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27 1. BATISMO DE FOGO agosto de 1941 A invasão da União Soviética por Hitler começou nas primeiras horas de 22 de junho de 1941. Stalin, recusando-se a acreditar que pode- ria ser enganado, havia ignorado mais de oitenta advertências. Embora o ditador soviético só tenha tido um colapso mais tarde, ficou tão deso- rientado ao descobrir a verdade que o anúncio foi feito por seu ministro do Exterior, Vyacheslav Molotov, em uma voz inflexível. O povo da União Soviética provou ser mais forte que seus líderes. Pessoas fizeram fila para se apresentar como voluntárias para a frente de batalha. Vasily Grossman, de óculos, acima do peso e inclinado sobre uma bengala, ficou deprimido quando o posto de recrutamento o recusou. Não deveria ter ficado surpreso, considerando seu estado físico inexpres- sivo. Grossman tinha apenas trinta e poucos anos, mas as meninas do apartamento vizinho o chamavam de “tio”. Durante as semanas seguintes, ele tentou conseguir qualquer tipo de emprego que pudesse estar ligado à guerra. Enquanto isso, as autori- dades soviéticas davam poucas informações precisas sobre o que estava acontecendo na frente de batalha. Nada se falava sobre as forças alemãs que, com mais de 3 milhões de integrantes, dividiram o Exército Verme- lho com ataques de blindados, para em seguida capturarem centenas de milhares de prisioneiros em cercos. Apenas os nomes das cidades mencio- nados em boletins oficiais revelavam a rapidez do avanço do inimigo. Escritor_na_Guerra.indd S1:27 Escritor_na_Guerra.indd S1:27 15/7/2008 15:45:07 15/7/2008 15:45:07

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1.BATISMO DE FOGO

agosto de 1941

Ainvasão da União Soviética por Hitler começou nas primeiras horas de 22 de junho de 1941. Stalin, recusando-se a acreditar que pode-

ria ser enganado, havia ignorado mais de oitenta advertências. Embora o ditador soviético só tenha tido um colapso mais tarde, fi cou tão deso-rientado ao descobrir a verdade que o anúncio foi feito por seu ministro do Exterior, Vyacheslav Molotov, em uma voz infl exível. O povo da União Soviética provou ser mais forte que seus líderes. Pessoas fi zeram fi la para se apresentar como voluntárias para a frente de batalha.

Vasily Grossman, de óculos, acima do peso e inclinado sobre uma bengala, fi cou deprimido quando o posto de recrutamento o recusou. Não deveria ter fi cado surpreso, considerando seu estado físico inexpres-sivo. Grossman tinha apenas trinta e poucos anos, mas as meninas do apartamento vizinho o chamavam de “tio”.

Durante as semanas seguintes, ele tentou conseguir qualquer tipo de emprego que pudesse estar ligado à guerra. Enquanto isso, as autori-dades soviéticas davam poucas informações precisas sobre o que estava acontecendo na frente de batalha. Nada se falava sobre as forças alemãs que, com mais de 3 milhões de integrantes, dividiram o Exército Verme-lho com ataques de blindados, para em seguida capturarem centenas de milhares de prisioneiros em cercos. Apenas os nomes das cidades mencio-nados em boletins ofi ciais revelavam a rapidez do avanço do inimigo.

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Grossman havia deixado de exortar sua mãe a abandonar a cidade de Berdichev, na Ucrânia. Sua segunda mulher, Olga Mikhailovna Gu-ber, convencera-o de que eles não tinham um quarto para ela. Então, antes de Grossman perceber completamente o que estava acontecendo, o 6º Exército Alemão ocupou Berdichev em 7 de julho. O inimigo avan-çara 350 quilômetros em apenas duas semanas. O fracasso de não salvar sua mãe foi um fardo que Grossman carregou pelo resto de sua vida,

Cidadãos soviéticos ouvem o anúncio de Molotov sobre a invasão alemã, em 22 de junho de 1941.

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mesmo depois de descobrir que ela se recusara a partir porque não ha-via ninguém além dela que pudesse cuidar de uma sobrinha. Grossman estava também extremamente preocupado com o destino de Ekaterina, ou Katya, a fi lha que tivera com sua primeira mulher. Ele não sabia que ela fora enviada para fora de Berdichev durante o verão.

