1. A ARMA DO LIbERALISMO · o poder, instituindo seu modelo de Estado, em nome do liberalismo...

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550 GUARDA NACIONAL NA GUERRA DOS FARRAPOS: A FORMAÇÃO DAS TROPAS FARROUPILHAS (1835-1845) ÂNDERSON MARCELO SCHMITT UPF E-mail: [email protected] Resumo: O presente artigo discute a Guarda Nacional no período da Guerra dos Farrapos. A criação dessa milícia data de agosto de 1831, sendo parte das reformas liberais acontecidas no início do período regencial. Ao eclodir a revolta no sul, a maior parte das tropas rebeldes foi formada por oficiais e cidadãos-soldados desta arma. Porém, a organização dela esteve subordinada a um novo governo, que geriu a estrutura da instituição conforme as suas necessidades. Assim, entendendo que a milícia farroupilha teve uma lógica própria, é que se faz a análise dela. Fatores como a idade mínima para se sentar praça e o fator censitário de alistamento dos seus membros estiveram entre os fatores que passaram por modificação durante o período. Palavras-chave: Guerra dos Farrapos. Guarda Nacional. 1. A ARMA DO LIBERALISMO O início da década de 1830 foi um período conturbado politicamente no Império brasileiro. Desgastado em seu poder - em especial após não ser bem sucedido na guerra da Cisplatina e se ver obrigado a reconhecer a independência política da antiga província mais meridional do Império - D. Pedro abdica do trono em 7 de abril de 1831. Com este acontecimento, segundo Dolhnikoff, “os grupos regionais enfim assumiram plenamente o poder, instituindo seu modelo de Estado, em nome do liberalismo moderado” (2003: 435). Inicia-se a regência, e as elites locais se eriçam pela possibilidade de uma maior descentralização, dando às províncias margens para resolver os assuntos referentes aos seus interesses, no próprio âmbito provincial. Ao levantar-se a possibilidade de um possível retorno de D. Pedro, os liberais tremiam em suas bases. O Exército de 1ª Linha era dominado por oficiais portugueses e, temia-se que estes, com suas ideias retrógradas, auxiliassem um possível retorno e um contragolpe. Interessava às novas figuras em voga no cenário político da corte, portanto, enfraquecer as forças de 1ª Linha, retirando-lhes a importância que possuíam como a principal força armada brasileira. Sodré nos informa que já em “maio de 1831, os efetivos do exército eram reduzidos à metade, de 30.000 para 14. 342 homens. (...). Tudo a pretexto de economia, naturalmente, como a suspensão das promoções, sob o pretexto de que havia oficiais excedentes” (1965: 131-132). Destarte, as medidas de enfraquecimento da

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GUARDA NACIONAL NA GUERRA DOS FARRAPOS: A FORMAÇÃO DAS TROPAS FARROUPILHAS (1835-1845)

Ânderson Marcelo schMitt

UPFE-mail: [email protected]

Resumo: O presente artigo discute a Guarda Nacional no período da Guerra dos Farrapos. A criação dessa milícia data de agosto de 1831, sendo parte das reformas liberais acontecidas no início do período regencial. Ao eclodir a revolta no sul, a maior parte das tropas rebeldes foi formada por oficiais e cidadãos-soldados desta arma. Porém, a organização dela esteve subordinada a um novo governo, que geriu a estrutura da instituição conforme as suas necessidades. Assim, entendendo que a milícia farroupilha teve uma lógica própria, é que se faz a análise dela. Fatores como a idade mínima para se sentar praça e o fator censitário de alistamento dos seus membros estiveram entre os fatores que passaram por modificação durante o período.

Palavras-chave: Guerra dos Farrapos. Guarda Nacional.

1. A ARMA DO LIbERALISMO

O início da década de 1830 foi um período conturbado politicamente no Império brasileiro. Desgastado em seu poder - em especial após não ser bem sucedido na guerra da Cisplatina e se ver obrigado a reconhecer a independência política da antiga província mais meridional do Império - D. Pedro abdica do trono em 7 de abril de 1831. Com este acontecimento, segundo Dolhnikoff, “os grupos regionais enfim assumiram plenamente o poder, instituindo seu modelo de Estado, em nome do liberalismo moderado” (2003: 435). Inicia-se a regência, e as elites locais se eriçam pela possibilidade de uma maior descentralização, dando às províncias margens para resolver os assuntos referentes aos seus interesses, no próprio âmbito provincial. Ao levantar-se a possibilidade de um possível retorno de D. Pedro, os liberais tremiam em suas bases. O Exército de 1ª Linha era dominado por oficiais portugueses e, temia-se que estes, com suas ideias retrógradas, auxiliassem um possível retorno e um contragolpe. Interessava às novas figuras em voga no cenário político da corte, portanto, enfraquecer as forças de 1ª Linha, retirando-lhes a importância que possuíam como a principal força armada brasileira. Sodré nos informa que já em “maio de 1831, os efetivos do exército eram reduzidos à metade, de 30.000 para 14. 342 homens. (...). Tudo a pretexto de economia, naturalmente, como a suspensão das promoções, sob o pretexto de que havia oficiais excedentes” (1965: 131-132). Destarte, as medidas de enfraquecimento da

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temida instituição retiraram a possibilidade de apoio para uma possível ação que imporia nova reviravolta no cenário político imperial. Bastava agora, pensar uma instituição que fosse em sentido contrário, garantindo a permanência das reformas liberais conquistadas com a abdicação de abril de 1831. Nessa conjuntura é que é criada a Guarda Nacional no Império brasileiro, por lei de 18 de agosto de 1831. Note-se que apenas quatro meses após a abdicação de D. Pedro. Maria Auxiliadora Faria traz como anexo de sua dissertação de mestrado a lei de criação na íntegra. Em seu primeiro artigo explicitava-se que

“as Guardas Nacionaes são creadas para defender a Constituição, a Liberdade, Independência, e Integridade do Imperio; para manter a obediencia ás Leis, conservar, ou restabelecer a ordem, e a tranquillidade publica; e auxiliar o Exercito de Linha na defesa das fronteiras, e costas.” (1977: 106)

Percebemos um forte fator político influenciando na sua criação. Na organização dessa força civil-militar, devemos levar em consideração que a “idéia de se criar no Brasil uma Milícia Cívica para manter a Nação em Armas, na defesa dos valores conquistados com a abdicação do Imperador Pedro I, é de inspiração francesa” (FARIA, 1977: 8), sendo assim, uma organização hierarquizada. De acordo com sua lei de criação, ela deveria ficar fora do jogo político, ao dizer que “toda a deliberação tomada pelas Guardas Nacionaies ácerca dos negocios publicos é um attentado contra a Liberdade, e um delicto contra a Constituição” (1977: 106). Este “apolitismo”, decerto, não aconteceu, sendo ela importante na política do país. Sendo uma força organizada dentro dos distritos, desligada da força regular do Exército, seu serviço se restringia a este perímetro. Em ocasiões especiais apenas, os integrantes da milícia prestavam serviços fora dos seus locais de origem. Acontecia ai uma aproximação entre os Guardas Nacionais e o Exército, sendo somente nestes casos, em que eram “os corpos destacados em serviço de guerra, determinados por Lei, Decreto ou Ordem especial”, que “passavam os guardas nacionais a sofrer os rigores do regulamento e disciplina militar” (CASTRO, 1979: 26). Quando dos destacamentos em guerra, passavam os Guardas Nacionais não apenas a se submeterem à autoridade dos oficiais de 1ª Linha, como também passavam a receber os vencimentos, que eram iguais aos que eram distribuídos para o Exército regular. Segundo já nos informa Sodré, os guardas nacionais “uma vez mobilizados, ficavam sujeitos à lei e disciplina do Exército e recebiam os mesmo soldos, etapas e vencimentos dos de linha” (1965: 120). O recebimento de soldo pelo serviço poderia ter criado certa complacência com o serviço na Guarda Nacional. Entretanto, a obrigação do cidadão-soldado de deixar seus afazeres particulares para prestar serviço paramilitar, fazia com que os lucros derivados dos vencimentos militares não fossem suficientes para

