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1 «A correcta compreensão da natureza do Estado é essencial para toda a acção revolucionária do proletariado» Álvaro Cunhal, A questão do Estado, questão central de cada revolução 1. Com o advento do neoliberalismo o Estado desapareceu ou está em vias de desaparecer? Nos dias que correm, todos os intelectuais que pululam nos think tanks neoconservadores afirmam a necessidade de o Estado abrir mão de serviços públicos em benefício da (auto)iniciativa dos cidadãos e da sociedade civil. Economistas do mainstream neoliberal advogam a urgência da libertação das “gorduras” do Estado, tarefa a ser entregue à iniciativa privada com suas estruturas flexíveis, automatizadas e eficientes. Políticos da esquerda da direita e da direita da direita falam na inevitabilidade em diminuir o peso da máquina estatal, chegando a pronunciar a sua inutilidade social em diversas áreas (educação, saúde, segurança social). Todos estes agentes do capital insistem na redução do Estado a uma circunscrição de domínio político mínimo ajustada em torno de três eixos centrais no discurso ideológico neoliberal: 1) perda da soberania nacional; 2) tendência para o desvanecimento do Estado no quadro de organismos transnacionais como a ONU, a UE, a OMC, a NATO, o FMI, etc.; 3) maior volume da chamada sociedade civil empreendedora e com iniciativa – o grande capital – na regulação do tecido social e económico. Portanto, para o capital e seus apologistas, o Estado seria cada vez mais uma velharia institucional com um papel residual na estruturação das sociedades contemporâneas. Será tudo isto uma verdade incontestável? Será que o Estado se tornou realmente numa estrutura vestigial do modo de produção capitalista com uma função meramente acessória na reprodução do capital? Haverá, então, um esbatimento do Estado-Nação em prol da ascensão, a prazo, de um Estado mundial? Do nosso ponto de vista, não faz sentido apostar às cegas no que já foi chamado de “ideologia do fim” (Moura, 1997): fim das ideologias, fim do trabalho, fim da dominação política, fim das classes. Uma mera observação sobre o quotidiano permite- nos captar a persistências de enormes desigualdades sociais e, noutro nível, da permanência de um aparato repressivo e zeloso defensor dos interesses de classe da

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«A correcta compreensão da natureza do Estado

é essencial para toda a acção revolucionária do proletariado»

Álvaro Cunhal, A questão do Estado, questão central de cada revolução

1. Com o advento do neoliberalismo o Estado desapareceu ou está em vias

de desaparecer?

Nos dias que correm, todos os intelectuais que pululam nos think tanks

neoconservadores afirmam a necessidade de o Estado abrir mão de serviços públicos em

benefício da (auto)iniciativa dos cidadãos e da sociedade civil. Economistas do

mainstream neoliberal advogam a urgência da libertação das “gorduras” do Estado,

tarefa a ser entregue à iniciativa privada com suas estruturas flexíveis, automatizadas e

eficientes. Políticos da esquerda da direita e da direita da direita falam na inevitabilidade

em diminuir o peso da máquina estatal, chegando a pronunciar a sua inutilidade social

em diversas áreas (educação, saúde, segurança social). Todos estes agentes do capital

insistem na redução do Estado a uma circunscrição de domínio político mínimo ajustada

em torno de três eixos centrais no discurso ideológico neoliberal: 1) perda da soberania

nacional; 2) tendência para o desvanecimento do Estado no quadro de organismos

transnacionais como a ONU, a UE, a OMC, a NATO, o FMI, etc.; 3) maior volume da

chamada sociedade civil empreendedora e com iniciativa – o grande capital – na

regulação do tecido social e económico.

Portanto, para o capital e seus apologistas, o Estado seria cada vez mais uma

velharia institucional com um papel residual na estruturação das sociedades

contemporâneas.

Será tudo isto uma verdade incontestável? Será que o Estado se tornou realmente

numa estrutura vestigial do modo de produção capitalista com uma função meramente

acessória na reprodução do capital? Haverá, então, um esbatimento do Estado-Nação

em prol da ascensão, a prazo, de um Estado mundial?

Do nosso ponto de vista, não faz sentido apostar às cegas no que já foi chamado

de “ideologia do fim” (Moura, 1997): fim das ideologias, fim do trabalho, fim da

dominação política, fim das classes. Uma mera observação sobre o quotidiano permite-

nos captar a persistências de enormes desigualdades sociais e, noutro nível, da

permanência de um aparato repressivo e zeloso defensor dos interesses de classe da

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burguesia. Assim, procurar-se-á demonstrar a falência das teses do “Estado mínimo” e

como o Estado é uma estrutura que tem um papel e um lugar vital no modo de produção

capitalista. A definição das propriedades estruturantes do Estado capitalista e a sua

configuração específica no neoliberalismo serão dois passos teóricos essenciais para a

posterior conceptualização das dinâmicas políticas, económicas e ideológicas do Estado

na actual fase de desenvolvimento do capitalismo. Perceber-se-á que a sinalização dos

vectores estruturantes do Estado neoliberal é uma tarefa essencial na luta de ideias que

os comunistas têm de continuar a travar.

2. Quais são as características gerais do Estado capitalista e o que é uma

forma de Estado?

Em primeiro lugar, importa definir o que se entende por Estado capitalista e o

que o distingue de outras formas de organização política pré-modernas. Sinteticamente,

o tipo de Estado capitalista consuma o processo de autonomização funcional e orgânica

da estrutura económica relativamente à estrutura política. Autonomização funcional, já

que a produção e a apropriação do excedente económico a partir do trabalho assalariado

– nervo central do capitalismo – implicou uma depuração da actividade económica. Ou

seja, a criação das relações sociais de produção deixa de depender directamente da

acção e intervenção políticas e o próprio direito burguês institui a igualdade jurídica –

portanto formal e não real – entre a classe produtora e a classe dominante, algo que não

ocorria no feudalismo. Consequentemente, dá-se a autonomização orgânica entre as

instâncias económica e política, expressa na criação de um aparelho de Estado com um

corpo de funcionários passíveis de serem recrutados em todas as classes, não só em

teoria mas na prática, se bem que com probabilidades diferenciadas em ascender na

hierarquia do aparelho. Todavia, o direito burguês é distinto do direito feudal pois, na

letra da lei, oculta a dominação de classe ao passo que este último mesmo na sua própria

linguagem assume e legitima a dominação classista (por exemplo, a divisão da

sociedade em ordens é uma vontade de Deus). O direito burguês, em contraste, cria a

figura do cidadão, poderosa criação ideológica que procura ocultar a existência de

relações de exploração e opressão, afirmando uma condição humana mistificada. Claro

que a criação dos direitos cívicos é, por um lado, um importante avanço civilizacional

face à servidão feudal e, por outro lado, é uma evidência para qualquer comunista e

progressista que a luta popular de massas é o melhor garante da defesa e

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aprofundamento dos direitos de cidadania e não uma qualquer “oferta de direitos” por

parte da burguesia. Mas isso são contas de um outro rosário…

Por aqui se percebe que o tipo de Estado capitalista, enquanto uma estrutura

imanente ao modo de produção capitalista e determinada em última instância pelas

relações de produção, é produtor de uma ideologia própria: a ideologia do povo-nação.

