelos do corpo do sujeito, davam uns beliscões e se divertiam atirando uma lata no topo da cabeça dele. Quando caía de cara no chão, aí sim, aí era hora de começar. Eu puxava o sujeito pelos cabelos e não deixava ele dormir. Queimava o corpo inteiro do sujeito com ponta de cigarro, até no saco. Depois jogava óleo de rícino em cima. Batia com o cassetete até não enxergar mais o rosto do detido. Enfiava pimenta no cu dele com um clister deste tamanho. E o sujeito ainda tinha que limpar toda a bosta do chão. Ou eu batia mais com o cassetete. Para os mais difíceis eu tinha um expediente: enfiava no canal do pênis um arame. Depois eu esquentava a ponta que ficava para fora com um maçarico. O sujeito parecia um leitão na hora da matança. Quando acordava pedia para assinar o depoimento. (TEMPO) No Brasil tudo tem que terminar num depoimento assinado. Com este aqui. (BOSCO, 2001, p 11)

Nada como massacrar a língua de “passarinhos” de Clausewitz. O

palavreado vai seguir sua descrição mais chã, afinal é esse o propósito quase

aurtaudiano – mexer com as vísceras daqueles que assistem à peça para que a

peça seja uma experiência quase ritualística. O uso da linguagem para criação de

imagens fortes, nesse caso de violência, parece propor o mesmo tipo de reação ao

seu expectador.

Faz seu papel histórico, descreve fatos reais dessa época, assim como

aumenta o conflito entre as duas personagens. O homem que viu tanta coisa na

guerra fica horrorizado por achar também ali – num lugar esquecido por Deus, e tão

longe da Guerra – tudo aquilo do qual estava fugindo.

CLAUSEWITZ - Não. Eu estou espantado porque nunca imaginei que essa coisas pudessem ser ditas no seu idioma. Para mim o Português era um latim falado por bebês, velhinhos... pessoas que não tivessem dentes! Se essa gente tivesse dentes, como poderiam ter perdido tantas consoantes? (BOSCO, 2001, p.12)

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Talvez “coisas” assim nunca devessem ser ditas, e muito menos praticadas. E

continuando a humanização das línguas, buscando dar às palavras um valor que

elas perderam.

SEGISMUNDO - Que sujeito? Ah, aquele sujeito... Nada. Eu fazia tudo o que me mandavam fazer. Foi assim desde o tempo do orfanato. Eu era forte para a idade. Para o coral eu não servia, mas para quebrar o pescoço das galinhas eu servia. Pelo menos me deixaram ficar junto com a minha irmã... Eu sempre fiz tudo o que me mandaram fazer. CLAUSEWITZ - (IRRITADO) Por que vocês fazem tudo que mandam? SEGISMUNDO - “Vocês”?... CLAUSEWITZ - Homens como o senhor. Homens como o senhor me fizeram odiar o idioma alemão. Eu amava Goethe! Agora não posso mais ouvir uma linha do Fausto. (BOSCO, 2001, 12)

Há dois pontos nessa fala, primeiro mais uma caracterização do personagem

Segismundo, não tendo uso para mais nada vai ser utilizado para trabalhos

manuais, e diga-se que já violentos. Há nova referência à irmã, que vai deixar a

estória relatada mais a frente ainda mais chocante. O segundo ponto é da linguagem

como reflexo de seus povos, Clausewitz não pode mais ler Goethe por causa do que

os alemães fizeram para a Europa. A metáfora é inspiradora, como tradução do

mundo, a palavra falada incorpora toda as facetas da cultura que a produziu, e como

produto desta, leva consigo suas belezas e suas agruras.

Ainda dentro da discussão sobre Clausewitz ser ator ou agricultor, há a

afirmação de que Segismundo está fazendo com que ele odeie o português assim

como aconteceu com o alemão. Bosco acerta em fazer uma discussão moralista

sobre condutas, sobre o passado e sobre o presente, se utilizando da imagem da

língua. O que poderia ter se tornando uma discussão só sobre a violência acaba por

estender seu sentido para aqueles que escolhem tais palavras, para as sociedades

que produzem tais palavras.