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o dever ser cumprido com satisfação. Para Ribeiro

“(...) não podemos esquecer que eles não eram militares profissionais e, enquanto estivessem em destacamento, tinham de deixar seus ofícios e interesses de lado pelo tempo que durassem esses serviços. Além disso, qualquer vantagem que poderia representar o recebimento desses valores, em muitos casos, deixava de existir em razão dos atrasos com que eram pagos os soldos, dos eventuais recebimentos desses valores em moedas de cobre que sofriam ‘rebate’, isto é, tinham seu valor descontado quando eram trocadas por papel-moeda (...).” (2005: 218, 219)

O serviço na Guarda Nacional costumava ser oneroso. O afastamento do indivíduo de suas atividades particulares ocasionava forte resistência ao recrutamento. Deserções eram comuns, bem como alegações nem sempre verdadeiras para o não comparecimento, em especial a desculpa da doença. Além disso, os atrasos e a moeda com que eram pagos os vencimentos não atraiam os cidadãos para o serviço ativo da milícia destacada. Durante o período, os cofres imperiais não estavam em bom estado, e nesse sentido é interessante a “criação de uma força cívica – substituta de emergência de um Exército em crise e que não acarretasse ônus financeiro para o Governo” (CASTRO, 1979: 148). O fato dos guardas nacionais servirem sob a responsabilidade dos oficiais de 1ª Linha quando destacados, era uma exceção. Segundo sua lei de criação as “Guardas Nacionaes estarão subordinadas aos Juizes de Paz, aos Juizes Criminaes, aos Presidentes das Provincias, e ao Ministro da Justiça” (FARIA, 1977: 107). Não era subordinada, portanto, ao Ministério da Guerra, o que impossibilitava sua utilização para levar a cabo ações que pudessem interferir no cenário político regencial. Juntamente com a criação da Guarda Nacional, a lei de 18 de agosto de 1831 extinguia os Corpos de milícias, guardas municipais e ordenanças. Podendo ser vista a Guarda Nacional, ao olhar menos minucioso, como uma continuação - ou nova denominação - das forças de 2ª Linha. Ela foi diferenciada, entretanto, em razão do contexto político em que surgiu (RIBEIRO, 2005: 138-139). Como vimos, a Guarda Nacional surgiu no embalo das reformas liberais, e fez parte das tentativas “de organizar o sistema de acordo com os princípios defendidos pelo pensamento liberal. A base dos comandos deveria vir das províncias” (FARIA, 1977: 22). Fazendo uma análise historiográfica da Guarda Nacional, Faria entende que existe uma corrente que defende que a instituição sofreu com “a existência de uma contradição entre os fins para os quais é criada e reorganizada a Milícia, e a forma como se apresenta ao nível dos municípios” (FARIA, 1977: 5). A forma de organização da Guarda Nacional, a partir dos distritos, fazia com que o poder permanecesse nas mãos de “dignidades locais”, sendo usado politicamente. Nossas ideias vão ao encontro dessa forma de pensar a Guarda Nacional. O afastamento do poder central na organização da milícia parece ter dado certa

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margem de influência das elites locais na sua utilização. Adiante, veremos mais algumas características da Guarda Nacional, relacionadas ao contexto rio-grandense, em especial durante o período da guerra dos Farrapos.

2. A GUARDA NACIONAL FARROUPILhA: FORÇA ADAPtADA

A milícia cidadã, como se refere Jeanne Castro, era a principal força militar – paramilitar, no caso – dentro da província rio-grandense quando eclodiu a guerra dos Farrapos. Seus oficiais, em grande parte estancieiros que detinham o poder econômico e político na província, viam com bons olhos a existência de uma organização civil-militar que estivesse a dispor de seus interesses. Ao deixar a organização da Guarda Nacional por conta das províncias e, em especial, pelos municípios, o Império parece ter dado um tiro no próprio pé, se pensarmos o caso rio-grandense. Foram estes mesmos oficiais que deflagraram a revolta. Seu principal líder, Bento Gonçalves, era chefe da fronteira de Jaguarão, chegando a alcançar o cargo máximo da Guarda Nacional na província. Ao defender seus interesses econômicos e políticos dentro do jogo político regencial - como redução dos impostos ao charque rio-grandense, maior autonomia para opinar ou escolher sobre o presidente da província, maior descentralização, etc. - esta elite latifundiária tinha a milícia como arma para barganhar por maiores vantagens nesses critérios. Dessa forma,

“O apolitismo da Guarda existe, pois, apenas do ponto de vista legal. Constituindo-se em grupo civil armado para a defesa do sistema e, consequentemente, dos interesses das elites econômicas, não escapa, naturalmente, à instrumentalização pelos que detêm, ou pelo menos lutam pelo poder político.” (FARIA, 1977: 11)

Em 1850 a Guarda Nacional é reformulada e se arranja como força conservadora e eleiçoeira. Porém, pela metade da década de 1830, os reclames dos liberais rio-grandenses, decepcionados com o moderantismo regencial, tiveram como culminância o levante armado, liderado em especial, pelos chefes milicianos. Evidencia-se a contradição intrínseca à lei de criação da Guarda Nacional, e que o decreto de 25 de outubro de 1832 não conseguiu fazer abrandar. Ao se iniciar a guerra dos Farrapos, a Guarda Nacional era a principal força na província, a exemplo do restante do Império. O que ocorreu foi um cisma dentro da milícia, em que as hostes seguiam seus chefes, que ficaram do lado rebelde ou do lado legalista. Configura-se, dessa forma, a guerra civil na província rio-grandense. A primeira organização sistemática das forças militares farroupilhas pós-independência, ainda em