Isto é, o tipo de Estado capitalista «apresenta-se como o representante do “interesse

geral” de interesses económicos competidores e concorrenciais». Sistematizando, «este

tipo de Estado apresenta-se como a incarnação da vontade popular do povo/nação. A

construção do povo/nação é institucionalmente fixada como o conjunto de cidadãos ou

indivíduos, cuja unidade é representada pelo Estado capitalista» (Poulantzas, 1978,

p.133). Tal facto – a produção da ideologia do povo-nação – implica que a estrutura

interna do Estado seja regida por princípios de organização específicos que assegurem

um carácter de impessoalidade ao desempenho de um qualquer cargo no aparelho de

Estado. Com a perspicácia analítica que sempre caracterizou os seus escritos Lenine

afirmava que «a república democrática é o melhor invólucro político possível para o

capitalismo, e por isso o capital depois de se ter apoderado deste invólucro, que é o

melhor, alicerça o seu poder tão solidamente, tão seguramente, que nenhuma

substituição, nem de pessoas, nem de instituições, nem de partidos na república

democrática burguesa abala esse poder» (Lenine, 1978, p.231). Daqui importa ressaltar

o poder de despersonalização do Estado sobre os agentes sociais que nele actuam. No

tipo de Estado capitalista é o cargo, é a função administrativa, técnica ou política do

cargo que determina as acções individuais do funcionário estatal e não o contrário. É,

portanto, esta forma de organização interna do Estado – o burocratismo (Poulantzas,

1978, p.341-350) – que cimenta a unidade do Estado e impede a sua desestruturação.

Ao mesmo tempo é este pressuposto de suposta neutralidade tanto da sua ideologia (a

ideologia do povo-nação) como da sua estrutura interna (o tipo de burocratismo

aludido) que vai permitir a prossecução das políticas estatais como políticas com uma

natureza de classe objectivamente reprodutora do domínio do capital. É a partir daqui

que se compreende a frase lapidar do “Manifesto Comunista” de que «o executivo do

Estado moderno não é mais do que uma comissão para administrar os negócios comuns

de toda a classe burguesa» (Marx e Engels, 1975, p.62).

A correcta definição teórica da natureza de classe do Estado tem efectivamente

consequências políticas de monta. A propósito da crítica das ilusões legalistas da

burguesia liberal relativamente à queda do fascismo português, portanto, num contexto

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diferente do que se vive hoje, mas sem por isso perder pertinência teórica e política,

Álvaro Cunhal afirmava que «depois de derrubado o fascismo, nenhuma política

democrática poderá ser levada a cabo em Portugal, nenhumas reformas sociais

profundas poderão ser realizadas, o poder dos monopólios e latifundiários não poderá

ser liquidado, nenhuma garantia poderá haver contra nova ofensiva vitoriosa da reacção

e do fascismo, se o aparelho do Estado for apenas conquistado, remodelado e

liberalizado. É um absurdo pensar que uma revolução pode realizar-se apoiada no

aparelho do Estado das classes contra as quais essa mesma revolução é dirigida»

(Cunhal, 1977, p.33). Logo, a inércia da estrutura estatal é muito poderosa e só é

amovível face à luta operária e popular capaz de transformar a configuração interna do

Estado em seu benefício. Não basta nunca, seja em que situação for, substituir os

dirigentes A pelos dirigentes B sem se levarem a cabo profundas mudanças no aparelho

de Estado.

Todavia, o Estado capitalista não é imutável e vai adquirindo diferentes formas

de Estado conforme o arranjo dinâmico do modo de produção capitalista: «a teoria

marxista da luta de classes permite explicar a origem e a natureza do Estado e os seus

diversos tipos e formas» (Cunhal, 1977, p.9). Só um esquerdismo inconsequente não vê

diferenças substanciais entre as várias formas de Estado (fascista, liberal,

keynesiano/fordista, ditadura militar, etc.) e não percebe as distintas correlações de

força entre as classes e respectivas alianças da classe trabalhadora em cada contexto

histórico. Com efeito, cada forma de Estado, para além de em grande medida reflectir o

estádio de desenvolvimento das relações de produção num determinado momento, é

também fruto das condições política e organizativa da classe trabalhadora e igualmente

das diferentes relações que se estabelecem entre as diversas fracções da burguesia,

dentro do bloco no poder. Este é um conceito de Poulantzas altamente devedor de

Gramsci e que se consubstancia no facto de «i) o bloco no poder constituir uma unidade

contraditória das classes e fracções politicamente dominantes, sob a protecção de uma

fracção hegemónica; ii) a luta de classes, a rivalidade entre os interesses destas forças

sociais, está constantemente presente, dado que estes interesses mantêm um carácter

específico de antagonismo». Um bloco no poder é sempre liderado por uma fracção

hegemónica da burguesia e que «puxa as restantes fracções para debaixo da sua égide»

(Poulantzas, 1978, p.239).

No final, uma forma de Estado no capitalismo é o resultado de um jogo que se

articula, de um lado, pelo arranjo de forças dentro do bloco no poder e dentro da

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estrutura interna do Estado e, de outro lado, da relação do Estado com as restantes

instâncias da sociedade (economia e cultura) e com a luta de classes.

3. No neoliberalismo, há ou não, uma nova forma de Estado?

A esta questão, a resposta só pode ser positiva. No neoliberalismo há, de facto,

uma nova forma de Estado a que chamaremos Estado neoliberal. Por outras palavras, as

novas dinâmicas das relações de produção capitalistas desde meados da década de 70

registaram e introduziram alterações no próprio Estado, influenciando a sua

recomposição. Esta recomposição ocorreu tanto ao nível da estrutura interna do

aparelho de Estado como nas modalidades de execução das suas funções de classe. As

derrotas conjunturais da classe trabalhadora e das forças progressistas e revolucionárias

nos anos 70 e 80 (derrota das lutas operárias em França e Itália em 1969-70; golpe de

Estado fascista no Chile em 1973; Portugal a partir de finais de 1975, com o início da

contra-revolução institucionalizada; adesão do PCE, PCF e PCI ao eurocomunismo;

derrota dos mineiros em Inglaterra em 1984-85), coroadas com a queda do “socialismo

realmente existente” no Leste europeu (1989-91), abriram espaço à contra-ofensiva

global da burguesia em larga escala. Uma das facetas dessa contra-ofensiva situou-se na

esfera do Estado.

Por conseguinte, a abordagem aqui utilizada terá como base o recurso a um

método histórico-comparativo. Isto é, privilegiar-se-á a comparação entre o capitalismo

na actualidade e na sua era mais tipicamente fordista (anos 30/40 – anos 70).

Nesse sentido, importa descrever as alterações ocorridas na relação entre o

Estado e a instância económica. No fordismo, o Estado tinha como missão orientar e

definir a política económica global, o Estado é o motor da economia. No fundo, era ao

Estado que competia não só elaborar o desenho estrutural do tecido económico, como

em muitos casos havia um controlo directoi sobre uma série de sectores económicos

estratégicos: energia, telecomunicações, sector bancário, etc. Tudo isto, conjuntamente

com um forte investimento público em infra-estruturas da mais variada espécie, era

concretizado pelo Estado fordista ou keynesiano.