Aarão: Sim, por não ter dez mil como essas feito. Agora mesmo amaldiçôo o dia – e creio que bem poucos caem dentro do circulo maldito- em que eu deixasse praticar qualquer notória infâmia, como seja: tirar a alguém a vida, ou, quando menos, maquinar-lhe a morte,

violar uma donzela ou dar a idéia, para tal fim, sob falso juramento contra algum inocente fazer carga,

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entre amigos semear a odiosidade, fazer que o alto caia e se arrebente o rebanho do pobre, às altas horas da noite incendiar medas e celeiros, para aos donos gritar que com suas lágrimas as chamas apagassem. Muitas vezes desenterrei dos túmulos dos mortos, colocando-os de pé, junto das portas dos amigos queridos, justamente quando a dor já se achava quase extinta, na pele dos cadáveres gravando com minha faca, tal como na casca das árvores se faz, em caracteres romanos: “Não deixeis que a dor se extinga, conquanto eu já morresse.” Ora! Milhares de ações terríveis fiz com a mesma calma com que mato uma mosca, nada havendo que tanto me entristeça como a idéia de mais dez mil não realizar como essas. ( SHAKESPEARE, 1998, p196-197)

Esse trecho da peça Titus Andronicus, de Shakespeare, sua primeira peça, e

considerada uma das mais violentas, apesar de em suas tragédias normalmente

morrerem muitos personagens, nessa peça em especial há uma violência mais

explícita e gratuita como uma mulher estuprada, de quem que se cortam a língua e

as mãos para que ela não possa contar a ninguém. É a Aarão que Clausewitz vai

comparar Segismundo, mesmo porque o texto possui em Shakespeare sua

inspiração. Parece que os sistemas políticos não mudaram desde a Roma antiga –

onde a peça de Shakespeare é situada.

Há uma mistura de informações, pois Clausewitz interpretou Aarão no palco,

e por isso haviam dito que ele fazia maldades, mas o que distorce toda a referência

é o fato de Segismundo ser Aarão na vida real. Claro que a contraparte mais

contemporânea não será a personificação do mal, como Aarão o foi, no entanto a

aproximação entre os dois já faz uma declaração bastante forte sobre os

“seguidores de ordens”. Clausewitz vai tratar como “vocês”, aqueles que seguem o

sistema sem nenhuma contestação, não importa o que tenha que ser feito, “eles” se

utilizam da desculpa de que seguem ordens , e tudo passa a ser justificado. A

complexidade que envolve esse paradoxo que a humanidade criou em seus

sistemas de defesa – da ordem que não pode ser desobedecida independentemente

do que tenha que ser feito - não vai fazer parte dessa discussão, seja porque faltam

subsídios para tratá-los cientificamente, seja porque falta àquele que escreve

liberdade moral para escrever sem condenar.

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A personagem de Bosco vai condenar, ela é vítima desses mesmos homens

que “seguem ordens”, viu seu professor morrer aos poucos, perdeu sua família,

perdeu seu teatro por causa dos mesmos.

Clausewitz: (...) Eu não sabia o que fazer no meio daquela confusão. Eu era um ator! Não sabia carregar um fuzil, não sabia curar uma ferida (...) Vivendo enquanto eu presenciava todo o horror. (...) Eu colecionei lembranças. (BOSCO, 2001, p 13 -14)

O que o teatro pode fazer em tempos como esses, além de fechar suas

portas? Em que as pessoas se sentem infelizes por estarem vivas, levando consigo

o peso de terem sobrevivido.

Após todo esse aprendizado sobre a língua portuguesa, Clausewitz descobre

que há sim palavras para descrever seu sofrimento, e ao mesmo tempo começa a

questionar se deve ficar em um lugar que possui tais palavras. Segismundo continua

sendo o antagonista, torturando o outro com o fato de que a qualquer momento o

navio vai zarpar.

