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5/18/2018 09BAKHTINEOSPROCESSOSDEDESENVOLVIMENTOHUMANO.pdf-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/09-bakhtin-e-os-processos-de-desenvolvimento-humanopdf Bakhtin e os processos de desenvolvimento humano Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2010; 20(3) 745-756  – 745 – BAKHTIN E OS PROCESSOS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO  BAKHTIN AND THE PROCESSES OF HUMAN DEVELOPMENT  Fabio Scorsolini-Comin 1  Manoel Antônio dos Santos 2 1 Psicólogo, Mestre. Professor do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, da Educação e do Trabalho da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). E-mail: [email protected] 2 Psicólogo, Mestre e Doutor. Professor Doutor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade Científica em Pesquisa do CNPq, Nível 1D. E-mail: [email protected] Endereço para correspondência: Prof. Dr. Manoel Antônio dos Santos. Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP USP, Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, CEP: 14040-901, Telefone: (16) 3602 3645 Scorsolini-Comin F; Santos MA. Bakhtin e os processos de desenvolvimento humano: um diálogo de, no mínimo, duas vozes. Rev. Bras. Cresc. e Desenv. Hum. 2010; 20(3) 745-756. Resumo: A obra de Bakhtin tem sido apropriada não apenas pela Linguística, como também por diferentes áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Educação e as Artes. Ao aproximarmos este autor do campo do desenvolvimento humano, podemos compreender de que modo o dialogismo e a polifonia podem ser evocados no diálogo com os contextos desenvolvimentais e com as práticas discursivas. Essa aproximação contribui para repensar o paradigma científico que contempla o desenvolvimento unicamente como uma sequência linear de estágios e aquisições maturacionais. Para além dessas considerações reducionistas, Bakhtin provoca o leitor para narrar o seu próprio desenvolvimento, que é sempre relacional, dialógico e posicionado. Palavras-chave: dialogismo; polifonia; linguagem; desenvolvimento; Bakhtin. Abstract Bakhtin’s work has been appropriated not only for linguistics but also for different areas of knowledge such as Psychology, Education and Arts. Approximating this author’s work to the field of human development, it can be understood how dialogism and the Arts. In approaching this author’s field of language and human development, we can understand how the dialogism and polyphony can be evoked in dialogue with developmental contexts and discursive practices. This approximation helps to rethink the scientific paradigm which views the development as a linear sequence of maturational stages and acquisitions. Beyond these reductionist considerations, Bakhtin provoques the reader to narrate their own development, which is always relational, dialogic and positioned. Key words: dialogic; polyphony; language development; Bakhtin. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2010; 20(3) 745-756 PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH 

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    BAKHTIN E OS PROCESSOS DE DESENVOLVIMENTOHUMANO

    BAKHTIN AND THE PROCESSES OF HUMAN DEVELOPMENT

    Fabio Scorsolini-Comin 1Manoel Antnio dos Santos 2

    1 Psiclogo, Mestre. Professor do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, da Educao e do Trabalho da UniversidadeFederal do Tringulo Mineiro (UFTM). E-mail: [email protected]

    2 Psiclogo, Mestre e Doutor. Professor Doutor do Departamento de Psicologia e Educao da Faculdade de Filosofia, Cinciase Letras de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo. Bolsista de Produtividade Cientfica em Pesquisa do CNPq, Nvel1D. E-mail: [email protected] para correspondncia: Prof. Dr. Manoel Antnio dos Santos. Departamento de Psicologia e Educao da FFCLRPUSP, Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeiro Preto, SP, CEP: 14040-901, Telefone: (16) 3602 3645

    Scorsolini-Comin F; Santos MA. Bakhtin e os processos de desenvolvimento humano: umdilogo de, no mnimo, duas vozes. Rev. Bras. Cresc. e Desenv. Hum. 2010; 20(3) 745-756.

    Resumo:A obra de Bakhtin tem sido apropriada no apenas pela Lingustica, como tambm pordiferentes reas do conhecimento, como a Psicologia, a Educao e as Artes. Aoaproximarmos este autor do campo do desenvolvimento humano, podemos compreenderde que modo o dialogismo e a polifonia podem ser evocados no dilogo com os contextosdesenvolvimentais e com as prticas discursivas. Essa aproximao contribui para repensaro paradigma cientfico que contempla o desenvolvimento unicamente como uma sequncialinear de estgios e aquisies maturacionais. Para alm dessas consideraes reducionistas,Bakhtin provoca o leitor para narrar o seu prprio desenvolvimento, que sempre relacional,dialgico e posicionado.

    Palavras-chave: dialogismo; polifonia; linguagem; desenvolvimento; Bakhtin.

    AbstractBakhtins work has been appropriated not only for linguistics but also for different areas ofknowledge such as Psychology, Education and Arts. Approximating this authors work tothe field of human development, it can be understood how dialogism and the Arts. Inapproaching this authors field of language and human development, we can understandhow the dialogism and polyphony can be evoked in dialogue with developmental contextsand discursive practices. This approximation helps to rethink the scientific paradigm whichviews the development as a linear sequence of maturational stages and acquisitions. Beyondthese reductionist considerations, Bakhtin provoques the reader to narrate their owndevelopment, which is always relational, dialogic and positioned.

    Key words: dialogic; polyphony; language development; Bakhtin.

