05_ed1_ROLEZINHOS- MARCAS, CONSUMO E SEGREGAÇÃO NO BRASIL_0

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ROSANA PINHEIRO-MACHADO E LUCIA MURY SCALCO POR No início de 2014, o fenômeno conhecido como rolezinho ganhou ampla visibilidade nacional e internacional. Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Desde então, emergiu um amplo debate sobre segregação na sociedade brasileira. Com base em uma pesquisa etnográfica sobre consumo popular com jovens da periferia de Porto Alegre, o artigo analisa o fenômeno dos rolezinhos, abordando suas dimensões locais, nacionais e globais. Levando em consideração o atual momento brasileiro, que versa sobre políticas de ascensão social via consumo e sobre uma onda de protestos de inquietação social, argumentamos que os rolezinhos estão se modificando e encontrando diversas formas de discutir e realizar política cotidiana no âmago de uma sociedade segregada. DOSSIÊ SOBRE CULTURA POPULAR URBANA ROLEZINHOS: MARCAS, CONSUMO E SEGREGAÇÃO NO BRASIL RESUMO ABSTRACT In the beginning of 2014, the phenomenon known as rolezinho (literately little roll) gained widespread national and international visibility. Teenagers from peripheries gather in large numbers to walk (give a 'rolé') and have fun in the shopping center of their cities. The event provoked costumers’ apprehension and some malls gained the right to prohibit the event, closing the doors to the teenagers. Since then, it has emerged a broad debate about segregation in Brazilian society. Based on an ethnographic research on young people’s consumption in the periphery of the city of Porto Alegre, Brazil, the article analyzes the phenomenon of rolezinhos addressing their local, national and global dimensions. Taking into account the current Brazilian moment, which is marked by both the public social policies for social inclusion via consumption, as well as a wave of social protests, we argue that rolezinhos are changing their very nature and promoting different ways to discuss and make everyday politics at the heart of a segregated society. PALAVRAS-CHAVE rolezinho segregação KEY WORDS 05 _ed1_R REVISTA DE ESTUDOS CULTURAIS 1

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Texto interessante sobre o fenômeno "rolezinhos".

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  • ROSANA PINHEIRO-MACHADO E LUCIA MURY SCALCOPOR

    No incio de 2014, o fenmenoconhecido como rolezinho ganhou amplavisibilidade nacional e internacional. Trata-sede adolescentes das periferias urbanas que serenem em grande nmero para passear nosshopping centers de suas cidades. O eventocausou apreenso nos frequentadores e fez comque alguns proprietrios dos estabelecimentosconseguissem o direito na justia de proibir arealizao dos rolezinhos, barrando o acessodos jovens. Desde ento, emergiu um amplodebate sobre segregao na sociedade brasileira.Com base em uma pesquisa etnogrfica sobreconsumo popular com jovens da periferia dePorto Alegre, o artigo analisa o fenmeno dosrolezinhos, abordando suas dimenses locais,nacionais e globais. Levando em considerao oatual momento brasileiro, que versa sobrepolticas de ascenso social via consumo e sobreuma onda de protestos de inquietao social,argumentamos que os rolezinhos esto semodificando e encontrando diversas formas dediscutir e realizar poltica cotidiana no magode uma sociedade segregada.

    DOSSI SOBRE CULTURA POPULAR URBANA

    ROLEZINHOS: MARCAS,CONSUMO E SEGREGAONO BRASIL

    RESUMO ABSTRACT In the beginning of2014, the phenomenon known asrolezinho (literately little roll) gainedwidespread national andinternational visibility. Teenagersfrom peripheries gather in largenumbers to walk (give a 'rol') andhave fun in the shopping center oftheir cities. The event provokedcostumers apprehension and somemalls gained the right to prohibit theevent, closing the doors to theteenagers. Since then, it has emergeda broad debate about segregation inBrazilian society. Based on anethnographic research on youngpeoples consumption in the peripheryof the city of Porto Alegre, Brazil, thearticle analyzes the phenomenon ofrolezinhos addressing their local,national and global dimensions.Taking into account the currentBrazilian moment, which is markedby both the public social policies forsocial inclusion via consumption, aswell as a wave of social protests, weargue that rolezinhos are changingtheir very nature and promotingdifferent ways to discuss and makeeveryday politics at the heart of asegregated society.