Desesperado para participar de alguma forma do esforço de guerra, Grossman fez lobby junto ao Departamento Político Principal do Exér-cito Vermelho, conhecido pela sigla GLAVPUR, embora não fosse membro do Partido Comunista. Seu futuro editor, David Ortenberg, um comissário com patente de general, contou mais tarde como ele co-meçou a trabalhar para o Krasnaya Zvezda, o jornal das forças armadas soviéticas que durante a guerra foi lido com muito mais atenção que os outros jornais.1

Lembro-me da primeira vez que Grossman apareceu no escritório da redação. Foi no fi nal de julho. Eu chegara ao Departamento Político Principal e ouvira falar que Vasily Grossman andava pedindo a eles para que fosse enviado à frente de batalha. Tudo o que eu sabia sobre aquele escritor era que ele havia escrito o romance Stepan Kolchugin, sobre o Donbass.

— Vasily Grossman? — perguntei. — Nunca o vi, mas conheço Stepan Kolchugin. Mande-o, por favor, para o Kras-naya Zvezda.

— Sim, mas ele nunca serviu no exército. Não sabe nada sobre isso. Seria adequado para o Krasnaya Zvezda?

— Não tem problema — respondi, tentando convencê-los. — Ele conhece a alma das pessoas.

Não os deixei em paz até que o Comissário do Povo assi-nasse a ordem para alistar Grossman no Exército Vermelho e até contratá-lo para o nosso jornal. Havia um problema. Ele re-cebeu a patente de soldado raso, ou, como Ilya Ehrenburg gos-tava de brincar se referindo tanto a ele próprio quanto a Gros-

1 Ortenberg, David I. (adotou o nome não-judeu de Vadimov no Krasnaya Zvezda).

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sman, de “soldado raso sem treinamento”. Era impossível dar a ele uma patente de ofi cial ou de comissário porque ele não era membro do Partido. Era igualmente impossível fazê-lo vestir um uniforme de soldado raso, como se tivesse passado metade da vida saudando seus superiores. Tudo o que podíamos fazer era lhe dar a patente de intendente. Alguns de nossos escrito-res, tais como Lev Slavin, Boris Lapin e até mesmo, por algum tempo, Konstantin Simonov, estavam na mesma situação. Suas insígnias verdes costumam lhes causar muitos problemas, uma vez que a mesma insígnia era usada por médicos, com os quais eram sempre confundidos. De qualquer modo, em 28 de julho de 1941 assinei a ordem: “O intendente de segundo nível Va-sily Grossman é nomeado enviado especial do Krasnaya Zvezda com um salário de 1.200 rublos por mês.”

No dia seguinte Grossman se apresentou ao escritório da redação. Disse-me que, embora sua nomeação fosse inespera-da, estava feliz com ela. Voltou poucos dias depois, totalmente equipado e com um uniforme de ofi cial. [Seu casaco estava todo amassado, os óculos fi cavam caindo de seu nariz e a pis-tola estava pendurada em um cinto frouxo, como se fosse um machado.]

— Estou pronto para partir para a frente de batalha hoje — disse ele.

— Hoje? Mas você consegue atirar com isso? — pergun-tei, apontando para a pistola que pendia de sua cintura.

— Não.— E com um fuzil?— Não, também não.— Então como posso permitir que você vá para a frente

de batalha? Pode acontecer alguma coisa com você. Não, você terá de fi car na redação algumas semanas.

O coronel Ivan Khitrov, nosso especialista em tática e ex-ofi cial do exército, tornou-se o treinador de Grossman. Leva-va-o para um dos campos de tiro da guarnição de Moscou e o ensinava a atirar.

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Em 5 de agosto, Ortenberg permitiu que Grossman partisse para a fren-te de batalha. Conseguiu que ele fosse acompanhado de Pavel Troya-novsky, um correspondente de grande experiência, e Oleg Knorring, fotógrafo. Grossman descreveu sua partida com alguns detalhes.