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1836, distribuía as armas farroupilhas em quatro brigadas. Segundo Varela, a organização se dava da seguinte forma:- 1ª Brigada: Comandada por Antônio de Souza Neto, reunia os corpos de Guarda Nacional de da comarca Piratini, distritos de Serrito e Cangussú. Abrangendo, desta forma, o 1º e 2º corpos de cavalaria de Guarda Nacional.- 2ª Brigada: Sob o comando de João Antônio, abrangendo as forças da comarca de Rio Pardo e Missões. Formavam o 3º e 4º corpos de cavalaria, também de Guardas Nacionais.- 3ª Brigada: Sob a liderança de José Mariano de Matos, com as forças formadas pelos corpos de 1ª Linha. Abrangia o corpo de artilharia, de lanceiros, contingentes de cavalaria de 1ª Linha e batalhão de caçadores voluntários.- 4ª Brigada: Comandada por Domingos Crescêncio de Carvalho. Reunindo as forças de Pelotas, Triunfo e distrito de Pedras Brancas, que formavam o 5º e 6º corpos de cavalaria da Guarda Nacional. Somava-se a esta brigada os demais contingentes que não foram mencionados nas brigadas anteriores (1933: 323). Examinando a distribuição primitiva das tropas republicanas, podemos entender que desde a sua primeira organização a Guarda Nacional era a principal força com que contavam os farroupilhas, sendo a 1ª e a 2ª brigadas exclusivas de Guardas Nacionais. A 3ª brigada era a única exclusiva de tropas de 1ª Linha. A 4ª brigada, por sua vez, abrangia dois corpos de cavalaria de Guarda Nacional, mas deixa em aberto a incorporação de novas forças, pois dela também poderiam fazer parte “todos os outros contingentes não mencionados nas brigadas anteriores.” Sabemos, ao certo, que ao menos organizadas não existiam mais forças de 1ª Linha. Reforça-se, destarte, a compreensão da maneira como a Guarda Nacional foi tratada dentro do “Estado” farroupilha, ao o que esteve submetida durante o período em que os chefes rebeldes intentaram interferir na sua organização, sempre em um contexto conturbado de guerra civil. Decreto farroupilha de abril de 1838 cita que em ordem do dia de 1º de novembro de 1836 foi suspensa a organização das Legiões, conforme “prescritas na lei de 18 de agosto de 1831 e o decreto da reforma da mesma lei de 25 de outubro de 1832” (CV-2834). A informação mais relevante que se retira dessa passagem é a importância dada às leis imperiais. Mesmo após a proclamação da independência, em 11 de setembro de 1836, foram as leis imperiais que continuaram regulando a organização da milícia republicana. Notamos, no decorrer da pesquisa, que esta foi uma constante na postura rebelde ao que se refere à Guarda Nacional: sempre que se pensava em reformular a milícia, recorria-se à lei e decreto de 1831 e 1832, revogando-os. O mesmo decreto de abril de 1838 traz outras relevantes modificações na organização da Guarda Nacional dentro da República Rio-grandense. Antes de explicitá-las, entretanto, precisamos argumentar sobre mais uma

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especificidade da Guarda Nacional do Império brasileiro. Nas discussões sobre a Guarda Nacional em seus primeiros tempos, muito se delibera sobre a experiência democrática ocorrida em sua órbita. Os oficiais eram votados entre os próprios milicianos, sendo eles reunidos em suas unidades, sem armas e

“sob a presidência do Juiz de Paz e, a partir disto, a eleição iniciava-se pela escolha dos oficiais para os postos mais elevados, e assim sucessivamente por escrutínio individual e secreto, sendo eleito o guarda nacional que atingisse a maioria absoluta dos votos. Se houvesse empate ou o candidato não conseguisse a maioria absoluta dos votos, iniciava-se uma nova escolha com os dois praças mais votados. Feitas as escolhas, o Juiz de Paz que houvesse presidido a eleição deveria apresentar todos os oficiais às suas respectivas unidades para que fossem reconhecidos, quando, então, todos eles deveriam prestar ‘juramento de fidelidade ao Imperador, e obediência à Constituição e Leis do Império’.” (RIBEIRO, 2005: 149)

Modificações ocorridas nas leis imperiais, porém, vêm de encontro a essa especificidade. Segundo Castro, com o Ato Adicional de 1834, é aviltado o caráter democrático da Guarda Nacional, “substituindo o sistema eletivo do oficialato, estabelecido pela Lei de 1831 e mantido pelo Decreto de 1832, por nomeação provincial (...). Essa modificação, iniciada logo após o Ato Adicional, foi paulatinamente adotada por todos os governos provinciais” (1979: 40). O Decreto citado anteriormente, de abril de 1838, também trazia modificações no caráter eletivo dos oficiais milicianos farroupilhas. Eis a maneira que deveriam se proceder as nomeações dos oficiais:

“Art. 2º Os oficiais superiores e mais oficiais do pequeno Estado-maior e das Companhias dos referidos Corpos serão de ora em diante promovidos pelo Governo da República em virtude de proposta do General-em-chefe do Exército ou de quem suas vezes fizer.Art. 3º Aos Comandantes dos Corpos fica competindo a proposta do pequeno Estado-maior e das Companhias dos seus respectivos Corpos, que deverão apresentar ao General-em-chefe a fim de este proceder à proposta geral (...).Art. 4º Da mesma forma fica competindo aos Comandantes de Companhias a nomeação dos oficiais inferiores e cornetas delas, com aprovação dos respectivos chefes.” (CV-2834)

Pelo que se nota, o General-em-Chefe do Exército republicano reservava para si o direito de nomear os oficiais superiores da Guarda Nacional, podendo escolher, destarte, indivíduos que fossem de sua confiança, característica muito valiosa em tempos belicosos, em que as idiossincrasias individuais poderiam atravancar o andamento das atividades. Em se tratando dos oficiais inferiores dos corpos e das companhias, as nomeações deveriam ser feitas pelos seus respectivos comandantes. Estes apresentariam a proposta do oficialato ao General-em-Chefe, para que também estas nomeações passassem por sua

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aprovação. Do mesmo modo como se procedeu a modificação na forma de se nomearem os oficiais, o decreto também trazia mudanças quanto à forma de se alistar os cidadãos-soldados para a Guarda Nacional. O decreto revogava o que dizia a lei de 18 de agosto de 1831 e decreto de 25 de outubro de 1832 na parte que em que ela legislava sobre o alistamento dos indivíduos que fariam parte da milícia de guardas nacionais, “devendo de ora em diante ser feito este alistamento pelos respectivos juízes de paz e chefes de polícia (...) independente das formalidades declaradas na supradita lei e decreto” (CV-2834). A partir desta passagem, temos o entendimento que os Conselhos de Qualificação perdiam sua validade, sua razão de existir, dentro das leis da República Rio-grandense. O Conselho de Qualificação era responsável pelo alistamento das praças da Guarda Nacional, fazendo também discernir quais os que deveriam fazer parte do serviço ativo e quais os que deveriam compor a reserva da instituição. A lei de criação, de 1831, regulava no referente aos alistamentos:

“Do alistamento.Art. 13. Os cidadãos admittidos ao serviço das Guardas Nacionaes serão alistados em Livros de Matricula, subministrados pela Camara á cada uma das Parochias, e Curatos do seu Municipio.Art. 14. Para se fazer este alistamento o Juiz de Paz da Freguezia, ou Gapella Curada, formará um Conselho de qualificação, composto de seis Eleitores do seu Districto mais votados, aos quaes presididos pelo Juiz de Paz, fica competindo verificar a idoneidade dos cidadãos, que devem ter praça nas Guardas Nacionaes, e fazer o seu alistamento. (...).Art. 15. O Conselho de qualificação procederá immediatamente a fazer o alistamento no livro da matricula geral.” (FARIA, 1977: 108-109)

O Juiz de Paz, portanto, era a autoridade maior nos Conselhos de Qualificação da Guarda Nacional, tendo grande poder de decisão sobre as praças que iriam ou não prestar serviços. Mesmo antes da eclosão da revolta em 1835, percebe-se que muitos juízes de paz atravancavam o funcionamento da Guarda Nacional, por questões pessoais, mas sem deixarmos de levar em consideração a questão política. Após a eclosão da guerra dos Farrapos, a atitude de emperrar o funcionamento da instituição pode ser percebida com ainda maior nitidez (RIBEIRO, 2005: 180). Poderiam os Juízes de Paz criar dificuldades ao se alistar e recrutar os cidadãos-soldados milicianos durante a Guerra dos Farrapos por estarem, alguns deles, de acordo com as ideias farroupilhas. Usavam-se da autonomia que possuíam, portanto, para tentar criar certa desorganização entre as tropas que iriam combater as forças ligadas ao Império. Estas posturas de certa forma ambíguas de alguns Juízes de Paz, podem ter criado o ambiente para que se estabelecesse uma reformulação na organização da Guarda Nacional no Rio Grande do Sul, numa tentativa de retirar do âmbito dessas autoridades as

