07 - AMOR AO PRÓXIMO

19
Cornelius a Lapide, sj (1597-1637) + AMOR AO PRÓXIMO Por Uyrajá Lucas Mota Diniz O que é a caridade A caridade não é outra coisa que a boa vontade, diz Santo Agostinho: Quid aliud est caritas quam bona voluntas? (De Morib.). Por sua essência, a caridade, diz São João Clímaco, tem tanta semelhança com Deus, quanto podem perceber os mortais. Por sua eficácia, é uma espécie de embriagues da alma; enfim, suas propriedades são ser o fundamento da fé e o sustento de uma alma paciente (Grado 5º). Necessidade da caridade Amareis ao Senhor vosso Deus com todo vosso coração, com toda a vossa alma e todo vosso espírito, disse Jesus Cristo em São Mateus. Este é o maior e primeiro dos mandamentos (Matth. XXII, 37-38). Porém, eis aqui um segundo, semelhante àquele: Amareis a vosso próximo como a vós mesmos: Diliges proximum tuum sicut te ipsum (Matth. XXII, 40). Jesus Cristo disse no Evangelho, segundo São João: Eis aqui meu preceito: amai-vos uns aos outros: Hoc est praeceptum meum, ut diligatis invicem (Johann. XV, 12). Toda a Lei, diz São Paulo aos Gálatas, está contida nesta única sentença: Amai a vosso próximo como a vós mesmos: Ominis lex in uno sermone impletur: Diliges proximum tuum sicut teipsum (Gal. V, 14). Permaneça em vós o amor para com vossos irmãos, escreve este apóstolo aos Hebreus: Caritas fraternitatis maneat in vobis (Heb.

description

Texto de Cornélio à Lápide traduzido da Obra "TESOROS DE CORNELIO Á LÁPIDE" - Tomo I, por Uyrajá Lucas Mota Diniz

Transcript of 07 - AMOR AO PRÓXIMO

Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)

+

AMOR AO PRXIMO

Por Uyraj Lucas Mota Diniz

O que a caridade

A caridade no outra coisa que a boa vontade, diz Santo Agostinho: Quid aliud est caritas quam bona voluntas? (De Morib.). Por sua essncia, a caridade, diz So Joo Clmaco, tem tanta semelhana com Deus, quanto podem perceber os mortais. Por sua eficcia, uma espcie de embriagues da alma; enfim, suas propriedades so ser o fundamento da f e o sustento de uma alma paciente (Grado 5).

Necessidade da caridade

Amareis ao Senhor vosso Deus com todo vosso corao, com toda a vossa alma e todo vosso esprito, disse Jesus Cristo em So Mateus. Este o maior e primeiro dos mandamentos (Matth. XXII, 37-38). Porm, eis aqui um segundo, semelhante quele: Amareis a vosso prximo como a vs mesmos: Diliges proximum tuum sicut te ipsum (Matth. XXII, 40).

Jesus Cristo disse no Evangelho, segundo So Joo: Eis aqui meu preceito: amai-vos uns aos outros: Hoc est praeceptum meum, ut diligatis invicem (Johann. XV, 12). Toda a Lei, diz So Paulo aos Glatas, est contida nesta nica sentena: Amai a vosso prximo como a vs mesmos: Ominis lex in uno sermone impletur: Diliges proximum tuum sicut teipsum (Gal. V, 14). Permanea em vs o amor para com vossos irmos, escreve este apstolo aos Hebreus: Caritas fraternitatis maneat in vobis (Heb. XIII, 1).Antes de tudo, diz o apstolo So Pedro, mantende constante a mtua caridade entre vs, porque a caridade faz perdoar uma multido de pecados: Ante omnia in obis metipis caritatem continuam habentes (I Pet. IV, 8). Exercitai entre vs a hospitalidade sem murmurar.

