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www.letras.ufscar.br/linguasagem ECO DE ANTIGAS PALAVRAS: UM ESTUDO DA POÉTICA DE ÉSQUILO Luiza Sousa Romão 1 “Os escafandristas virão/ explorar sua casa/ seu quarto, suas coisas/ sua alma, desvãos” – Chico Buarque Ésquilo nasceu em 525 ou 524 a.C. na cidade mítica de Elêusis. Vindo de uma família nobre, o autor tinha fácil acesso à vida cultural ateniense e vários de seus descendentes também foram dramaturgos (Fílocles, Mórsimo, Astídamas). Ele participou das batalhas de Maratona, em 490, e de Salamida, entre 480 e 479; nelas, os gregos barraram o imperialismo persa que, desde Dário, vinha se expandindo pela Ásia e pelo Mediterrâneo. Essa vitória é marcante na história grega, pois significou uma união inédita entre as cidades-estados através da Liga de Delos (liderada por Atenas) contra um inimigo em comum. Da disputa pela repartição do tesouro, nasceria outro conflito denominado Guerra do Peloponeso, de 431 a 434, dessa vez entre a militarista Esparta e a democrática Atenas, culminando com a derrota da segunda que, a partir de então, viveria sob um regime ditatorial sofrendo com a censura política e a destruição de templos e monumentos cívicos. Essa atmosfera bélica das Guerras Médicas influenciou bastante a dramaturgia de Ésquilo, deixando vestígios em suas peças, como por exemplo, Sete contra Tebas e Os persas. Acredita-se que Ésquilo ganhou 13 vezes o primeiro lugar nos concursos teatrais e dos 78 textos que se têm registro, apenas sete chegaram até nós. Tal perda é decorrente do incêndio na biblioteca de Alexandria: uma lástima, pois a maior parte do acervo bibliográfico tanto de teatro, 1 Graduanda em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)

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ECO DE ANTIGAS PALAVRAS: UM ESTUDO DA POÉTICA DE ÉSQUILO

Luiza Sousa Romão1

“Os escafandristas virão/ explorar sua casa/ seu quarto, suas coisas/ sua alma, desvãos” – Chico Buarque

Ésquilo nasceu em 525 ou 524 a.C. na cidade mítica de Elêusis. Vindo de uma família

nobre, o autor tinha fácil acesso à vida cultural ateniense e vários de seus descendentes também

foram dramaturgos (Fílocles, Mórsimo, Astídamas). Ele participou das batalhas de Maratona, em

490, e de Salamida, entre 480 e 479; nelas, os gregos barraram o imperialismo persa que, desde

Dário, vinha se expandindo pela Ásia e pelo Mediterrâneo. Essa vitória é marcante na história

grega, pois significou uma união inédita entre as cidades-estados através da Liga de Delos

(liderada por Atenas) contra um inimigo em comum. Da disputa pela repartição do tesouro,

nasceria outro conflito denominado Guerra do Peloponeso, de 431 a 434, dessa vez entre a

militarista Esparta e a democrática Atenas, culminando com a derrota da segunda que, a partir de

então, viveria sob um regime ditatorial sofrendo com a censura política e a destruição de templos

e monumentos cívicos. Essa atmosfera bélica das Guerras Médicas influenciou bastante a

dramaturgia de Ésquilo, deixando vestígios em suas peças, como por exemplo, Sete contra Tebas

e Os persas.

Acredita-se que Ésquilo ganhou 13 vezes o primeiro lugar nos concursos teatrais e dos 78

textos que se têm registro, apenas sete chegaram até nós. Tal perda é decorrente do incêndio na

biblioteca de Alexandria: uma lástima, pois a maior parte do acervo bibliográfico tanto de teatro,

                                                            

1 Graduanda em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)

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como de filosofia e de literatura, se encontravam lá (era um centro cultural de valor inestimável

que deixou um grande vazio na história da Antiguidade Ocidental). Já no fim da vida, o autor

mudou-se para Sicília onde morreu em 456. Especula-se o motivo da viagem: uma sentença de

exílio ou, talvez, a decepção por ter perdido para Sófocles (ainda jovem, com 28 anos) o primeiro

lugar num dos concursos trágicos. A respeito de sua morte, criou-se uma anedota: “como era

calvo, estando um dia a descansar ao sol, passou nos ares uma águia, que levava no bico uma

tartaruga. Tomando a calva do poeta por um rochedo nu, deixou cair a tartaruga, que ao incidir

sobre a cabeça do velho Ésquilo, lhe rachou e lhe causou a morte.” (PLÍNIO, apud FREIRE, 1985, p.

105)

A Ésquilo foi atribuído o título de “criador da tragédia”, não no sentido literal, pois essa

nascera com o desprendimento de um membro do coro que, a partir de então, começou a

interpretar as ações narradas e a dialogar com o corifeu e seus seguidores (esse mérito é de

Tespis). Mas, foi nosso autor quem sistematizou esse novo gênero na escrita, deu-lhe forma e

consistência artística, fez a palavra se sobrepor à música, enfatizou a ação dramática,

valorizando-a mais que ao coro.

“Foi Ésquilo quem tirou a tragédia da infância e dela fez um gênero literário, ao qual nenhum outro seria doravante superior, nem talvez igual. Foi ele quem lhe deu a estrutura definitiva, pelo menos quanto aos traços essenciais; e o que era melhor ainda, elevou-a pela imaginação, pelo sentimento, pelo pensamento, pelo estilo, a uma altura que seus antecessores nem sequer tinham sonhado” (CROISET, apud FREIRE, op. cit, p. 129)

No campo da encenação, Ésquilo aperfeiçoou as máscaras que até então eram muito

rudimentares. Deve-se destacar que Dionísio, patrono do teatro grego (como veremos mais tarde),

era conhecido como deus-mascarado, aquele que tinha várias e nenhuma face. Quando nos

deparamos com suas representações pictóricas, ele é geralmente apresentado de frente, “entre

outras máscaras de perfil, como se o seu olhar assim tivesse o poder de levar os homens para

outra dimensão, que não a do cotidiano” (AMARAL, 1996, p. 46).

