1) Como Nós Pensamos - Vannevar Bush

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    Como Ns Pensamos ("As We May Think") (*), 1945Traduo livre, disponvel em http://chaves.com.br/TEXTALIA/BUSH/aswemay.htmVannevar Bush

    Que benefcios permanentes a cincia e a tecnologia tm trazido para o ser humano?A cincia e a tecnologia, em primeiro lugar, aumentaram o controle do ser humano sobre o seu

    meio ambiente material, ajudaram-no a melhorar seu alimento, sua vestimenta, seu abrigo, ederam-lhe mais segurana. Tudo isso permitiu que ele vivesse acima do nvel da merasubsistncia.Em segundo lugar, a cincia e a tecnologia tambm possibilitaram ao ser humano maiorconhecimento dos processos biolgicos que se passam em seu prprio corpo, permitindo queele, progressivamente, se tornasse mais livre de doenas e, assim, aumentasse a durao desua vida. Alm disso, elas iluminaram as interaes existentes entre suas funes fisiolgicas epsicolgicas, dando-lhe promessa de melhor sade mental.Em terceiro lugar, a cincia e a tecnologia contriburam para que melhorasse a comunicaoentre os indivduos, ajudando o ser humano a registrar suas idias, capacitando-o a manipularesse registro de idias e a construir em cima da experincia legada pelos seus antepassados.Desse modo, o conhecimento humano pde no s evoluir, mas tambm perdurar, tornando-sevalioso no s para os indivduos que o geraram, mas para toda a raa humana. O conhecimento humano vem crescendo assustadoramente e vem se tornando cada vez mais

    especializado. medida que o conhecimento cresce e a especializao se estende, maiscomplicado se torna o nosso acesso a esse monumental acervo. O investigador fica perplexoquando tem que lidar com o produto da pesquisa de milhares de colegas -- no tendo tempopara ler, muito menos para analisar e memorizar, tudo o que publicado, mesmo em sua reade especializao. A especializao talvez seja a nica maneira de fazer o conhecimentoprogredir. Mas os esforos de construir pontes entre as vrias disciplinas especializadas ainda incipiente e artificial.Profissionalmente, nossos mtodos de transmitir e analisar os resultados da pesquisa soantiquados e totalmente inadequados aos propsitos para os quais os empregamos. Se otempo total usado para escrever trabalhos de pesquisa e para l-los pudesse ser avaliado, arazo entre o tempo dedicado a uma e a outra coisa iria surpreender. Aqueles queconscientemente tentam se manter em dia, atravs de leitura atenta e contnua, com opensamento corrente, mesmo em campos muito restritos, hesitariam em se submeter a umteste que verificasse quanto do contedo lido poderia ser reproduzido, se ou quando

    necessrio. As leis da gentica de Mendel ficaram perdidas por uma gerao porque suapublicao no alcanou os que seriam capazes de entend-las e de estend-las. Esse tipo decatstrofe indubitavelmente acontece tambm hoje, e realizaes verdadeiramentesignificativas se perdem, ficando enterradas em uma montanha de informaes sem maiorconseqncia.A dificuldade parece ser, no tanto que publicamos mais do que deveramos, dada a extensoe a variedade de nossos interesses atuais, mas, sim, que as publicaes se estenderam muitoalm de nossa capacidade atual de fazer real uso delas. O registro das idias humanasexpandiu-se prodigiosamente -- e, entretanto, os meios de que nos valemos para tentarencontrar algo de importante nesse labirinto de idias so os mesmos que utilizvamos quandohavia muito menos coisa para pesquisar.Um registro de idias, para ser til, deve ser cuidadosamente abastecido, continuamenteestendido, e, acima de tudo, freqentemente consultado. Hoje fazemos o registro escrevendo,fotografando, gravando. O que escrevemos, fotografamos e gravamos guardado em papel,em filme, em disco. Mesmo que meios mais revolucionrios de armazenamento no apaream,os atuais sero aperfeioados e expandidos. E os meios de tranmisso do conhecimentotambm se ampliaro e se tornaro mais eficazes.[Dadas as taxas de miniaturizao e compresso que vm sendo desenvolvidas, concebvelque, em pouco tempo,] a Encyclopaedia Britannica possa ter o seu tamanho reduzido ao deuma caixa de fsforos e que uma biblioteca de um milho de volumes possa ser acomodadaem cima de uma escrivaninha. Se tudo o que a raa humana produziu at hoje, desde que foiinventada a imprensa, na forma de livros, revistas, folhetos, etc., corresponder a, digamos, umbilho de livros, todos eles, reunidos e comprimidos, podero vir a ser transportados em umcaminho fechado.

