09 - Artigo Mimesis e Traducao - Sarah Catao

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MÍMESIS E TRADUÇÃO, UMA PERSPECTIVA SARAH CATÃO DE LUCENA Uma das grandes problemáticas do estudo da ficção é a da relação entre o texto ficcional e a referencialidade. Ampliando o espectro desse debate até os estudos da tradução literária, vê-se como ainda é terreno controverso o do estatuto do texto traduzido na sua relação com a obra-fonte. Ao lado disso, o percurso conceitual desse fenômeno esteve sempre acompanhado da ideia de imitação, o que nos remete ao próprio trajeto da mímesis, por tanto tempo identificada com o sentido de imitatio. Diante desse panorama, em que o significado de imitação adquire tal relevância para ambos os fenômenos, desejou-se articulá-los a fim de, ao menos, apontar diferentes pontos de vista sobre a prática tradutória. Sobretudo, com o anseio de, com essa articulação, ampliar o debate e buscar contribuir com novas possibilidades de pesquisa em ambos os campos. O RESGATE DA MÍMESIS A leitura tradicional que interpretou a mímesis como imitatio supõe um equívoco de compreensão, fruto de uma tradição que deformou o núcleo semântico da palavra ao associá-la a termos como imitação, cópia, reflexo, espelho (COSTA LIMA, 2002). Tal percepção remonta à era dos poetas e pensadores clássicos gregos. A esse momento pertencem os primeiros vestígios de uso

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Artigo de Sarah Catão sobre Mímesis e Tradução publicado no livro sobre Mímesis

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MMESIS E TRADUO, UMA PERSPECTIVA

Sarah Cato de Lucena

Uma das grandes problemticas do estudo da fico a da relao entre o texto ficcional e a referencialidade. Ampliando o espectro desse debate at os estudos da traduo literria, v-se como ainda terreno controverso o do estatuto do texto traduzido na sua relao com a obra-fonte. Ao lado disso, o percurso conceitual desse fenmeno esteve sempre acompanhado da ideia de imitao, o que nos remete ao prprio trajeto da mmesis, por tanto tempo identificada com o sentido de imitatio. Diante desse panorama, em que o significado de imitao adquire tal relevncia para ambos os fenmenos, desejou-se articul-los a fim de, ao menos, apontar diferentes pontos de vista sobre a prtica tradutria. Sobretudo, com o anseio de, com essa articulao, ampliar o debate e buscar contribuir com novas possibilidades de pesquisa em ambos os campos.

O resgate da mmesisA leitura tradicional que interpretou a mmesis como imitatio supe um equvoco de compreenso, fruto de uma tradio que deformou o ncleo semntico da palavra ao associ-la a termos como imitao, cpia, reflexo, espelho (COSTA LIMA, 2002). Tal percepo remonta era dos poetas e pensadores clssicos gregos. A esse momento pertencem os primeiros vestgios de uso da palavra, mas ela no denotava diretamente o sentido de imitao; era mais um emprego sugestivo, aproximado desse sentido, que terminou por ser assimilado pela crtica com o significado de cpia, reproduo.Posteriormente, essa forma de compreender a mmesis foi amplamente difundida pelo Renascimento, cujo iderio postulava a imitao da natureza a realidade pela arte de forma a organiz-la. A matematicidade renascentista buscava a representao dos objetos o tanto mais prxima possvel da realidade concreta. Alm disso, a reverncia ao passado clssico grego e romano praticada pelo Renascimento fazia dos referentes artsticos limites bastante determinados. Diante disso, a reflexo apressada do conceito de mmesis facilmente a colocaria como uma cpia da realidade inspiradora da arte. Se o objeto artstico era julgado belo tanto mais parecido fosse com a realidade, identificar a prtica artstica com a imitao parecia natural, esperado.