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    INTRODUO

    Bakhtin e seus tempos, para iniciar odilogo que este estudo pretende instaurar, jul-ga-se fundamental justificar a escolha do ttu-lo. Ao afirmar que, em qualquer dilogo, estopresentes, no mnimo, duas vozes, Bakhtin nose refere ao fato de que, para travarmos umaconversa, precisamos estar com (ou nos reme-termos a) um outro, pelo menos1. O dilogo,longe de ser constitudo por quantidades (defalantes, de ouvintes ou de observadores), ul-trapassa tal considerao. O dilogobakhtiniano contrape-se ao discursomonolgico, sendo compreendido como aoentre interlocutores1. Mesmo no discurso inte-rior, diferentes vozes so por ns atualizadas,de modo que no h um discurso nico, isola-do de um contexto e do qual no participemoutras vozes, outros discursos e alteridades.

    Uma voz no produz dilogo o que nosleva necessidade de um outro que produzaconosco sentidos e formas de se compreendera experincia humana a partir da linguagem.Assim, uma primeira referncia que deve serdesenvolvida em relao concepo de di-logo em Bakhtin repousa na busca de sentidocomo ato de compreenso, que escapa a umarelao puramente lgica ou factual. no em-bate entre as diferentes vozes que podemospropiciar a escrita de um novo texto, como oque ser aqui apresentado2.

    Neste estudo discutiremos algunsconstrutos axiais da obra de Bakhtin, cuja re-levncia tem sido consistentemente reconhe-cida nas ltimas dcadas. A importncia cres-cente atribuda a este autor pode ser estimadapelo modo reiterado como sua obra tem sidoapropriada no apenas pela Lingustica, comotambm por diferentes reas do conhecimen-to, como a Psicologia, as Cincias Sociais, aComunicao, a Educao e as Artes. Preten-demos colocar em relevo as potencialidadescriadas ao aproximarmos essa obra do campodo desenvolvimento humano, o que permite

    compreender de que modo o dialogismo e apolifonia podem ser evocados no dilogo comos contextos desenvolvimentais e com as pr-ticas discursivas. Ao desenvolvermos nossaargumentao, procuraremos explicitar de quemodo, com o pensamento de Bakhtin, pode-mos revisar os paradigmas consagrados queinformam a Psicologia do Desenvolvimento,fundamentando uma concepo alternativa queconvoque o pesquisador a narrar seu prprioprocesso a partir de uma perspectiva dialgicaque contemple as diferentes vozes, entoaese vises de mundo.

    Mikhail Bakhtin nasceu em 1895, emOriol, Rssia, e morreu em 1975, em Moscou.Como referido por Todorov, em prefcio es-crito para a obra Esttica da Criao Verbal1,esse autor marcou poca como uma das figu-ras mais importantes do universo intelectualdo sculo XX, sendo considerado por seus pa-res um grande pensador e terico da lngua.Articulador original, inaugurou uma renova-o no campo dos estudos lingusticos e liter-rios do Ocidente, depois que suas ideias ultra-passaram as fronteiras da Rssia, a partir dadcada de 1970.

    Bakhtin foi um linguista na atualmenteextinta Unio Sovitica, onde viveu e desen-volveu sua obra em um contexto histrico mar-cado por intensas transformaes sociopolti-cas. No contexto e circunstncia em que viveu,o marxismo exerceu acentuada influncia emseu pensamento. Compartilhou com os teri-cos marxistas um interesse pelo mundo hist-rico e social, especialmente pelo modo comoos seres humanos pensam e agem sob condi-es concretas e objetivas de existncia. Ouseja, seu interesse centrava-se na lngua comoforma por meio da qual as ideologias se articu-lam e mascaram a percepo da realidade. Paraeste autor, a lngua portadora de ideologias euma prtica material.

    Bakhtin enfatizou a heterogeneidadeconcreta da parole, ou seja, a complexidademultiforme das manifestaes de linguagem em

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    situaes sociais concretas, diferentemente deSaussure e dos estruturalistas, que privilegia-ram a langue, isto , o sistema abstrato da ln-gua, com suas caractersticas formas passveisde serem repetidas3. Bakhtin empreendeu umacrtica aos formalistas, no sentido de que, paraele, a doutrina formalista seria uma esttica domaterial, reduzindo os problemas da criaopotica a questes de linguagem. O fundamentode sua crtica reside na desnaturalizao e ca-minha contra a reificao da linguagem po-tica e do estudo exaustivo de todos os proces-sos por parte dos formalistas, que acabaram pormenosprezar os demais ingredientes do ato decriao, como o contedo, a relao com omundo e a forma.

    Mais ainda, Bakhtin propunha examinara lngua alm daqueles olhares, pois tinha ointeresse de examinar como os povos a usa-vam. Entendia a lngua como uma prtica ma-terial e sempre constituda na interao social.Assim, enfatizava a necessidade de se pensara palavra como resultante no apenas de pro-cessos fsicos, mas tambm fisiolgicos e psi-colgicos e, sobretudo, inserido nos interstciosdas relaes sociais.

    Como homem de seu tempo, este autorenfrentou problemas com o regime totalitriosovitico, que o levaram a se exilar e a elabo-rar muitos de seus trabalhos durante o exlio.Em razo de seus conflitos polticos com o re-gime que governava a Unio Sovitica commo de ferro, assim como das dificuldades detraduo de suas obras do russo para outrosidiomas, as culturas ocidentais comearam ater acesso aos seus textos tardiamente, somen-te a partir de 19704.