Estamos partindo para o Front Central. O Ofi cial do De-partamento Político Troyanovsky, o repórter fotográfi co Knor-ring e eu estamos indo para Gomel. Troyanovsky, com seu rosto fi no e escuro e seu nariz grande, recebeu a medalha “Por Realizações em Batalha”. Ele já viu muita coisa, embora não seja velho. Na verdade, é mais ou menos dez anos mais novo que eu. Pensei de início que Troyanovsky era um soldado de verdade, um guerreiro nato, mas ele começou sua carreira no jornalismo, não muito tempo atrás, como correspondente do Pionerskaya Pravda [jornal do Movimento Juventude Comu-nista]. Disseram-me que Knorring é um bom fotojornalista. Ele é alto, um ano mais novo que eu. Sou mais velho que os dois, mas perto deles sou apenas um bebê em assuntos de guerra. Eles têm um prazer perfeitamente justifi cável de brin-car comigo sobre os horrores que estão por vir.

Partiremos amanhã, de trem. Viajaremos num vagão “sua-ve” durante todo o caminho até Bryansk, e lá tomaremos qualquer meio de transporte que Deus puser em nosso cami-nho. Recebemos informações antes de partir do Comissário de Brigada Ortenberg. Ele me disse que está para acontecer um avanço. Nosso primeiro encontro foi no GLAVPUR. Ortenberg teve uma conversa comigo e acabou me dizendo que achava que eu fosse um autor de livros infantis. Quando estávamos nos despedindo, eu disse a ele: “Adeus, camarada Boev.” Ele começou a rir. “Não sou Boev, sou Ortenberg.” Bem, eu dei o troco. Eu o havia confundido com o chefe do departamento de publicações do GLAVPUR.

Bebi o dia inteiro, exatamente como um recruta deve fazer. Papai apareceu, assim como Kugel, Vadya, Zhenya e Veroni-chka. Veronichka estava me olhando nos olhos, como se eu

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fosse Gastello.2 Fiquei muito comovido. Toda a família en-toou canções e teve conversas tristes. A atmosfera era melan-cólica e densa. Deitei-me sozinho naquela noite, pensando. Eu tinha muitas coisas, bem como pessoas, para pensar.

O dia de nossa partida é adorável. Está quente e chuvo-so. O brilho do sol e a chuva se alternam repentinamente. Pavimentos e calçadas estão molhados. Às vezes brilham e às vezes são cinza como ardósia. O ar está cheio de uma umi-dade quente e sufocante. Uma bela menina, Marusya, veio ver Troyanovsky partir. Ela trabalha na redação [do Krasnaya Zvezda], mas aparentemente o está encontrando por iniciati-va própria, e não a pedido do diretor. Knorring e eu somos educados. Evitamos olhar na direção deles.

Então, nós três [seguimos para a plataforma]. Tenho tan-tas lembranças da estação de trem de Bryansk. É a estação a que cheguei quando vim pela primeira vez a Moscou. Talvez minha partida desta estação hoje seja a última. Bebemos li-monada e comemos bolos nojentos na cafeteria.

Nosso trem parte da estação. Todos os nomes das estações ao longo da linha são familiares. Passei por eles muitas vezes quando era estudante, voltando para Mamãe, para Berdichev, para minhas férias. Pela primeira vez em muito tempo con-sigo pegar no sono nessa cabine “suave”, depois de todos os ataques aéreos em Moscou.

[Depois de chegar a Bryansk] passamos a noite na estação de trem. Cada canto está cheio de soldados do Exército Verme-lho. Muitos deles estão mal-vestidos, em trapos. Já estiveram

2 Capitão Gastello, famoso herói que lutou como piloto na Guerra Civil Espanhola, foi coman-dante de um esquadrão do 207º Regimento da 42ª Divisão de Aviação. Um tiro de artilharia antiaérea alemã danifi cou o tanque de combustível de seu avião em 26 de junho de 1941 na região de Molodechno. O avião começou a se incendiar e Gastello dirigiu a aeronave em chamas até uma coluna de veículos alemães na estrada. A explosão e o fogo que se seguiram teriam des-truído dezenas de veículos, soldados e tanques do inimigo. Gastello se tornou Herói da União Soviética postumamente.

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“lá”. Os abkhaz são os que parecem em pior estado. Muitos deles estão descalços.

Temos de fi car acordados a noite inteira. Surgem aviões alemães sobre a estação, o céu está rugindo, há holofotes em toda parte. Todos nós corremos para um lugar descampado o mais longe possível da estação. Por sorte, os alemães não nos bombardeiam, apenas nos assustam. De manhã, ouvimos uma transmissão de rádio de Moscou. É uma entrevista cole-tiva de Lozovsky [chefe do Bureau de Informação Soviético]. O som estava ruim, ouvíamos avidamente. Ele usou muitos provérbios, como sempre, mas estes não fi zeram nossos cora-ções sentirem qualquer alívio.