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Na cena, os atores usavam grandes máscaras, geralmente com cabeleiras (loira para

jovens, castanha pra adulta e branca para anciões) e chapéus (onkus), para aumentar seu tamanho

e chamar a atenção da platéia, que às vezes chegava a 30 mil cidadãos. Como comenta Amaral

(op. cit. p. 46), “No teatro grego a máscara toma um outro aspecto, muito prático. Para uma

melhor visão da cena, nos enormes espaços que o teatro ocupava a máscara era usa também

como um alongamento do corpo do ator e como amplificador de suas vozes”.

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Outra inovação trazida por Ésquilo foi o surgimento do segundo ator. Tespis foi o primeiro

a colocar um ator em cena, ou seja, alguém que se comunicava com o coro, também chamado de

hypokrites (respondedor). Sófocles criou o terceiro ator. Note-se que esse era o número máximo

de intérpretes em cena, mas isso não quer dizer, que havia somente três personagens por

tragédia, pelo contrário, esses eram múltiplos, só que apareciam em momentos diferentes. Ésquilo

chega a usar três atores simultaneamente em Prometeu e em Oréstia.

O dizer no teatro

“sábios em vão/ tentarão decifrar/ o eco de antigas palavras.” – Chico Buarque

Quanto à temática, Ésquilo aborda os grandes temas gregos, ou seja, as vinganças

sanguinárias, os crimes consangüíneos, os suplícios terríveis. Importante notar a influência

determinante do destino e de suas peripécias na trajetória do herói. O homem tem seu caráter e

intenções postos em cheque, invertidos e devolvidos ao contrário, principalmente quando tenta

resistir às profecias e ao mando divino. Assim, o agente transforma-se num joguete dos deuses,

suas ações ora são tomadas por ele, ora vêm de cima, o englobam e passam de geração para

geração, criando um ciclo hereditário. Ésquilo irá explorar essa tensão entre o caráter e o mando

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dos deuses, principalmente na esfera das famílias malditas, cujos crimes antigos são pagos pelos

descendentes, reverberando em toda a linhagem futura.

As suplicantes

Considerada a tragédia mais simples de Ésquilo, As suplicantes é acima de tudo um hino à

hospitalidade. Narra o mito das cinqüenta Danaides que, após se casarem obrigadas com seus

cinqüenta primos egípcios, assassinam-nos na noite de núpcias. Dado o homicídio, elas fogem

para Argos, cidade importante do Peloponeso, onde o rei Pelasgo as acolhe de maneira corajosa,

entendendo que com isso, atrairia a ira dos perseguidores. Agradecendo à recepção e à

segurança, as estrangeiras louvam e pedem a Zeus que abençoe a cidade: “Vamos, desejemos bem

aos Argivos, em troca do bem que nos fizeram. Que Zeus hospitaleiro vele por que os louvores da

boca dos forasteiros sejam, na verdade, irrepreensíveis até o extremo limite” (As suplicantes,

versos 624-630)2. É interessante notar a quantidade de figurantes necessários para a execução da

montagem, visto que há o coro das cinqüenta Denaides, dos cinqüenta soldados argivos e dos

cinqüenta soldados egípcios, totalizando 150 pessoas em cena.

Os persas

Nessa peça, Ésquilo narra as Guerras Médicas pelo olhar dos perdedores, ou seja, dos

persas, mas não o faz de modo depreciativo, ridicularizando-os, mas sim, reconhecendo-lhes a

dor e o sofrimento terríveis.

“O que fez Ésquilo? Pôs em cena, em pleno narcisismo da vitória ateniense, o império mais nobre da Antiguidade que era o Império Persa, todo em ruínas, com os velhos andrajosos, crianças mortas, mulheres soluçando. Ésquilo foi capaz de fazer da dor dos persas uma coisa grega.” (MATTOS, 2001, p. 41)

                                                            

2  A partir de agora, citaremos as peças de Ésquilo e os versos que embasam nossa análise.  

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A ação dramática inicia-se com um mau presságio que a rainha Atossa teve em sonhos,

acentuado pela apreensão do coro de anciões e a falta de notícias de Xerxes. Em seguida, um

mensageiro entra em cena, comunicando a derrocada e aniquilação do império persa. É marcante

a narratividade presente nesse episódio, ou seja, os fatos chegam até o público através do

discurso de uma personagem, como algo do passado, já realizado e concluído. Sobre isso,

Rosenfeld (2008, p.40) destaca:

“Nos Persas (472 a.C.) de Ésquilo (525/24-456) nem se quer há o que se poderia chamar propriamente de ação atual; a batalha, como tal invisível, é reproduzida apenas através de relatos a que o coro e os personagens respondem com lamentações formidáveis. Embora haja uma poderosa atualização cênica da dor dos persas, através das falas da rainha, da sombra de Dario e da intervenção de Xerxes e do canto do coro, isto é, através da transformação do relato do mensageiro em plena atualização cênica, ainda assim os momentos lírico-épicos preponderam no caso e sempre desempenham papel importante no drama grego.”

Em seguida, o próprio Xerxes entra em cena condenando sua má sorte. Entre urros de

vergonha e lamentação generalizada, cria-se uma atmosfera fúnebre, sendo o império persa, o

cadáver. Até Dário, então morto, acusa o orgulho do filho como culpa da catástrofe, fazendo sua

voz ecoar do fundo de seu túmulo (cenário onde a peça se passa) e aparecendo como sombra.