    BAKHTIN EM LINHAS GERAIS

    As ideias de Bakhtin focalizam, primei-ramente, o conceito de dilogo e a noo deque a lngua sempre um dilogo. Para estepensador, o verdadeiro objeto de estudo da Lin-

    gustica seria o caminho pelo qual a realidadesocial partilhada pelos indivduos torna-se con-dio essencial para que a lngua se una falae se torne processo de comunicao capaz deproduzir atos de fala.

    A verdadeira substncia da lngua seriao ato dialgico em seu acontecimento concre-to, sendo que qualquer dilogo, alm de ser eleprprio histrica e socialmente determinado,evidencia uma outra histria: a histria da pr-pria linguagem. A lngua seria o produto do tra-balho coletivo e ininterrupto de sujeitos social-mente organizados, cujo processo instaura aconstruo, tambm coletiva, de conhecimen-tos, prticas e saberes sobre o mundo4,5.

    Na concepo bakhtiniana, a noo cen-tral da pesquisa esttica no deve ser a mate-rial, e sim a arquitetnica ou a construoou, ainda, a estrutura da obra entendida comoum ponto de encontro e interao entre mate-rial, forma e contedo6. O pensamento pluralde Bakhtin possui uma unidade assegurada pelacentralidade da linguagem, cujo mtodo deanlise a dialtica7. Na multiplicidade de te-mas investigados em sua obra a stiramenipeia, a cultura popular medieval, o roman-ce moderno ou escritores como Rabelais eDostoievski possvel identificar uma ques-to de base denominada dialogismo, conceitoque ser abordado ao longo deste artigo.

    EM BUSCA DE UM DILOGO COM ODESENVOLVIMENTO HUMANO

    Primeiramente, deve-se destacar queBakhtin um terico que parte da Lingusticae que no apresenta propriamente uma teoriasobre desenvolvimento. No entanto, tem sidoeminentemente evocado no sentido de subsi-diar investigaes nos domnios de diferentescincias, entre elas a Psicologia, bem como aEducao. Estabelecendo uma aproximaocom a Psicologia do Desenvolvimento, deve-se pontuar que Vigotski e Bakhtin, para citar-

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    mos apenas um dos dilogos possveis nessainterface, viveram na mesma poca e apresen-taram significativas convergncias em suasobras, embora nenhum deles tenha se validodo outro na construo de suas teorias em tor-no da linguagem e do desenvolvimento huma-no. Eles possuam no apenas formaes dife-rentes, como tambm focos diferentes deinvestigao. Vigotski focalizou a sua obramuito mais nas questes desenvolvimentais,enquanto que Bakhtin estudou mais a lingua-gem a partir da perspectiva da Lingustica, oque gerou mudanas importantes no modocomo a linguagem era focalizada e concebidana cincia2,8.

    Atravessando os campos da Psicolo-gia e tambm da Educao, a obra deVigotski mais difundida, juntamente coma de Jean Piaget, e est ao alcance da maiorparte dos pesquisadores e educadores. Nocaso da obra de Bakhtin, relativamente me-nos conhecida, essa situao vem sendo mo-dificada nos ltimos anos, ainda que asquestes relativas sua traduo do russoainda sejam alvo de embates ediscordncias. Ainda assim, alguns pesqui-sadores2 tm trabalhado com os pontos deinterseco entre esses pensadores. Umexemplo disso o fato de ambos terem de-senvolvido uma viso totalizante, no-frag-mentada da realidade, compreendendo o ho-mem como um conjunto de relaes sociais.Desse modo, o homem no pode mais serestudado, na Psicologia do Desenvolvimen-to Humano, como ser isolado, sob a pers-pectiva de uma postura individualizante queno olha para alm de uma constituio f-sica, como no caso de crianas com defi-cincia includas na escola4. A tnica nodeveria ser colocada, portanto, nas capaci-dades ou incapacidades da criana em ter-mos de rendimento escolar, mas no modocomo ela, naquele ambiente, pode se desen-volver e oferecer a oportunidade inequvo-ca de que as pessoas do seu entorno (pais,

    professores, profissionais e coetneos) tam-bm se desenvolvam e se transformem.

    Alguns estudos, nesse sentido, fazem usodos pressupostos bakhtinianos para se pensaro desenvolvimento humano em contextos di-versos, como a adoo e as prticas de acolhi-mento, as identidades de pessoas envolvidascom o crime9, a incluso de crianas na esco-la4, o desenvolvimento de bebs em espaoscoletivos10, bem como a prpria construo deum referencial terico-metodolgico na Psico-logia do Desenvolvimento11,12. Nesse sentido,uma das noes mais evocadas nessas investi-gaes a de dialogismo.

    O dialogismo um conceito que permeiatoda a obra de Bakhtin. Tal conceito pode serdefinido como o princpio constitutivo da lin-guagem, o que significa que toda linguagem,em qualquer campo, est impregnada por rela-es dialgicas7. A concepo dialgica con-tm a ideia da relatividade da autoria indivi-dual e, por conseguinte, o destaque do cartercoletivo e social da produo de discursos.

    De acordo com as proposiesbakhtinianas, a alteridade marcaria o ser hu-mano. Nessa vertente, o dialogismo seria oconfronto das entoaes e dos sistemas de va-lores, que possibilitam as mais variadas visesde mundo acerca de um tpico especfico. Oser humano seria considerado um intertexto,na medida que no existe isoladamente, j quea sua vida se tece, entrecruza-se e interpenetra-se com a experincia do outro. Os enunciadosde um falante esto, sempre e inevitavelmen-te, atravessados pelas palavras do outro: o dis-curso elaborado pelo falante constitui e se cons-titui tambm do discurso do outro que oatravessa, condicionando o discurso do eu.