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    Mas meramente comprimir no bastante. Alm de registrar e armazenar, preciso,principalmente, consultar. Mesmo as bibliotecas de hoje no so suficientemente consultadas:apenas uns poucos fazem uso real do que nelas se encontra. Sobre isso falarei mais adiante.Aqui se registre o fato de que, embora no seja suficiente, a compresso importante. Quandoa Britannica for comprimida e passar a ter o tamanho de uma caixa de fsforos, imprimi-lacustar poucos centavos e envi-la pelo correio menos ainda. O custo de imprimir e distribuirum milho de cpias da Britannica ser pequeno.Quanto ao processo de registrar as idias, hoje usamos lpis ou mquinas de escrever. O queescrevemos , em seguida, submetido a laborioso processo de edio e correo, seguido deprocesso complicado de composio, impresso e distribuio. Considerando apenas oprimeiro estgio desse processo (transcrio), chegar o dia em que os autores deixaro deescrever a mo ou a mquina e apenas usaro sua voz, encarregando-se a tecnologia detransformar a voz em texto que poder ser acrescentado ao registro de idias. Mas chega de discutir maneiras de inserir idias no registro. Mesmo em suas dimensesatuais, mal conseguimos consult-lo, imagine-se se for grandemente ampliado. Vamos discutiro processo de consulta do registro. Essa uma questo muito mais ampla do que a meraextrao de informaes para fins de pesquisa cientfica, pois envolve todo o processo atravsdo qual o ser humano se benefcia da herana que consiste do conhecimento adquirido pelasgeraes anteriores. A ao principal nesse processo de consulta a seleo do material -- eaqui estamos engatinhando. Pode haver milhes de idias brilhantes no registro das idiashumanas e das experincias em que se baseiam essas idias. Mas se s conseguirmosencontrar uma dessas idias por semana, nossa capacidade de absorv-las e sintetiz-las noacompanhar sequer o ritmo em que novas idias so produzidas.J tem havido algum progresso. Usando cartes perfurados, uma mquina pode hojeselecionar, em pouco tempo, todos os empregados de uma empresa que falam espanhol emoram em Trenton. Mas esse processo muito lento. Alm do mais, a forma de seleo simples: ela se d comparando cada um dos itens com uma lista de caractersticasespecificadas. H outras formas de seleo que so mais aperfeioadas. Uma delas pode servista no processo de comutao telefnica automtica. Voc disca um nmero e a mquinaseleciona apenas uma dentre cerca de um milho de estaes para fazer a conexo. Noprecisa contatar todas. Ela leva em considerao, de incio, apenas o primeiro dgito, depoisuma subclasse desse dgito definida pelo segundo dgito, e assim por diante. Dessa forma, oprocesso completado rapidamente e quase sempre sem erro.Hoje usamos cartes perfurados para armazenar a informao. Mas poderemos vir a utilizarpequenos cartes de ao nos quais so impressas marcas magnticas. Ou poderemos vir ausar meios de armazenamento ticos. Com esses novos meios poderemos armazenar muito

    mais informaes e eles permitiro que elas sejam recuperadas muito mais rapidamente, atmesmo atravs de instrues faladas em um microfone.Mas a maior dificuldade na seleo de materiais no est tanto no fato de que os meios dearmazenamento so lentos ou no fato de que as bibliotecas demoram em utiliz-los. Nossaprincipal dificuldade em encontrar as informaes de que precisamos esto relacionadas superficialidade dos sistemas de indexao adotados. A informao normalmente indexadaou em ordem alfabtica ou em ordem numrica.Mas a mente humana no funciona dessa forma. Ela no opera por ordenamento alfabtico ounumrico. Ela opera por associao. Quando ela apreende um item, ela salta imediatamentepara o prximo que lhe sugerido por associao de idias, em funo de algum processocomplexo de elaborao de "trilhas" que executado pelo seu crebro. Esse processo deassociao, porm, tem alguns aspectos negativos: as trilhas se apagam, os itens e asassociaes que produzem no so permanentes, a memria transitria. Contudo, avelocidade da ao, a complexidade das trilhas que nos levam de uma idia a outra, o nvel de

    detalhe das imagens mentais, tudo isso mais assombroso do que qualquer outro fenmenoque a natureza possa nos oferecer.O ser humano no ser capaz de duplicar esse processo artificialmente, mas ele certamente capaz de aprender com ele -- e, em pequenos aspectos, at mesmo de aperfeio-lo. Aprimeira coisa a chamar a ateno no processo a forma de seleo. A seleo de idias porassociao, em vez de por ordenamento alfabtico ou numrico, pode ainda vir a serautomatizada. Mas dificilmente ser possvel igualar a velocidade com que a mente humanafaz associaes, estabelecendo trilhas entre idias. Entretanto, certamente ser possvelultrapassar a mente humana em relao permanncia e a clareza dos itens recuperados doregistro de idias.