Mais do que um relato histórico, esse texto é um louvor à Atenas, uma homenagem aos gregos e à

sua valentia na guerra, um contraponto entre o despotismo oriental simbolizado por Xerxes e a

democracia grega que termina superior.

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Sete contra Tebas

O mito estudado por Ésquilo nessa ocasião é o dos Labdácias. A ação dramática ocorre

após Édipo furar os olhos e ser expulso de Tebas. Por não receber apoio de nenhum de seus

filhos, o tirano amaldiçoa-os, jurando que se matarão simultaneamente, num fratricídio cruel. Pela

lei da hereditariedade, Polinices, o primogênito, receberia o trono, mas seu irmão, Etéocles rouba-

lhe o direito, exilando-o. O mais velho, por sua vez, arma um exército na cidade de Argos e ataca

a antiga pátria. Além de ter os planos arruinados, ele é assassinado enquanto mata o irmão.

O coro é formado pelas mulheres de Tebas que pressentem na guerra uma tragédia. Outro

duelo acontece entre Antígona e Ismene, já que um decreto impedindo o sepultamente de

Polinices é imposto na cidade e as irmãs assumem posições diferentes em relação a ele.

“Antígona, porém, irmã do jovem, adianta-se com metade do coro, para dar sepultura ao corpo do

irmão, Polinices; Ismene, sua irmã, com a outra metade do coro, sepulta o cadáver de Etéocles”

(FREIRE, 1985, p.109). Há registros de que Sete contra Tebas é parte de uma tetralogia, cujas duas

primeiras partes (Laio e Édipo) e o drama satírico complementar (Esfinge) se perderam no

transcorrer dos séculos.

Prometeu agrilhoado

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Considerada a peça mais humana de Ésquilo, Prometeu Agrilhoado é a segunda parte de

uma trilogia também composta por Prometeu portador do fogo e Prometeu Libertado. Conta-se a

lenda do Titã que, contra as ordens de Zeus, resolve ajudar a humanidade, ensinando aos homens

os mistérios da astrologia e da adivinhação, da domesticação dos animais, da medicina e da

dominação do fogo. “Escutai como eu, de crianças inexperientes outrora, os transformei em

homens inteligentes e dotados de prudência” (Prometeu agrilhoado, versos 442-445). Indignado

com o desrespeito e a audácia de Prometeu, Zeus resolve castigá-lo, prendendo-o em um rochedo

do Cáucaso. Toda dia, uma águia viria comer-lhe o fígado que em seguida se regeneraria, numa

dor eterna e constante. Na última peça, Zeus concede clemência ao Titã, visto que esse, através da

revelação de uma profecia, avisa o deus do trovão que caso desposasse Tétis, teria um filho maior

que ele. Zeus recusa as núpcias de Tétis e liberta Prometeu.

O grande foco de análise da obra é essa aproximação entre o Titã e a humanidade, que

definida em palavra seria algo como “sofrimento junto” ou “companhia na dor”. Aliás, aí reside

uma das polêmicas da peça: o que representa a personagem de Prometeu? Qual seu significado?

Alguns vêem em Prometeu uma espécie de Cristo, relacionando o sofrimento do Cáucaso com a

paixão do Calvário. Outros, principalmente na corrente renascentista, interpretam o Titã como um

libertador que se revolta contra a opressão e o despotismo de um deus perverso. Num plano mais

regionalista, enxerga-se em Zeus a imagem de Xerxes e de sua tirania oriental, por outro lado,

Prometeu seria Atenas, com sua democracia e valentia de guerra.

Oréstia: Agamêmnon, Coéforas e Eumênidas

Única trilogia que chegou completa até nós, Oréstia narra a maldição dos Pelópidas,

representando o apogeu das tragédias de Ésquilo, que na época tinha 66 anos. Uma análise mais

detalhada da primeira parte da trilogia será feita na próxima etapa desse trabalho, posto que o

texto escolhido como base desse estudo é Agamêmnon. Por enquanto, será apresentado um

panorama geral da obra.

Após voltar da Guerra de Tróia, Agamêmnon é assassinado pela esposa , Clitemnestra, e

pelo amante dela, Egisto (também primo do rei). Para vingar a morte do pai, Orestes volta do exílio

e, apoiado pela irmã Electra, planeja a morte da mãe e do tio. Porém, nosso herói tem consciência

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de que seu crime é o mais bárbaro da humanidade e, assim, fica divido entre um dever sagrado

(honrar o pai) e a realização de um matricídio, o que potencializa a tensão e o conflito trágico da

peça. Como diz Rosenfeld (2009, p. 76 - 77), “Orestes toma o lugar de figura central e vê-se

forçado a escolher entre não vingar o pai, o que constitui um crime terrível para a época, e o

matricídio, outro crime tremendo. Apolo exige dele que vingue o pai.”

Após a consumação do crime, Orestes torna-se alvo da perseguição das Erínias (figuras

mitológicas, também chamadas de Fúrias, que vingam os crimes consangüíneos), tendo que pedir

proteção para Apolo em Delos. O herói é por fim encaminhado para Atenas, onde a deusa

protetora da cidade reúne o tribunal do Areópago para decidir o embate.

A votação fica empatada. Nesse momento, a deusa da sabedoria cria uma nova regra: em

caso de empate, o réu será favorecido, ou seja, Orestes foi inocentado. Em vista da derrota, as

Fúrias ficam revoltadas, ameaçam vinganças terríveis, mas, após um tempo, acalmam-se e

transformam-se em divindades benévolas, sendo incorporadas aos valores gregos. Essa

metamorfose de valores das Erínias é comentada por Rosenfeld (op. cit., p.75) assim:

“Dá-se uma integração das forças noturnas, dionisíacas, com as do mundo diurno; as forças da vitalidade e do sexo unem-se às forças espirituais, dentro do cosmo harmônico de Atenas. É a disciplinação dos instintos – as Erínias abrandadas –, que continua fazendo parte do homem. As Erínias convertem-se em Eumênidas.”