Com o advento do neoliberalismo a partir dos anos 70-80, resultante das

crescentes dificuldades de valorização do capital e da enorme capacidade produtiva

inutilizada, a esfera económica não pôde continuar a viver na base de injecções

massivas de capital que não seria valorizado na sua totalidade no final do circuito D-M-

D’. Noutros termos, as dificuldades que o capitalismo encontra para reproduzir a

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acumulação de capital numa escala alargada são consideráveis. Isso implica que do

ponto de vista da grande burguesia não faça sentido levar a cabo uma política

económica de contínuo investimento produtivo, sob pena de se entrar numa crise de

sobreprodução. Em simultâneo, a consolidação dos sectores económicos anteriormente

parcial ou totalmente controlados pelo Estado, torna-os alvos apetecíveis para um

capital desejoso de combater a tendência estrutural para a queda da taxa de lucro do

sistema capitalista. Daí que tudo o que o Estado ajudou a criar (sistema de transportes,

vias de comunicação, infra-estruturas fornecedoras de energia, escolas, universidades,

hospitais, indústrias várias), e que o capital privado não tinha capacidade para o fazer no

contexto do fordismo, seja privatizado e entregue de mão beijada à grande burguesia.

Não obstante, o Estado não desaparece da vida económica, mas apenas mudou

as suas funções económicas. Metaforicamente, o Estado passou de motor da economia a

carroçaria desta. Em vez de definir a política económica global, o Estado passa a

enquadrar a acumulação de capital, é a muleta por excelência da política económica

previamente definida pelos grandes conglomerados capitalistas e pelos mercados

financeiros. Em poucas palavras, o papel de enquadramento da actividade económica

consiste na regulação da desregulação. Explicitando, as privatizações e a retirada de

importantes direitos sociais, políticos e económicos dos trabalhadores implicam, é certo,

uma inocultável desresponsabilização do Estado nesta matéria, em áreas de grande

importância para os trabalhadores. Mas essa desresponsabilização, usualmente chamada

de desregulação, implica um esforça titânico e essencial por parte do Estado para

concretizar e legitimar essa linha de acção. Só a acção organizada e concertada do

Estado permite a entrega de inúmeros sectores de actividade ao grande capital e a

redução de direitos à classe trabalhadora. Daí que, paradoxalmente, o Estado regule a

desregulação das suas anteriores linhas de acção.

Num tabuleiro distinto, se bem que intimamente relacionado, há que delinear as

mudanças a que o bloco no poder assistiu.

No capitalismo fordista, designadamente nos países centrais do sistema

capitalista internacional, a fracção hegemónica do bloco no poder era a burguesia

financeira. Esta fracção da burguesia agrupa e conjuga simultaneamente o capital

bancário com o capital industrial. A sua faceta (pre)dominante era o sector industrial.

Ou seja, havia uma orientação clara da burguesia financeira para, muito resumidamente,

através dos seus bancos captar as poupanças e capitais disponíveis para os investir na

esfera produtiva, de forma a incrementar a produtividade industrial. A esfera financeira

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propriamente dita (os mercados de acções, as cotações bolsistas, etc.) estava

subordinada à necessidade de elevar a produção de mais-valia pela introdução de

crescentes massas de capital constante (maquinaria) no processo produtivo. O Estado

tinha aqui um importante papel como acima se referiu. Por arrasto, a burguesia

industrial – fracção não hegemónica da burguesia quase só direccionada para o sector

industrial – era, apesar da hegemonia da burguesia financeira, uma fracção altamente

pujante. Esta fracção tinha, à época, um ascendente sobre uma outra fracção não

hegemónica muito relevante: a burguesia bancária (não confundir com a burguesia

financeira). Ou seja, a burguesia industrial tinha uma posição mais bem colocada tanto

no mercado como no Estado do que os bancos que não tinham indústria na sua posse.

No fordismo, tanto os bancos pertencentes à burguesia financeira como os restantes

bancos do capital bancário propriamente dito, resumiam a sua actividade ao crédito. Isto

é, destinavam-se sobretudo a prover as necessidades de capital-dinheiro para o

sorvedouro industrial, tendo em vista elevar a produção de valor na esfera produtiva.

Quando a produção de mais-valia começa a encontrar dificuldades de manter

níveis de crescimento mais ou menos equiparáveis à taxa de crescimento da composição

orgânica do capital, ou seja, quando se dá um ponto de viragem no metabolismo do

capital em que a taxa de mais-valia (a taxa de exploração da força de trabalho) é inferior

aos níveis de aplicação de trabalho morto no processo de produção capitalista, a política

desenvolvimentista acima traçada é revista pela burguesia financeira. De facto, não há

um abandono da actividade económica basilar do capitalismo – a produção de mais-

valia – já que esta se mantém e aumenta. Mas este aumento e demanda em elevar a taxa

de mais-valia ocorre de uma forma muito mais lenta e cautelosa sob pena de se agravar

as dificuldades de crescimento económico. A saber, da economia real, da economia

ligada à produção de bens (bens de consumo de massas, bens de capital, etc.). Assim,

com o neoliberalismo ocorre um direccionamento da burguesia financeira para a

revalorização de tudo o que é capital fictício: mercados cambiais, fundos de pensões,

desenvolvimentos de produtos financeiros de todo o tipo (derivados, junk bonds,

capitais de risco, etc.), especulação bolsista. Mesmo os grupos financeiros que tinham

uma clara vocação e predominância industrial sobre as actividades bancária e

especulativa, irão seguir esses desígnios. Com efeito, é a estagnação nos ritmos de

extracção de mais-valia que orientará a burguesia financeira para a esfera especulativa,

para o capital fictício (D – D’). A burguesia financeira mantém-se como a fracção

hegemónica do bloco no poder, mas agora com um guia de instruções completamente

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distinto. Concomitantemente, nas outras fracções não hegemónicas do capital

oligopolista, a burguesia bancária ultrapassa o capital estritamente industrial, dada a

menor importância do crédito, por sua vez fruto da quebra da importância relativa (mas

não absoluta) do investimento industrial. A burguesia bancária focar-se-á cada vez mais

na actividade económica que ainda vai servindo de almofada ao rebentar de uma crise

de sobreprodução do capitalismo: os mercados financeiros e a valorização do capital

fictício (ver Marx, 1991, p.525-542; capítulo dedicado ao capital fictício). A queda da

burguesia industrial no seio do bloco no poder é evidente e muitos “capitães da

indústria” têm sido submergidos na média burguesia. Os exemplos de grandes indústrias

têxteis em Portugal (Lameirinho, Coelima, Somelos, Riopele, Maconde, etc.) são

bastante ilustrativos. Numa dinâmica paralela, pequenas parcelas do capital industrial

têm sido absorvidas pela grande burguesia financeira ou bancária (como por exemplo as

dívidas de inúmeras indústrias a entidades bancárias). Confirma-se assim a tendência

para a concentração e centralização do capital.

