06 - Ensaio de Diogo

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SÃO BERNARDO: UMA VEROSSIMILHANÇA DESVIANTE DIOGO DE OLIVEIRA R EIS O romance São Bernardo é construído por um narrador autodiegético que demonstra ter uma personalidade cindida. Paulo on!rio" um #a$endeiro e%tremamente pragm&tico" dese'a cumprir uma tare#a que n(o corresponde ao que até ent(o )a*ia caracteri$ado a sua  personalidade. O seu intento é o de escre*er a pr!pria )ist!ria e" para cumpri+lo" ele passa a di*idir o tra,al)o entre os seus au%iliares. O padre #icaria com as cita-es latinas" o ad*ogado se encarregaria da pontua-(o e da sinta%e" ao 'ornalista ca,eria a parte liter&ria" e o  protagonista tra-aria o plano" colocaria alguns rudimentos de agricultura na )ist!ria" responsa,ili$ar+se+ia pelas #inan-as" e teria o direito de colocar o seu nome na capa. /inda a empreitada" ,asta*a comprar alguns elogios no 'ornal" e se *enderia um mil)eiro de li*ros. 0riar uma o,ra liter&ria" a 'ulgar pelas atitudes do narrador" seria similar 1 cria-(o de gado ou ao plantio de algod(o. 2(o por acaso" o plano inicial de composi-(o do li*ro n(o d& certo. De todos os que a'udariam na primeira empreitada" resta*a apenas o redator do 'ornal O cruzeiro, L3cio Gomes de A$e*edo Gondim" que segundo o narrador era um 4periodista de  ,oa índole e que escre*e o que l)e mandam5 6RA7OS" 899:" p. ;<. Gondim seria"  praticamente" o ghost writer  da ,iogra#ia de Paulo on!rio" #ato que #aria com que a narrati*a se construísse de #orma a,solutamente a'ustada com a e%pectati*a geral criada pela o,ra. = nesse momento que a *erossimil)an-a do romance torna+se des*iante e perce,emos um narrador que" apesar do seu utilitarismo" n(o dese'a simplesmente *ender li*ros e alimentar a  pr!pria *aidade atra*és de uma auto,iogra#ia qualquer. Paulo on!rio" ao *er os primeiros resultados do tra,al)o de Gondim" reclama da linguagem utili$ada" ac)a ela pern!stica" pouco coloquial" c)eia de ,esteiras. 7as por que ele pensaria assim> O que #aria com que um )omem utilit&rio ao e%tremo se distanciasse t(o #ortemente do camin)o inicial que a sua  personalidade indica*a ser a alternati*a mais l!gica a seguir>  2as perguntas que es,o-amos est& a pro,lem&tica central do romance? a de um  personagem que s! pode pensar so,re a pr!pria *ida desde que consiga se distanciar de si mesmo. O Paulo on!rio autor de um li*ro de mem!rias se constr!i apenas na medida em que se ope ao #a$endeiro rude e opressor que a narrati*a re*ela para n!s leitores. O )omem que su,'uga*a os camponeses e #uncion&rios em nome da moderni$a-(o do lati#3ndio" ao se constituir como escritor da pr!pria *ida" perce,e+se como monstruoso. A re#le%(o o le*a a ter um contato angustiante e cindido consigo mesmo e com o pr!prio passado.

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Ensaio para livro Mímesis

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So Bernardo: uma verossimilhana desvianteDiogo de Oliveira ReisO romance So Bernardo construdo por um narrador autodiegtico que demonstra ter uma personalidade cindida. Paulo Honrio, um fazendeiro extremamente pragmtico, deseja cumprir uma tarefa que no corresponde ao que at ento havia caracterizado a sua personalidade. O seu intento o de escrever a prpria histria e, para cumpri-lo, ele passa a dividir o trabalho entre os seus auxiliares. O padre ficaria com as citaes latinas, o advogado se encarregaria da pontuao e da sintaxe, ao jornalista caberia a parte literria, e o protagonista traaria o plano, colocaria alguns rudimentos de agricultura na histria, responsabilizar-se-ia pelas finanas, e teria o direito de colocar o seu nome na capa. Finda a empreitada, bastava comprar alguns elogios no jornal, e se venderia um milheiro de livros. Criar uma obra literria, a julgar pelas atitudes do narrador, seria similar criao de gado ou ao plantio de algodo. No por acaso, o plano inicial de composio do livro no d certo.