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decisões referentes aos alistamentos e reuniões dos cidadãos-soldados. Desta forma, em novembro de 1837, a presidência da província determinou que se abolissem os Conselhos de Qualificação para a Guarda Nacional legalista. A função do alistamento seria, “dali em diante, (...) incumbência dos Comandantes locais de companhias, e a qualificação, dos Coronéis de Legião” (RIBEIRO, 2005: 187). Passariam, desse modo, para os oficiais da milícia as incumbências que antes eram relegadas ao Conselho de Qualificação e, sendo o responsável por ele, aos Juízes de Paz. Examinando o decreto farroupilha, concluímos que a decisão de não mais utilização do Conselho de Qualificação na Guarda Nacional farroupilha se dava por razões diferentes. Ao se abolir o órgão não haviam reclamações explícitas quanto à postura dos Juízes de Paz, nem razão para ser retirado deles a competência dos alistamentos. Assim, continuaram sendo eles, juntamente com os Chefes de Polícia, os responsáveis pela tarefa de alistar os milicianos. Entendemos que as razões da abolição dos Conselhos de Qualificação farroupilhas não podem tentar ser explicadas pelas posturas dos seus integrantes ou presidente (juízes de paz), mas sim pelas dificuldades criadas pelo estado beligerante do período. Seria dificultoso reunir os membros do Conselho de Qualificação (formado por seis membros, que eram os mais votados entre os cidadãos eleitores do distrito) durante o período da guerra, sendo provável que muitos deles poderiam estar em marcha pelos rebeldes ou mesmo fossem adeptos dos legalistas e a estes estivessem somando nas frentes de combate. Porém, acreditamos que a maior causa da retirada das atribuições dos Conselhos foi a forma pela qual estava sendo conduzida a guerra. Não haveria tempo para as burocracias militares. As vicissitudes da guerra criavam a necessidade de que as reuniões fossem realizadas de forma rápida, muitas vezes não levando em conta quais indivíduos estavam no âmbito de servir na Guarda Nacional.

De certa forma, podemos dizer que se criava a desorganização necessária para que as tropas farroupilhas pudessem continuar a fazer frente às forças legalistas. À frente veremos que muitas vezes a figura do próprio Juiz de Paz foi relegada a segundo plano quando das reuniões e alistamentos. Podemos também deliberar sobre as dificuldades que derivavam da organização e funcionamento do Conselho de Qualificação, indo ao encontro das ideias de Castro, quando diz que a estrutura administrativa necessária para a realização dos alistamentos e qualificações, “só existia na Corte e em algumas cidades importantes, faltando em todo o resto do país” (1979: 175-176), o que implicaria em uma pena de morte para os Conselhos de Qualificação, uma vez que maneiras mais fáceis de se realizarem os alistamentos e as qualificações seriam buscadas.

O contexto político pelo qual passava o Império no período da criação da Guarda Nacional fazia necessário que os indivíduos que compusessem a nova força criada estivessem interessados eles próprios em manter a ordem vigente. Dessa forma, o decreto

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de reorganização da Guarda Nacional, de 1832, explicitou que apenas os indivíduos com uma renda anual igual ou superior a 100 mil réis poderiam fazer parte da instituição, estando livres de serem submetidos ao recrutamento para a 1ª Linha do Exército. A constituição das forças de 1ª Linha do Exército era relegada aos indivíduos considerados páreas da sociedade. Dessa forma, existiria uma “superioridade de status do guarda nacional em relação ao soldado de 1ª Linha”. Enquanto o recrutamento para o Exército “era encarado como um flagelo, o alistamento na Guarda Nacional constituía um dever cívico, embora igualmente pesado e oneroso” (CASTRO, 1979: 70). Também como destaca Ribeiro, ficou com a “Guarda Nacional a responsabilidade de manter a unidade do Império, como força confiável, por ser composta de cidadãos eleitores comprometidos com a manutenção da ordem política da qual participavam” (2005: 139).

Dentro do Estado farroupilha, percebemos que ao se retirar as atribuições dos Conselhos de Qualificação, que deveriam fazer o levantamento dos cidadãos eleitores aptos ao serviço na milícia, também se exclui o fator censitário como exigência para o alistamento e qualificação dos soldados. Da data do decreto de abril de 1838 em diante, no que se referia ao alistamento para a Guarda Nacional, passaria a ser relevante somente que os indivíduos “tenham boa conduta, robustez e capacidade para desempenharem os deveres que são inerentes aos defensores da Pátria, e particularmente que tenham patriotismo e firme adesão à causa da República.” (CV-2834).

Explica-se este ato do governo rebelde novamente pelo estado beligerante. O fim dos Conselhos de Qualificação dificultaria a fiscalização para que indivíduos que não eram eleitores não fossem alistados. Ademais, os indivíduos das camadas mais baixas poderiam não ter acesso aos cargos de oficiais, uma vez que eram estes de nomeação do General-em-Chefe e dos Comandantes dos corpos e companhias, como vimos. Não se poderia, portanto, ascender à condição de oficial pelo voto dos colegas milicianos.

A especificidade de possuir “patriotismo e firme adesão à causa da República” para servir na Guarda Nacional foi, como é de se imaginar, apenas uma parte do bonito texto do decreto, jamais tendo aplicação prática. Já em maio de 1838 ordenava Bento Gonçalves ao chefe de polícia do departamento de São Lourenço que

“Havendo eu nesta data licenciado a 1ª Brigada até o dia 24 do presente, dia em que se devem reunir novamente neste ponto, responsabilizando aos comandantes de corpos e companhias pela execução desta ordem o comunico igualmente a V. Sa. para que não consinta nos distritos de seu comando um só indivíduo que abuse dela, fazendo prender e remeter para a Brigada aqueles que sob qualquer pretexto deixem de marchar, sejam oficiais ou soldados.” (CV-075).

Seriam remetidos presos, portanto, os cidadãos que devendo, se negassem a prestar o serviço ativo da milícia farroupilha. Não seriam, possivelmente, mantidos presos, e sim

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seriam obrigados a servir nas hostes rebeldes até um novo licenciamento da brigada.Extinguindo-se o fator censitário como essencial para os alistamentos na Guarda

Nacional, todo indivíduo poderia dela fazer parte, desde que tivesse aptidões físicas e fosse adepto da causa – condição impossível de ser levada em consideração, como visto. Dessa forma, surgem algumas ordens que demonstram bem como poderia ser dada a cooptação para a milícia. Em 22 de maio de 1843, Bento Gonçalves estava fazendo junção com David Canabarro, objetivando bater o controverso Brigadeiro Bento Manuel. Naquela data dizia Bento Gonçalves ao Ministro da Guerra:

“(...) não sendo possível esperar as reuniões da 1ª Brigada que ficaram à retaguarda, hoje mesmo se autoriza ao Tenente-Coronel Ismael Soares para não só pôr-se à testa desses Guardas Nacionais, como para reunir todos os homens que possam portar as armas, formando uma massa para colocar-se nesta coxilha ou em outro qualquer ponto azado para repelir as correrias do inimigo, e mesmo salvar o precioso quando seja talado por forças superiores durante nossa operação. Em consequência deveis coadjuvá-lo enquanto convenha a bem do desempenho de sua importante missão pois ele tem ordem de entender-se convosco.” (BG-338).