Cada qual faa servios aos demais, segundo o dom que tenha recebido, como fieis dispensadores das diferentes graas de Deus (I Pet. IV, 9-10). So Joo, em sua primeira Epstola, ao falar do mandamento de amar a Deus e ao prximo, diz: O que vos escrevo no um mandamento novo, seno um mandamento antigo (I Johann. II, 6). Este mandamento foi dado a Ado e a todos os homens na lei natural, assim como aos anjos, desde o princpio de sua criao. E seguindo a falar do amor a Deus e ao prximo, o mesmo apstolo acrescenta: Dou-vos um mandamento novo (I Johann II, 8). E qualifica-o assim:

1. Por causa do novo peso que lhe imprime o novo legislador Jesus cristo, e ainda por razo da nova efuso da caridade e da graa vinda do Esprito Santo no dia de Pentecostes.

2. por razo do novo povo que est chamado a pratic-lo em um grau mais elevado; falamos do povo cristo, formado de homens abrigados antes pela sombra da morte;

3. porque um novo mistrio foi proposto a nosso amor, o mistrio da Encarnao do Verbo e da nova unio dos fiis Nele. Unio tal por sua natureza, pela graa e os sacramentos, que devemos amar aos cristos no somente como a nosso prximo por causa de Deus, seno como a nossos irmos e aos membros do mesmo chefe, Jesus Cristo, feito homem. E como o amor de Jesus Cristo por ns homens tem sido imenso, novo e desconhecido, assim tambm seu mandamento grande, novo e desconhecido; porque diz: Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado: Diligatis invicem sicut dilexit vos (Johann. XIII, 34). Pela Encarnao de Jesus Cristo estamos obrigados a um novo amor, a um amor maior que antes, seja porque estamos mais intimamente unidos com Deus e nossos irmos, seja por razes dos benefcio novos e infinitos cujo princpio tem sido para ns Encarnao. Com efeito, pela Encarnao, temos, pois, novos motivos para amar. Pela Encarnao, o Verbo feito homem tomou nossa carne e tem sido nosso irmo; o Pai tem sido Pai de uma nova maneira, ora de Jesus Cristo feito homem, ora dos cristos, irmos seus; enfim, o Esprito Santo foi inteiramente derramado em ns e um novo preceito de amor foi dado por Jesus Cristo, a fim de que os homens se amem mutuamente, no somente enquanto parentes por Ado, seno como membros do corpo de Jesus Cristo.

4. o mandamento do amor chama-se novo por causa do novo modelo de amor que foi apresentado ao mundo: falamos de Jesus Cristo, que por amor deu seu Sangue, sua vida e toda a sua umanidade para a salvao dos seus. Pesai quo poderosos so os motivos de caridade que Jesus Cristo nos deu em toda a sua vida, fazendo-se homem, nascendo em um estbulo, trabalhando, pregando, sofrendo e morrendo por ns.

5. novo o preceito do amor por causa do novo fim que nos foi proposto, porque, por este mdio, Jesus Cristo quis fazer de ns homens novos, homens celestiais e no terrenos. Escutai a So Bernardo: Dou-vos, diz Jesus Cristo, um novo mandamento. Como novo? Acaso recentemente inventado? No, porque este amor estava prescrito no Antigo Testamento. Como , pois, que seja novo? novo porque renova o que antigo, e porque dos homens do passado faz homens novos. novo porque nos despoja do velho homem e reveste-nos com o carter do homem novo, que foi criado segundo Deus na santidade, na justia e na verdade. novo porque o gnero humano, h pouco desterrado do paraso, entra cada dia mais no cu (Serm. V in Coena Dom.). A caridade renova-nos, diz Santo Agostinho, a fim de que sejamos homens novos, herdeiros do Novo Testamento, cantando um cntico novo, e nos rene como a um povo novo: Dilectio ista nos innovat, ut simus homines novi, haeredes Testamenti Novi, cantores cantiei novi, facit et colligit populum novum (In Epist. I S. Johann.).

6. o mandamento do amor um mandamento novo, porque foi dado por ltimo, a saber, quando Jesus cristo se separou de seus discpulos para ir a morrer na Cruz.

7. novo em razo de seus efeitos, porque produz obras novas, a converso do mundo pago etc. Distingue o Novo Testamento do Antigo: o Antigo era um testamento de temor feito para escravos; o novo um testamento de amor feito para filhos.