De todos os que ajudariam na primeira empreitada, restava apenas o redator do jornal O cruzeiro, Lcio Gomes de Azevedo Gondim, que segundo o narrador era um periodista de boa ndole e que escreve o que lhe mandam (RAMOS, 2001, p. 6). Gondim seria, praticamente, o ghost writer da biografia de Paulo Honrio, fato que faria com que a narrativa se construsse de forma absolutamente ajustada com a expectativa geral criada pela obra. nesse momento que a verossimilhana do romance torna-se desviante e percebemos um narrador que, apesar do seu utilitarismo, no deseja simplesmente vender livros e alimentar a prpria vaidade atravs de uma autobiografia qualquer. Paulo Honrio, ao ver os primeiros resultados do trabalho de Gondim, reclama da linguagem utilizada, acha ela pernstica, pouco coloquial, cheia de besteiras. Mas por que ele pensaria assim? O que faria com que um homem utilitrio ao extremo se distanciasse to fortemente do caminho inicial que a sua personalidade indicava ser a alternativa mais lgica a seguir?

Nas perguntas que esboamos est a problemtica central do romance: a de um personagem que s pode pensar sobre a prpria vida desde que consiga se distanciar de si mesmo. O Paulo Honrio autor de um livro de memrias se constri apenas na medida em que se ope ao fazendeiro rude e opressor que a narrativa revela para ns leitores. O homem que subjugava os camponeses e funcionrios em nome da modernizao do latifndio, ao se constituir como escritor da prpria vida, percebe-se como monstruoso. A reflexo o leva a ter um contato angustiante e cindido consigo mesmo e com o prprio passado.

Se a partir das peripcias do protagonista, o que se verifica a configurao de uma identidade narrativa ajustada s representaes hegemnicas do final da dcada de 1920, em que a permanncia do mandonismo local coexistia com novas formas de violncia simblica advindas do capitalismo, a necessidade de narrar-se instaura em Paulo Honrio a diferena. Por ter que lidar com vicissitudes que no podiam se acrescentar a uma vida que se queria uniforme (o suicdio da mulher e a falncia da empresa agrcola) , o protagonista procura no ato de narrar uma forma de reconfigurar a prpria vida. Essa tentativa, porm, s se cumpre na medida em que revela um narrador que se divide entre a identidade imutvel do idem, do mesmo, e a identidade mvel do ipse, do si (Ricoeur, 2004, p. 116). Trata-se de um narrador que se encontra numa situao de empasse entre um passado que s pode continuar a se cumprir como memria, e um futuro que existe apenas como promessa.

No gratuitamente que a figura de um narrador dividido surja logo na primeira frase da narrativa e se estenda pelos seus dois primeiros captulos. Diz Paulo Honrio: Antes de iniciar este livro, imaginei constru-lo pela diviso do trabalho (RAMOS, 2001, p.5). O proprietrio de terras, agindo assim, demonstra que para ele no haveria nenhuma diferena entre a realidade externa da fazenda e o mundo subjetivo que a significava. No existiria nada que o levasse a acreditar que tivesse algo a comunicar que os outros tambm no pudessem faz-lo. O Padre Silvestre e o jornalista Gondim poderiam falar da sua vida tanto como ele, j que no existia uma autonomia que o particularizava. O protagonista no seria mais do que o dono de So Bernardo.

Existe, porm, algo em Paulo Honrio que impede a coincidncia total entre o mundo subjetivo e o objetivo. O mundo objetivo se rompeu com a morte de Madalena: a falta da mulher o grande absurdo que a sua morte, inexplicvel como qualquer perda invade todo o romance. Utilizando a terminologia de Bourdieu (2001, p. 144), podemos dizer que as estruturas objetivas do mundo j no coincidem com aquelas que foram incorporadas pelo personagem. O narrador do livro de memrias So Bernardo algum que no vive mais sob o signo do esteretipo e capaz de conceber a indeterminao da prpria vida e dos outros moradores da fazenda. Paulo Honrio precisa ter passado por mudanas significativas para, ao narrar aquilo que foi a sua vida, nos fazer perceber a humanidade dos outros personagens e a sua desumanidade,