Essa passagem traz interessantes informações. Ao se impossibilitar reunir a 1ª Brigada, que estava licenciada, autorizava Bento Gonçalves, que um Tenente-Coronel comandasse esta força, com as praças que fossem possíveis reunir. O que mais chama a atenção, porém, era que em conjunto a estes se somariam “todos os homens que possam portar armas”, sem nenhuma referência a especificidades destes indivíduos. Desse modo, sujeitos que poderiam já servir em outra força ou estarem isentos de alguma maneira, estavam também submetidos ao recrutamento para a milícia. O termo “massa”, utilizado pelo chefe farroupilha (já afastado da presidência), parece expressar com propensão a forma da força que desta reunião sairia, com praticamente nulidade de organização, formada às pressas para atuarem enquanto se intentava bater Bento Manuel.

Interessante também é a postura de Bento Gonçalves, de ordenar a Luís José Ribeiro Barreto, o Ministro da Guerra farroupilha, que auxiliasse o oficial responsável pelas reuniões. Claramente no período derradeiro de seu Estado, o próprio ministro estava sujeito a auxiliar nos recrutamentos. Temos aqui também um exemplo de como as posturas individuais poderiam influenciar nas tomadas de decisões. Em 1843, Bento Gonçalves não mais desempenhava o cargo de presidente da sua República, mas mesmo assim possuía autoridade para dar ordens ao Ministro, que estaria, em teoria, em uma posição mais elevada que a sua.

Quando aos sujeitos que estariam isentos da prestação de serviço na milícia farroupilha, Cláudio Moreira Bento traz uma gama de indivíduos que por sua profissão ou condição estariam livres do recrutamento:

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“Estavam isentos, inicialmente, o órfão arrimo de irmãos de irmãos menores, filho arrimo de viúva, um único filho de lavrador de sua escolha, os capatazes de estâncias com mais de 1.000 cabeças, os administradores de plantações ou de olarias com mais de 6 escravos, os tropeiros a caminho das charqueadas, os mestres de ofício (pedreiros, carpinteiros, canteiros, etc.) com lojas em funcionamento, como os pescadores fabricantes de redes e espinhéis, os tripulantes de embarcações matriculados, os estudantes com aproveitamento certificado, um guarda-livro e um caixeiro para as médias e um só empregado para as menores.” (1993: 61)

Os indivíduos isentos do serviço ativo deveriam fazer parte da reserva da instituição, que somente seriam chamados em casos extraordinários. Além destes sujeitos, o que se percebe é que por vezes eram dadas isenções individuais dadas aos sujeitos que isso solicitavam. Dessa forma, as relações pessoais de parentesco e amizade poderiam intervir nessa prática. Em 18 de outubro de 1838, Bento Gonçalves ordenava “processar na reunião sem exceção de indivíduo algum capaz de portar as armas tendo o Governo em vista que a lei suprema é a salvação da Pátria” (BG-098). Doze dias depois, o chefe rebelde passava em revista a tropa de 1ª Linha, e no dia seguinte “farei o mesmo à Guarda Nacional, e ordens estão dadas para recolherem-se os licenciados e assim todos que possam portar as armas” (BG-101). Caçavam-se, assim, as licenças que eram distribuídas para a reserva da Guarda Nacional farroupilha. Estas atitudes não ficaram ilesas de críticas dentro do próprio governo rebelde. Ainda em 1838, José da Silva Brandão, como Ministro dos Negócios e da Marinha, relatava a postura do presidente republicano, e colocava-se contra ela:

“Incluso remeto a V. Exa. o requerimento despachado do Paiva, bem como a portaria para o capataz do Abreu; e sobre esta devo dizer a V. Exa. que receio não tenha vigor porque o nosso Presidente adotou um sistema com o qual me não conformo, que é o de satisfazer as partes concedendo-lhes as isenções, e pela sorrelfa expede ofícios e cartas aos seus comissionados para reuniões que as portarias e despachos de isenções ficam sem vigor durante a precisão de reunir todos, como presentemente: e eu mesmo cumprindo suas ordens expedi ofício ao Coronel João Antônio nesse sentido, e agora ao Tenente-coronel Valença. Isto é enganar a gente, e para isso eu não sirvo, e gosto de lhes falar com franqueza, sim ou não, e o dito dito.” (CV-2861)

José da Silva Brandão achava que isso era “enganar a gente”, uma vez que eram dadas portarias e despachos concedendo isenções, quando estas eram solicitadas. Mas ao se reunir a Guarda Nacional, os comissionados ficavam informados que toda e qualquer isenção estava suspensa. A preocupação de José da Silva Brandão era, como podemos supor, de que o Estado farroupilha ficasse com descrédito entre a população e, apesar de se colocar contra a postura do presidente, cumpria suas ordens e expediu ofícios para oficiais no sentido de

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não se poupar indivíduos das reuniões. Em fins de novembro do mesmo ano, o mesmo Ministro oficiava aos chefes de polícia do departamento de Boqueirão e de Alegrete, falando sobre uma circular de 7 de abril, que regulava que em “casos urgentes e quando a salvação da Pátria assim exigir, fiquem sem efeito as portarias de dispensa do serviço de campanha dadas àqueles indivíduos que as pediram por motivos justos, mas tão somente enquanto que existir essa necessidade”. A razão que fazia o Ministro entrar em contato com os Chefes de Polícia, entretanto, era outra. Reclamava ele de

“haverem-se chamado a reuniões indivíduos empregados em Coletorias, interpretando-se mal a ordem acima: manda portando o mesmo Governo declarar a V. Sa., para sua inteligência e execução, que em qualquer lugar, reunião que de presente ou para o futuro se haja de fazer nesse departamento, sejam isentos os empregados das Coletorias do Estado providos competentemente nos empregos de coletores, escrivães, guardas, etc., pois que estes não podem nem devem ser distraídos do serviço da arrecadação dos direitos de que o Governo lança mão para suprir, ainda que escassamente, aos patriotas dedicados à defesa de nossa liberdade e independência.” (CV-2868).

Maior do que a necessidade imediata de soldados, era o imperativo de se manter em funcionamento as coletorias organizadas pelo governo rebelde para aumentar o numerário da República. Para Flores, com as coletorias, que inicialmente eram em número de 23, “o governo pretendia cobrar impostos sobre diferentes gêneros e atividades, nos distritos dos municípios” (2002: 277). Estavam os empregados destas coletorias, portanto, entre os pouquíssimos indivíduos que estariam fora do âmbito do recrutamento rebelde para a Guarda Nacional, uma vez que os próprios escassos pagamentos de soldo estavam submetidos à boa sorte da atividade desses indivíduos. Quanto ao referente à idade em que um indivíduo deveria ter para poder sentar praça na Guarda Nacional, temos uma mudança, segundo um decreto de 15 de janeiro de 1839. A lei de criação de 1831 colocava como possíveis alistados “os cidadãos que têm voto nas eleições primarias, um vez que tenham 21 annos de idade até 60”, bem como os filhos destes cidadãos eleitores, que tivessem 21 anos para cima (FARIA, 1977: 108). O Capítulo 2 do Título 5 da mesma lei colocava como mínima para a participação na Guarda Nacional, a idade de 18 anos, exclusivamente quando se organizavam corpos para destacamento:

“Designação das Guardas Nacionaes para formação de corpos destacados.Art. 120. Quando legalmente forem chamados corpos destacados das Guardas Nacionaes, elles se comporão:(...)2.° Dos moços de 18 a 21 annos, que se apresentarem voluntariamente, e que forem igualmente julgados proprios para o serviço activo.” (FARIA, 1977: 127)

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O decreto farroupilha de15 de janeiro de 1839, reproduzido no periódico oficial do Estado rebelde, regulava a diminuição de idade para o recrutamento tanto para a Guarda Nacional como para a 1ª Linha do Exército. A partir dos 14 anos de idade os indivíduos poderiam fazer parte da milícia. Uma vez chegados nesta idade, “os mancebos natos neste fertil, e venturozo Paiz (...) se achaó felizmente dotados pela Natureza de huma constituição forte, aptidão, energia, e rara destreza para o serviço das armas, particularmente para o exercicio da cavallaria”. Decretava-se então, o seguinte:

“Artigo unico. Assim para o recrutamento da 1ª Linha, como no alistamento para os Corpos das Guardas Nacionais, (...); serão chamados os moços de idade de quatorze annos incluzive para cima, huma vez que tenhaó a necessária robustez e agilidade para o serviço; os quaes serao licenciados, e enviados a seus domicilios do momento em que cessando a actual crize, se não fizerem necessarios os seus serviços.” (O POVO, 1930: 159).