O preceito de Jesus Cristo consiste em amar-nos mutuamente, diz o discpulo muito amado: Et hoc est mandatm ejus, ut diligamus alterutrum (I Johann. III, 23). Se Deus nos amou tanto, prossegue, estamos obrigados a amar-nos uns aos outros, porque a caridade vem de Deus: Carissimi, diligamus nos invicem, quia caritas ex Deo est (I Johann. IV, 7). Si sic Deus dilexit nos, et nos debemus alterutrum diligere (I Johann. IV, 11). O senhor mandou cada um tomar cuidado de seus semelhantes, diz o Eclesistico: Mandavi uniquique de proximo suo (Eccli. XVII, 12).

A caridade para os homens o que um piloto para um navio, o que um governador para uma cidade, o que o sol para a terra. Como o corpo dissolve-se quando sai-lhe a alma, assim tambm as virtudes abandonam a alma quando a caridade no existe. Uma casa que perde seus cimentos derruba-se: a caridade o cimento das virtudes; se esta chega a faltar, as virtudes desaparecem.

Escutai o apstolo So Joo: Aquele que diz: amo a Deus, e no ama seu irmo, um mentiroso; porque o preceito de Deus quer que, aquele que ame a Deus, ame tambm a seu prximo: Si quis dixerit quoniam diligo Deum et fratrem suum oderit mendax est qui enim non diligit fratrem suum quem vidit Deum quem non vidit quomodo potest diligere et hoc mandatum habemus ab eo ut qui diligit Deum diligat et fratrem suum (I Johann. IV, 20-21).

Todo animal ama a seu semelhante, diz o Eclesistico: Omne animal diligit simile sibi (Eccl. XIII, 19).

Excelncia da caridade

Um grama de caridade vale mais do que um tonelada de vitrias, dizia o Cardeal Belarmino (In Psalm.) A caridade tem dois ps, diz Santo Agostinho, tende, pois, o cuidado de no andar coxos; este dois ps so os preceitos do amor a Deus e ao prximo. Com eles, correi at Deus.

Aquele que tem caridade, diz So Baslio, possui a Deus; por conseguinte, aquele que tem dio, alimenta Satans em suas entranhas.

Se nos amamos mutuamente, Deus est conosco, diz o apstolo So Joo: Si diligamus invincem, Dus in nobis manet (I Johann. IV, 12).

Quando amais os membros de Jesus Cristo, diz Santo Agostinho, amais a Jesus Cristo; quando amais a Jesus Cristo, amais o Filho de Deus e ao Pai. Escolhei o que quereis amar, o restante vir depois. Vede, diz o mesmo Doutor, aquela viva de que nos fala o Livro dos Reis (Reg. IV, 4): enquanto teve azeite em sua prpria vasilha, no teve o bastante nem para si nem para seus credores. Assim aquele que no ama mais do que a si mesmo, no se pode bastar nem pagar o que deve por seus pecados. Porm quando comea a derramar o azeite da caridade nos vasos do prximo, ento, tem o suficiente para si mesmo e paga as dvidas que houver contrado. Tal a natureza da caridade crist e fraternal, que amplia-se com seus dons, e quanto mais se derrama, mais se acrescenta. Se derdes o po da caridade, eles restaro inteiros, e ainda que os partais com todos os homens, nada vos faltaria: Panem caritais si dederis, integer manet, si universo mundo largiri volueris, nihil tibi deficit (Serm. CCVI). Ainda mais, no somente no vos faltar nada, seno que aquilo que derdes aos outros, produzir-vos- grande benefcio. Porque a caridade um bem to imenso, que pode pertencer a um s e ser, ao mesmo tempo, de todos. Haveis dado aos demais, e no diminuiu, por isso, este vosso tesouro, seno que, ao contrrio, recebereis centuplicado o quanto destes.

Agradam-me trs coisas, diz o Senhor na Sagrada Escritura, e estas trs coisas as aprovo, e as aprovam os homens: a concrdia entre os irmos, o amor ao prximo, e os esposos perfeitamente unidos.