    O conceito de dialogismo assume impor-tncia capital medida que entende a palavracomo portadora de um constante dinamismo eo ser humano como agente, isto , ele no ape-nas influenciado pelo meio, como tambmage ativamente sobre o mesmo, transforman-do-o7. Alm disso, do ponto de vista da comu-

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    nicao, o dialogismo ratifica o conceito de co-municao como interao verbal e no-ver-bal, no meramente como transmisso da in-formao. O dialogismo operaria dentro dequalquer produo cultural, seja letrada ouanalfabeta, verbal ou no verbal, elitista oupopular.

    Em Bakhtin, a noo de dialgico ou dedialogicidade10 aparece por meio de diversasvertentes, a saber:

    (a) Dialogismo interno da palavra: nodiscurso, o objeto est mergulhado em valo-res, crenas, descries e definies, o que fazcom que o falante se depare com mltiplos ca-minhos e vozes, que se tecem ao redor desseobjeto a dialtica do objeto est ligada aodilogo social que o engloba10;

    (b) Dialogicidade nos enunciados: mes-mo antes da concretizao de um determinadoenunciado e tambm posteriormente, h ou-tros enunciados, que emanam dos outros, aosquais o prprio enunciado est vinculado poralgum tipo de relao. Nesse sentido, o pr-prio locutor seria um respondente, visto queele no detm o ponto zero do discurso, ou seja,no o enunciou pela primeira vez, dado que odiscurso no se origina nele. Assim, quandoescolhemos uma palavra, costumamos extra-la de outros enunciados, fundamentamo-nosneles ou polemizamos com eles, os refutamosou os confirmamos, os completamos ou os su-pomos conhecidos, baseamo-nos neles ou con-tamos com eles10. Essa seleo de palavras podeser expressa, por exemplo, nas prticas educa-tivas em ambientes educacionais distintos. Pormeio das palavras selecionadas para descreveruma determinada realidade (contexto da inclu-so)4 e tambm das palavras no selecionadas(tentando despistar a identificao das deficin-cias), as pessoas acabam expressando em seuscomportamentos muitas de suas concepesacerca do desenvolvimento, da incluso e daeducao infantil. nesse sentido que pode-mos compreender que o dialogismo no se ex-pressaria apenas por meio das palavras faladas

    ou escritas, mas tambm naquelas subentendi-das em nossa comunicao verbal ou no-ver-bal;

    (c) Dialogismo construdo pela emer-gncia de vrias vozes relacionadas a um temaespecfico, dadas pela antecipao da respostados outros e das possveis respostas imagina-das por ele, em funo do interlocutor e docontexto10. Ainda seguindo o exemplo menci-onado anteriormente, os modos como os pais eas professoras se posicionam frente deficin-cia e incluso acabam sendo regulados pormeio das expectativas que criam em torno doolhar do pesquisador. Sendo assim, o que cadaindivduo diz, o que expressa e o modo comoatua nesse contexto devem ser balizados peloque ele compreende que mais adequado doponto de vista psicolgico ou pedaggico. As-sim, as prticas empregadas com as crianasditas especiais ou deficientes so orienta-das pelos discursos presentes em cursos de for-mao para a incluso, pelo olhar que apregoaa cidadania e o direito de todos educao dequalidade, bem como pela presena do pesqui-sador no ambiente educacional4,13.

    (d) Dialogizao das linguagens: umalngua nacional plural, pois abriga umcompsito de linguagens: oriundas das reuniessociais, familiar, cotidiana, sociopoltica; lin-guagem dos jarges profissionais (advogado,mdico, empresrio, poltico, professor...), lin-guagem de gerao e de idade, linguagem deautoridade, linguagens ordinrias do dia; lin-guagem oratria, publicitria, cientfica,jornalstica, literria..., com mltiplas vozesque estabelecem uma variedade de conexes einter-relacionamentos10.

    Desse modo, Bakhtin considera que odiscurso vivo e que vive nos modos sociais,devendo ser visto de formas contraditrias ecomo mundos de mltiplas linguagens que seinterligam. Assim, essas diferentes linguagens10no se excluem umas s outras, masdialogicamente intersectam-se de maneirasmuito diferentes, com uma interanimao em

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    uma variedade de formas. Nesse processo,ocorre a coexistncia de contradies so-cioideolgicas entre o presente e o passado;entre diferentes pocas do passado; entre di-ferentes grupos socioideolgicos do presente;entre tendncias, escolas, crculos e assim pordiante, com o encontro e a disputa entre pon-tos de vista sociolingusticos distintos. Estespodem estar justapostos, mutuamente suple-mentando ou contradizendo-se; algumas lin-guagens falham a se desenvolverem, algumasmorrem, enquanto que outras florescem em lin-guagens autnticas. Dado o jogo vivo, a lin-guagem se encontra em um histrico eininterrupto processo de tornar-se, formandosocialmente novas linguagens (p. 17).