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Para compreender com mais clareza o conflito de Oréstia, é necessário uma análise sócio-

histórica da Grécia Antiga. Nesse momento, pleno século V, a democracia consolidava-se como

sistema político e judiciário. Porém, sua formação não é um processo tranqüilo, decorre da

decadência das antigas fratrias, da desintegração das grandes e ricas famílias tradicionais. Nesse

novo cenário, a polis desenvolve-se, trazendo novos conceitos, leis e poderes. “A aristocracia

antiga perdia seus poderes mas nem por isso desapareciam seus valores” (GAZOLLA, 2001, p.25)

Dividido entre os novos e velhos valores, o cidadão grego vê no palco a representação de

seus dilemas e opiniões. Nisso Oréstia é fundamental, porque ao colocar um tribunal em cena,

Ésquilo discute as decisões e relações dos homens com a lei e seu ambiente social, na tentativa de

destacar o coletivo ao invés do indivíduo. Sobre isso, Gazolla (op. cit. p.27) faz um comentário

muito esclarecedor nos seguintes termos:

“As leis que estruturam a cidade, o modo como se define o comando nos primeiros tribunais, os valores em jogo as divisões de funções estão expostos nesse drama de Ésquilo. Trata-se, sobretudo, de uma maneira de explicitar, em versos, a procurada medida para a boa convivência de todos, sob a égide da sagrada Díke, da Justiça.”

A tragédia e(m) estilo

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“Fragmentos de cartas, poemas/ mentiras, retratos/ vestígios de estranha civilização” – Chico Buarque

Ésquilo é um dos maiores representantes da tragédia na Grécia Antiga. Viveu durante o

século V, ou seja, o período de maior efervescência cultural e artística de Atenas. Nesse

comentário, tentaremos expor sucintamente a origem da tragédia e algumas de suas

características, tanto na temática como na produção e representação. Tragédia em grego significa

tragos ode, ou seja, canto ao bode. Nessa definição conseguimos captar o sentido religioso e

ritualístico existente no começo do teatro: homens-sátiros com máscaras de bode dançavam e

cantavam as aventuras de Dionísio, num ritual de oferenda e comemoração. Dionísio era o deus da

fertilidade, do vinho, da embriaguez e do desejo, sendo que, em seus rituais, ocorriam verdadeiras

orgias.

“Dionisio, a encarnação da embriaguez e do arrebatamento, é o espírito selvagem do contraste, a contradição extática da bem-aventurança e do horror. Ele é a fonte da sensualidade e da crueldade, da vida procriadora e da destruição letal. Essa dupla natureza do deus, um atributo mitológico, encontrou expressão fundamental na tragédia grega.” (BERTHOLD, 2010, p.104)

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O ritual começava com uma procissão solene da cidade até o “templo” de Dionísio (lugar de

oferendas). Quando chegavam ao centro da orquestra, um altar de sacrifício se erguia (tymele) e

ali o deus surgia, presentificado e real para os espectadores. O teatro começou quando essa idéia

de materialização da divindade se perdeu, ou seja, Dionísio seria uma representação e não uma

presença.

As Grandes Dionisíacas aconteciam na primavera, entre março e abril, durante seis dias,

com a apresentação de três tetralogias (três tragédias e um drama satírico, versando sobre o

mesmo tema). O evento era organizado por um oficial do Estado, o arconte, que selecionava as

peças a serem apresentadas. Esse, por sua vez, escolhia para cada poeta uma corega (homem rico

da cidade) que financiaria os ensaios, os materiais e a produção do coro. Deve-se destacar que,

nessa época, os atores ainda eram amadores, ou seja, não recebiam um salário, apenas a

alimentação e uma indenização pelo tempo de trabalho perdido. A comissão julgadora do

concurso era formada por dez atenienses (um de cada tribo da cidade), sendo que apenas cinco

(escolhidos por sorteio) votariam. O primeiro colocado recebia um coroa de louros e uma quantia

em dinheiro, além de ter seu nome imortalizado nos registros estatais (didascalia).

Quanto ao edifício teatral, esse era chamado theatrum (lugar de onde se vê), ou seja, desde

os primórdios, o fenômeno cênico já pressupõe a relação fundamental entre ator e platéia. No

centro (orquestra), o coro se movimentava e dançava (nota-se que essa dança era composta por

dois passos para trás, dois para frente e dois para cada lado). O tymele (templo de Dionísio) foi

deslocado para uma das laterais, demonstrando a perda progressiva do caráter

religioso/ritualístico do teatro. A skene, que hoje entendemos como cena, era uma tenda onde os

atores trocavam de figurino e máscara. À sua frente ficava o proskenium, lugar em que ocorria a

representação, e mais à frente ainda, o pirasken.

O cenário poderia ser katablematas (telas pintadas) ou penactes (um mecanismo

tridimensional formado por três faces pintadas que girava em seu próprio eixo). Na tragédia, a

maior parte das ações dramáticas ocorria na fachada de um palácio ou de um templo, ou ainda,

em menos casos, nas tendas de um acampamento militar. Entre as estruturas cênicas utilizadas

podemos destacar o ekkyklene, um carrinho que mostrava os corpos dos cadáveres que morriam

fora de cena, longe dos olhos do público. Em Agamêmnon, como veremos, o rei morre dentro do

castelo, sendo que os espectadores só ouviam seus suplícios finais. Para se ter certeza do

falecimento, o morto aparece através do ekkyklene.