O texto poderia continuar neste enfoque maniqueísta, mas Segismundo

surpreende ao mostrar que entende mais do que parece mostrar:

SEGISMUNDO - (TEMPO) Deve ser difícil pensar que nós somos iguais. O senhor pode aceitar que é pior do que eu. Mas não pode aceitar que nós somos iguais. (BOSCO, 2001, p 14)

Os dois não se interpuseram entre aqueles que morreram e os que matavam,

os dois estiveram presentes e não fizeram nada, Clausewitz sobreviveu e

Segismundo agora tem que esquecer o que fez, como parte de mais uma ordem

vinda de cima – do seu padrinho.

SEGISMUNDO - (PAUSA) Eu também. Por isso meu padrinho me afastou para este posto. Ele diz que é preciso esperar um pouco as coisas se acalmarem. Logo vem o armistício. Logo vêm as novas diretrizes para tempos de paz. (TEMPO) Eu sei que ninguém quer saber de mim. Eu fiz o que eles mandaram e eles querem esquecer que mandaram fazer o que eu fiz. (...) SEGISMUNDO - Hoje soltaram todos os presos políticos do Rio. Uma porção deles passou pelas minhas mãos. Meu padrinho não me ligava fazia meses. E ligou hoje. Disse para eu voltar mais cedo para casa, para tirar uns dias de férias. Alguém pode querer acertar as contas comigo... Eu perguntei se era uma ordem. E ele respondeu que eu podia tomar o que disse como eu bem entender. Ele nunca tinha minha me dado uma ordem na vida, foi a última coisa que falou antes de desligar o telefone. (BOSCO, 2001, p.15 -16)

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É aqui que eles revelam sobre a anistia aos presos políticos e era por isso

que Segismundo estava nervoso, afinal ele nunca cobriu sua face quando cumpria

sua obrigação – talvez não tivesse orgulho do que fazia, mas tinha a certeza de que

só fazia o certo, cumpria ordens. Era possível que alguém quisesse revidar. E

ninguém mais agora vai cuidar dele, usado como instrumento de repressão em

tempos em que o mundo perdia sua noção de humanidade, quando voltam os

tempos mais moralistas são dispensados com ordens de esquecer tudo que foi

“mandado”. É dessa maneira que os idealizadores sempre se protegem.

Segismundo conta mais um caso de tortura, o único que realmente sentiu

remorso de ter feito, pois se tratava do médico que salvou sua irmã – único elo dele

com a humanidade. Segismundo está abandonado depois de ter feito só o que as

pessoas queriam, só por os ter agradado sem contestação, agora ninguém mais

quer ter ligação com ele. Ele devia considerar que nunca recebeu qualquer ordem,

essa ironia da vida vai contribuir para que o monólogo de Segismundo – de

Calderón de la Barca, o marque de maneira mais profunda.

Segismundo, que foi tão impassível com todas as pessoas que torturou, com

Clausewitz, sua última vítima, por que haveria de chorar com o texto de Calderón? É

claro que toda a situação compactua com sua idéia de fábula, afinal a mudança

ocorre de maneira rápida, sem se deixar transcorrer o tempo necessário para que o

mesmo pudesse ocorrer de forma realística. É dessa maneira que Bosco deposita

seu voto de confiança na humanidade das pessoas, fazendo com que Segismundo

acabe por se afastar do maniqueísmo em que a princípio se mantinha.

Qual o motivo senão uma loucura miserável, pois somos tanto mais comovidos por essas aventuras poéticas quanto menos curados daquelas paixões, apesar de apelidarem de miséria o mal que sofrem na sua pessoa, e misericórdia a compaixão que têm das infelicidades dos outros. Mas que compaixão se pode ter para as coisas fingidas e representadas num Teatro, uma vez que aí não se excita o auditor para socorrer os fracos e oprimidos, mas é este convidado apenas a afligir-se com o seu infortúnio? (...) Que se, pelo contrário, for tocado com a dor fica atendo e chora, experimentando, ao mesmo tempo, o prazer e as lágrimas. (...) Não será que, ainda que o homem não sinta prazer pela miséria, no entanto sinta prazer na misericórdia? E que dado que não pode experimentar a dor aconteça que, por uma conseqüência necessária ele acarinhe e goste dessas dores? (AGOSTINHO, 2004, p. 46)

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A idéia que o bispo de Hipona (354-430 d.C.) apresenta, em Confissões, é

que o homem está inclinado a comover-se por encenações, pois é mais fácil ter

compaixão que ir realmente ajudar.