    A linguagem, como um dos aspectosmais relacionados ao desenvolvimento huma-no, pode ser compreendida, em Bakhtin, comorelacionada aos contextos que constituem aspessoas. A linguagem como uma relao aca-ba por se descolar das tradies focadas emseus aspectos morfolgicos. Desse modo, anfase no dada ao que adquirido em cadaetapa do desenvolvimento, como destacavaPiaget14, mas sim ao que transformado,coconstrudo, reinterpretado a partir da lin-guagem em seu acontecimento concreto, emsua apropriao como signo, em dado momen-to histrico-cultural, como compartilhado porVigotski2,15. Em Bakhtin, o sujeito emergena relao com o outro. um sujeito dialgicoe seu conhecimento fundamentado no dis-curso que ele produz. O sujeito dialgicobakhtiniano solidrio das alteridades de seudiscurso ao ser concebido em uma partiode vozes concorrentes, posto que a palavra dooutro se transforma, dialogicamente, tendo umcarter criativo2. Tal sujeito incompleto, noest acabado, mas mantm uma busca eternade completude que se apresenta comoinconclusiva, de tal modo que se torna impos-svel uma formao individual sem alteridade,pois o outro delimita e constri o espao deatuao do sujeito no mundo. No entanto, o

    outro constitui o sujeito ideologicamente eproporciona-lhe o acabamento3.

    Sob a tica da antropologia, o pensamen-to bakhtiniano permite uma compreenso ra-dical da alteridade, pois apresenta uma visomultirreferenciada, na qual tempo e espaoesto em constante interao no processo deconstruo eu/outro9. Assim, possvel enten-der o outro de uma maneira original, pois ele referido no como algum que est fora de mim,que estranho a mim, mas como algum queme constitui, que contribui para o processo deconstruo de um eu que no me pertence in-tegralmente e que somente existe a partir doolhar do outro. Assim, eu e outro se constroemmutuamente a partir de referenciais temporaise espaciais que os antecedem, so seus con-temporneos e, ao mesmo tempo, so seus her-deiros, no bojo de um processo no qual hmltiplas possibilidades de vir a ser8. Essa con-siderao est fortemente presente em perspec-tivas desenvolvimentais como as da Rede deSignificaes10,11,16 que, para alm de uma com-preenso de desenvolvimento como sinnimode crescimento e de superao de fases e per-odos evolutivos, compreende tal processo comodialgico, aberto a releituras e sempre atentoaos sentidos e s relaes que se colocam emcada momento. O que as pessoas so ou o queviro a ser no depende de uma sucesso dedesenvolvimentos, mas um continuum de rup-turas, apropriaes e transformaes que se do medida que nos desenvolvemos e interagimoscom nossos mltiplos outros, evocados emnossa linguagem, em nosso pensamento e emnossos comportamentos, aes e prticas.

    NOSSA LNGUA BAKHTINIANA

    Como processo constituinte do desen-volvimento, a linguagem compreendida paraalm de seus aspectos tcnicos, morfolgicose sintticos. Antes, apreendida como um in-dicador de desenvolvimento, estando presente

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    no apenas no nvel verbal, mas tambm ope-rando no no-verbal. Assim, Bakhtin destaca acentralidade da linguagem na vida do homem1.Em sua concepo, a palavra o material dalinguagem interior e da conscincia, alm deser elemento privilegiado da comunicao navida cotidiana, que acompanha toda criaoideolgica, estando presente em todos os atosde compreenso e interpretao. Para este au-tor, a palavra tem sempre um sentido ideolgi-co ou vivencial, relaciona-se totalmente com ocontexto e carrega um conjunto de significa-dos que lhe foram socialmente outorgados,negociados, negados e/ou assumidos. A pala-vra tambm polissmica e plural, uma pre-sena viva da histria, por conter mltiplos fiosideolgicos que a tecem.

    O produto do ato da fala, a enunciao, de natureza social, sendo determinada pelasituao mais imediata ou pelo meio social maisamplo. O que torna possvel a compreenso deuma palavra tambm aquilo que presumidopelo ouvinte, porque toda palavra usada na falareal possui um acento de valor ou apreciativo,transmitido por meio da entoao expressiva.Por isso, juntamente com a palavra acontecemos gestos, as expresses faciais, a tonalidade eas entonaes.

    As concepes de Bakhtin exigem doleitor um olhar mltiplo sobre o mundo e so-bre o outro. Trata-se de um olhar que v o mun-do a partir de rudos, vozes, sentidos8, sons elinguagens que se misturam, (re)constroem-se,modificam-se e transformam-se continuamen-te17-20. Nesse cenrio compreensivo, a palavraassume papel primordial, pois a partir delaque o sujeito constitui e constitudo. A pala-vra no seria apenas um meio de comunica-o, mas tambm contedo da prpria ativida-de psquica.

    Essa viso dialgica supera a descriodos elementos estritamente lingusticos e bus-ca incluir tambm os elementosextralingusticos que, direta ou indiretamente,condicionam a interao nos planos social, eco-

    nmico, histrico e ideolgico. Em Bakhtin,toda produo cultural s pode existir no inte-rior da linguagem.

    Assim, tanto a linguagem como a hist-ria constituem pontos nodais na compreensodas questes humanas e sociais. Por serpolissmica e dialgica, a palavra traz marcasculturais, sociais e histricas marcas estasque esto cravadas em nosso desenvolvimentopsquico, motor e emocional. Nesse aspecto,Bakhtin estabelece o maior divisor de guasna construo de sua noo sobre a lngua, pois,ao afirmar que o contexto histrico parteconstitutiva da linguagem, ele questiona asconcepes estruturalistas que tomam a pala-vra como parte de um sistema abstrato de for-mas, em que o falante no tem poder de inter-veno. O contexto histrico transforma apalavra fria do dicionrio em fios dialgicosvivos, que refletem e refratam a realidade quea produziu17-20.