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Já o theologeim é uma elevação no palco (segundo andar) onde os deuses eram

representados. Aliás, quanto ao aparecimento de divindades, um processo muito utilizado por

Eurípedes foi o “deus ex machine”, no qual um deus aparecia de repente no fim da tragédia para

resolver a situação e os problemas dos homens. Na prática, um ator era pendurado em uma

espécie de guindaste (mecane) e surgia no palco vindo de cima, como um deus descendo dos

céus. Havia, ainda, o keraimoscopio formado por espelhos giratórios, que davam a ilusão de raios.

Quanto à temática, a tragédia lida com heróis, ou seja, homens nobres e virtuosos. Através

de um ato de desmedida/excesso (conceito denominado de hybris), esse herói comete um erro

imperdoável que se reverberará em todo a sua trajetória, causando-lhe a desgraça. Como comenta

Rosenfeld (2009, p. 58), “O herói trágico tem uma espécie de cegueira, pois acredita ser poderoso

demais. Ele fere as leis universais, desequilibra o universo moral, não respeita proporções, coloca-

se fora da harmonia cósmica.” Porém, esse erro humano já é algo premeditado pelos deuses, ou

seja, já inscrito pelas Moiras, inerente ao indivíduo. Por mais que o herói lute ou tente enfrentar

seu destino, esse se mostra fixado e qualquer de suas ações apenas o confirmará.

“O verdadeiro alcance de seus atos não fica desconhecido para ele [herói] até o fim, pois que dependem menos de suas intenções e de seus projetos que da ordem geral do mundo à qual os deuses presidem e que pode conferir às empresas humanas sua significação autêntica? (...) O agente, em sua dimensão humana não é causa e razão suficientes de seus atos; ao contrário, é sua ação que, voltando-se contra ele segundo o que sobre ela os deuses

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dispuseram soberanamente, o descobre a seus próprios olhos, lhe revela a verdadeira natureza do que ele é, do que ele fez.” (VERNANT, 2005, p.49)

A platéia, ao assistir essa queda do agente, identifica-se com ele, com seus valores levados

ao extremo, com a peripécia criada pelo destino, com sua dor e seu sofrimento, cria um afeto que

se transforma em piedade. Ao mesmo tempo, sente horror, pois vê-se também humano e joguete

dos deuses, alvo de descomedimento e de falhas. “A catarse traz também a possibilidade de fazer

minha a dor do outro. Nesse outro desamparado, frágil, vulnerável, mortal, eu não vejo apenas o

destino dele, é o meu que eu vejo” (MATTOS, 2001, p. 41). Assim, na fusão desses dois

sentimentos oposto, ocorre a catarse (purgação, purificação), ou seja, após ver os resultados do

excesso, o espectador sai do teatro buscando seu equilíbrio racional, sua medida exata. Nesse

sentido, o teatro torna-se mecanismo pedagógico. “O efeito da catarse devia ajudar o espectador

a controlar melhor suas paixões, portanto a realizar alguns progressos no caminho da serenidade

pessoal e de uma vida social harmoniosa” (ROUBINE, 2003, p.63).

Assim, encerramos essa pequena reflexão sobre o trágico, tendo a certeza de que apenas

alguns pontos foram abordados e de maneira bem superficial, pois o intuito foi somente

introduzir o leitor no contexto de Agamêmnon, obra a ser analisada, essa sim mais

detalhadamente, na próxima parte desse trabalho.

Agamêmnon em análise

“O amor não tem pressa/ ele pode esperar em silêncio/ num fundo de armário/ na posta-restante/ milênios, milênios/ no ar” – Chico Buarque

A análise que aqui será exposta apresenta alguns aspectos da obra Agamêmnon. Na parte

formal, abordaremos a estrutura da tragédia e sua linguagem. Quanto ao conteúdo, além da

temática, iremos explorar as personagens (principais, secundárias e figurantes), os conflitos

principais e paralelos e a proposta do autor, relacionando-a com o que efetivamente o texto

comunica. Quanto à análise crítica, ela estará difundida durante todo o trabalho, em especial na

parte final, quando discorreremos sobre a vontade individual e o poder dos deuses nessa obra de

Ésquilo.

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Quanto à linguagem, Ésquilo usará, predominantemente, o metro jâmbico, pois esse se

assemelha à cadência da fala. Deve-se ressaltar que as construções poéticas do coro são mais

complexas, com um tom mais solene, retomando o aspecto ritualístico representado por este;

enquanto isto, os diálogos buscam expressões mais próximas do cotidiano, porém sem perder as

metáforas e as figuras de linguagem. Agamêmnon narra a lenda do rei de Argos, filho de Atreu e

irmão de Menelau. A ação dramática ocorre quando ele volta da Guerra de Tróia, na qual se

envolveu para vingar o rapto de Helena feito por Páris. Esse episódio da história grega é narrado

por Homero na Ilíada e retomado, através do coro, por Ésquilo:

“Partiram há dez anos desta terra mandado em mil navios belicosos e tripulados todos por argivos – apoio marcial a seus anseios – rei Menelau, que detestava Príamo, e seu valente irmão, rei Agamêmon,” (versos 50-55)

Porém, na saída marítima, Agamêmnon encontra grande dificuldade, posto que os ventos

não sopram e sua armada não consegue prosseguir. Assim, um clima de desespero instaura-se, as

provisões começam a acabar e, com elas, aparece a fome; o ócio e o perigo constantes

desestabilizam o exército aqueu; as naus estão imóveis, com as velas descidas. O oráculo, porém,

anuncia que, para reverter tal situação, Ártemis exige o sacrifício de Ifigênia, filha do rei de Argos.