Num terceiro nível, o Estado neoliberal resulta de uma outra alteração no mapa

social. Para uma melhor compreensão dar-se-á um breve “desvio”, se assim se lhe

quiser chamar. Marx na obra “18 de Brumário de Luís Bonaparte” – uma das grandes

obras de ciência política da modernidade e tão barbaramente esquecida e menosprezada

no meio académico – chama a atenção para o papel do campesinato na sustentação do

regime ditatorial de Luís Bonaparte. Com efeito, a desorganização política e ideológica

desta classe popular – bem como o medo da proletarização e o acenar por parte da

burguesia, intelectuais reaccionários e da igreja dos “perigos” de uma revolução

operária em França – concretizou-se no controlo político e ideológico do campesinato

pelo Estado francês de então. Assim, Marx partindo da tese que «o poder de Estado não

flutua no ar», chega à conclusão de que «Bonaparte representa, sem dúvida, a classe

mais numerosa da sociedade francesa: os camponeses detentores de parcelas». Isto

significa que

«na medida que subsiste entre os camponeses detentores de parcelas com uma conexão

apenas local e a identidade dos seus interesses não gera entre eles nenhuma

comunidade, nenhuma união nacional e nenhuma organização política, não formam

uma classe. São, portanto, incapazes de fazer valer o seu interesse de classe em seu

próprio nome, quer por meio de um parlamento quer por meio de uma Convenção. Não

podem representar-se, têm que ser representados. O seu representante tem de aparecer

ao mesmo tempo como seu senhor, como uma autoridade sobre eles, como um poder

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ilimitado de governo que os proteja das restantes classes e lhes envie do alto a chuva e

o sol» (Marx, 1983, p.502-503) [itálicos nossos].

Consequentemente, o campesinato funcionou durante o regime de Luís

Bonaparte (1850-1871) como uma classe-apoio. Nas palavras de Poulantzas uma

classe-apoio caracteriza-se por se diferenciar do bloco no poder em duas dimensões: 1)

«o suporte e apoio que dão a uma determinada dominação de classe não é geralmente

baseada em qualquer tipo de sacrifício político real dos interesses do bloco no poder em

favor da classe-apoio», exactamente o oposto do que acontece na constituição de um

qualquer bloco no poder, onde a fracção hegemónica se vê a braços com a necessidade

de estabelecer compromissos com as restantes fracções burguesas; 2) «a aprovação

particular de uma classe-apoio é devida em boa parte ao medo, real ou imaginário, do

poder da classe trabalhadora» (Poulantzas, 1978, p.243-244).

Aplicando este conceito proveniente de Marx e sistematizado por Poulantzas

podemos constatar que a uma forma de Estado pode corresponder uma diferente classe-

apoio. No Estado keynesiano podemos identificar a classe-apoio não como uma classe

social mas numa categoria social: a aristocracia operária. Ou seja, uma faixa minoritária

(proveniente) do proletariado mas que detém ampla influência de massas no controlo

social da restante classe. Cooptada pelo Estado, a aristocracia operária foi um

importante sustentáculo da preservação da ordem capitalista no centro do sistema

capitalista internacional. Desde a AFL-CIO nos EUA, até aos casos do SPD na

Alemanha, do Partido Trabalhista no Reino Unido e de todos os sindicatos amarelos e

partidos da social-democracia um pouco por todo o lado, houve a constituição de forças

de bloqueio à luta operária e sindical das organizações de classe de então: Partidos

Comunistas muito fortes na generalidade da Europa Ocidental e sindicatos de classe

defensores dos direitos e interesses dos trabalhadores. No neoliberalismo, dado o recuo

das forças mais consequentes do movimento operário, todo o arsenal de aparatos de

enquadramento institucional de amplas camadas de trabalhadores com uma consciência

de classe intermédiaii deixou de ser necessário para o capital. Daí que a própria social-

democracia tenha deitado ao lixo o keynesianismo, o reformismo e a conciliação de

classes que a tinham caracterizado até então, tomando abertamente o lado do capital.

No Estado neoliberal a classe-apoio direcciona-se para o que muito

grosseiramente podemos chamar de novas classes médias. Por outras palavras, todo o

pessoal academicamente qualificado que desempenha funções de enquadramento e

supervisão da força de trabalho no processo de produção, assoma como a classe-apoio

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desta forma de Estado. É esta classe que não produz mais-valia, mas que também não se

apropria directamente dela, que vai consubstanciar a função económica de controlo e

vigilância dos trabalhadores na produçãoiii. Por outro lado, na esfera ideológica, é uma

outra “nova” camada social que legitima e procura “embelezar” a existência do

capitalismo: os “novos intermediários culturais”. Basicamente estes correspondem aos

fazedores de opinião, aos intelectuais que têm assento em think tanks e fundações

financiadas pela burguesia, os directores de instituições culturais, os engenheiros de

publicidade, os directores e editores dos media alinhados com o capital, etc. No fundo, é

a integração de intelectuais no status quo e a proliferação de profissões ligadas à

legitimação ideológica e cultural do capitalismo neoliberal e das (falsas) virtualidades

do mercado e da flexibilidade laboral que constituem um dos vectores da classe-apoio

do Estado neoliberal.

Rematando este ponto, há de facto uma nova forma de Estado mais ou menos

concordante com as modificações do padrão de acumulação capitalista: a forma de

Estado neoliberal.

4. Quais as funções políticas do Estado neoliberal?

Não procurando recensear exaustivamente todos os vectores de actuação política

do Estado neoliberal, procuramos enunciar alguns eixos que nos parecem significativos.

Assim teremos em consideração:

a) a forma como o Estado neoliberal assegura a coesão das estruturas do modo

de produção capitalista;

b) o reforço da componente estritamente política do Estado;

c) a transformação das instituições da democracia burguesa;

d) a forma de o Estado neoliberal assegurar a desorganização política do

proletariado e paralelamente manter a coesão política do bloco no poder, da burguesia

no seu conjunto;

e) a expansão do Estado a crescentes áreas da vida social.

a) O tipo de Estado capitalista tem como função estrutural nuclear a coesão entre

as instâncias económica, política e ideológico-cultural de uma qualquer formação social.

Neste aspecto, a forma de Estado neoliberal não foge à regra. Todavia, a nossa tese é de

que o Estado neoliberal reproduz a coesão e unidade da estrutura social total muito mais

a partir da lei e menos através do controlo directo sobre as restantes instâncias. Em

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suma, a articulação entre os múltiplos campos da vida social depende muito mais do

impacto do produto normativo mais específico do Estado – a lei – do que da acção do

Estado na configuração e regulação directa das restantes instâncias. Daí que o Estado

neoliberal privatize escolas, hospitais, serviços de notariado e até mesmo pequenas

parcelas das forças armadas (por exemplo, os milhares de mercenários contratados pelos

EUA e pela Inglaterra para ajudarem os respectivos exércitos na invasão e ocupação do

Iraque) sem, contudo, perder o controlo efectivo sobre essas esferas. O controlo é

político e envolve a regulamentação legal e jurídica de tudo aquilo por parte do Estado.