    Por meio da linguagem, so colocadasem evidncia as divergncias, a materializaoda luta de classes, a disputa pelo poder por gru-pos antagnicos, as crenas religiosas e as de-monstraes de preconceitos. Nesse jogo dapalavra que se liga a uma outra palavra o su-jeito falante, que apreende o discurso do ou-tro, no um ser mudo e passivo. Ao contr-rio, um ser perpassado pelas suas prpriaspalavras e pelas de outrem.

    As palavras refletem e refratam, no demodo mecnico, os conflitos, e apontam asmarcas ideolgicas distintas de cada sujeito eminterao. Nas palavras de Bakhtin19: da mes-ma maneira que, se ns perdemos de vista asignificao da palavra, perdemos a prpriapalavra, que fica, assim, reduzida sua reali-dade fsica, acompanhada do processo fisio-lgico de sua produo. O que faz da palavrauma palavra a sua significao (p. 49).

    Nessa viso bakhtiniana no existempensamento e linguagem como atributos hu-manos inatos, em uma perspectiva que se dis-tancia das tradicionais concepes de lingua-

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    gem como atributo exclusivamente biolgicoe como faculdade mensurvel. A atividademental do sujeito pertence totalmente ao cam-po social (nesse sentido, ao outro), pois a pala-vra e o material semitico, externo aos sujei-tos, so elementos determinantes para aorganizao do pensamento que, posteriormen-te, retornam ao campo social.

    A palavra, em sua condio de signo, adquirida no meio social e, uma vezinteriorizada pelo sujeito, retorna ao meio so-cial por meio dos processos interacionais, emuma forma diferenciada, o que aproximaBakhtin das concepes de Vigotski2,15. Ouseja, ela dialeticamente alterada devido scoloraes ideolgicas que marcam as condi-es de produo. O sentido da palavra total-mente determinado por seu(s) contexto(s), masesses contextos no se encontram justapostossimplesmente, mas em uma situao de intera-o e de conflito tenso e ininterrupto17.

    A palavra permite a constituio do su-jeito na e por meio da linguagem. No se tra-ta aqui de lidar com uma palavra enquantounidade da lngua, nem com a significaodessa palavra, mas com o enunciado acabadoe com um sentido concreto, ou seja, seu con-tedo. A significao da palavra se refere realidade efetiva nas condies reais da co-municao verbal. A significao de uma pa-lavra s pode ser entendida a partir dos enun-ciados, da sua entonao, que vai lhe conferirtoda uma expressividade prpria. A entona-o expressiva no pertence palavra, masao enunciado.

    Para Bakhtin, a palavra deve ser consi-derada como um signo social, funcionandocomo elemento essencial que acompanha ecomenta todo ato ideolgico20: os processos decompreenso de todos os fenmenos ideolgi-cos (um quadro, uma pea musical, um ritualou um comportamento humano) no podemoperar sem a participao do discurso inte-rior. Todas as manifestaes da criao ideo-lgica todos os signos no-verbais banham-

    se no discurso e no podem ser nem totalmen-te isoladas nem totalmente separadas dele(p. 38).

    Como apontado anteriormente, a utili-zao da palavra na comunicao verbal ativa sempre marcada pela individualidade e pelocontexto de produo. A palavra do outro e apalavra minha (impregnada por minhaexpressividade) possuem uma expressividadeque no pertence prpria palavra, mas quenasce no contato entre a palavra e a realidadeefetiva, nas circunstncias de uma situao real,que se atualiza por meio de um enunciado in-dividual1.

    Ao destacar o carter social da palavra,Bakhtin fez referncia ao fato de que o desen-volvimento tambm no se d ao acaso e demodo individual, como veiculado pelas teori-as desenvolvimentais clssicas. Pelo contrrio,a linguagem e o desenvolvimento se do nainterao social, no contato da pessoa com seusoutros e o meio no qual vivem, sendo a pala-vra uma expresso possvel dessa relao pes-soa-cultura.

    Assim, a palavra pode se apresentar comoum aglomerado de enunciados1 (p. 313). Es-tes enunciados estaro se organizando e se reor-ganizando de acordo com a poca, o meio so-cial, a famlia, as condies de desenvolvimentoe a sociedade na qual o sujeito est inserido.Nas palavras de Bakhtin1, toda poca, em cadauma das esferas da vida e da realidade, tem tra-dies acatadas que se expressam e se preser-vam sob o invlucro das palavras, das obras,dos enunciados, das locues, etc. (p. 313).

    especialmente importante acentuar quea experincia verbal individual do homem evo-lui na interao contnua e permanente com osenunciados individuais dos outros. Toda falaest intimamente vinculada ao seu receptor, aosoutros que tambm constituem o falante, nadialtica dinmica da vida humana. Os outros,para os quais o pensamento do sujeito se tornareal, no so ouvintes passivos, mas partici-pantes ativos da comunicao verbal, j que

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    toda enunciao elaborada para ir ao encon-tro de uma resposta desse(s) outros(s), em umprocesso reflexivo.

    Nossa fala, isto , nossos enunciados (queincluem as obras literrias), esto repletos depalavras dos outros, caracterizadas, em grausvariveis, pela alteridade ou pela assimilao,caracterizadas, tambm em grau variveis, porum emprego consciente e decalcado. As palavrasdos outros introduzem sua prpriaexpressividade, seu tom valorativo, que assimi-lamos, reestruturamos, modificamos1 (p. 314).