Entende-se que a deusa está furiosa, pois, recentemente, uma lebre indefesa foi devorada ainda

prenha, por duas águias de seu pai (Zeus). Sobre essa passagem, é importante retermo-nos um

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pouco. Essas duas águias, uma inteiramente preta e outra com o dorso branco, cortam o ar num

vôo rasante perto do palácio, dando voltas no lado em que os braços erguem as armas. É um sinal,

uma profecia, assim como as aves devoram a lebre e seus filhotes, os gregos devorarão os

troianos. Mas, esse sacrifício levará a outro, ou seja, Ifigênia também é lebre nesse jogo de caça-

caçador tão explorado por Vidal-Naquet (2005, p.107):

“Num sentido, a lebre prenha é Tróia, que será apanhada numa rede de onde nem criança, nem adulto poderá evadir-se, Tróia, cuja captura será um caça. Mas a lebre é igualmente como se viu, Ifigênia sacrificada por seu pai. (...) Agamêmnon é também um leão, Ifigênia, vítima das águias sob a forma de lebre prenhe, vítima de Ártemis como filha do leão, Ifigênia será sempre a vítima de seu pai.”

Outra leitura ainda pode ser feita sobre essas águias. Apesar de ambas serem

representações dos aqueus, a negra refere-se exclusivamente a Agamêmnon, o herói desgraçado

que carrega em seu sangue a maldição de uma raça, ao qual foi imposto o sacrifício de uma filha.

Em compensação, Menelau é indicado com a cor branca, ou seja, ele será o único a terminar bem

essa saga. Conseguirá salvar-se da tempestade que assolou os gregos no seu retorno ao lar (fato

narrado pelo arauto posteriormente) e será um dos agentes do drama satírico que completa a

tetralogia (Proteu).

Voltando à ação dramática, Agamêmnon, depois de chorar a amarga sorte, prepara o

sacrifício da filha. Ésquilo, com um refinamento poético raro, descreve a morte da virgem, criando

imagens belas e dolorosas, o que potencializa o aspecto emocional da cena e aumenta a

identificação do espectador com a personagem. Assim, o efeito catártico é tonificado.

“As súplicas da vítima, seus gritos pungentes pelo pai, a idade virginal em nada comoveram os guerreiros ansiosos por saciar a sede de combate. (...) como se fosse um débil cordeiro indefeso, puseram-na no altar do sacrifício; brutal mordaça comprimia rudemente seus lindos lábios trêmulos de medo e sufocava imprecações; (...) volveu os eloqüentes olhos súplices – tão expressivos como se pintura fossem – desespera por falar mas muda” (versos 271-290)

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Depois de dez anos de luta e muito sangue, Agamêmnon retorna para casa. Porém, sem

que saiba sua mulher, Clitemnestra, preparou-lhe uma armadilha. Durante um banho,

Clitemnestra imobiliza-o numa rede de pescador e golpeia-o três vezes com um punhal,

vingando, assim, a filha. Depois dessa primeira análise temática, iremos abordar os aspectos

formais da tragédia de Ésquilo.

A peça começa com um prólogo feito por uma sentinela, que há anos espera algum sinal

sobre a Guerra de Tróia. Depois de expor a situação desventurada da cidade de Argos e apresentar

um panorama geral da tragédia que se seguirá, esse guarda enxerga no horizonte o sinal tão

desejado: são tochas acesas que anunciam a vitória grega. Em seguida, temos o párodos, ou seja,

a entrada do coro (nesse caso formado pelos anciões de Argos, ou seja, os cidadãos mais velhos,

cujos corpos são “incapazes para pugnas bélicas”). Nessa parte, o passado é retomado e, em um

jogo entre coro e corifeu, são revelados a profecia de Ártemis e o sacrifício de Ifigênia. É

interessante notar que o assassinato de Agamêmnon já é anunciado, de forma implícita, na fala do

coro, quando este refere-se à rainha.

“Já antevejo a cólera bem próxima, terrível, inapaziguável, sem remédio, guardiã insidiosa desta casa, alerta sempre, sempre ansiosa por vingar com crueldade a vítima inocente.” (versos 185-189)

Depois disso, inicia-se o primeiro episódio, calcado no diálogo entre o coro e Clitemnestra.

Aí já se percebe o gérmen do confronto entre ambos, visto que os anciões repreendem a rainha

por já comemorar prematuramente o êxito dos argivos baseada somente em uma seqüencia de

fogueira, método, segundo eles, impreciso e sujeito a falhas. O estásima seguinte acentuará essa

discordância (estásima é um intermédio feito pelo coro entre um episódio e outro na forma de um

canto parado, nota-se nesse momento uma reflexão feita pela cidade sobre o assunto que acabou

de ser apresentado e sobre as apreensões do futuro).

“É próprio das mulheres acolher com avidez rumores agradáveis sem aguardar a prova da verdade; se rápida a certeza se insinua na mente das mulheres, mais depressa desfaz-se a feminina convicção.” (versos 553-558)

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No segundo episódio, um arauto chega anunciando a ruína de Tebas e o retorno de

Agamêmnon. É importante notar que nessa transição alguns dias passaram-se, como relatam as

rubricas de Ésquilo, ou seja, não há unidade temporal, a ação ultrapassa o limite de 12 horas

(tempo de luz solar) imposto por Aristóteles em A poética. Assim, podemos entender como o

filósofo grego, ao tentar postular a tragédia um século depois de seu auge, comete falhas,

principalmente no âmbito formal, já que suas análises simplificam a rica dramaturgia existente em

pequenos limites de espaço-tempo.

Em seguida, Clitemnestra entra em cena. Ela responde à provocação do coro, mostrando

como estava certa ao anunciar a vitória e dedicar-se aos rituais gratulatórios exigidos pelos

deuses. No seu primeiro monólogo sobre o marido, ela deixa transparecer sua falsidade e

hipocrisia, afirmando-se enquanto esposa honesta e leal, que guardou o trono com todos os

cuidados durante a ausência do rei.