Ao permitir o discurso do outro, sem dele querer se apossar, o personagem revela que no mais o mesmo. o percurso de um sujeito solar que v sua objetividade romper-se com a morte da esposa que o narrador parece querer nos contar. O livro surge da fratura de uma situao de total heteronomia em que os indivduos eram definidos apenas pelo lugar que lhes cabia no espao social. Se, na auto-descoberta possibilitada pela escritura de si mesmo, o vaqueiro Marciano deixa de ser um Molambo, e Madalena, na sua indeterminao, no uma traidora comunista ou uma normalista sedutora, porque o mundo que Paulo Honrio nos narra no pretrito no o mesmo daquele do presente da enunciao. Aquele que escreve demonstra estar lutando contra os seus fantasmas, e s pode assim agir porque deixou de ser dominado por eles. Paulo Honrio, no rompendo totalmente com o habitus de toda uma vida, vivencia um momento de grandes quebras e impasses.

As frases que emergem no presente da enunciao, e a forma de enquadrar a violncia cometida, indicam uma ruptura dolorosa com o passado. No momento em que descreve a brutalidade que cometeu contra Padilha, ao endivid-lo e depois apossar-se das suas terras, o narrador no deixa de levar em considerao os sofrimentos do outro: Luis Padilha abriu a boca e arregalou os olhos midos. S. Bernardo era para ele uma coisa intil, mas de estimao: ali escondia a amargura e a quebradeira, matava passarinhos, tomava banho no riacho e dormia (RAMOS, 2001, p. 22).Com relao me Margarida, a vendedora de doces que amparou Paulo Honrio na infncia, tornando-se um referencial feminino para ele, a postura do narrador indica muito bem aquilo de que estamos falando. Enquanto o Paulo Honrio que se encontra no pretrito dos enunciados coisifica a personagem, transformando-a num embrulho que deve ser remetido para a fazenda, o narrador que a descreve, posteriormente, denncia a reificao a que ela foi submetida. Diz o proprietrio da fazenda So Bernardo:

Godim, j que tomou a empreitada, pea ao vigrio que escreva ao padre Soares sobre a remessa da negra. [...] conveniente que a mulher seja remetida com cuidado, para no se estragar na viagem. E quando ela chegar, pode encomendar as miangas, Gondim. (RAMOS, 2001, p. 48).Diz o narrador do livro de memrias So Bernardo, referindo-se ao tacho velho com que a pobre Margarida fabricava seus doces para vender:

Lembrei-me do tacho velho, que era o centro da pequenina casa onde vivamos. Mexi-me em redor dele vrios anos, lavei-o, tirei-lhe com areia e cinza as manchas de azinhavre e dele recebi sustento. Margarida utilizou-o durante quase toda a vida. Ou foi ele que a utilizou. Agora, decrpita, no podia ser doceira, e aquele traste se tornava inteiramente desnecessrio. (RAMOS, 2001, p. 57 grifo nosso).A sensibilidade para perceber que, no capitalismo, o instrumento de trabalho se humaniza, na mesma proporo em que os homens so desumanizados, no cabia no personagem embrutecido que governava a fazenda. A forma com que feita a descrio de me Margarida s pode ser verossmil se o romance for capaz de construir, ficcionalmente, a ruptura entre Paulo Honrio-narrador e Paulo Honrio-personagem, escritor e fazendeiro, presente e passado. isto que faz o texto de Graciliano Ramos ao constituir-se como uma verossimilhana desviante. No fcil conceber que um personagem antes totalmente reificado possa ter adquirido autonomia a ponto de escrever a prpria histria e nela conceber a alteridade do outro. Mas justamente essa dificuldade que torna o romance complexo e problematizador. Definido em poucos traos que variam no tempo, Paulo Honrio no um personagem simples. Sobre ele podemos afirmar aquilo que diz Antonio Candido sobre os personagens de fico no romance moderno: O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais esse sentimento de dificuldade do ser fictcio [...] o trabalho de seleo e posterior combinao permite uma decisiva margem de experincia, de maneira a criar o mximo de complexidade, de variedade, com o mnimo de traos psquicos, de atos e de ideias (CANDIDO, 2007, p. 59).Aquilo que diz o socilogo nos remete ao que afirma Iser (2002, p. 948) quando fala que o ficcional, atravs da seleo e combinao de elementos extratextuais, utiliza-se do difuso do imaginrio para instaurar no texto um vazio que exige do leitor uma interpretao. No caso do romance de Ramos, para que a indeterminao do imaginrio seja coerente com a estrutura narrativa, preciso que a constituio de uma verossimilhana desviante esteja vinculada configurao de um narrador problemtico. Paulo Honrio, tendo se objetivado no mundo como proprietrio de terras, precisa fazer o caminho inverso para compor o texto literrio que, no plano ficcional, o seu livro de memrias. Apenas a desmistificao do espao sagrado da fazenda, possibilitada pela fratura do sujeito solar, torna possvel o processo de escritura do texto. A fratura do sujeito, substituindo a sua rigidez anterior, no deve ser vista como algo negativo. Como diz Luiz Costa Lima: Em vez de implicar a fragilidade do sujeito, sua fratura o dota de uma imensa plasticidade, indispensvel para responder a tamanha variedade de experincias no mundo (COSTA LIMA, 2000, p. 171).