(...) O Massacre dos Inocentes terá deixado idéias bem funestas na imaginação daqueles que viram realmente os soldados desenfreados degolar as crianças no seio das mães ensangüentadas. O quadro de Lebrun, onde vemos a imitação desse acontecimento trágico, comove-nos e enternece-no, mas não deixa no nosso espírito qualquer idéia importuna: este quadro excita nossa compaixão sem realmente nos afligir.(...) É, sem nos entristecer realmente, que faz correr as lágrimas de nossos olhos: a aflição não está, por assim dizer, senão na superfície do nosso coração, e sentimos bem que o nosso choro acabará com a representação da ficção engenhosa que os faz correr. (p133) (...) O pintor e o poeta só nos afligem enquanto quisermos, eles não fazem gostar dos seus heróis e heroínas senão enquanto nos apetece, quando pelo contrário não seríamos os senhores da medida de nossos sentimentos; não seríamos os senhores de sua vivacidade como da sua duração, se tivéssemos sido atacados pelos próprios objetos que estes hábeis artesãos imitaram. (DU BOS, 2004, p.133-134)

Du Bos (1670-1742), abade político, historiador e letrado em “Reflexões

críticas sobre a poesia e sobre a pintura”, vai contribuir um pouco mais sobre essa

idéia sobre como a representação por estar dentro do controle da razão do homem,

permite também que ele possa analisar a realidade de maneira mais distante,

deixando que libere suas emoções de maneira racional.

O prazer da tragédia vem da nossa consciência da ficção; se acreditássemos nos assassínios e nas traições como verdadeiras, não nos agradaria mais. (JOHNSON, 2004, p.207-210) Com efeito, este grande privilégio do modo dramático em, por assim dizer, surpreender a alma nas suas operações mais misteriosas (...)” ( SCHILLER, 2004, p230) No fundo, o fenômeno estético é simples: se temos o dom de perceber sempre o jogo vivo das figuras e de viver sem cessar cercados de toda uma coorte de espíritos- somos poetas; se experimentamos a necessidade instintiva de nos metamorfosearmos e de nos exprimirmos através de outros corpos e outras almas , somos dramaturgos . Ora, este dom, esta faculdade de nos vermos assim cercados de uma certa coorte de espíritos com os quais nos sentimos em comunhão profunda, a emoção dionisíaca é capaz de a comunicar a uma multidão inteira.Está aí o processo mesmo da formação do coração trágico- e é este o fenômeno dramático original: assistirmos a nós próprios à nossa própria metamorfose e agir desde então como se tivéssemos efetivamente entrado num outro corpo, numa outra pessoa. Passa-se aqui uma coisa diferente que acontece com o rapsodo, o qual não se confunde com as imagens que produz, mas que a semelhança do pintor, as olha à distancia com um olhar perscrutador: porque aqui, a penetração numa natureza estranha supõe já que o indivíduo tenha renunciado a si mesmo. (NIETZSCHE, 2004, 347) Mas pode acontecer que encontreis então uma dessas forças inesperadas e que minha alma, que sabe que elas velam em volta de mim, vos diga uma palavra secreta que vos desarme. E se ficamos espantados por momentos, não se deve perder de vista que nossa alma é muito louca, e que existem no homem regiões mais fecundas, mais profundas e mais interessantes que as da razão ou da inteligência. (STRINDBERG, 2004, p. 360-362)