    Analisando a fundo a questo dos enun-ciados, Bakhtin afirma que em todo enuncia-do, dadas as condies concretas da comuni-cao verbal, pode-se perceber as palavras dooutro ocultas ou semiocultas1. O enunciado secoloca como um fenmeno complexo, se ana-lisado em sua relao dialgica entre o autor(locutor) e os outros enunciados. Os enuncia-dos conhecem-se uns aos outros, ou seja, sodotados de um carter recproco, posto tam-bm que esto repletos de ecos e lembranasde outros enunciados, aos quais esto vincula-dos no interior de uma esfera comum da co-municao verbal.

    O enunciado se coloca como uma res-posta a enunciados anteriores dentro de umadada esfera, refutando, confirmando, comple-tando, baseando-se nestes outros enunciadosque tambm o constituem. Todo enunciado re-mete a outro, em uma cadeia de sentido e decomunicao que est presente na linguagem.

    No apenas a linguagem verbal relevan-te e portadora de significao19. Todo gesto ouprocesso do organismo, como a respirao, acirculao sangunea, os movimentos do corpo,a articulao, o discurso interior, a mmica, areao aos estmulos exteriores, enfim, tudo oque ocorre no organismo pode tornar-se mate-rial para a expresso da atividade psquica, pos-to que tudo pode adquirir um valor semitico,tudo pode tornar-se expressivo (p. 52).

    A palavra acaba por se revelar, no mo-mento de sua expresso, como o produto da

    interao viva das foras sociais, do mesmomodo que os gestos e o comportamento noverbal sero tambm o produto dessa intera-o. A enunciao tambm produto da inte-rao social, quer se trate de um ato de faladeterminado pela situao imediata ou pelocontexto mais amplo que constitui o conjuntodas condies de vida de uma determinadacomunidade lingustica. Em Para uma filoso-fia do ato, Bakhtin21 critica a ciso que se esta-belece entre o contedo ou o sentido de umdado ato-atividade, e a realidade histrica doseu ser, a sua real e nica experincia. Propeque se pense a palavra ou o ato como possuin-do um contexto histrico e, alm disso, umaexperincia concreta, no aqui e agora das si-tuaes. A palavra est sempre carregada deum contedo ou de um sentido ideolgico ouvivencial19 (p. 95).

    O ser humano s poderia ser compreen-dido no cerne dessa duplicidade contedo/rea-lidade histrica, como parte de um todo, e nocomo objeto desmembrvel e examinado se-paradamente, em dicotomias que acabam porcolocar em um segundo plano o carterdialgico deste ser inserido e interpenetradopela histria e pelos outros.

    Na viso bakhtiniana, toda expressocomportaria tanto o seu contedo interior quan-to a sua objetivao exterior para outrem (outambm para si mesmo). Todo o ato expressi-vo mover-se-ia entre as duas facetas, ou seja,entre o contedo interior e a objetivao exte-rior; toda palavra ou ato constituiria o produtoda interao do locutor e do ouvinte ou, emoutras palavras, de um em relao a um outro.Extrapolando as consideraes em torno dapalavra e concebendo o elemento social dasproposies bakhtinianas, o desenvolvimentotambm se daria nesse movimento, no relacio-namento recproco de um eu para um outro edeste outro para o eu, em um processo dinmi-co. Nessa interao, cada pessoa, com suascaractersticas conflitantes, traria uma voz in-dependente. Essas vozes diferentes e simult-

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    neas implicam na concepo de sua coexistn-cia e na possibilidade do dilogo entre elas,em que se abre a perspectiva dedescontinuidade, diante da multiplicidade devozes divergentes22,23.

    SOB O SIGNO DA MATERIALIDADE

    Em seu livro Marxismo e filosofia da lin-guagem, Bakhtin sugere que o signo ocupa umpapel de destaque20. nesse trabalho que oautor desenvolve a noo de que o domnio dosigno o mesmo domnio do ideolgico. Ouniverso dos signos seria um universo particu-lar, pois o signo no existe apenas como partede uma realidade, mas reflete e refrata umaoutra realidade. Cada signo no apenas umreflexo ou sombra da realidade, mas tambmum fragmento material dessa realidade.

    Todo fenmeno que funciona como umsigno possui uma encarnao material, comoum som, uma massa fsica, uma cor, um movi-mento do corpo. Nas palavras de Bakhtin20: Umsigno um fenmeno do mundo exterior. Oprprio signo e todos os seus efeitos (todas asaes, reaes e novos signos que ele gera nomeio social circundante) aparecem na expe-rincia exterior (p. 33). Portanto, o signo pos-suiria uma realidade objetiva, passvel de sersubmetida a um estudo de carter objetivo.

    Para que se compreenda um signo ne-cessrio que haja uma aproximao entre o sig-no aprendido e outros signos previamente co-nhecidos, ou seja, a compreenso s podeoperar de um signo por meio de outros. Estacadeia formada a partir de um signo para e poroutro signo nica e contnua, e, em nenhummomento, pode ser quebrada sem que seja pre-cedida pela corporificao do signo. Pode-sedizer que a realidade determina o signo e queo signo reflete e refrata a realidade em trans-formao.

    O ser humano se reflete no signo, mastambm se refrata no mesmo, no confronto dos

    interesses sociais, em uma comunidadesemitica. O signo possui uma dinmica inter-na que se revela no exterior, nos conflitos, nascrises, na fala, no discurso, nas prticas, nosgestos4,10,13. Est encarnado, vivo e em cons-tante transformao, reflexo e refrao.

    Os signos emergem do processo de inte-rao social (o signo se cria entre indivduos, nomeio social), tendo uma materialidade social ogesto significante, a palavra, a imagem, so con-siderados signos que se materializam nos corpos,que se encarnam na fala, na expresso, enfim,em uma realidade material objetiva.