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    Consideremos um dispositivo futuro para uso individual, que um misto de arquivo e biblioteca-- pessoal e privado. Esse dispositivo precisa de um nome: vamos cham-lo de "memex". Ummemex ser um dispositivo em que o indivduo armazenar seus livros, seus registros, suasanotaes, suas comunicaes. O dispositivo ser mecanizado de modo a poder serconsultado com extrema velocidade e flexibilidade. Digamos que seja um suplemento ntimo nossa memria: uma grande expanso da memria pessoal.Um memex ser, basicamente, uma escrivaninha -- embora, presumivelmente, possa seroperado a distncia. Em cima da escrivaninha haver uma tela inclinada, em que vriosmateriais podero ser exibidos ("projetados") para leitura conveniente. Na frente da tela haverum teclado e conjuntos de botes e manivelas. O dispositivo ter capacidade dearmazenamento virtualmente ilimitada (digamos que, se o indivduo introduzisse nele 5.000pginas por dia, ainda assim levaria anos para ench-lo). Dados os materiais usados paraarmazenamento e as tcnicas de compresso, o espao devotado a armazenamento noprecisar ser grande. Alm da tela, do teclado e do espao para armazenamento, o memexter mecanismos para recuperar informaes.O contedo informacional do memex ser, em sua maior parte, comprado pronto: livros detodos os tipos, fotografias, peridicos, jornais, etc. Eles sero adquiridos em microfilme einseridos no dispositivo. A correspondncia ser filmada e colocada l. E o indivduo poderinserir materiais diretamente, usando o teclado ou usando uma espcie de lousa onde eleescrever a mo. Qualquer coisa escrita nessa lousa, ou colocada sobre ela (como uma fotoou um memorando), ser fotografada e armazenada no quadro seguinte do microfilme virgemdo memex.Haver, naturalmente, formas de consultar o material inserido no memex usando tcnicasconvencionais de indexao. Se o indivduo quiser consultar um livro especfico, bastar digitarseu ttulo e a pgina de rosto do livro ser exibida na tela. Materiais freqentemente utilizadospodero receber cdigos mnemnicos, de modo que o simples apertar de uma tecla trar omaterial desejado para a tela. Alm disso, as manivelas podero ser usadas para passar osolhos rapidamente pelo material -- digamos, por um livro -- para frente e para trs. Um botolevar o leitor imediatamente para a primeira pgina, outro boto, para a ltima. Qualquer livroda coleo poder, assim, ser consultado muito mais facilmente do que acontece em umabiblioteca. Na tela podero ser sobrepostas vrias imagens. Pelo teclado, ou usando algum tipoespecial de caneta, o indivduo poder acrescentar anotaes e comentrios nas margens dotexto lido.At aqui, o sistema descrito relativamente convencional. Contudo, ele dever permitir oestabelecimento de ndices associativos, cuja idia bsica fazer com que um item selecione,imediata e automaticamente, um outro, com o qual foi associado. Esta ser a caracterstica

    essencial do memex. Esse processo de ligar um item ao outro o que ser importante. Quando o indivduo desejar construir uma associao, ele dar um nome trilha deassociaes e registrar esse nome em um livro de cdigos e, usando o teclado, no prpriomemex. O indivduo trar para a tela os itens que quer interligar e, usando um indicador voltadopara um de vrios espaos em branco em sua parte inferior, os interligar. Em cada um dositens interligados aparecer, no que era um espao em branco, o nome dado trilha deassociaes. O memex se encarregar de manter a ligao dos itens associados, mesmo queeles estejam armazenados em locais completamente diferentes dentro do dispositivo. Assimsendo, cada vez que o indivduo visualizar um dos itens, saber, pelos nomes colocados naparte inferior, que h outros itens associados quele, e ser capaz de imediatamente recuper-los, apertando um boto. Se houver muitos itens associados, o indivduo poder indicar quequer consult-los usando as manivelas, como se eles estivessem dispostos de maneiraseqencial e formassem um novo livro. Contudo, continuar a existir apenas uma cpia decada item e um mesmo item poder fazer parte de vrias trilhas associativas. Digamos que o dono do memex esteja interessado em arcos e flechas. Imaginemos que eleesteja estudando porque os arcos turcos eram superiores aos arcos ingleses durante asCruzadas. Ele procura em uma enciclopdia e acha uma breve referncia pertinente, que deixaexibida na tela. Em um livro, acha outra referncia, que associada anterior e tambmdeixada na tela. Outros materiais so acrescentados, formando uma trilha de associaes.Eventualmente ele introduz comentrios prprios, que ficam arquivados, associados aomaterial j assinalado. Quando ele descobre que a principal diferena entre os dois tipos dearco tinha que ver com sua elasticidade, passa a procurar informaes sobre a elasticidade demateriais. Novamente ele introduz comentrios seus. Dessa forma, todo o material fica fazendo