A reviso conceitual da mmesis foi como que demandada pelo prprio curso da potica moderna. Expresses artsticas desenvolvidas ao longo do sculo XX, as tradicionalmente chamadas vanguardas, claramente negaram a representao artstica identificada com a imitao exata da realidade o esprito renascentista por excelncia. Nesse sentido, a compreenso da mmesis como imitatio estava sendo concretamente afastada. Chegou o tempo em que o artista passou a ser considerado algum que efetivamente cria e cria, portanto, a sua realidade, numa busca pelo pertencimento causada pela sensao de desconhecimento da nova configurao do mundo moderno. Este, por no ser mais passvel de compreenso pelo homem, agora identificado como um sujeito fragmentado, no mais passvel tambm de ser representado de forma especular e unvoco. A concepo tradicional de mmesis, portanto, demanda a sua prpria reelaborao: A se inaugurava uma prosa de extrema criticidade quanto s feies assumidas pelo real [...] nesta situao, a teorizao que podia permanecer implcita necessita repassar seus pressupostos, rev-los e no mais simplesmente se deixar guiar por eles. (COSTA LIMA, 2002, p. 30). Se a criao artstica se volta para uma realidade interiorizada do artista, a mmesis como reprodutora da realidade exterior perde sentido. Mas, mais do que simplesmente excluir o fenmeno do pensamento artstico, era preciso resgatar um paradigma diferente do conceito.A mmesis vem com a sombra

A meno possibilidade da diferena na atividade mimtica aparece j no campo pr-conceitual da mmesis, com Pndaro (COSTA LIMA, 2000). A j era possvel entender que, no fazer mimtico, pela produo da diferena se tentava chegar semelhana, porm o que havia mesmo era uma dominncia da semelhana. Fala-se mesmo at na composio ilusionista de certas obras, que, de to semelhantes ao seu referente, confundiam-se com o real. Nesse momento, o importante era a habilidade de esconder a diferena, criando uma verdadeira tenso com o elemento da semelhana pela inevitvel presena daquela.

Invariavelmente associada cultura clssica grega, entre os sculos V e VI a.C., na situao sociomental (COSTA LIMA, 2002, p. 31) em que se localizava essa sociedade ainda no cabia espao para a teorizao da mmesis. Havia uma relao do poeta com a verdade e a realidade em que ele as deveria construir como nicas. Havia uma nica verdade, e esta era a ditada pelo poder da nobreza, no havendo possibilidade de o poeta formular outra concepo de verdade e, portanto, de realidade. Sendo a palavra una, uma teoria da mmesis no se fazia possvel. A chamada dobra da palavra vai se dar como uma consequncia, ou uma demanda, das transformaes polticas pelas quais passa a sociedade grega, saindo de um perodo de domnio absoluto da aristocracia para a progressiva democratizao horizonte propcio para o debate, a discordncia de opinies, a divergncia de pontos de vista: a no unicidade da verdade. A pica deixa de dar conta da nova configurao social, enquanto a tragdia mostra-se hbil em aproximar a arte do homem comum e sua nova realidade. Em outras palavras, a nova situao social tornou possvel, por meio da tragdia, a palavra promover uma releitura da tradio sobre a realidade e o homem. A palavra una, sem sombra, passa a ser biface: A dobra da palavra significa sua fora de engano, sua capacidade de conduzir para este ou para aquele rumo, explica Costa Lima (2002, p. 43). A palavra ilumina e tambm faz sombra ao iluminado. Da nasce a possibilidade de representao, pela duplicidade do objeto que se cria na relao luz-sombra.A inverso do molde, ou as formas da diferena

Em um dado momento de suas reflexes sobre a mmesis, Costa Lima (2000) levanta o seguinte questionamento: se, diferentemente da mmesis antiga, que sujeitava a produo artstica aos limites de um referencial identificado como sendo a realidade, como tratar da mmesis no normatizada (visto que no se podia mais falar de realidades padronizadas diante da fragmentao do sujeito)? possvel desconect-la de um referencial externo? Pode-se falar de uma produo mimtica livre de uma modelagem histrico-social, inerente a qualquer sociedade?