Vamos para a estação de cargas à procura de um trem. Somos postos num trem-hospital para Unecha [meio do ca-minho entre Bryansk e Gomel]. Embarcamos no trem, mas de repente há pânico. Todos começam a correr e a atirar. Des-cobre-se que um avião alemão está disparando tiros de me-tralhadora contra a estação de trem. Eu próprio fui apanhado por essa comoção considerável.

Depois de Unecha, viajamos em um vagão de carga. O tempo estava maravilhoso, e percebi isso sozinho, pois meus companheiros de viagem disseram que estava ruim, e percebi isso sozinho. Havia buracos negros e crateras causados por bombas em toda parte ao longo da ferrovia. Podiam-se ver árvores partidas por explosões. Nos campos havia milhares de camponeses, homens e mulheres, cavando valas antitanque.

Observamos o céu nervosamente e decidimos saltar do trem se o ruim se tornasse pior. O trem se movia bem lenta-mente. No momento em que chegamos a Novozybkov, havia um ataque aéreo. Uma bomba caiu junto ao pátio da estação. O trem não iria mais a lugar algum. Deitamos sobre a grama verde, esperando e aproveitando o calor e a grama ao nosso redor, mas ainda fi távamos o céu. E se um [avião] alemão aparecesse de repente?

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No meio da noite, saímos em disparada. Há um trem-hospital indo para Gomel. Seguramos no balaústre quando o trem já está em movimento. Nós nos penduramos nos degraus, batemos na porta, implorando para que nos deixassem fi car pelo menos na plataforma do vagão de carga. De repente, uma mulher olha para fora e grita: “Pulem para fora neste minuto! É proibido via-jar em trens-hospital!” A mulher é uma médica cuja missão é ali-viar o sofrimento das pessoas. “Desculpe-nos, mas o trem está se movendo em velocidade total. Como podemos saltar?” Somos cinco segurando no balaústre, todos ofi ciais, e tudo o que esta-mos pedindo é que nos deixem fi car na plataforma cober ta. Ela começa a nos chutar com suas botas grandes, silen cio samente e com uma força extraordinária. Com o punho, bate em nossas mãos, tentando nos fazer soltar o balaústre. A coisa está fi cando difícil: se alguém se solta, é o fi m. Por sorte, nos damos con-ta de que não estamos em um bonde em Moscou, e passamos da defesa para o ataque. Poucos segun dos depois, a plataforma coberta é nossa, e a cadela com status de médica está gritando como se estivesse assustada e desaparece muito rapidamente. É a primeira vez que sentimos o gosto da luta.

Chegamos a Gomel. O trem pára muito longe da estação, e então fazemos uma dura caminhada ao longo dos trilhos, no escuro. Precisamos passar sob os vagões para atravessar a ferrovia. Bato minha testa e tropeço. Minha maldita mala é extremamente pesada.

Finalmente chegamos ao prédio da estação. Está comple-tamente destruído. Dizemos “Ahs” e “Ohs” olhando as ruínas. Um ferroviário que está passando nos conforta afi rmando que a estação fora demolida antes da invasão, para que fosse cons-truída outra, maior e melhor.

Gomel! Que tristeza existe nessa quieta cidade verde, nesses agradáveis jardins públicos, em seus idosos sentados nos ban-cos, em graciosas meninas caminhando pelas ruas. Crianças estão brincando em montes de areia colocados ali para apagar bombas incendiárias [...]. A qualquer momento uma enorme

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Gomel e o Front Central, agosto de 1941.

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nuvem pode cobrir o sol, uma tempestade pode trazer areia e poeira e levá-las para longe. Os alemães estão a menos de 50 quilômetros de distância.

Gomel nos recebe com um aviso de ataque aéreo. Morado-res dizem que o costume aqui é soar o alarme quando não há qualquer avião alemão por perto e, pelo contrário, soar o sinal de que o perigo passou logo que os bombardeios começam.

Bombardeio em Gomel. Uma vaca, bombas zunindo, fogo, mulheres [...]. O forte cheiro de perfume — de uma farmácia atingida pelo bombardeio — bloqueou o mau chei-ro dos incêndios, só por um instante.