    PALAVRAS-CHAVE rolezinho segregao KEY WORDS

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    _ed1_ROLEZIN

    REVISTA DEESTUDOSCULTURAIS 1

  • Recentemente, o fenmeno conhecido como rolezinho ganhou amplavisibilidade nacional e internacional. Trata-se de adolescentes das periferiasurbanas que se renem em grande nmero para passear, namorar e cantarfunk nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreenso nosfrequentadores e, consequentemente, fez com que alguns proprietrios dosestabelecimentos conseguissem o direito na justia de proibir a realizao dosrolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Deste ento, emergiu um amplodebate sobre a ferida aberta da segregao racial e social na sociedadebrasileira, uma vez que a maioria desses jovens composta por negros epobres.

    O assunto dos rolezinhos foi o tema mais debatido nas redes sociais e namdia impressa entre dezembro de 2013 a janeiro de 2014. O engajamentocrtico da populao brasileira pode ser comparado aos protestos quemarcaram o pas em junho de 2013, constituindo-se uma continuidade doano que no acabou. Ainda que grande parte tenha apoiado os jovens emseu direito de ir e vir e de se divertir, estima-se que a maioria da populaourbana tenha repudiado o acontecido. Uma pesquisa da poca mostrou que80% dos paulistanos desaprovavam os rolezinhos e 72% entendiam que apolcia militar deveria agir para reprimi-los [1] .Cruzando com a anlisequalitativa dos comentrios das redes sociais, fica evidente que a rejeio dapopulao brasileira ao fenmeno grande, legitimando a ao violenta dapolcia e a postura segregacionista dos estabelecimentos de camadas mdias.

    Durante o auge das discusses sobre o tema, muitas pessoas diziam noconseguir entender como uma brincadeira de jovens podia ter se tornado oassunto mais importante do pas. Dizia-se que era falta do que discutir, umtema intil ante tantos outros problemas srios. Numa posio contrria,este artigo entende que o fenmeno dos rolezinhos bom para pensar,parafraseando livremente Lvi-Strauss (1962). Ele traz tona, de formaspera e evidente, as estruturas da desigualdade profundamente enraizadasna sociedade brasileira, as quais foram sendo sedimentadas ao longo dahistria de um pas colonizado e segregado cuja mitologia e ideologia versamsobre a democracia racial, mas seus ritos cotidianos e mundanos apontampara a sua negao.

    O objetivo deste artigo analisar as mltiplas imbricaes que transforaramem um fenmeno aquilo que, primeira vista, tinha tudo para ser trivial. Nombito nacional, ao mesmo tempo em que os rolezinhos representam uma

    Consumo marcas protestos rolezinho segregationConsumptionbranding protests

  • continuidade de um processo histrico da excluso dos grupos populares doscentros urbanos de camadas mdias, eles tambm so fruto de fenmenosrecentes, tais como as polticas pblicas de expanso do consumo por partedos grupos populares, bem como a insatisfao dos protestos de junho de2013 sobre os rumos do desenvolvimento do Brasil. No mbito global, osrolezinhos so um produto da expanso do capitalismo e reproduzem amatriz de significados presente no comportamento de consumo de diversasperiferias urbanas do mundo: jovens que veneram marcas globais e que, aoostent-las, produzem um contraste com o contexto social de penria emque esto inseridos.

    A manifestao latente do rolezinho s pode ser entendida quandodestrinchada por meio do cruzamento desses fatores global e nacional,histrico e contemporneo. O argumento apresentado neste artigo de queo evento tornou-se um fenmeno porque tem esse poder catalizador dereunir e revelar profundas estruturas da desigualdade social no apenas dasociedade brasileira, mas igualmente das relaes polticas e econmicasentre o Norte e o Sul do planeta. Ao contrrio de um fenmenogenuinamente nacional sui generis, o rolezinho uma manifestao brasileira de um comportamento da periferia global. igualmente verdade,contudo, que o momento poltico e econmico do pas traz nuanas muitoespeciais e diferenciadas a esse processo.

    Este artigo est baseado em duas fontes de anlise. De um lado, fundamenta-se em uma pesquisa etnogrfica sobre consumo popular realizada na periferiada cidade de Porto Alegre (capital do estado do Rio Grande do Sul) desde oano de 2009 (PINHEIRO-MACHADO E SCALCO, 2012). Nessa pesquisa,entre outras tcnicas de observao participante, ns acompanhvamosjovens de 17 a 22 anos em suas idas aos shoppings. De outro lado, durante aexploso desse fenmeno, realizamos uma pesquisa qualitativa de anlise doscomentrios sobre o tema em blogs e redes sociais. Desse modo, trazemosaqui uma anlise concomitantemente de dentro e de fora do fenmeno dosrolezinhos.