A caridade, diz Ricardo de So Vitor:

1. a vida da f, a fora da esperana e a medula de todas as virtudes; regula a vida, inflama o corao, dirige as aes, corrige os excessos, funda os costumes, prpria para tudo e a tudo domina, at Deus;

2. valorosa na adversidade, mais forte, todavia, na prosperidade; despreza as carcias e faz gozar inefveis e incomparveis douras;

3. est livre de toda mancha, ignora a corrupo, tem uma grande firmeza, domina os sentidos, o princpio das boas aes, a finalidade dos divinos preceitos, a morte dos pecados, a virtude dos combatentes, a palma dos vitoriosos, a arma das almas santas, a razo do mrito e a recompensa dos justos;

4. vantajosa aos penitentes, doce e amvel para aqueles que se adiantam na perfeio, um princpio de glria aos que perseveram e de vitria para os mrtires; til a todos os homens, fazendo viver tudo o que seja um bem (Lib. Animae).

Fora da caridade

O irmo ajudado por seu irmo parece-se a uma cidade forte: o lao trplice rompe-se com muita dificuldade, diz o Eclesiastes: Frater qui adjuvatur a fratre, quase civitas firma: funiculus triplex difficile rumpitur (Eccl. IV, 12). Feliz o homem que se compadece e empresta ao pobre, e que dispensa suas palavras com discrio, porque este tal jamais resvalar, diz o Salmista: Iucundus homo qui miseretur et commodat disponet sermones suos in iudicio quia in aeternum non commovebitur (Psalm. CXI, 15-16). A caridade, sabei-o, um dardo penetrante que se dirige aos inimigos, abate-os, e faz deles amigos seus.

A sabedoria do mundo engana-se torpemente querendo vencer a um inimigo pelo dio, as ameaas e os golpes; melhor inflamar seu ardor e empurrar-lhes a novas hostilidades. O verdadeiro meio de acalm-lo, amando-lhe e cumulando-Lhe de benefcios. So Joo Crisstomo, comentando aquelas palavras de Jesus Cristo: Tudo quando desejais que os homens vos faam, fazei-o a eles, diz muito oportunamente: Desejais receber benefcios? Sede benfeitor. Desejais que vos louvem? Louvai vosso prximo. Desejais ser amado? Amai. Quereis ocupar o primeiro lugar? Cedei-o primeiramente a outro.

Santo Agostinho, a propsito daquelas palavras dos Cnticos: O amor forte como a morte, diz: impossvel expressar, com maior magnificncia, a fora da caridade. Porque quem que resiste morte? Podemos resistir ao fogo, ao furor das ondas, espada, aos poderes, aos reis, porm, chega a morte, e quem pode apresentar-lhe resistncias? Ela mais forte que todas as coisas: Nihil illa fortius (De Laude Caritatis). Por isso, compara-se com ela o amor ao prximo. A caridade, com efeito, destri o que temos sido para fazer-nos o que no ramos; de um homem mal e detestvel, faz um homem bom e amvel.

A caridade, diz So Loureno Justiniano, uma armadura impenetrvel; no cede perante a espada, desponta as flechas, ri-se dos perigos, triunfa da morte e vence tudo.

A caridade une os homens

Revesti-vos, como escolhidos que sois de Deus, santos e amados, diz So Paulo, revesti-vos de entranhas de compaixo, de benignidade, de humildade, de modstia, de pacincia, suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos mutuamente, se algum tem queixa contra o outro; assim como o Senhor vos perdoou, assim haveis de fazer tambm vs. Porm, sobretudo, mantende a caridade, a qual o vinculo da perfeio (Coloss. III, 12-14).

O nome de irmo no deve ser uma palavra sem sentido.