O protagonista, para compreender Madalena, necessita perder o enrijecimento do Eu que o caracterizou no passado, e faz-lo adquirir uma certa movncia e plasticidade. Esse processo no feito sem riscos. Na narrativa, ele vivido de maneira angustiada, e muitas vezes negado como algo passageiro: certo que tenho experimentado mudanas nesses dois ltimos anos, mas isso passa (RAMOS, 2001, p. 104). Paulo Honrio vivencia um impasse, dialoga com seus fantasmas, mas isso no significa que tenha mudado completamente. O passado est inscrito no seu corpo, faz parte das suas atitudes cotidianas, do habitus a partir do qual a sua personalidade se definiu. A diferena instaurada est no fato de que o mundo incorporado j no mais se afirma como certeza, e sua reproduo, deixando de ser apenas inconsciente, agora sentida pelo personagem. Se, como sujeito heternomo, Paulo Honrio apenas reproduzia a fala dos outros, deixando-se moldar pelas expectativas externas; agora, que ele no tinha mais uma identidade fixa, a alteridade surgia como parte de um mundo instvel e contraditrio. Difcil era ter que lidar com esse mundo que no se fechava mais numa imagem uniforme.Muito da atualidade de Paulo Honrio encontra-se na sua dificuldade de vivenciar o impasse de uma realidade que se cindiu para sempre. A partir do drama do personagem, podemos nos perguntar: como lidar com a multiplicidade de vozes que invadem as nossas vidas, e nela permanecem, sem antes termos sido preparados para isso? O que fazer com a ausncia que se saber parte de um mundo nunca definitivo, e que tende a se manifestar sempre atravs das suas faltas? Como lidar com a precariedade de um presente que j no pretende ancorar-se na certeza de um passado substancializado ou nos anseios de um futuro que foi reservado para ns? So essas algumas das perguntas que a modernidade nos legou. A fratura de Paulo Honrio de certa forma a da nossa poca, e sobre ela condizente aquilo que afirma Luiz Costa Lima ao falar da fragmentao do sujeito moderno:

Nossa dificuldade no est no mltiplo interno que trazemos, seno em saber como lidar com ele. Desde que a individualidade deixou de ser estabelecida por uma fronteira externa (a famlia, o cl, a comunidade, a nao), no temos uma educao que nos prepare para o paradoxal e contraditrio que somos. Carecemos dessa educao e a tememos. (COSTA LIMA, 2006, p. 139).A angstia do protagonista no saber como lidar com a sua nova situao e ter que encarar as prprias misrias, o passado, a alteridade da mulher e de todos aqueles que eram oprimidos por ele. Paulo Honrio no tem mais uma identidade definitiva, carece dela, e procura compreender um passado que no possvel mais reverter. O mundo encontra-se na nvoa da memria, difcil relembr-lo:

Procuro recordar o que dizamos. Impossvel. As minhas palavras eram apenas palavras, reproduo imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que no consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse at ficarmos dois vultos indistintos na escurido. (RAMOS, 2001, p. 101).O narrador demonstra estar num estado de grande prostrao. A fazenda perdeu o sentido, So Bernardo no mais to estimvel como era antes. Madalena desapareceu e deixou no seu lugar um mundo incerto. Ficaram as dvidas existncias, as perguntas sem respostas, a perda das razes anteriores. A importncia de Madalena cresce, as palavras por ela proferidas ganham vulto, mas h a sensao de que j tarde demais. O passado perdeu o sentido que possua antes, mas no deixou de permanecer inscrito no corpo e nos comportamentos do protagonista. A vida tem uma gravidade que o proprietrio de terras no consegue romper:

Est visto que, cessando esta crise, a propriedade se poderia reconstituir e voltar a ser o que era. [...] Mas para qu? Para qu? no me diro? Nesse movimento e nesse rumor haveria muito choro e haveria muita praga. As criancinhas, nos casebres midos e frios, inchariam rodas pela verminose. E Madalena no estaria aqui para mandar-lhes remdio e leite. Os homens e as mulheres seriam animais tristes. (RAMOS, 2001, p. 185). Mesmo aps tomar conscincia de um mundo incorporado que antes no era capaz de enxergar, Paulo Honrio ainda no consegue dele libertar-se. De tal maneira as prticas anteriores haviam sido inculcadas que, como nos diz Bourdieu (2001, p. 214), no bastava um simples despertar do pensamento para que o personagem pudesse romper com disposies corporais e sociais profundamente interiorizadas. O proprietrio de So Bernardo um personagem que vacila, no conseguindo negar completamente os prprios hbitos e nem se firmar neles. O mundo, anteriormente, objetivado deixou suas marcas, e continua a deix-las, mesmo aps a fratura do sujeito:

Penso em Madalena com insistncia. Se fosse possvel recomearmos... Para que enganar-me? Se fosse possvel recomearmos, aconteceria o que aconteceu. No consigo modificar-me, o que mais me aflige. (RAMOS, 2001, p. 188).

Apesar da prostrao de Paulo Honrio, e da sua incapacidade de converter o impasse vivido numa prxis diferenciada junto aos trabalhadores da fazenda, existe uma mudana fundamental que se concretiza na prpria narrativa. O romance analisado, ao incorporar, no prprio texto, as tenses que levaram sua construo, revela-se como aquilo que Luis Costa Lima (2000) chama de Mmesis de Produo. Segundo o estudioso, ao desfazer-se de uma viso substancialista de mundo, o ficcional cria a possibilidade de se estabelecerem novas articulaes com o espao social. O conceito de Mmesis, nesse sentido, no afetado pela impossibilidade de ver o literrio como uma reduplicao do real, j que a mediao entre o ficcional e a sociedade continua sendo possvel por outro vis:

A prenoo da verdade como substncia, como reconhecimento de algo naturalmente inscrito na ordem das coisas, sofre um abalo catastrfico. Mas esse abalo, que afeta drasticamente o filsofo substancialista, no afeta a mmesis que j no se pensa como modelada pela organicidade do mundo. Mesmo porque no mais amarrada prenoo do mundo como cosmo harmonioso, a mmesis tanto contm ecos do mundo das coisas a representao efeito como a ela se acrescenta. Ela no desvela a verdade, de maneira a servir ao ontolgico, mas apresenta (produz) verdades. (...) Em vez da idealizao do homem, antes dele exige algo diverso: o reconhecimento de sua obscura diferena. (COSTA LIMA, 2000, p.326).Como diz o terico, a mmesis de produo exige o reconhecimento da obscura diferena do homem. A arte produtiva relaciona-se com o que existe de mais indeterminado e criador no humano. O que Luiz Costa Lima chama de obscura diferena no difere muito daquilo que Iser denomina como carter difuso ou indeterminado do imaginrio. sempre o vazio que nos constitui que est na base da obra de arte. Para confirmarmos o que estamos dizendo, basta lembrar parte da citao de Iser que colocamos no incio do nosso trabalho: O difuso do imaginrio (...) a condio para que seja capaz de assumir configuraes diversas, o que sempre exigido se se trata de tornar o imaginrio apto para o uso (ISER, 2002, p. 948). Seguindo essa mesma linha de pensamento, um filsofo como Castoriadis (1992, p. 123), referindo-se s criaes humanas, resolve falar de imaginrio radical. Este, contrapondo-se ao imaginrio institudo o do espao social criado e incorporado pelas psiques individuais , capaz de atravessar a couraa social que recobre os sujeitos e penetrar num ponto-limite, insondvel, que est na base de toda criao. Se a sociedade, atravs da psique, faz os indivduos, estes podem, num movimento de retroao, voltarem-se para o que existe de insondvel na prpria estrutura mental, e buscarem refazer a sociedade. O imaginrio institudo, uma vez visto como imaginrio e no como realidade evidente, permite uma contnua recriao do mundo. o que diz Castoriadis: A partir da psique, a sociedade instituda faz a cada vez indivduos que, como tais, no podem fazer mais nada a no ser a sociedade que os faz (CASTORIADIS, 1992, p. 123).A sociedade que nos faz tambm feita por ns a cada momento, e para isso temos que penetrar o que esta tem de insondvel, de difuso, de obscuro. Dizer que a arte descobre o mundo ainda muito pouco. Ela capaz de fazer mais do que isso, ela instaura a diferena no j sabido, impedindo-nos de apenas reconhecer, no ato criador materializado em objeto de apreciao, o mundo que nos envolve. A representao, no caso do objeto artstico, torna-se tambm efeito. O texto literrio no apenas nos apresenta o mundo, mas sobretudo cria um mundo para ns, ao modificar o olhar que temos sobre o real institudo. Para dizer de outra forma, podemos repetir as palavras de Castoriadis: O essencial da criao no descoberta, mas constituio do novo; a arte no descobre, mas constitui; e a relao do que ela constitui com o real, relao seguramente muito complexa, no uma relao de verificao (CASTORIADIS, 2007, p. 162).O texto ficcional, quando se constitui como mmesis de produo, no visa manter uma relao de redundncia com o real, mas dizer o que este ainda no capaz. atravs das faltas presentes no mundo institudo, e que este tende a no querer revelar, que a mmesis em questo se constri. Dessa forma, ela s existe sob duas condies prvias:

Sua condio prvia estaria em (a) partir-se do sujeito enquanto fraturado, porque ele implica que cada um no se confunde com a maneira como se pensa a si mesmo; (b) reconhecer-se que a incompreenso no um estado passageiro, que passageiramente nos desune de ns prprios e daqueles que estimamos. (COSTA LIMA, 2007, p. 327).Essas duas condies no s esto presentes no romance So Bernardo como tambm foram incorporadas pela narrativa. O Paulo Honrio que acreditava compreender-se a si mesmo e desejava saber quem era Madalena percebe ser impossvel aquilo que intentava. Depois da morte da mulher, ele descobre que incapaz de defini-la ou compreend-la:

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas no conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. (...) Com efeito, se me escapa o retrato moral da minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forado a escrever. (RAMOS, 2001, p. 100).

O personagem, a seu modo, expe aquilo que procuramos explicar teoricamente. a partir de um nada que se escreve. a partir de um vazio que se devolve ao mundo a indeterminao que est na origem das nossas instituies sociais. Trata-se de um nada que no qualquer nada, mas que o prprio inconsciente humano. isso que Castoriadis procura explicitar, ao inverter a mxima de Freud (onde era o Id ser o Ego) e mostrar a viabilidade do seu reverso: Onde o Ego o Id dever surgir (CASTORIADIS, 2007, p. 126). A sentena indica que, por mais que desejemos uma racionalidade autnoma, esta tem que esbarrar num irracional irredutvel, num fundo de incompreenso, na impossibilidade humana de se fazer de uma vez por todas. Estamos sempre tendo que retornar ao discurso do outro, ao que nos alheio, para que a partir dele possamos continuar a constituir uma identidade sempre inacabada. A autonomia, nesse sentido, no a eliminao do discurso do outro atravs da formao de uma subjetividade que se deseja total, mas a capacidade de participar de um mundo que nos antecede e ultrapassa. Diz Castoriadis: A verdade prpria do sujeito sempre participao a uma verdade que o ultrapassa, que se enraza finalmente na sociedade e na histria, mesmo quando o sujeito realiza a sua autonomia (CASTORIADIS, 2007, p. 129).

Retomando a narrativa, podemos dizer que a autonomia de Paulo Honrio a de qualquer pessoa que faz da escrita uma busca de si mesmo. O narrador est em constante dilogo com o discurso do outro, travando uma luta impossvel com seus fantasmas, e sabendo-se incapaz de compreender de forma definitiva a si mesmo e o mundo que o envolve. justamente por ter perdido o desejo de se apossar das coisas que Paulo Honrio capaz de perceber a violncia cometida contra os trabalhadores rurais ao buscar modernizar a fazenda em detrimento das suas condies de trabalho. com uma autocrtica brutal que o protagonista passa a definir-se: Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um corao mido, lacunas no crebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boa enorme, dedos enormes (RAMOS, 2001, p. 190).