O decreto não escondia que a decisão visava completar os Corpos, elevando-os ao máximo de força, que habilitasse “hum golpe decisivo sobre os inimigos da Nossa Liberdade e Independência”.

Quanto aos indivíduos que deveriam continuar a ser recrutados, o decreto assinado pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, dava preferência a reunir os “que tem sido surdos aos gritos da Patria, os vadios, e os homens de irregular e escandaloza conducta.” Não fazia distinção, entretanto, entre os indivíduos que deveriam ser chamados para a 1ª Linha e quais seriam chamados para a Guarda Nacional. Notamos, então, que também para a milícia seria dada prioridade ao recrutamento dos indivíduos que eram considerados foras da lei.

Não podemos esquecer que no período do decreto já estava sendo preparado o ataque e tomada de Laguna, com a proclamação da República Juliana. Para a operação muitas forças da campanha e do sítio à capital seriam redirecionadas para a província vizinha. Convinha, destarte, aumentar o recrutamento dentro das possibilidades farroupilhas. Diminuir a idade possível para se recrutar aumentava, obviamente, a quantidade de indivíduos que ao recrutamento estariam submetidos.

Domingos Crescêncio de Carvalho, oficial que estava pertencendo à 1ª Linha do Exército farroupilha, em 7 de novembro de 1839 oficiava a Domingos José de Almeida, com sérias críticas à “maneira por que certos sujeitos destes lugares têm transtornado e continuam os atos do Governo.” Suas reclamações tinham por base a necessidade de se aumentarem as tropas de 1ª linha. Ao tentar fazer o recrutamento da sua tropa, percebeu ele que

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“saíram cartas de peditórios a todos os pais de família para alistarem seus filhos nas Guardas Nacionais, e não contentes com isto foram oficiais para os departamentos com a evasiva de reunirem os Guarda Nacionais que por ali tinham ficado, e alistaram meninos que por pequenos andam nas escolas, por cuja razão nunca se poderão aumentar os Corpos de 1ª Linha de que tanto precisamos, (...)” (CV-3640).

Duas informações interessantes podem ser tiradas desta passagem. A primeira delas é a de que meninos em idade de escola estavam sendo alistados para a Guarda Nacional. O alistamento na instituição não representava um recrutamento imediato, mas impossibilitava o recrutamento dos mesmos para a 1ª Linha.

Uma segunda informação importante é a de que os próprios oficiais de Guarda Nacional estavam realizando os alistamentos nos departamentos. Não eram os Juízes de Paz ou os Chefes de Polícia que estavam concretizando esta tarefa, como previsto no decreto de abril de 1838, mas os chefes da própria milícia. Domingos Crescêncio pedia a Almeida que se decretasse que do início do próximo ano em diante não mais se alistassem Guardas Nacionais enquanto não estivessem preenchidas as vagas relativas à 1ª Linha. Receava Crescêncio que “a lançar mão dos meninos que hoje se acham alistados gritarão os tartufos que querem ditadura, e por isso é que formam tropas”. O oficial do Exército temia, portanto, que a postura dos oficiais da Guarda Nacional estivesse sendo em proveito próprio, buscando construir uma força que pudesse auxiliar em futuras ações relativas ao destino do Estado rebelde. O oficial da 1ª Linha pedia a seu tocaio que o governo buscasse cortar estes abusos, que poderiam ser muito prejudiciais para o Estado. Pedia a Almeida para não considerar estes relatos como “coisa frívola, porque eles pela maciota a todo momento mostram aos que os rodeiam a impossibilidade de se dar cumprimento a qualquer mandado do governo, e já por esta ou por qualquer causa” (CV-3640). Se verdadeiro os argumentos de Domingos Crescêncio de Carvalho, os oficiais da Guarda Nacional sabiam do seu grau de autonomia e as incapacidades do Estado em fiscalizar seus desmandos. Utilizavam-se disso, portanto, para construir uma força cuja utilização, segundo Crescêncio, extrapolaria as necessidades imediatas de manter a guerra contra o Império. Pela dificuldade de aumento de suas tropas por ter seu recrutamento debilitado pela forma como estavam se realizando os alistamentos para a Guarda Nacional, passou Crescêncio a contar com escravos de dissidentes: “Depois que eu tenho mandado agarrar alguns libertos e mesmo pretos dissidentes para o Esquadrão que em ofício de hoje lhe envio”. Possivelmente o Esquadrão em questão fosse para algum dos Corpos de Lanceiros, que foram organizados pela 1ª Linha do Exército farroupilha. Continuando com a questão racial, Domingos Crescêncio relata que “já na primeira Brigada se chamam Guardas Nacionais a homens de cor, e alguns já se têm alistado.” Não

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há na historiografia que se propõe a trabalhar a Guarda Nacional, um consenso se foi ela uma instituição que favoreceu a integração étnica ou não. Pode-se deliberar que a “Guarda Nacional foi a primeira instituição oficial que fez cessar a distinção de cor, o que a tornou essencialmente nova e moderna ao enfrentar o problema das relações étnicas, num regime que reconhecia a escravidão como legítima” (CASTRO, 1979: 136). Temos que ter atenção, porém, que o fato de não ser o fator racial, e sim o econômico, a condição essencial para que o cidadão pudesse ser alistado na Guarda Nacional, não significa terminantemente que os indivíduos desta cor tenham tido amplas oportunidades de adentrá-la. A mesma autora que a reconhece como uma milícia democrática e integradora, admite que a “questão da quantidade de alistamento de pretos e pardos na Guarda Nacional é de difícil aferição, pois nas listas de qualificação, não entravam dados sobre a cor” (CASTRO, 1979: 137). José Iran Ribeiro entende que a instituição, ao menos no sul, não favoreceu a construção de cidadania para os não-brancos:

“não encontramos nenhum sinal na documentação gaúcha da existência da ‘Guarda Nacional’ como meio de integração étnica da sociedade brasileira, (...) no Rio Grande do Sul os negros tiveram poucas possibilidades de ser qualificados como guardas nacionais.” (2005: 202).

Apesar de reconhecer a importância da existência da possibilidade legal dessa mescla acontecer, a participação negra na milícia não foi relevante a ponto de poder ser reconhecida como integradora. Sem adentrarmos nesta discussão, nos limitaremos a discutir rapidamente o caso dos negros nas tropas defensoras da República Rio-Grandense.