A reelaborao propriamente na conceituao da mmesis acontece no com a anulao da sua teorizao antiga, como j afirmado acima, mas pela reconsiderao de um aspecto nela presente, mas como que tornado latente pela crtica tradicional: a presena do vetor da diferena. Tal pressuposio no deseja que se pense estar eliminado da atividade da mmesis o vetor da semelhana. Na relao entre atividade mimtica e referencialidade, est claro que a primeira, no seu fazer, supor um algo anterior a que servir de molde, a que costumeiramente se identifica por realidade, ou melhor, uma concepo desta. Esse mesmo molde serve tanto para que o mimema suponha a semelhana quanto para que produza a diferena.Se existem obras de arte que praticaram a valorizao do oposto ao semelhante, foi preciso problematizar a relao da mmesis com a referencialidade, o que Costa Lima (2002) chama de questionamento da mmesis de representao, fundamentando a mmesis de produo. Criado pioneiramente com a obra de Mallarm (cf. COSTA LIMA, 2002), esse tipo de mmesis no representa uma realidade previamente estabelecida ou no se baseia minimamente nesse dado prvio, mas produz uma nova dimenso dessa realidade, justamente por apresentar um vazio inicial de compreenso da obra. Fica evidente a relao do receptor com a mmesis e tambm como esta se faz em meio a relaes ambguas. pela diferena que se conhece a semelhana. s pelo conhecimento do que o receptor considera realidade que se pode quebrar com ela e apresentar uma nova possibilidade de conceb-la; e s se poder conceb-la de uma maneira nova sabendo-se como prvia e consensualmente estabelecido esse conceito de realidade.A partir daqui desejamos ter chegado a um ponto de esclarecimento para conseguirmos pensar sobre o estatuto do texto literrio traduzido no territrio da reflexo sobre a mmesis. Como a relao entre a traduo e referencialidade sempre se apresentou como a grande problemtica nesse campo, pensamos obter um novo ponto de vista do fenmeno ao pens-lo em vista da prpria histria do desenvolvimento da mmesis. Os labirintos da traduo

Ao analisar a trajetria do conceito de traduo, observamos que ele, tal como no caso da mmesis, sempre esteve cercado pela ideia de ser uma imitao. Sua definio, porm, no fechada nem absoluta, mas um construto histrico, flexvel. Embora hoje parea haver um consenso em torno do que o termo significa, diversas expresses diferentes j foram usadas de forma concomitante para se referir, aparentemente, mesma atividade. Segundo Burke (apud SILVA, 2011), j no sculo XVIII no se podia nem mesmo afirmar haver garantias de que se falava da mesma coisa quando se utilizava a palavra traduo, j que o que se entendia por texto original e texto traduzido diferia: em alguns casos, o texto traduzido era completamente diferente do texto original, por ter sido abreviado ou ampliado. A prpria expresso traduzir se apresenta problemtica desde sua origem, como atesta Eco (2007, p. 9):

O que traduzir? A primeira e consoladora resposta gostaria de ser: dizer a mesma coisa em outra lngua. S que, em primeiro lugar, temos muitos problemas para estabelecer o que significa dizer a mesma coisa e no sabemos bem o que isso significa por causa daquelas operaes que chamamos de parfrase, definio, explicao, reformulao, para no falar das supostas substituies sinonmicas. Em segundo lugar, porque, diante de um texto a ser traduzido, no sabemos tambm o que a coisa. E, enfim, em certos casos duvidoso at mesmo o que quer dizer dizer.

No perodo renascentista, quando o estatuto de mmesis como imitatio difunde-se definitivamente, o campo literrio tambm ressoou as consequncias dessa ideia. Tendo alguns escritores se consagrado pela tradio literria, passaram a constituir o cnone literrio de certa cultura, com a consequncia de se tornarem, naturalmente, paradigma para as produes posteriores. Tornam-se escritores-modelo. Nesse sentido, se tais obras so consideradas modelo de literatura, passam a ser, ento, imitadas. Mas, nessa mesma poca, a divisa entre traduo e imitao era menos ntida do que veio a ser em perodos posteriores, principalmente a partir do sculo XIX. Ainda no Renascimento, segundo Freitas (apud SILVA, 2011, p. 29), o tradutor gozava de um estatuto de autor, uma vez que ele produzia um texto que primava pelo seu efeito na cultura de chegada e, por conseguinte, poderia interferir mais na escritura do texto produzido. Podemos perceber que, em traduo, a figura do autor foi adquirindo autoridade com o passar do tempo, de forma a criar uma servido do texto traduzido ao autor do texto-fonte, que parece se confundir, quando se trata de traduo, com a prpria obra. Nessa reelaborao da posio do autor, valores e discursos vo sendo construdos, e a que a traduo se atrela ideia de imitao.Foi no final do sculo XVIII, com a publicao de Essay on the Principles of Translation, do escritor escocs Alexander Fraser Tytler, que tomou corpo a concepo tradicional e popularizada de que a traduo deveria ser acompanhada da transparncia, neutralidade e fidelidade em relao obra referncia. Tytler (apud SILVA, 2011, p. 31) chegou a estabelecer normas para a realizao de uma boa traduo:

(1) A traduo deve prover uma reproduo, em sua totalidade, das ideias da obra original.