Desde o momento em que um membro padece, diz So Paulo, todos os demais padecem com ele. E se um membro recebe uma honra, todos os demais se alegram com ele. Sois o corpo de Jesus Cristo, e membros unidos a outros membros. Por conseguinte, deveis sofrer com os que sofrem, e alegrar-vos com os que se alegram. Assim, tornam-se fortalecidos os coraes. A caridade une a todos os homens como o corpo est unido com a alma e como os membros do corpo esto unidos entre si. No corpo do homem h vrios membros, cada um tem sua funo, cada um sua aptido; ningum trabalha para si somente; ajudam-se mutuamente, porque pertencem ao mesmo corpo. Cada um s est contente com sua funo, ningum quer outra; o mais vil no inveja o mais nobre, a mo no tem cimes dos olhos, os ps no podem desempenhar as funes da cabea; seno que entre todos existe uma unio perfeita. Vivem em paz, sofrem juntos, alegram-se e se socorrem mutuamente. O amor ao prximo produz na sociedade anlogos efeitos.

Tende cuidado, diz So Paulo, de conservar a unidade do esprito com o vnculo da paz, sendo um s corpo e um s esprito, assim como fostes chamados a uma mesma esperana de vossa vocao.

Irmos meus, dizia So Bernardo, por mais que me falteis, resolvi amar-vos sempre, ainda que no me amsseis. Unir-me-ei a vs, ainda que seja com pesar vosso. Estou ligado a vs por meio de uma cadeia indissolvel, pelo lao de uma caridade sincera, aquela caridade que sempre dura. Se me insultais, serei paciente; inclinarei minha cabea ante as injrias e vencerei com mais benefcios. Acudirei ao socorro dos que recusem meus cuidados, cumularei de benefcios aos ingratos, honrarei aos que me desprezam, porque uns somos membros dos outros.

Ouo eu sempre dizer em minha ausncia, escreve o grande Apstolo aos Filipenses, que tendes um mesmo esprito, trabalhando de juntos na propagao da f. Fazei que minha alegria seja cumulada, permanecendo todos unidos, no tendo mais que um mesmo amor, um mesmo esprito e os mesmos sentimentos. No faais nada por esprito de contenda, nem de vanglria; creia, antes, pelo contrrio, cada qual que os demais so-lhe superiores. Esteja cada qual em vista, no de seus prprios interesses, seno dos interesses dos demais (Philipp. II, 2-4).

a argamassa que une as pedras de um edifcio. A argamassa que une aos homens a caridade. Por ela, tem cumprimento o que diz So Paulo aos Glatas: Alter alterius onera portate, et sic adimplebitis legem Christi: Levai a carga uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Jesus Cristo (Gal. VI, 2). Levai a carga, isto , os pecados e as misrias do prximo, e aliviai-lhe por meio da compaixo, da orao e da esmola.

No se faa pesado o visitar ao enfermo, diz o Eclesistico, pois, com tais meios, afirmar-se- em ti a caridade: Non te pigeat visitare infirmum, ex his enim in dilectione firmaveris (Eccli. VII, 39).

Sob a inspirao da caridade, ocultam-se os defeitos. Sede mutuamente afveis, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, assim como tambm Deus vos tem perdoado a vs em Jesus Cristo, diz So Paulo: Misericordes donantes invicem, sicut et Deus in Christo donavit vobis (Eph. IV, 32).

preciso no esquecer nunca, diz Santo Agostinho, que no h falta humana que todos no possamos cometer, se nosso Criador nos abandonasse.

Irmos meus, diz o grande Apstolo aos Glatas, se algum for surpreendido em algum pecado, vs que viveis espiritualmente, tende cuidado de levantar-lhe com doura, considerando-vos a vs mesmos, e temendo ser tentados como ele.

Coisas grandes e sublimes que se originam na caridade

Anelava, diz, com sua heroica caridade So Paulo aos Romanos, anelava eu mesmo ser apartado de Cristo pela salvao de meus irmos, que so meus parentes segundo a carne: Optabam enim ipse ego anathema esse a Christo pro fratribus meis (Rom. IX, 3). Alegro-me de sofrer por vs, escreve aos Colossenses: Gaudeo in passionibus pro vobis (Coloss. I, 24). Vede sua imensa caridade para os Tessalonicenses: Desejava ardentemente, escreve-lhes, no somente anunciar-vos o Evangelho, seno dar a minha vida por vs: Cupide volebamus tradere vobis non solum evangelium Dei sed etiam animas nostras (I Tessal. II, 8).