    O artigo est dividido em quatro partes. Na primeira, busca-se traar algumascaractersticas em comum entre o rolezinho e o comportamento de consumodas periferias globais, Na segunda, traz-se uma discusso sobre consumo emarcas entre os jovens da periferia de Porto Alegre. Em seguida, asegregao de classes e de raa no Brasil contextualizada para compreenderas reaes da sociedade brasileira ante ao fenmeno. Finalmente, analisa-se apassagem do rolezinho para o Rolezinho, ou seja, o processo de visibilidade edebate pblico que transformou a diverso em shoppings centers em umevento da poltica nacional.

  • MARKETING DO AMOR: PERIFERIAS GLOBAIS, MIMESES EDESIGUALDADE

    A devoo ao consumo de marcas caras e/ou de luxo entre grupos dascamadas mais baixas no um fenmeno novo, tampouco restrito ao Brasil.Com nuanas locais e nacionais, trata-se de um fato estrutural condioperifrica na modernidade. Para Newell (2012), que analisou o consumo demarcas ocidentais entre jovens pobres da periferia de Cte dIvoire, osintegrantes desses rituais de consumo esto resistindo ao abandono quecircunda a suas vidas.

    Friedman (1990) j chamava ateno sobre a importncia de se levar a srioo entendimento desse tipo de fenmeno. O autor analisou a LA SAPE Societe des Ambianceurs et Personnes Elegantes, que um movimento querecruta seus membros das camadas mais pobres do Congo e se caracterizapela adorao s marcas de luxo europeias. A exibio de tais roupas feitaem um ritual, conhecido como dana das grifes, no qual as etiquetasfamosas so camufladas pelas lapelas dos casacos e ostentadas como convm,como parte do ritual de status. No caso dos congoleses, o aparecer e o ser soidnticos: voc o que voc veste. Isso no ocorre porque a veste faz ohomem, mas porque o vesturio a expresso imediata do grau da foravital que a pessoa carrega dentro de si, e a fora vital sempre e em todaparte exterior. O consumo do vesturio, para Friedman, cercado de umaestratgia global vinculada fora que proporciona, que no apenasriqueza, mas tambm sade e poder poltico. Por isso, trata-se de um atoessencial no processo de negociao identitria. Levando uma vida miservel,numa carncia total pela sobrevivncia, todos os recursos desses sujeitos socanalizados para compras a prazo de vesturio masculino, desde camisas emeias at calas, ternos e sapatos, evocando prestgio e um estilo de vida queeste vesturio todo se destina a manifestar.

    Segundo Lemos (2009), as periferias vm se apropriando cada vez mais do"chic" e que isso se potencializa e torna-se mais visvel graas internet. Ofenmeno est em vrios lugares do mundo, como na Inglaterra, onde existea turma dos "chavs", tambm conhecidos como grupos da periferia deLondres, que adotaram a carssima marca Burberry como sua preferida.Ficou comum ver "chavs", muitos deles desempregados, andando pelas ruasde Londres com bluses da Burberry. No Brasil, algo parecido acontece narua e na internet. A Lacoste, por exemplo, que tem uma campanhaclaramente direcionada para um pblico de elite, tornou-se uma das marcasfavoritas das periferias. Segundo a letra de um funk do Bonde da Lacoste:"desde que eu me conheo como gente/ que a Lacoste o smbolo da gente"(LEMOS, 2009, s/p).

  • Existem diversos outros exemplos desse tipo de fenmeno que ocorre nasperiferias dos pases desenvolvidos ou em desenvolvimento. Ainda quemanifestaes sejam muito diversas, respondendo a contextos plurais, possvel pensar para alm da esfera local e nacional. Em comum, encontra-seo fato de que grupos das camadas menos privilegiadas se apropriam dossmbolos de poder e riqueza do capitalismo global. Destaca-se igualmenteuma hegemonia masculina na presena nos rituais pblicos. E as marcas sosmbolos dessa desigualdade.

    No que se refere dimenso do capitalismo global, a relao desses jovenspode ser compreendida como uma resposta, s avessas, ao marketing deamor (FOSTER, 2005) ou de evangelizao criado pelas grandes empresasna atualidade. Ainda que toda a pesquisa do pblico alvo seja direcionadapara atingir as elites, nem sempre possvel controlar a vida social de umamarca ir ganhar. A ideia do amor e da religio surge a partir doreconhecimento totmico de que os grupos precisam de smbolos para seidentificar. Uma vez criado o culto do amor, o consumidor capaz de fazerqualquer sacrifcio pelas marcas e a pagar qualquer preo. Clientes passam aser embaixadores da marca para citar o jargo da rea. O fetiche damercadoria supervalorizado pelos gestores da marca, a fim de criar umarelao de amor, que vai alm da razo, entre o sujeito e o smbolo(FOSTER, 2005).