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Nessa seqüência de citações começamos por Samuel Johnson (1709-1784),

em que ele corrobora o que os outros autores vão dizer, assim como Du Bos, que o

que agrada no teatro é o fato de que ele é uma ficção, e por isso conseguimos ter

emoções que não existiriam se fosse uma situação real. O fato de poder olhar uma

situação sem estar realmente envolvido com ela, permite uma análise muito mais

crítica sobre a situação. Schiller (1759-1805), vai tocar numa explicação psicológica

sobre o fato, de que o teatro mexe com nosso ser das maneiras mais “misteriosas”,

despertando o inconsciente enquanto se é levado pelo enredo. Nietzsche (1844-

1900), em seu texto sobre o teatro vai analisar o efeito dionisíaco, que depois vai

ser usado por Artaud em seu Teatro da Crueldade, analisando essa mesma linha,

mas apresentando o fato que na catarse temos o transmutar não só da personagem

como também daquele que acompanhou sua trajetória. Uma platéia pode se

modificar após uma apresentação teatral. E Strindberg (1849-1912) acrescenta o

inconsistente dentro do homem, em sua análise.

É claro que hoje em dia pode-se supor que o Segismundo, sendo órfão,

sentindo a carência de figuras que o conduzissem para o caminho certo, já que sua

figura parental era o padrinho que também acaba por abandoná-lo, numa cultura

cristã que cultiva a culpa, deve sofrer uma transferência entre a sua situação e a do

aprisionado Segismundo de Calderón, surgindo a catarse. Mas não é uma análise

psicológica que se procura aqui, então simplesmente se aceita a fábula e acredita-se

que o que fez Segismundo chorar, foi o teatro.

O que é que nos afeta no espetáculo de um homem animado por uma grande paixão? São os seus discursos? Às vezes. Mas o que comove sempre, são os gritos, as palavras inarticuladas, as vozes entrecortadas, alguns monossílabos que se escapam por intervalos, um não sei o que murmúrio na garganta, entre dentes. A violência do sentimento entrecortando a respiração e levando a comoção ao espírito, separa as sílabas das palavras, o homem passa de uma idéia a outra; começa com multitude de discursos, e não acaba nenhum; e, com exceção de alguns sentimentos que transmite no primeiro acesso, aos quais regressa sem cessar, o resto não é mais do que uma seqüência de ruídos fracos e confusos, de sons expirantes, de acentos abafados que o ator conhece melhor que o poeta. A voz, o tom, o gesto, a ação, eis o que pertence ao ator; e é o que nos toca, sobretudo no espetáculo das grandes paixões. É o ator que dá ao discurso toda a energia que este tem. É ele quem leva aos ouvidos a força e a verdade da entonação. (DIDEROT, 2004,p. 154)

É nesta mistura da arte do ator, em que envolve sua pronúncia, sua

entonação, seu gesto, junto da palavra que se tem a emoção trágica. Um mau ator,

que não dá o tom certo ao seu personagem, pode estragar a melhor das peças. Um

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ator que faça Segismundo muito duro o tempo todo, pode fazer com que o final fique

inverossímil, pois a mudança ficaria muito abrupta.

Aqui encontra-se o clímax, em que Segismundo quebra seu distanciamento

com Clausewitz, e este encontra sua vocação novamente.

O texto escolhido para esse momento é o começo da A vida é sonho de

Pedro Calderón de la Barca , parte da tradição barroca espanhola. O texto fala sobre

um rei que aprisiona seu filho porque foi previsto que ele seria um grande assassino

e ditador. Incapaz de matar seu filho o rei o aprisiona em uma torre por toda sua

vida. Um dia o príncipe é solto e age da maneira como havia sido previsto e ele é

condenado ao seu cárcere novamente. Como tentativa de repará-lo, as pessoas em

volta agem como se aquele dia de liberdade fosse um sonho, e o príncipe sem saber

se está vivendo um sonho ou a realidade prefere agir melhor para que não acorde

enjaulado. O monólogo utilizado no texto de Bosco é do começo dessa peça, e

reflete a angústia daquele homem abandonado por todos e aprisionado por erros

que não cometeu. O paralelo com o Segismundo, já estava sendo apontado no

decorrer do texto, mas aqui há as duas grandes aproximações, os dois se

encontram abandonados por todos e se esquivam de sua responsabilidade –

Segismundo barroco por realmente ainda não ter feito nada e o contemporâneo por

só ter seguido ordens. Há também a falta de liberdade, que na verdade condiz com

a situação das duas personagens, como de toda a platéia que os vê.