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    parte da mesma trilha e todo o caminho percorrido, ou o processo utilizado para elaborar atrilha, fica traado.E a trilha no se apaga. Anos mais tarde, em uma discusso com amigos sobre comoinvenes mais criativas s vezes so deixadas de lado em funo do fato de que o serhumano resiste a inovaes, ele se lembra do caso dos arcos turcos. Com o teclado, os botese as manivelas ele rapidamente localiza todo o material que havia levantado na ocasioanterior, inclusive com seus comentrios. Como o material pertinente discusso, ele apertaum boto que reproduz os itens associados, atravs de processo fotogrfico, e d a cada umde seus amigos uma cpia da trilha, para que eles possam introduzir o material em seusprprios memexes, se assim o desejarem, fazendo, assim, com que trilhas pessoais sejaminterligadas em trilhas mais amplas e gerais.Desse modo, novas enciclopdias aparecero, cheias de trilhas prontas, produto do trabalhode muitos indivduos. As trilhas contidas no memex de um experiente advogado, que interligamcasos anlogos e os associam a legislao e a jurisprudncia pertinentes, bem como aacrdos e julgados, podero ser compartilhadas com colegas mais jovens fazendo com que aexperincia daqueles beneficie a estes, menos experientes. O mdico, perplexo diante de umcaso indito, poder encontrar, nas trilhas de outros colegas, pistas importantes. O historiador... E assim por diante. A herana que os mestres transmitiro aos discpulos no ser maisapenas o produto de suas concluses maduras, mas todo o processo utilizado para chegar aelas, todo o andaime usado na construo do edifcio final.Desta maneira, seremos capazes de implementar e distribuir, para uso geral, as formas em queo ser humano produz, armazena e utiliza o conhecimento. Presumivelmente, o esprito dosindivduos ser elevado, se eles puderem rever melhor seu passado sombrio e analisar maiscompleta e objetivamente seus problemas presentes. O ser humano construiu uma civilizaoto complexa que ele hoje precisa mecanizar o registro de suas idias e suas experinciaspara poder levar o seu experimento s suas concluses lgicas, sem ficar preso no meio docaminho por sua limitada capacidade de memria. Suas aventuras no mundo das idias seromuito mais prazerosas e frutferas se ele puder livremente se esquecer das muitas coisas deque no necessita no momento, certo de que poder ter acesso a elas, se isso se tornarnecessrio.As aplicaes da cincia e da tecnologia ajudaram o ser humano a fazer desta terra uma casabem abastecida, e o esto ajudando a viver nela de maneira sadia. Mas essas aplicaestambm lhe permitiram jogar multides de pessoas umas contra as outras, com armas cruisnas mos. Apesar disso, a mesma cincia e tecnologia podem, ainda, ajudar o ser humano adominar o grande registro de suas idias e a crescer em sabedoria usando a experincia daraa humana. Talvez ele perea em conflito, antes que consiga aprender a usar essa

    experincia acumulada para o seu prprio bem. Mas seria uma infelicidade extrema que oprocesso terminasse assim -- ou que hoje perdssemos a esperana de que ele possa evoluirde maneira diferente.* Este artigo foi publicado em The Atlantic Review, em julho de 1945. A traduo no doartigo completo, mas apenas de partes selecionadas, e foi realizada por Eduardo O. C.Chaves, com base no texto reimpresso em Steve Lambert e Suzanne Ropiequet, orgs., CD-ROM: The New Papyrus -- The Current and Future State of the Art (Microsoft Press,Redmond, 1986). Vannevar Bush foi um pioneiro em projeto de computadores que tambm sedistinguiu como engenheiro, administrador e funcionrio pblico. Em 1941 tornou-se, pornomeao do presidente F. D. Roosevelt, o primeiro diretor do Office of Scientific Research andDevelopment do governo americano, rgo responsvel pela coordenao de pesquisasrealizadas para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos por universidades e institutosde pesquisa.