A imagem de Gomel em chamas nos olhos de uma vaca ferida.

As cores de fumaça. Tipógrafos tiveram de imprimir o jor-nal sob a luz de prédios em chamas.

Passamos a noite com um jornalista iniciante. Seus artigos não farão parte do Tesouro Dourado da Literatura. Eu os vi no jornal do Front. São um verdadeiro lixo, com histórias como “Ivan Pupkin matou cinco alemães com uma colher”.

Fomos nos encontrar com o editor, o comissário de regi-mento Nosov, que nos deixou esperando umas boas duas ho-ras. Tivemos de nos sentar em um corredor escuro, e quando fi nalmente vimos essa pessoa que parecia um czar e falamos com ela por alguns minutos, percebemos que esse camarada não era, para dizer em termos suaves, especialmente brilhante e que sua conversa não valia nem dois minutos de espera.

O quartel do Front Central foi o primeiro porto de chamada para Grossman, Troyanovsky e Knorring. Comandado pelo general Andrei Yeremenko, o Front Central fora estabelecido apressadamente depois da destruição do Front Ocidental, no fi m de junho.3 O desafortunado

3 O general A. I. Yeremenko (1892-1970) participou da partilha da Polônia em 1939. Depois de lutar nos arredores de Gomel, em agosto de 1941, assumiu o comando do Front de Bryansk e naquele outono foi gravemente ferido na perna e quase capturado quando os Panzers de Gu-derian fl anquearam suas forças. Mais tarde foi comandante-em-chefe do Front de Stalingrado, onde Grossman o entrevistou.

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comandante do Front Ocidental, general D. G. Pavlov, transformou-se no bode expiatório principal para a recusa de Stalin de se preparar para a guerra. À característica moda stalinista, Pavlov, comandante das forças de tanque soviéticas durante a Guerra Civil Espanhola, foi acusado de traição e executado.

O quartel foi instalado no Palácio Paskevich. Há um parque maravilhoso e um lago com cisnes. Muitas trincheiras estrei-tas foram cavadas em toda parte. O chefe do departamento político do Front, comissário de brigada Kozlov, nos recebe. Ele nos diz que o Conselho Militar está muito alarmado com as notícias que chegaram ontem. Os alemães tomaram Roslavl e reuniram uma grande força de tanques lá.4 O comandante deles é Guderian, autor do livro Achtung! Panzer!5

Folheamos uma série de exemplares do jornal do Front. Passei pela seguinte frase de um dos artigos principais: “O inimigo bastante atingido continuou seu avanço covarde-mente.”

Dormimos no chão da biblioteca do clube “Komintern”6, mantendo nossas botas nos pés e usando máscaras de gás e bolsas de campo como travesseiros. Jantamos na cantina do quartel. Fica no parque, em um pavilhão alegremente multi-colorido. Eles nos alimentam bem, como se estivéssemos em uma dom otdykha [casa de descanso soviética] antes da guerra. Há creme de leite, coalhada e até sorvete de sobremesa.

Grossman fi cou cada vez mais horrorizado e desiludido à medida que descobria a falta de preparação do Exército Vermelho. Começou a sus-

4 Roslavl estava cerca de 200 quilômetros a noroeste de onde eles estavam, portanto, a área em torno de Gomel estava perigosamente exposta. Logo fi caria conhecida como a “Gomel Saliente”. 5 O general Heinz Guderian (1888-1953) era o comandante do 2º Grupamento Panzer (mais tarde 2º Exército Panzer). Grossman quase foi capturado por suas forças em duas ocasiões.6 Komintern ou Comintern, a Terceira Internacional: organização internacional fundada em Moscou para unir grupos comunistas do mundo todo. (N. do T.)

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peitar — apesar do silêncio ofi cial sobre o assunto — de que o maior responsável pela catástrofe era o próprio Stalin.

Quando a guerra explodiu, muitos altos-comandantes e ge-nerais estavam de férias em Sochi. Muitas unidades blindadas estavam recebendo novos motores em seus tanques, muitas unidades de artilharia não tinham munição alguma, muitos re-gimentos de aviação não tinham combustível nenhum. Quan-do telefonemas começaram a chegar da fronteira para os postos de comando mais importantes, com relatos de que a guerra co-meçara, alguns deles tiveram a seguinte resposta: “Não se ren-dam a provocações.” Isso provocou surpresa, no sentido mais assustador e sério da palavra.