Escusado é dizer que o quadro legal instituído e promulgado tem muito pouco de

progressista (se é que tem algum) para a classe trabalhadora. No concreto, podem-se

visualizar as exemplificações concretas do Código do Trabalho, da Lei de Bases da

Educação, da Lei de Financiamento dos Partidos Políticos, ou a nível europeu a

proposta de Constituição Europeia – rejeitada pelos povos francês e holandês em

referendo – como marcos da evolução do direito burguês. A multiplicação de Códigos

legisladores (Código Penal, do Processo Penal, Civil, do Trabalho, Europeu de Conduta

Voluntário, da Estrada, de Ética para os Profissionais da Informação, etc.) é também

uma demonstração prática dessa nova tendência de controlo societal pelo Estado. No

fundo, há um recurso crescente à elaboração de documentos enormes, altamente

especializados e minuciososiv e com um poder de aplicação e regulamentação muito

forte. Daí que ocorra uma propensão para a hiper-especialização dos quadros legais

existentes com o objecto de miniaturizar a vida social até ao mais ínfimo detalhe

possível. Por aqui também se percebe porque acima se falou em regulação da

desregulação, já que a desregulação de determinadas relações sociais (mormente

laborais) implica uma fortíssima, minuciosa e intricada regulação legal. Portanto, a uma

desregulação social – correlativa da mercantilização das relações sociais – corresponde

uma intensa regulação legal.

Um simples exemplo. Na revista que os gestores dos Correios distribuem pelos

seus funcionários, um dos directores da empresa diz muito explicitamente que a

(defendida abertamente) liberalização dos serviços postais não pode passar sem uma

«regulação do mercado» feita através de «legislação e fiscalização que estabeleçam

claramente as mesmas regras para todos os que estejam nas mesmas circunstâncias –

criando assim um campo de actuação e sustentação justo e igual para todos os

intervenientes no sector postal» (Silva, 2006, p.34) [itálicos meus]. “Campo de actuação

e sustentação” que não é mais do que o mercado. Com efeito, os próprios gestores e

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capitalistas sabem perfeitamente que precisam do Estado. Do Estado não querem os

direitos dos trabalhadores e os serviços públicos, mas apenas o que lhes possa aumentar

as margens de lucro e o que possa assegurar a reprodução do sistema económico

capitalista.

Sintetizando, não há um controlo directo, dispendioso e desgastante mas um

controlo indirecto, relativamente mais barato e muito mais eficaz, mantendo intacta a

estrutura de poder. Sem falar que o Estado actua de forma muito mais silenciosa e

subterrânea criando a ilusão do seu desaparecimento ou, no mínimo, de um enganador e

pretenso alargamento da liberdade dos indivíduos relativamente ao Estado neoliberal.

b) Na verdade, se o Estado neoliberal deixou de deter importantes funções

sociais e se deixou igualmente de controlar empresarialmente faixas significativas do

tecido económico, tal não é sinónimo de seu desaparecimento ou esbatimento da

realidade social. Bem pelo contrário. O Estado neoliberal expressa um reforço da sua

componente política, do seu core business, isto é, o aparelho repressivo do Estado. A

multiplicação e o reforço logístico e financeiro de agências como a CIA, a NSA, o MI6,

e a monitorização da polícia, exército, sistemas de segurança e vigilância (o Echelon por

exemplo) continuam fundamentalmente sob a tutela do Estado e têm uma natureza cada

vez mais repressiva e com o propósito de fortalecer o controlo político dos

trabalhadores e suas organizações políticas e sindicais. Todo o clima de histeria anti-

muçulmano – que é, diga-se em abono da verdade, uma forma altamente perversa do

racismo mais puro e duro típico do imperialismo –, em articulação com a

securitarização da vida socialv e a promulgação de leis penais “anti-terroristas” e “anti-

comunistas”vi são sintomas do acentuar do papel repressivo do aparelho de Estado

neoliberal.

c) Decorrente do ponto anterior, compreende-se imediatamente que as próprias

instituições formalmente democráticas do Estado burguês sofrem um impacto

considerável. Nesse sentido, há um claro robustecimento do Estado em torno dos seus

órgãos executivos de poder. Tudo o que é mais conotado com a democracia

representativa – parlamento, poder local democrático, etc. – é transmutado, em muitos

casos, em organismos fantoche do Estado neoliberal sem qualquer poder decisório e

manietados pelos órgãos executivos, nomeadamente os governos ou a elite militar e

administrativa do Estado. Em linha paralela com o ponto b) pode-se falar numa

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dinâmica de muscular a democracia burguesa que chega mesmo a atingir contornos de

fascização, como no caso do aparelho de Estado estadunidense (ver Urbano Rodrigues,

2003). Assim, a própria democracia burguesa é cada vez mais um instrumento de

legitimação e menos uma prática por muito limitada que seja.

Ora, este processo acaba por importar elementos ideológicos da filosofia

económica neoliberal e com efeitos consideráveis na ideologia estrutural do Estado, na

ideologia do povo-nação. De facto, o Estado neoliberal tende a mesclar a ideologia do

povo-nação com critérios economicistas de eficácia empresarial tipicamente neoliberais,

transformando progressivamente o tradicional político profissional burguês (carreiristas,

populistas e demagogos como Mário Soares, Santana Lopes, Paulo Portas, Alberto João

Jardim) num político-gestor que salta das grandes empresas para o Estado e vice-versa.

Com um discurso reaccionário, mas pouco compreensível nas suas linhas mais

profundas pelas massas mais despolitizadas, esses políticos-gestores (José Sócrates,

Bagão Félix, Carmona Rodrigues, Rui Rio) apostam muito mais numa suposta

neutralidade e independência políticas, partidárias e de classe em nome da eficácia

empresarial e do pragmatismo tecnocrático. Mais do que políticos-espectáculo,

populistas e demagogos, os políticos-gestores evidentemente têm fortes interesses

individuais na vida política. Contudo, não fogem à partitura de orientações que o capital

e o Estado neoliberal lhes colocam à frente e são competentes na sua execução dessas

políticas de direita. Onde o político burguês tradicional aposta no virtuosismo

individual, tendo a ambição mais ou menos manifesta de passar a maestro da orquestra e

colocá-la a favor dos seus interesses particulares, o político-gestor é muito mais

obediente e os seus proveitos individuais nunca ultrapassam os da burguesia e do Estado

neoliberal. Quanto mais não seja porque estes últimos têm uma educação política feita

em empresas do grande capital onde eram gestores e altos executivos. Portanto,

procurando desvalorizar os fundamentos ideológicos da cena política, estes homens de

mão do capital, apresentam-se como os paladinos de uma nova fornada de políticos

altamente competentes para os interesses do capital financeiro.