(2) O estilo e o modo de escrita da traduo devem ter a mesma natureza do original.

(3) A traduo deve ter toda a fluncia do original.

Segundo a concepo de Tytler, a boa traduo deve unir fluncia fidelidade, s alcanando essa meta pela incorporao, pelo tradutor, da alma do autor, seus sentimentos e seu modo de pensar e se expressar. A traduo, portanto, era uma imitao em busca da mxima correspondncia possvel com seu referente. O leitor como sujeito agente ainda no era considerado, assim como tambm no se cogitava tratar o texto traduzido como em dilogo com a situao social a que se dirigia.

A pesquisa em traduo costuma dividir a trajetria da construo de seu conceito em duas grandes vertentes representativas. A primeira seria a concepo tradicional acima apresentada, encabeada por Tytler. A segunda seria a de orientao lingustico-cientificista, desenvolvida no perodo ps-Segunda Guerra e representada por nomes como o americano Eugene Nida, o escocs John Catford, o alemo Erwin Theodor e, no Brasil, o hngaro-brasileiro Paulo Rnai. No cabendo ao escopo deste trabalho apresentar cada ponto de vista dos tradutores acima, vale, ao menos, resumir que a linha lingustico-cientificista mantm a concepo de texto traduzido como uma reproduo do texto fonte, devendo aquele anular qualquer rastro da presena do tradutor, apenas reproduzindo em outra lngua a mensagem dada.

A virada paradigmtica: da normatividade aos estudos descritivosOs considerados primeiros mtodos de traduo se davam pela traduo palavra por palavra ou sentido por sentido, sistematizao estabelecida pelos romanos e que deu origem a todas as dicotomias de conotao literal versus livre que guiaram a traduo. A traduo palavra por palavra se pretendia o mais literal possvel. Sua utilizao remonta traduo das primeiras Escrituras, quando a Igreja Catlica preocupava-se em no desvirtuar as palavras divinas, exigindo, portanto, fidelidade com as palavras traduzidas. Certamente esse mtodo gerava dificuldades de compreenso. Segue-se, ento, a ela o mtodo da traduo sentido por sentido, que remonta traduo do grego para o latim no sculo II da era crist. Menos apegados ao sentido literal de cada palavra, os romanos priorizavam a fluncia e naturalidade do texto traduzido, como atesta Ccero (apud SILVA, 2011, p. 54):

Decidi tomar discursos escritos em grego por grandes oradores e traduzi-los livremente. E eu obtive o seguinte resultado: dando uma forma latina ao texto que li, eu no apenas fao uso das melhores expresses de uso corrente entre ns, mas tambm posso cunhar novas expresses, anlogas s usadas em grego, e elas no so mal recebidas por nosso povo desde que sejam apropriadas.O debate de vis dicotmico na pesquisa em traduo (e tambm na atividade em si) perpetuou at metade do sculo XX, e a equivalncia e a fidelidade estiveram sempre presentes, cristalizando continuamente seus sentidos. Apesar de raramente definida com alguma preciso, a fidelidade parece ter sido a medida mais empregada para avaliar a qualidade de uma traduo.

Por muito tempo, portanto, para a traduo, o texto original tinha valor de verdade, e a traduo s poderia ser um subproduto desse texto padro. A palavra autoral exigia um comportamento subserviente do tradutor. Nesse sentido, associar fidelidade verdade apresenta o problema de presumir que a verdade seja fixa e nica, em cada obra e para todo autor. A noo de integralidade tambm foi associada de fidelidade em traduo e acarretou problemas. A reproduo integral de um texto tornou-se imperativo da boa traduo; se se considerasse que houvera alguma mudana na traduo, esta j seria classificada como uma adaptao embora, na prtica, considerando que texto fonte e traduo so dois textos de existncia independente, todo texto traduzido seria, ento, uma adaptao.