    A existncia do signo a materializaodos fenmenos ideolgicos juntamente com ascondies e as formas da comunicao social.Nesse sentido, a palavra vista por Bakhtincomo um fenmeno ideolgico por excelncia,j que a realidade de toda palavra absorvidapor sua funo de signo. A palavra o modomais puro e sensvel da relao social20 (p. 36).A palavra ocupa uma posio de signo social.

    Todo signo cultural compreendido e do-tado de sentido torna-se parte de uma unidadeda conscincia verbalmente construda, em quetoda palavra est presente em todos os atos deinterpretao. O signo, como algo cravado noser humano, possui uma realidade no apenasobjetiva, mas corporificada, em que dinamiza,problematiza e tenciona o humano em sua ebu-lio de significados.

    Desta maneira, ao aproximar Bakhtin docampo do desenvolvimento humano, fica evi-dente a desconstruo que ele promove na pr-pria definio do que desenvolvimento. Em-bora no tenha se debruado sobre essedelineamento terico, o autor avana no senti-do de compreend-lo como uma realidade di-nmica e aberta a diversas reconstrues.

    Ao pensar a linguagem a despeito de seuselementos fonolgicos, morfolgicos e sintti-cos, passando pela expressividade e pela mate-rializao do signo, Bakhtin provoca uma rup-tura na noo de desenvolvimento sequenciadoe disposto em perodos. Alm disso, sustenta que

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    as mudanas se do em termos dos contextosque favorecem ou no o desenvolvimento e den-tro de determinaes culturais que considerama linguagem como um campo de embate, comoum espao no qual os saberes, concepes e pr-ticas podem ser dispostos e entrar em dilogo,promovendo o desenvolvimento de pessoas ecomunidades. Assim, o desenvolvimento no limitado pelas condies histricas e culturaisdo indivduo, mas um elemento que dialogaconstantemente com essa realidade, adequando-se ao papel, negando-se ou afirmando-se, o queconduz reflexo sobre a ideia de desenvolvi-mento no necessariamente ligada melhoria,mas sim transformao.

    Retomando o exemplo mencionado an-teriormente, ao examinar o desenvolvimentode crianas expostas a processos de incluso,precisamos manter o olhar atento para as trans-formaes que vo se processando gradualmen-te, nas quais os protagonistas podem serposicionados de maneiras distintas conformea situao. Essa concepo nos leva a conside-rar o desenvolvimento como um processodialgico, que se apresenta sempre em relaoa um outro, que oferece criana a oportuni-dade de mudana. Sendo assim, as prticas, ossaberes e os demais elementos interativos po-dem ser recuperados pelas pessoas no aqui-e-agora, modificando-se a depender dos movi-mentos produzidos, assumidos ou negadospelos profissionais, pais e crianas queprotagonizam esse cenrio.

    Assim como no embate da palavra como meio social, o desenvolvimento dar-se-ia emum processo tenso, de sucessivas aproximaese distanciamentos entre a pessoa e o meio, eno em termos de critrios etrios ou de pa-dres e capacidades esperadas para cada pe-rodo evolutivo. Na perspectiva dialgica dedesenvolvimento, h espao para interao,confronto e tambm para a convivncia entrevises dspares de mundo. Ao assumirmos esseposicionamento, questionamos os conceitos deevoluo, sequncia, perodos e fases, em uma

    busca por elementos desenvolvimentais queexpliquem o dinamismo das relaesintersubjetivas, sustentando a viso dialgicado desenvolver-se (a si mesmo e ao outro).

    Para Bakhtin, a realidade essencial-mente contraditria e em permanente trans-formao. Nesse sentido, prope uma dialticaque, nascendo do dilogo, nele se prolonga,colocando pessoas e textos em um permanen-te processo dialgico2. Seu pensamento colo-ca-se de modo sempre aberto, resistindo ideia de acabamento e perfeio, o que podeser estendido aos sentidos sobre desenvolvi-mento implcitos em sua obra.

    Desse modo, podemos afirmar queBakhtin concebe o desenvolvimento humano,tal como apregoa em relao linguagem, comouma malha de discursos circulantes e plurais(discursos cujos sentidos no podemos contro-lar), em contraposio a um discursomonolgico, que no apenas relativiza osposicionamentos, mas subsidia saberes e prti-cas em nosso meio que possuem umamaterialidade e concretude que lhe so prprias.Ao desconstruir a noo de sequncias desen-volvimentais ou fases de desenvolvimento quan-do pensa a linguagem, Bakhtin rompe com aideia de maturao das estruturas orgnicas epromove uma compreenso no apenas maisampla desse processo, como tambm mais ali-nhada aos paradigmas contemporneos de cin-cia e produo do conhecimento16. Por conse-guinte, ao abordar a centralidade da linguagemna vida humana acaba por endossar uma noode desenvolvimento que extrapola um passo apasso metodolgico, ao apregoar a no-crista-lizao das prticas. Nesse posicionamento, abreespao para os movimentos de transformaoinerentes linguagem, comunicao como do-mnio de expresso coletiva e ao prprio desen-volvimento como processo ininterrupto.

    Agradecimento: Prof. Dra. Katia deSouza Amorim, pela formao cientfica pro-vida a Fbio Scorsolini-Comim, no perodo de2004 a 2006.

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    Recebido em 08/09/2010Modificado em: 15/10/2010

    Aceito em 29/10/2010

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