Desse modo, a prossecução da ideologia do povo-nação, numa palavra, a forma

como se assegura a representação dos interesses de classe da burguesia como

supostamente universais pelo corpo burocrático do Estado depende não só da

interpretação e execução mecânicas da lei. Mas, igualmente, esta interpretação e

execução dependem directamente da incorporação e assunção de comportamentos de

eficácia e cálculo. Daí que para esses políticos-gestores o encerramento de maternidades

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ou de escolas primárias seja fruto de uma avaliação dos custos que acarretam para o

Estado neoliberal e não uma avaliação feita na base do clientelismo com as elites locais

ou de oportunidade política. Não é por acaso que o discurso político do estilo – “o

governo tem de tomar decisões difíceis sem ter medo dos resultados eleitorais” –

ganhou maior acutilância e é aceite pelo político-gestor, ao mesmo tempo que engana as

massas.

d) O Estado neoliberal como qualquer Estado capitalista desarticula a luta

operária e ao mesmo tempo organiza politicamente o bloco no poder. A forma como o

Estado neoliberal concretiza a organização política da burguesia no seu todo, quer dizer,

a forma como mantém o bloco no poder coeso sob a égide da burguesia financeira e sua

estratégia de financeirização da economia expressa-se na aceitação da política

económica neoliberal, se bem que com maiores ou menores fricções entre as várias

fracções da burguesia. O Estado neoliberal para manter a unidade do bloco no poder é

obrigado a realizar um jogo de cintura para “agradar a gregos e troianos”. Por outras

palavras, o Estado neoliberal prossegue uma dinâmica política de acordo com a fracção

hegemónica do bloco no poder mas que comporta uma elasticidade capaz de manter o

compromisso político entre as várias fracções do grande capital. No fundo, porque a

burguesia é constituída por fracções que se digladiam pela apropriação da mais-valia –

bem como dentro de cada fracção – o Estado tem como objectivo político a conciliação

entre as várias fracções da burguesia. Desde a legislação de disposições legais que não

reabram as feridas existentes até ao estabelecimento de compromissos para manter o

bloco no poder em torno da sua fracção hegemónica, qualquer forma de Estado

capitalista está para a burguesia como o Partido leninista (ou qualquer outro tipo de

liderança revolucionária) está para o proletariado e demais classes populares. O Estado

capitalista é a vanguarda política das ofensivas da burguesia contra os trabalhadores –

repressão de lutas operárias, legislação favorável ao capital, etc. – e contra os povos –

invasões imperialistas a cargo dos aparatos militares, logo estatais das grandes potências

capitalistas.

Assim, no que respeita à organização política da burguesia, o Estado neoliberal

não se diferencia, no fundamental, das outras formas de Estado.

A sua marca de especificidade está na outra face da moeda: a desorganização

política do proletariado e seus aliados. Se no fordismo existia um amplo

desenvolvimento de sindicatos de grande influência de massas bem como de partidos

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que agrupavam vastos contingentes de operários – independentemente de serem

organizações amarelas ou serem organismos de classe – tal não se passa no

neoliberalismo. Hoje a preocupação do capital passa por reduzir a contestação operária

e popular ao máximo, quando não a vituperando ou a criminalizando. Para conseguir

esse intento, o Estado neoliberal opera uma recomposição da social-democracia,

retirando-lhe o carácter de massas, com consequências óbvias no desligar de inúmeros

trabalhadores da luta, por muito limitada que fosse de facto a luta sindical da social-

democracia. Portanto, o Estado neoliberal procurou dispersar grandes massas de

trabalhadores, despolitizando e atomizando-as.

Num movimento coincidente, o Estado neoliberal contribuiu decisivamente para

a destruição de espaços comunitários de sociabilidade popular: ilhas, cortiços, bairros

operários, pátios, etc. Todas estas micro-estruturas de sociabilidade das classes

populares – donde derivava um sentimento comunitário de fomento e de educação de

valores como a pertença e a solidariedade, bem como eram igualmente locais

riquíssimos de produção cultural e artística popular (canções, poesia, bibliotecas,

leituras em voz alta, convívio entre os vários membros da comunidade) –, requisitos

essenciais para desenvolver laços espontâneos de identificação colectiva, solidariedade

e unidade de classe, acabaram por ser destroçados, muito por obra das políticas estatais

de ordenamento do território e planeamento urbanístico dos últimos 20/30 anos. A

expulsão das camadas populares dos centros históricos das grandes cidades para os

subúrbios e sua acomodação em zonas residenciais pensadas e organizadas

deliberadamente para assegurar a sua fragmentação, é um dos processos mais

importantes que o Estado neoliberal levou a cabo para desorganizar a classe

trabalhadora.

e) É indubitável que a área que o Estado neoliberal ocupa na superfície territorial

das sociedades contemporâneas é menor. A questão acima aludida (item a) sobre a

passagem do controlo directo do Estado para um paradigma de controlo da coesão das

estruturas mais baseado na lei, tem muito que ver com o que está em discussão neste

ponto.

Paradoxalmente, o encolhimento da estrutura do Estado neoliberal é o que lhe

permite controlar mais esferas da vida social. Explicitando, o Estado está fortemente

condicionado pela tributação fiscal que conseguir recolher aos seus cidadãos. Ora, nas

últimas três décadas o grande capital (burguesia financeira, burguesia bancária,

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burguesia industrial) tem progressivamente pago muito menos impostos e contribuições

(exemplo as centenas de milhões de euros que o grande capital deve à Segurança Social

em Portugal) e criado múltiplas artimanhas de fuga a essas obrigações. Um exemplo

disso são os offshore e paraísos fiscais. Claro que o Estado não desempenha um papel

inocente neste processo e é mesmo um dos seus executores máximos. O offshore da

Madeira é um exemplo entre muitos outros. Em paralelo, as amputações de serviços

públicos das mãos do Estado são um vector do encolhimento deste.

Como se explica então que este encolhimento tenha redundado na maior

capacidade de o Estado neoliberal exercer a sua função de controlo social das classes

dominadas? Basicamente, o Estado neoliberal é uma estrutura mais flexível e com uma

posição pivotal à qual respondem os seus anteriores apêndices, agora privatizados. Ou

seja, a gestão privada tomou conta de hospitais, empresas, serviços das universidades,

etc. mas o seu quadro regulamentar de funcionamento interno provém do Estado. Logo,

o Estado neoliberal não tem custos tão elevados com serviços originalmente públicos e

centraliza o controlo destes muito mais facilmente. Na outra face, a qualidade da

prestação desses serviços deteriora-se e encarece, com naturais prejuízos para a classe

trabalhadora.

Num outro âmbito, o fenómeno recente das ONG’s, algo tão apreciado e

aplaudido por certos teóricos burgueses, também se relaciona com estes procedimentos

do Estado (a este propósito ler Fontes, 2005, p.167-196). Por exemplo, nas políticas de

combate à pobreza e exclusão social, a União Europeia – representando directivas

expressas pelos seus Estados mais poderosos – assevera que tal deve ser uma prioridade

da dita sociedade civil (misericórdias, IPSS’s, entidades privadas, cidadãos anónimos,

etc.) e não do Estado. Portanto, para o grande capital europeu não devem ser os Estados

a delinear políticas públicas globais e de intervenção mais abrangente, mas as IPSS’s e

outras pequenas instituições que têm o papel de intervir local e regionalmente. Uma boa

parte do financiamento dessas instituições provém da UE, mas a legislação que baliza a

sua actuação e quem monitoriza a partir “de cima” as suas actividades é o Estado

nacional. Assim, o Estado não tem tantos custos com políticas sociais e, por outro lado,

como é quem em última instância supervisiona a actuação das ONG’s ou IPSS’s, acaba

por conseguir controlar muito melhor e até a um nível mais micro as franjas mais

pauperizadas do proletariado. Claro que esta situação impede sequer a existência de

políticas sociais democráticas amplas e duradouras e muito mais propícias à integração

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social e ao combate à pobreza, mas isso não é o que preocupa o grande capital e o seu

Estado neoliberal.