S nas dcadas de 1970 e 1980 que pesquisadores israelenses e dos Pases Baixos trouxeram para os estudos de traduo uma mudana de paradigma que veio iluminar consideravelmente novos caminhos para esse campo. A partir de influncias advindas dos estudos de Literatura Comparada, foram incorporadas aos estudos de traduo, principalmente de traduo literria, uma postura comparativista, que buscava favorecer uma concepo de traduo como sendo livre, procurando dar ao tradutor a possiblidade de exercer sua atividade com relativa liberdade. A partir desse novo paradigma, passou-se de um modelo de anlise prescritivo para um estudo descritivo do fenmeno tradutrio, constituindo os chamados Estudos Descritivos da Traduo. Por esse modelo, foram introduzidos aos estudos de traduo a abordagem no normativa da traduo literria, a viso da literatura traduzida como parte integrante de um sistema mais amplo e o interesse pelas condies de recepo e produo de uma obra traduzida, explica Batalha (2007, p. 76). Dessa forma, portanto, admite-se pela primeira vez nos estudos tradutrios a insero e influncia que o contexto, o leitor e o horizonte de expectativas (BATALHA, 2007, p. 78) exercem nessa atividade.No Brasil, j em 1970 podamos encontrar textos sobre traduo, reflexes realizadas especialmente pelos poetas e tradutores Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Estes j consideravam a literatura traduzida como renovadora do sistema literrio para o qual se dirigia (BATALHA, 2007). Na perspectiva de Haroldo de Campos,

a traduo um processo de fecundao da lngua, uma transcriao que produz novos textos e novos significados. Por isso, o poeta tradutor fala de transluminao, transluciferao, para expressar sua viso de traduo criativa e resgatar o papel configurador da funo potica, refazendo o percurso da intencionalidade do autor. (BATALHA, 2007, p. 71).Com esse ponto de vista, vemos que os irmos de Campos admitiam uma funo impulsionadora da traduo e a insero da atividade em uma perspectiva histrica, ou seja, admitindo que a traduo produz um texto novo, reconheciam-na como atividade criadora, e no copiadora.

A partir da virada paradigmtica iniciada pelos Estudos Descritivos, muitos outros poetas, crticos e tradutores brasileiros publicaram suas reflexes sobre o assunto, entre eles o crtico e tradutor Jos Paulo Paes, que considera o texto traduzido dotado de um estatuto prprio, uma subjetividade nica. H tambm os trabalhos de Helosa Gonalves Barbosa que fez uma reviso dos modelos tericos e procedimentos metodolgicos da traduo, livro considerado pioneiro por fazer esse apanhado da prtica tradutria de at o incio dos anos 1980 e de Paulo Roberto Ottoni, que se props a pensar a relao da teoria e prtica no ensino da traduo (BATALHA, 2007). Existem ainda os trabalhos de Maria Paula Frota, Mrio Laranjeira, Marcia Martins, John Milton, Andria Guerini, Maria Clara Galery, entre tantos outros, incorporando literatura do assunto cada vez mais material, com pesquisas atualizadas. Abordagens modernas do assunto centram-se na relao da traduo com outras reas, como Psicanlise, Sociologia, Estudos Ps-coloniais, Estudos Culturais. Teatro e msica popular so outros campos que passaram a ser examinados tambm pelo vis tradutrio (GALERY, 2009), alm do cinema, abordando a questo da legenda traduzida, e o fenmeno da autotraduo, bastante recente, mas que j conta com material prprio, as autotradues do escritos brasileiro Joo Ubaldo Ribeiro. Esta ltima abordagem da traduo parece bastante rica e possibilita ainda aos pesquisados se voltar para a anlise da literatura brasileira traduzida, um campo menos estudado em comparao com a quantidade de pesquisas sobre literatura traduzida em outras lnguas.Mmesis e traduo: espaos da diferena

A partir do acima exposto foi que se pensou haver uma possvel relao entre as naturezas da mmesis e da traduo. O questionamento inicial foi o de pensar se o texto traduzido poderia ser considerado um produto mimtico. Partindo afirmativamente desse pressuposto, passou-se a vislumbrar pontos de encontro no desenvolvimento dos dois fenmenos. Um primeiro ponto refere-se interpretao tradicional de serem ambos um produto da imitao; posteriormente, de serem produto e produtores do elemento da diferena. A primeira ideia legou tanto mmesis quanto traduo o fardo de estarem subordinadas a algo anterior, um modelo a ser imitado. Ao produto mimtico foi conferido um estatuto de inferioridade por ser considerado sempre uma cpia do original. Esta mesma herana herdou o texto traduzido, sendo visto como um produto infiel, copiado de um texto superior porque original, primeiro. Hoje, a premissa da intraduzibilidade j no faz mais parte dos questionamentos sobre a atividade.