Achando-se no desterro o santo varo Tobias, visitava todos os dias aos de sua parentela, consolava-lhes, prodigalizava-lhes todos os socorros que estavam a sua mo: dava po aos que tinham fome; aos pobres, vestes; aos mortos, sepultura; e, isto, apesar da sentena de morte fulminada contra ele: desgraa que se havia atrado com sua valorosa caridade (Tob I, 19-20).

O povo de Deus havia de tal maneira irritado ao Senhor com um crime enorme, que sua destruio estava resolvida. No momento, Moiss, obedecendo caridade que lhe abrasava, desfez-se em splicas; apresentou-se como um obstculo ao exerccio da divina justia, e ele mesmo ofereceu-se como vtima de expiao em favor de seu povo: Senhor, disse, perdoai a este povo, ou riscai-me de vosso livro (Exod. XXXVII).

Quem dar gua minha cabea, e far de meus olhos fontes de lgrimas para chorar dia e noite a morte que foi dada a tantos moradores da filha de meu povo, ou seja, de Jerusalm?

Sofro convosco, irmos meus, diz So Cipriano, participo de vossas dores, estou enfermo com os enfermos; meu amor para com meus irmos aflitos faz-me tomar parte em suas angstias.

A verdadeira caridade no se detm nem pelas grandes distncias, nem pelos trabalhos, nem pelos perigos, nem pelos sacrifcios, nem pelas ameaas, nem pelos tormentos, nem pela morte. Vede a esses missionrios que deixam pais, casa, ptria, para ir a regies longnquas e desconhecidas, para exporem-se a todas as privaes, a mil perseguies e a mil mortes, com o fim de salvar as almas. O que os leva a tantos e to nobres sacrifcios? A caridade... Vede-os em tempo de fome, em meio da devastao da peste... Considerai s Irms de So Vicente de Paulo, a tantos outros... nos calabouos, nos crceres etc.

Escutai o que So Fulgncio diz de Santo Estvo, primeiro mrtir e modelo de caridade: Estevo tinha a caridade por arma e, com ela, findou vitorioso. Com a caridade, resistiu aos judeus que lhe apedrejavam; com a caridade teve foras para rogar por seus verdugos; com a caridade venceu a Saulo, seu cruel perseguidor, e mereceu ter-lhe por companheiro no cu (Serm. in S. Steph.). A caridade infinita de Deus pelos pecadores foi a causa da Encarnao, dos trabalhos, dos sofrimentos e da morte de Jesus Cristo.

A caridade apaga os pecados

A caridade apaga uma multido de pecados, diz o Apstolo So Pedro: Caritas opetir multitudinem peccatorum (I Pet. IV, 8). A caridade cobre todas as faltas, dizem os Provrbios: Universa delicta opetit caritas (Prov. X, 12).

A cobia havia tomado grandes propores, e a caridade havia desaparecido; a caridade volta, e a iniquidade desparece, diz Santo Agostinho: Creavit cupiditas, et periit caritas; redit caritas, et perit iniquitas (Sentent.).

A caridade o compndio de toda a lei e a rainha das leis

Se cumpris a lei rainha de todas as leis, segundo a Escritura, e amais a vosso prximo como a vs mesmos, fazeis uma obra excelente: Si legem perficitis regalem segundo Scripturas: Diliges proximum tuum sicut teipsum, bene facitis (Jacob II, 8).