Para finalizar este último item relativo à importância da expansão do controlo

social por parte do Estado, demos a palavra a Marx:

«o Estado manieta, controla, regulamenta, vigia e tutela a sociedade civil, desde as suas

manifestações mais amplas de vida até às suas vibrações mais insignificantes, desde as

suas modalidades mais gerais de existência até à existência privada dos indivíduos,

onde este corpo parasitário adquire, pela mais extraordinária centralização, uma

omnipresença, uma omnisciência, uma capacidade acelerada de movimento e uma

elasticidade que só encontram correspondência na dependência desamparada, na

disformidade incoerente do corpo social efectivo» (Marx, 1983, p.454).

5. Quais as funções económicas do Estado neoliberal?

A forma de Estado neoliberal objectiva disposições de cariz económico. Quer

dizer, o Estado neoliberal tem uma natureza de classe burguesa não apenas em função

do seu papel político. Se na maioria dos países o Estado neoliberal já não é proprietário

de parte significativa de unidades empresariais, não se pode deduzir mecanicamente que

o Estado se encontra desprovido de qualquer funcionalidade económica.

Em primeiro lugar, o Estado neoliberal não abandonou completamente o

investimento público. A construção de auto-estradas, aeroportos, barragens, etc.

continua a ser em boa medida assegurada pelo Estado. Singularmente, é também o

Estado que literalmente salva a iniciativa privada quando determinadas falências

acontecem. A Enron e a WorldCom nos EUA ou os caminhos-de-ferro no Reino Unido

quando, por diversas razões, estavam prestes a falir, foi o Estado que injectou

volumosos capitais, permitindo a sobrevivência desses organismos moribundos,

previamente canibalizados e delapidados pela supostamente eficiente e idónea iniciativa

privada.

Aliás, o Estado neoliberal mesmo quando desprovido de importantes serviços

públicos, é muitas vezes um financiador privilegiado dessas funções sociais entregues

ao capital privado. As parcerias público-privadas (PPP) registadas nos hospitais SA (ver

Rosa, 2004) são um exemplo. Desta forma, o Estado cumpre muito mais funções do

lado do capital, retirando direitos a quem trabalhavii. Como já se viu acima a grande

alteração do tipo de actuação do Estado neoliberal na instância económica relativamente

ao Estado fordista/keynesiano, expressa-se na passagem de uma actuação avalizada na

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definição global da política económica para uma acção concertada de enquadramento

institucional da acumulação de capital. Fruto desta transformação, o Estado neoliberal

praticamente deixa de actuar na esfera económica produtiva e industrial (com o fim da

posse directa de empresas), mas detém um trunfo na economia financeirizada. É o

Estado neoliberal, nomeadamente por intermédio de instituições como o BCE (Banco

Central Europeu, altamente enfeudado ao Bundesbank) e o FED (Reserva Federal dos

EUA), que ditam a política monetária actual. Dada a importância incontornável dos

mercados cambiais no mundo económico – nem que seja por causa da convertibilidade

de inúmeras moedas (currencies) da periferia, sobretudo, em dólares, procurando assim

recolher a riqueza produzida nesses países – e dado o seu elevado nível de concorrência,

só instituições estatais podem municiar compromissos entre as empresas e os Estados

rivais. A própria autonomização do BCE, do FED e dos vários bancos centrais

relativamente aos governos não é um sinal de perda de poder da parte do Estado, mas

antes é o furtar desses organismos a qualquer tipo de controlo popular, sendo mais um

exemplo da tendência para o reforço do poder executivo do Estado em detrimento do

legislativo.

Portanto, algo tão apaniguado pelos catedráticos neoliberais das últimas décadas

– a política monetária e cambial – não é apenas resultado das forças “livres” do

mercado, mas é altamente condicionado pelo Estado neoliberal. Milton Friedman, o

mais famoso dos economistas da corrente (neoliberal) monetarista, sabia perfeitamente

que não há estabilidade monetária sem a intervenção do Estado. Intervenção do Estado

antes da implementação de políticas neoliberais (como no Chile em 1973, com o golpe

fascista de Pinochet, apoiado por Friedman). E intervenção do Estado posteriormente,

aquando da aplicação em cada país de políticas de altas taxas de juro e ulterior redução

relativa da emissão de moeda.

Num outro âmbito, o Estado desempenha um outro papel essencial nos mercados

financeiros: o de emissor de títulos da dívida pública. Hoje, os EUA a braços com uma

grave crise nas taxas de crescimento económico, vivem da sucção de valor e de capital

fictício do resto do mundo. Transaccionando títulos do Tesouro americano em troca da

transformação das riquezas nacionais em dólares, a economia dos EUA sobrevive em

boa medida graças a este papel do Estado no que se refere à dívida pública (ver

Dumenil, 2004, p.11-36).

6. Quais as funções ideológicas do Estado neoliberal?

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Muito haveria a dizer relativamente às operações simbólico-ideológicas que o

Estado neoliberal produz. Focaremos apenas o que nos parece particularmente

pertinente.

As derrotas operárias e populares das últimas décadas abriram as portas para a

difusão e penetração da(s) ideologia(s) dominante(s) na classe trabalhadora. Nesse

domínio, a ideologia do povo-nação não foi uma excepção. O Estado neoliberal

continua a legitimar-se ideologicamente em resultado da permanência de directrizes

ideológicas que o consignam como uma estrutura independente dos conflitos da

sociedade civil, portanto, acima das classes e como representante geral de interesses

particulares. Ora, a novidade que o Estado neoliberal opera neste preceito mais ou

menos transversal a qualquer Estado capitalista, tem a ver com a exposição de uma

pretensa progressiva desideologização do seu corpo burocrático de topo. Dá-se uma

transformação dos partidos políticos da burguesia, em que estes se apresentam como

defensores dos direitos de todos os cidadãos de um determinado país. Em nome da

“estabilidade governativa” e da “eficiência na gestão da despesa pública”, os partidos

burgueses pronunciam-se contra a ideologia e a discussão política e programática. Mais

importante do que discutir o que consideram ser minudências estéreis como a divisão

esquerda/direita – apontada pelos apologistas do capital como uma visão antiquada de

observar e julgar a vida política –, valoriza-se a execução de um plano de políticas de

austeridade e com uma liderança política forte e determinada que não ceda aos lobbies e

interesses corporativos (sindicatos, confederações patronais, etc.). No fundo, um

governo regido por preceitos neoliberais define-se por ter uma agenda própria e

autónoma e à qual o capital e o trabalho teriam de se adequar. no interesse da nação,

pois claro.