Com a reviso conceitual da mmesis, foi preciso questionar a relao entre mimema e referencialidade. Nas palavras de Costa Lima (2000, p. 56), como falar de mmesis sem a sujeitar [...] modelagem a que uma poca histria a amolda?. O caminho, entretanto, para desembaraar a mmesis no foi a aposta de esta no corresponder a nada que a anteceda, no sendo, portanto, uma cpia, mas sim de deslocar o ponto de vista sobre a sua produo. Se antes sua compreenso era guiada pelo princpio da semelhana com o referencial, passou-se a observ-la como sendo moldada pelo vetor da diferena, menos como uma relao de excluso de um vetor pelo outro, e mais como uma relao de complementaridade: [as formas de diferena] sempre mantm um resto de semelhana, uma correspondncia, no necessariamente com a natureza, mas sim com o que tem significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade concebe a prpria natureza. [...] A prpria diferena s percebida por algum que nela encontra ao menos um ponto de semelhana com aquilo de que se distingue. (COSTA LIMA, 2000, p. 56).Dito isto, v-se que a reviso conceitual tambm passou a considerar o horizonte sociocultural para o entendimento da mmesis. A mmesis, portanto, se orienta sob uma classificao social, o que significa que existe um dilogo entre o receptor e o mimema. Assim, o mimema anterior a esse dilogo est como que ainda no completo, um produto pr-dado; a operao mimtica s ser efetuada aps essa troca, cujos resultados so imprevisveis, frutos de interpretaes subjetivas e diversas. Em termos de texto traduzido, esse dilogo realizado com a leitura do receptor.Por muito tempo a norma era a de que os indcios de presena do tradutor deveriam ser inexistentes, pretendendo-se criar uma verdadeira iluso de transparncia. A partir da virada conceitual iniciada pelos Estudos Descritivos, o estudo da traduo aproximou-se da teoria da recepo, pois passou a realizar a anlise das tradues a partir da premissa de que a traduo uma prtica social. Portanto, enquanto mimema, ela uma forma explcita de recepo, e o tradutor age tanto como leitor quanto como agente produtor. Nesse horizonte mimtico, pode-se entender que cada texto traduzido, mesmo que seja de uma mesma obra, fruto da leitura interpretativa de cada tradutor.As caractersticas prprias de cada idioma excluem a total correspondncia entre os cdigos envolvidos, o que significa dizer que foi preciso perceber os textos traduzidos considerando essa impossvel equidade entre as lnguas. Em outras palavras, foi preciso admitir as diferenas lingusticas (e tambm extralingusticas) para dar um passo adiante nos estudos de traduo. Nas palavras de Gorovitz (2006, p. 54), a traduo comparece precisamente na diferenciao, pois que gera, necessariamente, um novo texto. Esse novo texto, porm, para ser percebido como traduo, precisa estar minimamente parecido com o texto-fonte. Vemos, ento, que a traduo opera mesmo no campo mimtico, uma vez que se concretiza pela recepo, como um produto novo, diferente, passvel de interpretaes diversas, mas necessariamente similar a um texto anterior. Sendo um mimema, a traduo ser sempre fruto de uma interpretao, produto do que o sujeito , pensa, de onde se localiza. O sentido no mais delimitado pela physis, mas pela interpretao advinda da leitura. Concluso: um ponto de partida

Com este trabalho, buscamos suplementar o estudo da mmesis sob um vis diferente, o da traduo literria. Mais perguntas do que respostas, naturalmente, surgem. O que o fenmeno da autotraduo, em que tradutor, autor e leitor so a mesma pessoa, implica sobre o mimema? A classificao de um texto traduzido como mmesis de representao ou de produo gera que efeitos na sua recepo? Analisar literatura traduzida dentro do horizonte da mmesis implica consider-la um ato de criao artstica? Essas questes desejam apenas ilustrar as veredas que a realizao deste trabalho abriu. O maior aprofundamento possvel, e as possibilidades de cruzamentos so tanto mltiplas quanto as dvidas que surgem com o estudo contnuo. Sem nenhuma pretenso de ter revolucionado os campos de estudo em questo, talvez tenhamos obtido sucesso com nosso anseio primeiro: o de, com o enlace entre mimema e traduo, fortalecer a compreenso da liberdade que a palavra traduzida demanda. RefernciasBATALHA, M. C. Traduo. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007.

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