CLAUSEWITZ: (...) Aqui estou para entender, ó Deus, já que me tratas assim, que crime, cometi contra vós nascendo? Mas se nasci já compreendo que crime cometi... Aí está motivo suficiente para vossa justiça e rigor, porque o crime maior do homem é ter nascido. (BOSCO, 2001, p. 17)

Essa é parte do texto de Clausewitz, que após tentar contar a estória

“verdadeira” do professor Cracowiack, a substituiu pela única coisa que realmente

conhecia nesse mundo, que era o teatro. Ao ser inspirado pelo nome de seu

torturador, e encontrando nesse texto os paralelos para a vida dos dois, Clausewitz

faz as pazes com sua arte.

Segismundo diz não ter entendido quase nada, o que corrobora a citação de

Diderot sobre o impacto de o todo ser maior do que o do entendimento das palavras,

mas a verdade é que ele chora. E dá o salvo conduto ao agricultor, mas Clausewitz

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está modificado, e talvez o Brasil precise de braços para a lavoura, mas também

precisa de mentes no palco.

“Por enquanto, o desejo de um bom teatro confunde-se com o propósito de uma vida digna para a humanidade e, num noutro caso, há os que obedecem à risca ao imperativo da vocação, mesmo que as circunstâncias exteriores não sejam favoráveis. O empenho pela afirmação do bom teatro identifica-se ao esforço coletivo por um mundo melhor”. (MAGALDI, 1994, p122)

O encerramento da peça se dá com a confissão de Clausewitz que aquelas

não eram palavras do professor, mas sim de uma peça de teatro, na qual o nome de

Segismundo foi inspirado. As últimas palavras do professor foram uma receita de

mingau, a única coisa que o preocupou nas suas últimas horas de sua vida, de todo

seu conhecimento foi isso que ele escolheu deixar para a posteridade. E num tom

ainda mais otimista ele mostra o interesse de Segismundo para saber a continuação

da peça. Abrindo portas para uma esperança de que ainda haja espaço para o

teatro, mesmo num mundo alegorizado na pessoa de Segismundo.

V. Conclusão - Há esperança então?

“Ainda é comum afirmar-se quando se procuram critérios absolutos ou se fazem comparações com as melhores realidades européias e norte-americanas, que o teatro brasileiro não existe”. ( MAGALDI,1999, p 9)

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Sábato Magaldi, em seu Panorama do Teatro Brasileiro, escreve uma

introdução na sua 2ª edição, 1977, em que faz essa análise. A comparação é

pertinente, afinal sendo colônia de um país que também não possui tradição teatral,

não podia existir muito que o teatro brasileiro pudesse absorver para produzir seu

teatro.

O teatro no Brasil nasceu da procura em aproximar o Rio de Janeiro das

outras metrópoles européias. Copiando tendências e não procurando fazer nada

além de agradar sua platéia, o teatro teve sua cota de peças de costumes e

melodramas. Será com o Modernismo que se introduzirá o texto crítico ao teatro

brasileiro. Sem as experimentações que ocorreram na Europa ou nos Estados

Unidos, o teatro brasileiro tateia seu caminho para um formato mais engajado.

Oswald de Andrade abre esse caminho, mas é oficialmente Nelson Rodrigues que é

considerado o grande precursor do teatro moderno, pois ele foi encenado em 1950,

já a peça O Rei da Vela, de Oswald, escrita em 1937 só foi encenada em 1967.

Na década de 60 e 70 haverá um surto teatral, como maneira de lutar contra a

ditadura, fazendo com que as peças tenham um significado subliminar de crítica,

cheias de metáforas e por vezes de intenções não tão misteriosas- já que a nossa

censura não contava com mentes muito geniais. Chega aos anos 80 desprovido de

intenções militantes e perde seu motivo de ser, e desde então parece buscar uma

razão para existir. Sobrevivendo às custas das Leis de Fomento à Cultura, o teatro

respira se consegue patrocínio.