Todavia, esta visão técnica e ideologicamente depurada dos governos e dos

chamados partidos do “arco do poder” é, ao contrário do que assumem, a elevação ao

máximo da ideologia de classe do povo-nação. Quanto mais ideologicamente neutro o

Estado (e seus corpos intermédios) se apresentar(em), maior a sua eficiência ideológica,

por muito contraditório que isso possa parecer. Ou seja, o carácter pretensamente

imparcial, necessário e inevitável da aplicação das políticas de privatizações, cortes nas

políticas sociais e retirada de direitos económicos, sociais e políticos, decorre de todo

um trabalho ideológico repetido até à exaustão de identificação tácita entre essas

políticas e os supostos interesses genéricos do país. Assim, directrizes políticas de

classe perpassam no discurso político como atendentes aos interesses e necessidades de

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toda a população. Seriam assim as únicas linhas políticas possíveis, bem como as únicas

não-ideológicas pois, pretensamente, não estariam vinculadas a nenhum grupo social

específico, mas diriam respeito a todos. E todos, então, partilhariam os seus custos e

benefícios.

Com efeito, a eficácia deste discurso depende da camuflagem do seu cunho

ideológico de classe, atribuindo às críticas e propostas alternativas ao projecto

neoliberal uma marca estigmatizante de “irrealistas”, “contra a mudança” e

“corporativistas”. Estes foram alguns dos epítetos atribuídos à recente manifestação da

CGTP em 12 de Outubro passado contra as políticas neoliberais do governo

PS/Sócrates. Portanto, e para sumariar, os partidos burgueses – intermediários do

Estado neoliberal – legitimam a sua acção assumindo que as medidas que propõem e

concretizam não são devedoras de nenhum valor ideológico per si, de ser de esquerda

ou de direita, de serem a favor do trabalho ou do capital, mas de serem medidas

políticas eficazes, fatais e necessárias.

Tudo isto porque o Estado neoliberal consuma a ideologia do povo-nação ao

máximo, onde para neutralizar politicamente o proletariado, apresenta um discurso e

uma política politicamente neutras. Com um discurso e uma prática neutros e

estritamente técnicos e fatais, o Estado neoliberal e seus apêndices partidários colam as

aspirações das camadas populares e assalariadas com uma consciência de classe menos

desenvolvida aos intentos da burguesia financeira consagrados no Estado.

Parafraseando Eça, sob o manto diáfano da neutralidade, a nudez forte da

ideologia.

7. Finalizando…

Neste ensaio preferiu-se uma abordagem extensiva de temas. Quer isto dizer que

se deu prioridade a uma análise que desse conta do maior número possível de questões

relacionadas com o Estado neoliberal, em detrimento do que poderia ser um estudo mais

aprofundado e sustentado de alguns (poucos) tópicos. Achou-se mais útil dar uma visão

geral das coordenadas políticas, económicas e ideológicas em que se funda o Estado

neoliberal.

Não sendo este um ensaio académico, houve uma preocupação de utilizar uma

linguagem o mais simples possível, de forma a permitir uma leitura e uma discussão o

mais abrangente possível dos enunciados aqui apresentados.

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Ao mesmo tempo, partiu-se do pressuposto leninista de que “sem teoria

revolucionária não há movimento revolucionário”. Sem uma análise marxista da forma

de Estado capitalista actual – o Estado neoliberal – dificilmente se poderá avançar na

definição de uma estratégia política anticapitalista e revolucionária para o nosso tempo.

O anti-dogmatismo do marxismo-leninismo, a sua frescura e actualidade teórica

decorrem da capacidade dos comunistas aplicarem criativa, correcta e fecundamente os

seus conceitos nucleares num determinado momento histórico. Por conseguinte, a

reflexão teórica dos fenómenos políticos é um pré-requisito fundamental para que a

nossa prática revolucionária comunista seja ainda mais lúcida e consequente. Não se

trata de resolver a prática na teoria. Ou seja, não é a teoria que nos oferece a solução

para a superação do actual estado de coisas. Só na prática se poderá efectivar a contra-

ofensiva dos trabalhadores e dos povos (sobre a necessidade de uma contra-ofensiva dos

trabalhadores ler Papariga, 2006). Igualmente não se trata de resolver a teoria na

prática. Isto é, a prática não é um espelho límpido da abstracção teórica. A teoria

clarifica e elucida a prática revolucionária mas não a determina. A reflexão teórica

marxista é um tipo específico da prática, uma actividade necessária à prática

revolucionária quotidiana e concreta, à luta de classe do proletariado e seus aliados

contra as relações de produção burguesas e contra o Estado capitalista. Para concluir, é

uma condição indispensável, mas nunca suficiente.

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i É verdade que muitos governos do capital nacionalizaram importantes sectores económicos. Contudo, há uma diferença de fundo entre um governo da burguesia (governo de Mitterand na França do início dos anos 80) e um governo revolucionário (os governos de Vasco Gonçalves em Portugal nos anos de 1974 e 1975) no que toca às nacionalizações. O primeiro tipo de governos procura nacionalizar como forma de desenvolver as forças produtivas existentes para posteriormente entregar todo esse novo aparato técnico-empresarial ao capital privado. Sucintamente, um governo da burguesia quando nacionalizava algo naquela época dos anos 40 a 70 era com o intuito de servir os interesses do capital a longo prazo. A pressão das massas populares também é um factor a não descartar. Inversamente, um governo revolucionário nacionaliza porque o seu objectivo é colocar a economia ao serviço do povo, satisfazer as suas necessidades, assegurar a independência económica do país e ir progressivamente passando o controlo da economia para as mãos dos trabalhadores. ii Ou seja, trabalhadores que não estando sujeitos ao impacto da ideologia reaccionária burguesa, apenas tinham desenvolvido uma consciência de classe económica, isto é, estritamente sindical, daí a maior facilidade de sua manipulação pela social-democracia. Ao contrário dos operários comunistas e outros operários progressistas, não tinham uma consciência de classe política muito desenvolvida: na sua subjectividade de classe não colocavam em causa a ordem burguesa. iii A este propósito ver a Secção nº3, subponto II do nosso artigo “A actualidade científica do conceito marxiano de exploração capitalista” (Aguiar, 2006). iv O Código Civil português tem qualquer coisa como 553 páginas e o Código do Trabalho 229 páginas. A abstrusa proposta de Constituição Europeia contava com 265 páginas. v A instalação de câmaras de vídeo e sistemas de vigilância em tudo o que é espaço público e privado. vi A vergonhosa ilegalização da Juventude Comunista Checa e o projecto apresentado no Parlamento Europeu de criminalização do comunismo são dois sinais do ódio anti-comunista, algo que está inscrito no genoma político e cultural da grande burguesia, mas agravado pelo actual contexto de barbárie imperialista. vii Um parêntesis. O Estado capitalista (independentemente da sua forma específica) até ser tomado e transformado pelo proletariado, é sempre uma estrutura burguesa. Contudo, o Estado capitalista, por ter uma autonomia relativa baseada – a) num burocratismo assente na competência e na impessoalidade das tarefas dos seus funcionários; e b) na ideologia do povo-nação – tem de enquadrar e almofadar as

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convulsões sociais de classe. Daí que o Estado ceda concessões à classe trabalhadora – sempre depois da luta popular de massas – sem no entanto subverter as relações de propriedade e a natureza de classe do Estado. [*] Estudante de Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O texto original pode ser encontrado em http://joaovalenteaguiar.googlepages.com. http://asvinhasdaira.wordpress.com é o endereço do seu blog pessoal.