O desastre bem adiante da frente de batalha, do mar Negro ao Báltico, foi de grande importância para Grossman, como revela uma carta dele para seu pai em 8 de agosto.

Meu querido [pai], cheguei ao meu destino no dia 7 [de agos-to] [...]. Lamento tanto não ter trazido um cobertor comigo. Não é nada bom dormir sob uma capa de chuva. Estou cons-tantemente preocupado com o destino de Mamãe. Onde ela está? O que aconteceu com ela? Por favor, me informe ime-diatamente se tiver notícias dela.

Grossman fez visitas a linhas de frente e anotou essas observações.

Contaram-me como, depois que Minsk começou a arder, ho-mens cegos do lar de inválidos caminharam pela estrada em uma longa fi la, amarrados uns aos outros com toalhas.

Um fotógrafo observa: “Vi refugiados muito bons ontem.”

Um soldado do Exército Vermelho está deitado na grama depois de uma batalha, dizendo para si mesmo: “Animais e

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plantas lutam por sua existência. Seres humanos lutam por supremacia.”

A dialética da guerra — a capacidade de se esconder, de salvar sua vida, e a capacidade de lutar, de dar a vida.

Histórias sobre ser isolado. Todos que escaparam e voltaram não conseguem parar de contar histórias sobre ser cercado, e todas as histórias são assustadoras.

Um piloto escapou através das linhas inimigas e voltou ves-tindo apenas sua roupa de baixo, mas segurava seu revólver.

Cães especialmente treinados com coquetéis Molotov amar-rados a eles são enviados para atacar tanques e explodem em chamas.7

Bombas estão explodindo. O comandante do batalhão está deitado na grama e não quer ir para o abrigo. Um camarada grita para ele: “Você se tornou um preguiçoso completo. Por que não vai e busca abrigo pelo menos nesses pequenos ar-bustos?”

Um posto de comando na fl oresta. Aviões estão sobrevoan-do o abrigo. [Ofi ciais] tiram seus quepes porque a parte de cima deles brilha, e escondem papéis. De manhã, máquinas de escrever fazem barulho em toda parte. Quando aviões apa-recem, soldados põem casacos verdes sobre as datilógrafas, porque elas usam vestidos coloridos. Escondidas em arbustos, as assistentes continuam sua briga com os arquivos.

7 Esses cães eram treinados com base no princípio pavloviano. Recebiam sua comida sempre sob um tanque para que corressem para baixo de veículos blindados logo que vissem um deles. O explosivo era amarrado em sua traseira com um longo braço de gatilho, que detonava a carga assim que este tocava a parte de baixo de um veículo-alvo.

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Uma galinha que faz parte da equipe do quartel está dando uma caminhada entre abrigos na terra, com tinta em suas asas.

Há muitos cogumelos Boletus na fl oresta — é triste olhar para eles.8

Instrutores [políticos] receberam ordem de ir para a frente de batalha. Os que querem ir e os que não querem podem ser identifi cados facilmente. Alguns simplesmente obedecem à ordem, outros se esquivam. Todos estão sentados por perto e todos podem ver tudo isso, e aqueles que se esquivam sabem que todos conseguem ver seus truques.

Uma longa estrada. Carruagens, pedestres, fi las de carroças. Uma nuvem de poeira amarela sobre a estrada. Rostos de ho-mens e de mulheres idosos. O condutor Ivan Kuptsov estava sentado sobre seu cavalo a 100 metros de sua posição. Quan-do teve início um recuo e só restava um canhão, as baterias alemãs lançaram uma chuva de balas contra eles mas, em vez de galopar para a retaguarda, ele correu até o canhão de campo e o retirou de um pântano. Quando o Ofi cial do De-partamento Político perguntou como ele tivera coragem para aquele ato de bravura diante da morte, ele respondeu: “Eu tenho uma alma simples, tão simples quanto uma balalaica. Ela não tem medo da morte. Aqueles que têm almas preciosas é que temem a morte.”

Um motorista de trator embarcou todos os homens feridos em seu veículo e os levou para a retaguarda. Mesmo os ho-mens gravemente feridos fi caram com suas armas.