Acreditamos que a Guarda Nacional farroupilha não pode ser entendida como instituição que tenha facilitado ou que objetivasse a integração entre as diferentes etnias. A grande parte dos negros que lutaram nas tropas farroupilhas foi retirada das fazendas dos legalistas ou eram comprados dos farroupilhas que aceitassem vendê-los. Dois batalhões de lanceiros foram organizados, o segundo deles em 1838, e para eles é que foi remetida a maior parte dos soldados libertos. Estes dois batalhões eram submetidos à 1ª Linha, e não à Guarda Nacional.

Não obstante, em junho de 1843, Luís José Ribeiro Barreto ordenava ao Coronel Joaquim Teixeira que levantasse todos os cavalos e escravos dos inimigos que estivessem em estado de sentar praça, e os incorporasse ao 5º e 8º Corpo de Guardas Nacionais (CV-2609). Não significa, entretanto, fator de integração. As necessidades causadas pela iniciativa de Caxias no comando das tropas legalistas, fazia com que os farroupilhas precisassem lançar mão de diversos meios para aumentar suas tropas. A partir disso se compreende a aceitação de negros.

O ofício de Domingos Crescêncio de Carvalho, citado acima, também nos informa

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sobre a ocorrência de negros na milícia rebelde. Admirava-se o oficial de que “já na primeira Brigada se chamam Guardas Nacionais a homens de cor, e alguns já se têm alistado.” Anteriormente, o mesmo Crescêncio informava que estava recrutando libertos e negros de dissidentes para a 1ª Linha. O fato da participação de negros na Guarda Nacional rebelde não haver sido integradora, se demonstra pela surpresa de Crescêncio ao informar que já se havia alistado alguns negros na milícia. Ou seja, se levarmos ao pé da letra o que se diz no ofício, concluímos que os poucos negros que lutaram na Guarda Nacional nem ao menos passavam pelo alistamento da instituição.

Em se tratando dos alistamentos para corpos de auxiliares, que seriam destacados em ocasiões específicas, um decreto republicano de 10 de agosto de 1842 regulava que

“Artigo 1º - Todos os Cidadãos Rio-Grandenses de idade de quatorze até cinqüenta anos, inclusive os Oficiais demitidos, e reformados são obrigados a defender a Pátria, sacrificando sua vida, pessoa e bens, reunindo-se ás fileiras do Exército como auxiliares, logo que o Comando em Chefe do mesmo reclame a reunião geral das forças da República.

§ Único – Para não ser iludida a disposição do presente artigo com respeito a idade de cinqüenta anos, ficam compreendidos na reunião todos os indivíduos, que apesar de alegarem serem maiores da referida idade tenham a necessária robustez para o serviço de campanha.” (CV-6277).

Na organização dos Corpos de Auxiliares, mesmo os oficiais demitidos e reformados deveriam pegar em armas. Para não se burlar a idade de cinqüenta anos, a condição física seria a condição para que o indivíduo prestasse serviço. Quanto às vantagens para os indivíduos que se prestassem a servir nos batalhões de auxiliares, o decreto acrisolava:

“Artigo 2º - Todos os indivíduos, que como auxiliares se prestarem com assiduidade no serviço da campanha, sem nota de deserção, ficarão isentos do recrutamento de linha ainda que não tenham outra exceção a seu favor: àqueles porém que abandonarem as fileiras por deserção, ou outro infundado motivos, assentarão praça em um dos Corpos de 1ª Linha por cinco anos sendo solteiro, e sendo casados servirão adidos em um dos mesmos Corpos, por dois anos.”

Portanto, a recompensa para os que se prestassem ao serviço sem desertar, seria a isenção do recrutamento para a 1ª Linha do Exército, podendo ser recrutados apenas para a Guarda Nacional. Os que abandonassem a fileira, por sua vez, prestariam serviço de dois a cinco anos nas fileiras da 1ª Linha. Com essa medida, objetivava-se diminuir o número de deserções, que eram grandes. A recompensa de se prestar serviço apenas na Guarda Nacional poderia contribuir para que os indivíduos não desertassem, bem como o castigo de serem recrutados por anos para a 1ª Linha também criaria temor nos que pensassem em desertar. Essa medida também poderia auxiliar no aumento do efetivo de soldados na

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1ª Linha, uma vez que os que desertassem dos auxiliares seguiriam para ela.Quanto às autoridades que seriam responsáveis por realizar este alistamento para

os corpos de auxiliares, a ordem ia ao encontro do decreto de abril de 1838:

“Artigo 3º - Desde já os Juizes de Paz, em sua falta os Comandantes de Polícia procederão ao alistamento de seus distritanos, que não sendo Guardas Nacionais do serviço ativo, ou praças do Exército, estejam nas circunstâncias preditas, entregando uma lista dos qualificados ao Comandante da Companhia de Guarda Nacional do Distrito, para este os reunir quando lhe for ordenado, remetendo outra igual ao respectivo Chefe de Polícia do Município, o qual tanto que lhe forem entregues as listas parciais dos Distritos, formará uma geral, que remeterá logo a Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra.”

Seriam alistados, portanto, os habitantes do distrito que não prestassem serviço ativo na Guarda Nacional e que não fossem praças da 1ª Linha. Os Juízes de Paz, juntamente com os Comandantes de Polícia dos distritos seriam responsáveis pelo alistamento dos citados indivíduos. Segundo o decreto de abril de 1838, seriam os juízes de paz e os chefes de polícia os responsáveis por este serviço. Estes últimos eram os responsáveis pela polícia no município, enquanto os comandantes de polícia apenas tinha autoridade sobre a polícia do distrito a que pertenciam. Porém, constituíam uma mesma organização. Portanto, é muito mais lógico que fossem os comandantes de polícia que realizassem essa atividade, no âmbito do próprio distrito. Duas listas seriam enviadas feitas pelos alistadores: uma se destinaria ao oficial da Guarda Nacional do distrito, para realizar o recrutamento quando necessário; outra seria enviada ao Chefe de Polícia que a remeteria ao Secretário dos Negócios da Guerra. Assim, o governo possuiria um controle sobre o total das forças alistadas no corpo de auxiliares. Desse modo, “Os Chefes de Polícia, Juizes de Paz, e Comandantes de Polícia são estritamente responsáveis pelo pronto e pontual desempenho das disposições precedentes.”

Em fevereiro do mesmo ano de 1842, Manuel Lucas de Oliveira estava novamente no comando da 1ª Brigada da Guarda Nacional farroupilha. Bento Gonçalves havia ordenado que se fizesse “nova organização dos corpos que compõem aquela Brigada e ao mesmo tempo o novo alistamento da Guarda Nacional, organizar os que devem fazer a polícia nos distritos e promover tudo que for conveniente à disciplina da Força” (BG-300). A segurança dos distritos e das propriedades dos cidadãos também deveriam ser responsabilidade da Guarda Nacional renovada.

O alistamento deveria ser feito pelos Juízes de Paz e Chefes de Polícia, porém, Bento Gonçalves reconhecia que ignorava “quais sejam os juízes de paz desse departamento”, e por isso remetia “três circulares por mim assinadas para V. Sa. pôr nelas o nome dos mesmos, e com o competente sobrescrito as enviar aos supracitados juízes.” O Chefe de polícia do departamento, que era a quem se dirigia o ofício, devia, portanto, fazer postar

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o nome e entregar aos juízes de paz as circulares de Bento Gonçalves.Como vimos anteriormente, muitas vezes eram os próprios oficiais da Guarda

Nacional que estavam realizando o alistamento nos distritos, relegando as autoridades responsáveis.