“Não há para a mulher satisfação maior que a de mandar abrir as portas ao marido salvo da morte pelos deuses na batalha. (...) Que venha ao lar e veja a companheira honesta como a deixou, zelosa, igual ao cão fiel, maior amiga dele e inimiga máxima dos que lhe querem mal, a mesma esposa em tudo, durante tanto tempo guardiã atenta de quantos bens ficaram sob o seu cuidado.” (versos 694-704)

O segundo estásima é dedicado ao mito de Tróia, sendo que Ésquilo constrói a famosa

metáfora do leão ainda filhote e inofensivo que é acolhido e alimentado durante anos por uma

família e, depois de desenvolvido, mata os rebanhos e condena os antigos senhores à desolação.

O autor relaciona o felino com Helena, beleza frágil e sedutora, que quando chega a Ílion atrai

paixões, para em seguida, romper a tranqüilidade de Tróia provocando a guerra, o terror e a

destruição.

No episódio seguinte, Agamêmnon finalmente aparece. De imediato ele já é alertado pelo

coro das tramóias de um inimigo, ou seja, há pessoas no reino que fingem felicidade por sua

vinda, mas seu sorriso é apenas uma pintura desbotada, palavras falsas que dizem o contrário. O

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discurso com que Clitemnestra recebe o marido deve receber uma atenção especial, pois é um

ótimo exemplo da ambigüidade trágica definida por Vernat (2005, p.75) como:

“Trata-se de subentendidos utilizados de maneira plenamente consciente por certas personagens do drama, para dissimular, no discurso que elas dirigem a seu interlocutor, um segundo discurso, contrário ao primeiro, cujo sentido é perceptível por aqueles que dispõem, na cena e no público, dos elementos de informação necessários. (...) O ambíguo não marca mais um conflito dos valores mas a duplicidade de uma personagem. Duplicidade quase demoníaca.”

Por exemplo, nesse excerto ela joga com os sentidos de corpo furado e de rede grande,

instrumento que logo em seguida lhe causará a morte.

“Houvesse este homem sido mesmo vítima dos ferimentos todos que nos relataram mais furos haveriam em seu corpo forte que malhas numa rede grande;” (versos 979-982)

Outra duplicidade evidencia-se quando ela estende um suntuoso tapete cor de púrpura,

sob o pretexto de homenagear as glórias de Agamêmnon. Mas, na verdade o que Clitemnestra

quer é purificá-lo das potências infernais e condená-lo à morte, sem possibilidade de volta. O

palácio, no qual Agamêmnon é convidado a entrar, é o de Hades, o do rei dos mortos, e não o seu

lar, como acredita.

“A justa mão dos deuses vai encaminhá-lo à casa que tão cedo não pensavas em ver. Do resto cuidará, com o favor divino, um ânimo que não se entrega nem ao sono, obediente às leis exatas do destino.” (versos 1041-1045)

No terceiro estásima, o metro utilizado na fala do coro muda, indicando uma apreensão

dos anciões com o futuro da cidade. O campo semântico das palavras também reforça essa

atmosfera: terror, vaticínio, inexplicável pânico, alma em sobressalto, desvairada apreensão,

palpitar frenético.

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O episódio seguinte, um dos mais instigantes da peça, dá voz à Cassandra, escrava de

guerra trazida por Agamêmnon. Antiga profetiza, Apolo apaixonou-se ardentemente por ela,

porém a ex-princesa de Tebas enganou-o, prometendo os ritos de amor e não os cumprindo. O

deus da perfeição vingou-lhe, fazendo com que seus vaticínios não mais fossem tidos como

verdade pelos homens. Alternando delírio e lucidez, Cassandra anuncia os crimes futuros:

“O comandante de incontáveis naus guerreiras, destruidor do Ílion, não percebe ainda os golpes assassinos que a cadela odiosa sordidamente lhe prepara, bajulando-o, com língua hipócrita e contentamento falso (...) Tu mesmo, aqui presente, dentro de momentos, hás de reconhecer em mim, horrorizado, a profetisa verdadeira até demais!” (versos 1407-1411)

Além disso, a escrava retoma os crimes antigos da família dos pelópidas, mostrando como

as desgraças atuais são uma herança atrelada ao sangue, ou seja, os descendentes, perseguidos

pelo coro das Fúrias, pagam os erros de seus predecessores, sendo-lhes impossível mudar o

destino.

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em oferenda ao grande Zeus das profundezas, senhor dos mortos;” (versos 1587-1603)

Porém, a ação de Clitemnestra não é algo que somente de seu caráter. Na verdade, a rainha

é instrumento da justiça divina, ela tem o dever de vingar a morte da filha. Isso é o que Vernant

(2005 p.29) chama de “decisão sem vontade, responsabilidade independente das intenções”, ou

seja, além da sede por poder e do ódio pelo esposo, há um valor preso à tradição grega e ao

imaginário religioso. A própria agente tem consciência de sua função:

“Quem jaz aí morto é Agamêmnon, meu esposo, morto por obra desta minha mão direita, guiada só pela justiça; tenho dito. (...) Ouvi também a minha decisão jurada: pela justiça feita em nome de uma filha, pelo Destino, pelas Fúrias vingadoras a quem dedico o sacrifício deste homem,” (versos 1627-1629 e 1665-1668)

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Esse mesmo embate entre força sobre-humana e decisão de caráter é radicalizado na

primeira parte da peça. Agamêmnon tem de sacrificar a filha, é algo já premeditado pelos deuses,

sendo-lhe impossível outra escolha. Mas, ele próprio não o deseja, posto que isso significa o êxito

na guerra? Por que não abandonar as naus e retornar para casa, esquecendo-se das obrigações

bélicas? O herói também não é de todo vítima passiva do destino, tem alguma culpa. A tragédia

desenvolve-se nesse ponto de intersecção entre os desígnios divinos e as pulsões e projetos

humanos, na coexistência desses dois pólos inversos. Vernant (2005, p.28) define esse esquema

de dupla motivação assim:

“O herói confronta-se com uma necessidade superior que se impõe a ele, que o dirige, mas, por um movimento próprio de seu caráter, ele se apropria dessa necessidade, torna-a sua a ponto de querer, até desejar apaixonadamente aquilo que, num outro sentido, é constrangido a fazer.”