8 Essa referência presumivelmente inspirou uma passagem em seu romance O povo imortal: “Bo-garyov viu uma família de cogumelos Boletus na grama. Eles estavam ali com seus gordos caules brancos, e ele se lembrou com que paixão ele e sua mulher haviam colhido cogumelos no ano anterior. Teriam fi cado loucos de alegria se tivessem encontrado tantos Boletus. Mas ele nunca tinha tanta sorte em tempo de paz.”

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[De acordo com] o tenente Yakovlev, comandante de um ba-talhão, os alemães que o atacaram estavam completamente bêbados. Aqueles que eles capturaram fediam a álcool, com os olhos injetados de sangue. Todos os ataques tiveram reação. Soldados queriam carregar Yakovlev, que estava seriamente ferido, para a retaguarda, sobre um pedaço de lona de chão. Ele gritou: “Ainda tenho minha voz e consigo dar ordens. Sou um comunista e não posso deixar o campo de batalha.”

Manhã quente. Ar calmo. A vila está cheia de paz — bela e calma vida de vila —, com crianças brincando e homens e mulheres idosos sentados em bancos. Mal havíamos chegado quando três Junkers apareceram. Bombas explodiram. Gritos. Chamas vermelhas com fumaça branca e também preta. Pas-samos pela mesma vila novamente à noite. As pessoas estão em pânico e esgotadas. As mulheres estão carregando perten-ces. Altas chaminés se destacam em meio às ruínas. E fl ores — centáureas e peônias — exibem-se muito pacifi camente.

Nos vimos sob fogo perto do cemitério. Nos escondemos em-baixo de uma árvore. Um caminhão permanecia ali, e nele ha-via um fuzileiro radioperador com seu fuzil, morto, coberto com uma lona. Soldados do Exército Vermelho estavam ca-vando uma sepultura para ele ali por perto. Quando acontece um ataque de Messers, os soldados tentam se esconder em trincheiras. O tenente grita: “Continuem cavando, do con-trário não vamos terminar antes do anoitecer.” Korol se es-conde na nova sepultura, enquanto todos correm em direções diferentes. Apenas o radioperador morto continua completa-mente deitado, e metralhadoras trepidam sobre ele.

Grossman e Knorring visitaram o 103º Regimento de Aviação de Caça do Exército Vermelho posicionado perto de Gomel. Grossman logo descobriu que o Exército Vermelho em terra tinha sentimentos con-fusos em relação à sua própria força aérea, que rapidamente adquiriu

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uma reputação de atacar qualquer coisa que se mexia, fosse amigo ou inimigo. “Nossos, nossos?”, dizia uma piada conhecida de todos. “En-tão onde está meu capacete?”

Fui com Knorring para o campo de pouso de Zyabrovsky, perto de Gomel. O comissário Chikurin, da Aviação do Exército Vermelho, um companheiro grande e vagaroso, ha-via nos emprestado o ZIS, carro da companhia. Ele estava reclamando dos [pilotos de caça] alemães: “Eles perseguem veículos, caminhões particulares, carros. Isso é vandalismo, um absurdo!”

No mesmo regimento, há dois camaradas que foram condeco-rados. Certa vez eles derrubaram um dos nossos aviões e foram punidos. Depois de receberem suas sentenças, começa ram a trabalhar melhor. Foi proposto que eles fossem absolvidos.

Grossman faz seu primeiro vôo no campo de pouso de Zyabrovsky,perto de Gomel, agosto de 1941.

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Notas de uma entrevista com um piloto: “Camarada tenente-coronel, derrubei um Junkers-88 pela pá-tria soviética.”Sobre os alemães: “Há pilotos que não são maus, mas a maioria é uma por-caria. Eles evitam lutar. Eles não lutam até o amargo fi m.” “Não há qualquer ansiedade, raiva, fúria. E quando você vê que ele está com raiva, sua alma se ilumina.” “Quem vai se desviar? Ele ou eu? Eu não vou. Eu me tor-nei uma coisa só com o avião e já não sinto nada.”

Um jovem soldado do Exército Vermelho disparou um fogue-te contra o posto de comando [do campo de pouso] e atingiu o chefe do comando na retaguarda.