Neste contexto, há a peça de Bosco Brasil que é um texto contemporâneo,

premiado e que dialoga com as tendências de sua geração. Já é um dado bastante

importante o fato de que existe uma geração de dramaturgos brasileiros dispostos a

lutar contra o comodismo geral e a falta de apoio, e continuar fazendo teatro de

qualidade para um público que, não tão difícil de agradar, ainda assim necessita de

um grande incentivo para procurar o teatro:

o público varia de disposição e de inteligência segundo os diferentes teatros de uma cidade e as quatro estações do ano. Está submetido aos acontecimentos políticos e sociais, aos caprichos da moda, às chuvas primaveris, aos excessos de calor e de frio, ao último artigo lido depois do almoço. Infelizmente, não tem outro desejo que o de agradavelmente fazer a digestão no teatro. Fica, portanto absolutamente incapacitado para aprovar, desaprovar, ou corrigir uma obra de arte. O autor pode esforçar-se para tirar o seu público da mediocridade como se salva um náufrago retirando-o da água.(MARINETTI, 2004, p. 409)

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Apesar de Marinetti ter escrito o seu Manifesto Futurista em 1911, não é

possível contestar sua afirmação. Por isso é necessário louvar iniciativas como a de

um texto como o que foi analisado aqui. Há uma tentativa importante e pertinente do

autor em buscar esse público, em cativá-lo e transformá-lo.

Num país em que a educação é um grande problema, as pessoas cada vez

se interessam menos por construir uma base teórica, muitos nem tem a

oportunidade para fazê-lo, o único entretenimento acessível é a televisão e em uma

análise rápida já é possível verificar que há pouca tentativa nesse meio em fazer as

pessoas questionarem. O cinema possui sua dubiedade, pode ser tanto

entretenimento fútil quanto um trabalho artístico, mas ainda assim está limitado a

uma classe com maior nível monetário. O teatro tem a vantagem de poder chegar a

qualquer lugar e poder ser gratuito, se conseguir os meios para financiá-lo.

Mas há interesse em financiá-lo? Se não fossem por leis que reduzem os

impostos de empresas que fomentam a arte, talvez nenhuma empresa se

interessaria pelo desafio. No entanto, como já foi discutido, o teatro – de idéias- não

faz parte da realidade capitalista que comanda as ações do mundo.

E há interesse intelectual? Por vezes parece que não há, pois até mesmo

numa Universidade como a Federal do Paraná, não há um curso para a Graduação

de Letras – se não uma optativa de 3 em 3 anos – que estude a dramaturgia

brasileira, nem faz parte da ementa obrigatória. E tirando os grandes nomes já

consagrados, poucos são os estudos sobre a dramaturgia contemporânea.

Junte-se a isso – que pode ser até mesmo sua causa - a falta de interesse

editorial em publicar os novos textos dramatúrgicos. Este texto que analisamos, por

exemplo, foi cedido por Bosco Brasil, pois não há uma publicação. E ainda – como

salienta Sábato Magaldi, falta uma construção de uma verdadeira história do Teatro

brasileiro, em que seria feita uma busca, catalogação e editoração dos textos

escritos no país34.

Entre as montagens que ocupam os teatros da cidade em busca do grande público, multiplicam-se textos importados, adaptações de clássicos e cânones como Nelson Rodrigues, mas uma ausência chama a atenção de quem procura ver no palco um retrato da atualidade escrito por alguém que efetivamente viva aqui e agora. Onde estão os autores teatrais contemporâneos? Há quem diga que o sumiço é culpa dos

34 In Panorama do Teatro Brasileiro

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diretores, outros acham que os textos produzidos é que são ruins mesmo, e culpam a falta de escola e de incentivo. (...) De fato, a montagem de trabalhos de autores novos se dá quase que invariavelmente em espaços alternativos, não chegando a grandes teatros, dominados pela tríade peças estrangeiras, clássicos e encenações dos brasileiros tradicionais. - O ambiente de teatro tem uma relação difícil com os escritores. Repete-se o mito de que é melhor encenar uma peça de um autor morto porque ele não vai dar palpites - diz Bosco. 35

Os jornalistas falam do Rio de Janeiro, por isso nem adianta falar em termos

de Curitiba ou Paraná, onde não há esforços estatais ou municipais para difundir a

dramaturgia paranaense, tanto que autores como Mario Bortolotto e Paulo Moraes

migram para São Paulo para poder viver de teatro. O teatro aqui sobrevive de alguns

poucos grupos que se dedicam a estudar e fazer teatro de qualidade.