A lei, rainha de todas as leis, a caridade:

1. porque vai adiante de todas as virtudes; tem vantagem sobre elas em qualidade, em esplendor e em magnificncia; mais perfeita de todas;

2. a caridade rainha, porque deve reinar sobre todos os homens, e constitui seu mais rico e mais glorioso ornamento. Por isso, Jesus Cristo no dirige mais que uma pergunta a Pedro: Pedro, tu me amas? A caridade obrigatria para com aos pobres, aos brbaros, aos inimigos. Assim como o firmamento envolve toda a terra, ilumina-a, aquece-a, fecunda-a, vivifica-a por meio do sol, refresca-a com chuvas benfeitoras e com doces orvalhos, a caridade tudo abraa e contm, a todos faz bem; ilumina, aquece, fecunda e vivifica os coraes, mesmo aqueles que esto cheios de dio e de vcios; com sua doura e sua bondade abranda e fecunda os coraes mais ingratos, mais ressecados e mais estreis. Segue sua marcha por um caminho real, sem rodeios, sem desviar-se nem direita nem esquerda. Por ela, todos os justos e todos os Santos chegam ao Cu;

3. a lei da caridade rainha porque e a primeira e principal lei de Jesus Cristo, Rei dos reis;

4. rainha porque superior aos reis e aos tiranos, s ameaas e aos suplcios. caridade, a maior das virtudes, virtude real e mais poderosa que todos os magnatas do universo! A caridade repara sem armas e sem efuso de sangue as devastaes causadas pelas armas, os dios, o orgulho, a ambio e a crueldade. Ela pratica, morrendo, o que os tiranos probem sob pena de morte; triunfa imolando aos seus; converte at aos seus prprios perseguidores e aos verdugos;

5. a lei da caridade rainha porque inviolvel e eterna: Caritas numquam excidit (I Cor. XIII, 8);

6. a caridade rainha, diz So Bernardo, atrai e cativa todos os afetos, com um rei muito querido que manda a uma nao inteira e a sujeita com sua largueza e seus numerosos benefcios (Serm. in Cant.);

7. rainha porque no obedece jamais s penas e ao trabalho como uma servente, seno que os elege como dona: assim se expe aos sofrimentos, s fogueiras, aos cadafalsos e morte. Faz fcil e doce tudo o que difcil e amargo;

8. rainha porque faz reis aos que a possuem; ela os faz reinar sobre o prximo, sobre si mesmos e sobre Deus;

9. rainha porque so seus todos os bens, todas as dignidades e todas as grandezas;

Quem quer que tenha guardado toda a lei, diz o apstolo So Tiago, se violar um mandamento sequer, vem a ser ru de todos os demais: Quicumque autem totam legem servaverit offendat autem in uno factus est omnium reus (Jacob. II, 10).

E como isso? Porque, diz Santo Agostinho, fere a caridade, da qual depende toda a lei; porque a caridade o princpio e a base de todas as leis e de todas a virtudes (In Psalm.)

Todos os preceitos encontram-se em grmen na caridade, diz So Gregrio: Omnia praecepta sunt in radice caritatis (Moral.).

Como um herege que no crendo em nenhum artigo de f, perde a f, no somente relativa a este artigo, seno relativo a todos os outros, assim tambm aquele que viola uma s lei, vem a ser ru como se as violasse todas, ofendendo a caridade, que o fundamento de toda a lei.

Beno dos que praticam a caridade

A caridade faz de todos os homens uma s famlia perfeitamente feliz. Que bom , que doce ver que os irmos habitam juntos, exclama o Real Profeta: Ecce quam bonum et quam jucundum habitare fratres in unum (Psalm. CXXII, 1). A caridade fraternal e como o perfume derramado sobre a cabea de Aaro que vai destilando por sua respeitvel barba e descendo at a orla de sua vestidura, como o orvalho que cai sobre o monte Hermon, como o frescor que desce sobre o monte Sio. Assim descende sobre a caridade a beno do Senhor, e o dom da vida que se prolonga at a eternidade (Psalm. CXXXII, 2-3). Quoaniam illic mandavit Dominus benedictionem, et vitam usque in saeculum (Psalm. CXXXII, 3).

Quem ama seu irmo, diz So Joo, mora na luz, e nele no h escndalo: Qui diligit fratrem suum in lumine manet et scandalum in eo non est (I Johann. II, 10). Aquele que pratica a caridade fraterna est em paz com Deus, com o prximo e consigo mesmo. O cu e a terra abenoam-no.

Qualidades da caridade

A caridade deve ser:

1. universal;

2. continua;

3. forte e ativa;

4. liberal e abundante;

5. cordial e sincera;

Tal tem sido a caridade de Jesus para conosco.