Uma couraa social recobre Paulo Honrio, e s sendo capaz de atravess-la, numa movncia de quem tenta negar a prpria rigidez, que ele pode escrever seu livro de memrias. evidente que o ultrapasse, a penetrao na diferena obscura que o humano, no significa a ausncia do mundo social institudo. Este permanece, mesmo deixando de ter o fechamento que possua antes. O protagonista, mesmo esforando-se, no consegue perder o embrutecimento de toda uma vida:

O que estou velho. Cinquenta anos pelo So Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado que endureci, calejei, e no um arranho que penetra esta casca espessa e vem ferir c dentro a sensibilidade embotada (RAMOS, 2001, p. 184).Apesar das palavras proferidas pelo personagem, podemos dizer que o romance revela a concretizao daquilo que ele diz no conseguir fazer. Sem destruir a casca espessa de toda uma vida, um arranho a penetra, perfura as suas certezas, e desvela toda a fragilidade que a constitui. Ser proprietrio de terras j no mais um sinal de distino, mas o resultado de uma disposio social que contribuiu para a tragdia familiar e culminou no suicdio da esposa. Paulo Honrio agora um homem de poucas vaidades. Ele sabe como vo querer se firmar em aparncias e desejar ser superior aos demais:

Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. Como lhe disse, fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado. Estou convencido de que nenhum desses ofcios me daria os recursos intelectuais necessrios para engendrar esta narrativa. [...] Considerando, porm, que os enfeites do meu esprito se reduzem a farrapos de conhecimento apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que a superioridade que me envaidece bem mesquinha. (RAMOS, 2001, p. 186) .

No final do romance, Paulo Honrio no mais um sujeito solar. de noite que ele escreve e a forma de significar a escurido diz bastante sobre o seu estado de esprito. Agora que os outros no existem ou esto dormindo a solido que traz consigo as suas presenas. Madalena continua viva na memria, como um assombro tardio: Ponho a vela no castial, risco um fsforo e acendo-a. Sinto um arrepio. A lembrana de Madalena persegue-me. Diligencio afast-la e caminho em redor da mesa (RAMOS, 2001, p. 188). A esposa est mais presente agora do que estava em vida. Impossvel fugir da alteridade que antes foi negada. Agora que anoiteceu, e o mundo no tem mais a claridade que possua antes, Paulo Honrio capaz de assumir suas incompreenses. A noite traz consigo uma dimenso do vivido que o narrador no consegue mais ignorar. Nas suas ltimas palavras, no mais possvel desconhecer a falta que fazem as outras pessoas. A tentativa de firmar-se como superior aos demais fracassou completamente. noite e de nada adianta chamar de patifes os trabalhadores da fazenda. A escurido invadiu a existncias de uma vez por todas e impossvel revert-la:

L fora h uma treva dos diabos, um grande silncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no cho. [...] horrvel! Se aparecesse algum... Esto todos dormindo. [...] Se ao menos a criana chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que misria! [...] Casimiro Lopes est dormindo. Marciano est dormindo. Patifes! (...) E eu vou ficar aqui, s escuras, at no sei que hora, at que morto de fadiga, encoste a cabea mesa e descanse uns minutos (RAMOS, 2001, p. 191).

noite, e estas ltimas palavras parecem se espalhar com suas sombras por toda a narrativa, indeterminando o relato. No bem esse o papel do imaginrio: o de irrealizar o real, dificultando o seu reconhecimento no texto, e exigindo do leitor a capacidade de interpretar seus vazios? O romance So Bernardo constitui um narrador que, partindo de um drama existencial, s retoma a objetividade do prprio passado com a condio de desnud-la e revelar para ns os conflitos que tornaram possvel a sua fratura. A violncia simblica exercida durante a Repblica Velha, num perodo de transio em que formas de reificao tpicas da escravido se associam quelas do capitalismo, revela-se para ns leitores sem subterfgios. O texto ficcional nos diz bastante das injustias de uma poca, mas no o faz a ponto de poder ser exaurido por qualquer interpretao particular. O silncio instaurado pela obra permanece, restando-nos dizer do seu narrador o mesmo que ele diz ao referir-se personagem Madalena: ele se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente.RefernciasCANDIDO, Antonio. Fico e confisso: ensaios sobre Graciliano Ramos. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

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