Por último, Egisto vem ao encontro do coro, anunciando-se como vingador do pai e

cúmplice do assassinato. Entre ambos, um clima de acusação e ameaça instaura-se, obrigando o

poeta a mudar o metro dos versos, a fim de indicar essas exaltações. É interessante notar como

Ésquilo já antecipa a temática de Coéforas, seja nas previsões de Cassandra na qual ela evoca um

exilado errante que retornará à terra natal para vingar o pai, ou na fala do coro, que clama pela

volta de Orestes. “Um deus há de guiar Orestes para cá!” (verso 1951).

“O Agamêmnon vai assim resultar numa reviravolta total, numa inversão de valores: a fêmea matou seu macho, e a desordem instaurou-se na cidade, o sacrifício foi um anti-sacrifício, uma caça pervertida. Sem dúvida o último verso, pronunciado pela rainha, evoca o restabelecimento da ordem, mas esta ordem falaciosa será destruída nas Coéforas.” (VIDAL-NAQUET, 2005, p. 116)

Percebe-se que, por trás do mito, Ésquilo tem um intuito pedagógico de purgar o

espectador dos atos de desmedida, encaminhando-o para uma vida ponderada e estável. Como

diz o coro: “O dom supremo é ter comedimento” (verso 447). E tal objetivo é alcançado, pois o

leque de desgraças e tragédias provocados pela hybris e pelos excessos de Agamêmnon, de

Clitemnestra, de Tiestes e de Egisto, causa um horror completo, uma repulsa no público. Ou seja,

o homem vê no palco aquilo que recusa em sua vida, algo que renega como uma doença

contagiosa. Aliás, aí já encontra-se outro ponto do ensinamento de Ésquilo: “o sofrimento é a

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melhor lição” (verso 212). Através da ficção, é possível tornar-se equilibrado e comedido pois, do

contrário, o destino humano será semelhante ao do herói que naufraga em sofrimento.

Assim, concluo esse trabalho evocando Chico Buarque: “sábios em vão tentarão decifrar o

eco de antigas palavras”, ou seja, os versos de Ésquilo, as tragédias clássicas, os manuscritos

teatrais são apenas os resquícios de um imenso acervo guardado no tempo, e nós, como

arqueólogos da poética, só podemos nos deleitar com esses ecos remanescentes de algo que diz

respeito a nossa humanidade.

Referências bibliográficas

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BERTHOLD, M. História mundial do teatro. São Paulo, Perspectiva, 2010.

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ÉSQUILO. Oréstia, Agamêmnon, Coéforas, Eumênidas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.

FREIRE, Antônio. O teatro grego. Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1985.

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Teatro. Org. Sérgio de Carvalho. São Paulo, Prefeitura do Município, 2001.

MATTOS, C. Entrevista. IN: O teatro e a cidade – Lições de História do Teatro. Org. Sérgio de

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VERNANT, J. P; VIDAL-NAQUET P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo, Perspectiva, 2005.

Referência das imagens

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FIGURA 1 (p. 3) – Máscara de mármore de uma heroína da tragédia antiga (Nápoles, Museo

Nazionale).

FIGURA 2 (p. 3) – Máscara de um jovem, encontrada em Samsun (Amiso), Turquia, século III a C.

(Munique, Staaliche Antikensammlung).

FIGURA 3 (p. 4) – Máscara de um escravo, século III a.C. (Milão, Museo Teatrale alla Scala.

FIGURA 4 (p. 4) – Máscara na mão de uma estátua de mármore, a qual se julga representar Ceres

(Paris, Louvre).

FIGURA 5 (p. 5) – Ânfora, provavelmente de Vulci. Figura negra ática: Dionísio dançando com

sátiros; sátiros e ninfas. Atribuída ao oleiro Âmasis e ao pintor de Âmasis. Terceiro quartel do

século VI. Altura da pintura: cerca de 16 cm.

FIGURA 6 (p. 7) – Cena de Os persas de Ésquilo: o fantasma de Dario aparece a Atossa enquanto

ela lhe oferece sacrifício. Pintura em vaso (jarro) ático (Roma, Museu do Vaticano).

FIGURA 7 (p. 10) – O assassinato de Egisto por Orestes. Vaso da Campânia, 420 a.C. (Berim).

FIGURA 8 (p. 11) – A purificação de Orestes. Taça do sul da Itália no estilo da tragédia euripidiana

(Paris, Louvre).

FIGURA 9 (p. 12) – Estátua de Dionísio. 340-330 a.C.

FIGURA 10 (p. 14) – Relevo de Eurípedes: à esquerda, o poeta entrega uma máscara trágica à

personificação da skene; à direita, uma estátua de Dionísio (Istambul).

FIGURA 11 (p. 16) – Máscaras de ouro representando a morte de túmulos em Micenas,

denominadas “máscaras de Agamêmnon”. 259-253 a.C

FIGURA 12 (p. 21) – Intérprete no papel de Clitemnestra. Estatueta de marfim romana do período

tardio, proveniente de Rieti (Paris, Louvre)

FIGURA 13 (p. 22) – Cratera com volutas decoradas com máscaras, proveniente de Derveni,

Macedônia. Bronze: Dionísio e Ariadne adormecida (do outro lado, sátiro e mênade, ambos

adormecidos). Segunda metade do século IV. Altura até o topo das alças: 90 cm.

Recebido em 4 de maio de 2010

Aceito em 24 de maio de 2010