O posto de comando fi ca em um prédio que era palácio dos Jovens Pioneiros. Um piloto enorme, adornado com bolsas, uma pistola etc., surge de uma porta em que está escrito “Ape-nas para meninas”.

Prédios no campo de pouso foram destruídos por bombar-deios, o campo foi arado por explosões. Aviões Ilyushin e MiG estão escondidos sob redes de camufl agem. Veículos circulam pelo campo de pouso distribuindo combustível aos aviões. Também há um caminhão com bolos e um caminhão carregando frascos térmicos de comida. Meninas de macacão branco servem o jantar a pilotos. Os pilotos comem de forma arbitrária, relutantemente. As meninas estão convencendo-os a comer. Alguns aviões estão escondidos na fl oresta.

Foi especialmente interessante quando Nemtsevich [coman-dante do regimento de aviação] nos contou sobre a primeira noite da guerra, sobre o terrível e rápido recuo. Dia e noite ele dirigiu um caminhão recolhendo esposas e fi lhos de ofi ciais. Em uma casa, encontrou ofi ciais que haviam sido mortos,

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esfaqueados. Aparentemente, haviam sido assassinados por sabotadores quando dormiam. Isso aconteceu perto da fron-teira. Ele disse que naquela noite da invasão alemã tivera de dar um telefonema por conta de algum negócio importante e as comunicações não estavam funcionando [...]. Ele fi cou irritado, mas não deu muita atenção a isso.

Nemtsevich me disse que aviões alemães não apareceram so-bre seu campo de pouso durante dez dias. Foi categórico em sua conclusão: os alemães estão sem combustível, estão sem aviões, foram todos derrubados a tiros. Nunca ouvi um dis-curso como aquele — que otimismo! Esse traço de caráter é ao mesmo tempo tanto bom quanto prejudicial, mas de qualquer modo nunca fará um estrategista.

Almoçamos em uma cantina pequena e aconchegante. Ha-via uma bela garçonete e Nemtsevich suspirou com desejo quando olhou para ela. Falou com ela em uma voz afetuosa, tímida, suplicante. Ela foi ironicamente indulgente. Foi um breve triunfo de uma mulher sobre um homem nos dias, talvez horas, que precederam a “rendição” de seu coração. É estranho ver um belo e másculo comandante de um regi-mento de caça em sua tímida submissão ao poder de uma mulher. Evidentemente, ele é um grande perseguidor de rabos-de-saia.

Passamos a noite em um prédio enorme, com muitos andares. Estava deserto, assustador e triste. Centenas de mulheres e crianças estavam vivendo ali pouco tempo antes. Eram fa-mílias de pilotos. Durante a noite fomos acordados por um zunido baixo e assustador e saímos para a rua. Esquadrões de bombardeiros alemães estavam voando em direção ao leste, sobre nossas cabeças. Evidentemente eram aqueles sobre os quais Nemtsevich falara durante o dia, aqueles que segundo ele não tinham combustível e haviam sido destruídos.

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Ouviu-se o ruído de motores começando a funcionar, poeira e vento — aquele vento especial dos aviões, pressionado contra o chão. Aviões subiram ao céu um após o outro, voaram em círculos e foram embora. E imediatamente o campo de pouso fi cou vazio e silencioso, como uma sala de aula quando os alunos se vão. É como pôquer: o comandante do regimento arriscou toda a sua sorte no ar. A mesa está vazia. Ele está ali em pé sozinho, olhando para o céu, e o céu sobre ele está va-zio. Ou ele vai fi car sem nada ou receberá tudo de volta com interesse. É um jogo em que as apostas são vida e morte, vi-tória ou derrota. Sinto-me como se estivesse eternamente em uma tela de cinema, e não apenas assistindo ao fi lme. Grandes acontecimentos chegam em quantidade e rapidamente.

Finalmente, depois de um ataque bem-sucedido a uma coluna alemã, os caças voltaram e aterrissaram. O avião de comando tinha carne humana presa no radiador. Isso porque um avião de apoio havia atingido um caminhão com muni-ção que explodiu exatamente no momento em que o avião de comando estava passando sobre ele. Poppe, o líder, está retirando a carne com uma pasta de arquivo. Eles consultam um médico, que examina a massa de sangue atentamente e declara que é “carne ariana!” Todos riem. Sim, um tempo sem piedade — um tempo de ferro — chegou!

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