Se ainda não faltassem obstáculos, ainda há a tendência pela “tríade”:

encenar textos estrangeiros contemporâneos, ou os clássicos internacionais como

Shakespeare e Molière, ou ainda clássicos nacionais – nunca se fizeram tanto

Nelson Rodrigues quanto na década de 90. A “tríade” possui seu valor cultural, mas

normalmente é escolhido como modo mais certo de conseguir público e assim obter

alguma espécie de lucro. Fazendo com que não se incentive uma dramaturgia nova

e mais atuante. Afinal vai se escrever para nunca ser representado?

Finalmente, a idéia de trabalhar com a peça “Novas Diretrizes em Tempos de

Paz” nasceu não só do gosto pessoal pela peça, como também por sua força de

questionamento, que dialoga com o fato de que o teatro no Brasil é considerado uma

arte menor, vivendo às custas do sonho de alguns artistas. Percorrendo a tradição

da filosofia estética em busca de uma razão para a existência dessa arte, que

parece em curso de se tornar obsoleta, encontrou-se esperança e desânimo.

Ainda, pode se citar como incentivo a estudar esse texto o fato de trazer

dentro de si uma esperança única de que o teatro pode sim tocar as pessoas,

mesmo estando elas amortecidas pela perda dos valores, pelo capitalismo

psicológico, e por todo o imediatismo que não comporta mais um teatro que precisa

de tempo, de visão crítica, de mentes abertas.

No entanto, apesar de todo o desencanto, o teatro ainda é um combatente.

35 Texto jornalístico do Jornal do Brasil de 22.01.2003 - Por onde anda a nova dramaturgia? De Alexandre Werneck e Cláudia Amorim.

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O papel do texto, no teatro, é o papel da palavra na vida. A palavra serve a cada um de nós para se formular a si próprio e para comunicar aos outros o que registra a sua inteligência. Exprime direta, plenamente, as nossas idéias claras. Exprime também, mas indiretamente, os nossos sentimentos e as nossas sensações, na medida em que a nossa inteligência as analisa; não podendo dar da nossa vida sensível uma transcrição integral e simultânea, decompõe-na em elementos sucessivos, em reflexos intelectuais, como o prisma decompõe um raio de sol. (BATY36, 2004, p. 465)

O teatro é essa palavra que pode ajudar a construir e destruir. Depois de

tanto pessimismo analítico e inspirando-se no otimismo de Bosco Brasil, é

necessário que se fomente o teatro por sua força congregadora - aberta as mais

variadas classes e para quaisquer opções políticas, sociais e sexuais, por sua

fomentação de idéias, por seu caráter de formação de opinião crítica e estética, que

assim como a literatura – e ainda mais acessível que ela, pode ajudar a combater o

mal que condena a sociedade a ser escrava de sua própria passividade, ativando

mentes que um dia possam reescrever a história.

Assim, como disse Garcia Lorca: “Um povo que não ajuda e não fomenta seu

teatro, se não está morto, está moribundo”.

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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36 Gaston Baty (1885-1952) encenador francês, fundou com Jouvet - O Cartel . Texto “O Encenador “ (1944)

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- MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro brasileiro, São Paulo: Editora Ática, 1994. -MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro, São Paulo: Editora Global, 1999 - PLATÃO. A República. Trad. J. Guisnberg, São Paulo: Difusão Européia de Livro, 1965 - RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo- trad. Andréa Stabel M. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (Coleção leitura e crítica). - SÁ, Nelson de. Divers/idade- um guia para o teatro dos anos 90. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. - VASCONSELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro –São Paulo: L&PM Editores S/A, 1987.

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