Eis aqui as qualidades da caridade segundo So Paulo:

1. paciente;

2. doce e benfeitora;

3. no invejosa;

4. no temerria nem precipitada;

5. no se orgulha;

6. no ambiciosa nem busca seus prprios interesses;

7. no se ofende nem se irrita;

8. no pensa mal;

9. no se alegra pela injustia, seno que se alegra com a verdade;

10. a tudo se ajusta;

11. tudo cr;

12. tudo espera;

13. tudo suporta;

14. jamais ter fim.

Meios de ter caridade

1 O primeiro meio de ter caridade a humildade;

2 O segundo meio renunciar a nossa vontade prpria;

3o terceiro meio secund-la a tudo;

4 o quarto, ser paciente;

5o quinto meio esforar-nos em acalmar as impacincias e as iras dos outros, e sofr-las.

Caritas duos habet pedes, noli esse claudus. Qui sunt duo pedes: duo praescepts dilectionis Dei et proximi; istis pedibus curre ad Deum (In Psalm.).

Qui caritatem habet, Deum habet; sic, qui odium habet, diabolum in se nutrit (Homil. de Ira).

Elige tibi quid diligas, seuuntur caetera (Homil. ad pop.).

Imo non solum non dficit, sed omnium illorum quibus largitus fueris, lucram tibi multipliciter crescit (Serm. CCVI).

Quia tanta est possesio caritatis, ut et singulis tota sit, et omnibus integra esse possit (Serm. CCVI).

Aliis dedisti, et ut nihil penitus perdidisti, imo quidquid aliis a te colletum est, tu centupliciter acquisisti (Serm. CCVI).

In tribos placitum est spiritui meo, que sunt probata coram Deo et hominibus concordia fratrum, et amor proximorum, et vir et mulier sibi bene consentientes (Eccli. XXV, 1-2).

Vis beneficia capere? Confer beneficium alteri. Vis laudari? Lauda alium. Vis amari? Ama. Vis partibus primir potiri? Cede illas prius alteri (Homil. XIII ad pop.).

Caritas est impenetrabilis lorica; respicit gladium, jacula excutit, periculum insultet, mortem irridit, vincit omnia (In Ligno Vitae; De Caritate, c. XIII).

Caritate habete, quod est vinculum perfectionis (Coloss. XXX, 14

Si quid patitur unum membrum conpatiuntur omnia membra sive gloriatur unum membrum congaudent omnia membra vos autem estis corpus Christi et membra de membro (I Cor. XII, 26-27).

Solliciti servare unitatem spiritus in vinculo pacis unum corpus et unus spiritus sicut vocati estis in uma (Ephes. IV, 3-4).

Vincar jurgiis, vincam obsequiis, invitis praestabo, ingratis adjiciam, honorabo et coptemnentes me (Epist. CCLII).

Sumus invicem membra (Ephes. IV, 25).

Audiam de vobis quia statis in uno spiritu, unanimes collaborantes (Philipp. I, 27)

Nullum peccatum est quis umquam fecerit homo, quod non possit facere alter homo, si desit Creator a quo factus est homem (Soliloq. c. XV).

Fratres etsi praeoccupatus fuerit homo in aliquo delicto vos qui spiritales estis huiusmodi instruite in spiritu lenitatis considerans te ipsum ne et tu tempteris (Gal. VI, 1).

Quis dabit capiti meo aquam et oculis meis fontem lacrimarum et plorabo die et nocte interfectos filiae populi mei? (Jer. IX, 1).

Doleo, fratres, vobiscum; cum singulis copulo pectus meum, cum jacentibus jacere me credo, cum prostrastis fratribus, et me prostravit affectus (Epist. ad Martyres).

Caritas patiens est benigna est caritas non aemulatur non agit perperam non inflatur non est ambitiosa non quaerit quae sua sunt non inritatur non cogitat malum non gaudet super iniquitatem congaudet autem veritati omnia suffert omnia credit omnia sperat omnia sustinet caritas numquam excidit (I Cor. 13, 4-8).