Quanto às reuniões, ainda em 1838, Antônio Vicente da Fontoura como Chefe da Polícia do município de Cachoeira, cumpria as ordens do Governo farroupilha e ordenava que quando os comandantes de corpos, esquadrões ou companhias fossem a qualquer distrito para fazer suas reuniões, deveriam antes de se entender “com os respectivos comandantes de polícia, para estes conjuntamente com o oficial encarregado da diligência percorrer o distrito e combinar o melhor meio de se não tornar improfícua a diligência” (CV-4794). Poderia ser isso realmente uma tentativa para fazer a reunião ser bem sucedida, já que o Comandante de Polícia poderia ter maior conhecimento sobre o distrito. Compreendemos, também, que a ordem para que o Comandante de Polícia acompanhasse o oficial, pode ser interpretada como uma tentativa de impedir os abusos de alguns oficiais na arregimentação.

O Comandante de Polícia ficaria também “inteirado das praças que seguem reunidas, para no caso de que deserte alguma, ele imediatamente fazer prender e remeter ao Exmo. General-em-Chefe.” Ficaria o Comandante de Polícia do distrito, portanto, como responsável por fiscalizar o reaparecimento de soldados que deveriam estar nas fileiras. Por sua vez, o Comandante de Polícia também estaria sujeito à punição caso não desse todo o auxílio nas reuniões (CV-4794).

Em 15 de maio do ano seguinte, 1839, Inácio José de Oliveira Guimarães dava poderes para Urbano Soares, como Comandante interino do 4º Corpo de Guarda Nacional, fazer as reuniões em seu departamento:

“Agora sou de posse de seu ofício de ontem acompanhando o do Exmo. General, e em vista de ambos tenho a dizer a V. Sa. que reitero os poderes que a V. Sa. tenho conferido para tudo reunir, podendo V. Sa., em vista das ordens que tenho dado aos comandantes de polícia, isso ordena-lhe em meu nome.” (CV-5144)

O Comandante geral de Polícia dava poderes para o próprio oficial fazer a reunião, auxiliado pelos Comandantes de Polícia distritais. Este documento vai no mesmo sentido do anterior, com o oficial sendo a figura principal da arregimentação e sendo auxiliado pelas autoridades policiais. Informações relativas à atuação dos Juízes de Paz nesses casos não são encontradas nestes documentos. Ao serem questionados os Comandantes de Polícia sobre a não perseguição aos desertores do seu distrito, relatavam eles que

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“estão quase coatos (e o mesmo os juízes de paz) pois que reuniões se têm feito em seus distritos sem que tenham disso parte ou se lhes peça auxílio, resultando de um tal abuso as carneações sem regra que fazem as partidas que vêm reunir nos distritos, e mais o pouco número de homens que reúnem, ficando porção de praças que podiam estar em campanha.” (CV-4794)

Portanto, tanto os Comandantes de Polícia como os Juízes de Paz ficavam sem poder de ação para conter as atividades dos oficiais da Guarda Nacional, pois muitas vezes não lhes era informado sobre as ordens de recrutamento. As partidas que viriam fazer as reuniões abusariam das carneações que faziam, como não conseguiam arregimentar o maior número de homens possível.

Dessa forma, verifica-se que além de estarem afastados, muitas vezes, dos alistamentos para a Guarda Nacional, também nas reuniões a figura do Juiz de Paz estava relegada a segundo plano. Não eram eles as autoridades que possuíam o maior controle relativo à organização distrital da milícia.

Na utilização dos soldados da Guarda Nacional, estes também seriam aproveitados quando se elaboraram pelo governo farroupilha as fábricas para diminuir o preço dos produtos necessitados, em especial pelas tropas. Segundo Flores, nestas fábricas a “República Rio-Grandense usou a mão de obra escrava porque os livres consideravam vergonhoso qualquer trabalho braçal” (2002: 301). Entretanto, em 18 de fevereiro de 1841, o governo rebelde ordenava a um cidadão que: “V. Sa. e os Guardas Nacionais José Lopes, Francisco Lemes de Andrade, José Henriques, Felisberto Rodrigues de Quevedo e Venâncio Rodrigues, Joaquim Andrada fiquem isentos de qualquer reunião enquanto que estejam em tal serviço” (CV-6231). Não acreditamos que os sete guardas nacionais mencionados fossem negros, por ser pequeno o número de negros na milícia e porque vários dos que lutavam nela, não era alistado na mesma. Logo, não poderiam ser reconhecidos como guardas nacionais. Não só nas fileiras, portanto, foram utilizados os guardas nacionais farroupilhas.

3. PALAvRAS FINAIS

Durante o período da Guerra dos Farrapos, as características que assumiu a Guarda Nacional que esteve submetida aos farroupilhas e à República Rio-Grandense não foi necessariamente igual às características da Guarda Nacional legalista ou imperial. Mudanças ocorreram na estruturação da milícia rebelde, apesar de ser impossibilitada uma maior organização das tropas farroupilhas, em razão das vicissitudes do período bélico. Mariante, parafraseando Pandiá Calógeras acredita que as

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“(...) tropas farroupilhas nunca foram um Exército regular e organizado. Sua função era a guerrilha. (...) Iam e vinham os soldados voluntários a seu bel-prazer. Batiam-se, perseguiam ou dispersavam-se, conforme exigiam os acontecimentos ou ordenavam os chefes.” (1985: 60)

Apesar do extremismo da afirmação, a organização das tropas rebeldes realmente esteve submetida às dificuldades do período. Ademais, percebemos que a Guarda Nacional farroupilha não foi, como também a legalista do período, uma instituição que favoreceu a integração étnica, uma vez que os negros libertados dos legalistas ou vendidos não tiveram acesso disseminado à Guarda Nacional, apesar do fator censitário não ser mais obrigatório para o indivíduo sentar praça. O decreto de abril de 1838 colocava a autoridade do Juiz de Paz, juntamente com a de Chefe de Polícia, como os responsáveis pelo alistamento dos Guardas Nacionais. O que se nota, é que a desorganização causada fez com que por vezes fossem relegadas estas figuras pelos próprios oficiais da Guarda Nacional, que faziam diretamente este trabalho. Estas ações, que buscavam reforçar a tropa, poderiam acontecer também para que o comandante aumentasse a sua força entre os demais líderes farroupilhas, objetivando, quem sabe, a “ditadura”. As modificações ocorridas na estrutura da Guarda Nacional farroupilha podem também estar condicionadas, além das necessidades decorrentes das necessidades da luta, também às posturas individuais de alguns líderes. Sabemos que muitos abusos ocorreram fora do âmbito das autoridades políticas farroupilhas, mas que estiveram condicionadas pelas decisões dos oficiais que tinham o poder militar – ou civil-militar. As mutações da Guarda Nacional, como a extinção do imperativo censitário para fazer-se parte dela, e a diminuição da idade mínima para se sentar praça, podem ser apenas a institucionalização de ações que já poderiam estar sendo realizadas pelos oficiais quase autônomos no âmbito dos distritos. Por fim, podemos refletir sobre até que ponto a continuação da existência da instituição da Guarda Nacional dentro do Estado farroupilha, pode demonstrar ideologicamente o sentido federativo da República Rio-Grandense. Ela não foi extinta, nem as leis imperiais deixaram de regê-la por completo – apesar de profundamente remodeladas. Podemos dizer que a tal da Revolução Farroupilha foi tão brasileira que até mesmo em suas instituições civis-militares ela deixou de estar ligada ao Brasil como um todo?

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REFERêNCIAS bIbLIOGRáFICAS:

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Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Coletânea de Documentos de Bento Gonçalves da Silva. Porto Alegre: 1985.

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