    Esse fenmeno estrutural das periferias globais, nuanado por contextoslocais e nacionais, provoca angstia das elites e desespero do setor demarketing das grandes corporaes, que hoje precisam responder a umproblema que eles mesmos criaram: a produo do sonho e do amor smarcas. Como disse publicamente um CEO da marca Adidas: encontramos onosso inimigo, somos ns mesmos[2]. Ou como anunciou um dos maioresprodutores de pirataria, ento preso nos Estados Unidos: Vocs (as marcas)criaram um sonho, agora aguentem[3]. Fica evidente aqui o papel subversivodesses jovens ao desafiarem a racionalidade do marketing e atuarem em umcampo no previsto pelos gestores das grandes marcas. O marketing doamor, assim, revela algumas contradies da modernidade: ele dirigido selites, mas acaba atingindo as populaes mais desprovidas de capitais, asquais, ao se apropriarem do smbolo dos outros, reinventam a sua prpriacondio de pobreza, ressignificando a carncia em abundncia.

    No entanto, a discusso no se finda no reconhecimento de certa subverso.A desigualdade, afinal de contas, continua presente, permanentementereproduzida e reinventada como irei discutir no item seguinte. Narealidade, estamos diante da tenso gerada pela mimese, to cara aos estudoscoloniais e ps-coloniais. Qual o limite entre a apropriao e a resistncia?

  • Desde as primeiras anlises sobre a imitao do estilo do colonizador porparte do colonizado presente nos rituais analisados por Jean Rouch, nofilme Le Matres Fous, e no livro Kalela Dance de Micthell (1956) - ficaexposto o processo de extrema violncia sofrida por estes grupos ao imitaremas vestes dos grupos hegemnicos. Bhabha (1994), em sua anlise clssicasobre a mimese, conclui que existe certa pardia na imitao, por meio desua exacerbao, o que, no final das contas, um ato subversivo deresistncia. Essa interpretao ser fortemente criticada por Ferguson(2006), quando pontua que h qualquer subverso na imitao, mas antesum apelo desesperador, por parte dos grupos menos favorecidos, porpertencer ordem hegemnica.

    A globalizao do sculo XXI certamente produz um mundo muito diferentedo contato inicial entre colonizador e colonizado da metade do sculopassado. Essas fronteiras esto mais diludas e a sociedade est maisinterconectada. No entanto, inegvel que as formas de dominao materiale ideolgica se reinventam e se mantm. Por isso, consideramosfundamental entender o universo dos rolezinhos dentro desse espectro deuma desigualdade global vivida ritualisticamente no mbito local.Observando o consumo dos jovens da periferia brasileira que se apropriamde smbolos que no foram projetados para eles, ns tendemos a concordarcom a posio sinttica de Newell (2012) que procura uma posiointermediria entre a subverso de Bhabha e o apelo de ser igual deFerguson. H resistncia simplesmente pelo fato de que esses jovens negam opapel da pobreza e confundem as fronteiras de classe, ou ao menos, fazemcom que essas tenham que ser reinventadas muito rapidamente. Mas hconcomitantemente um apelo, bastante conservador, de reproduo dasestruturas de poder por meio do desejo de se aliar aos smbolos de poder.

    DOS ROLEZINHOS DE PORTO ALEGRE: A COSMOLOGIA ESOCIABILIDADE JUVENIL DA PERIFERIA

    O rolezinho um dos aspectos que compem um fenmeno mais amplo dasperiferias urbanas do Brasil os chamados bondes, as gangues, os grupos eos cls juvenis. Portanto, as reunies aos shoppings para passear, comprar enamorar uma das caractersticas da sociabilidade juvenil entre outrasprticas e cosmologias perifricas. Aps o fenmeno miditico, esse aspectofoi supervalorizado, englobando os demais e sendo isolado como varivelanaltica. Se, durante o dia, os jovens vo aos shoppings, a noite vo ao bailefunk do bairro. A diferena que, no primeiro, eles rompem as fronteirassegregacionistas de classe e raa e tornam-se visveis e, no segundo, mantm-

    JssicaRealce

  • se em seus limites territoriais longe do contato com as camadas maisabastadas.

    Nessa direo, o funk ostentao outro fenmeno intimidante relacionadoaos rolezinhos. Trata-se de uma verso - que se manifesta mais fortementeem So Paulo, mas no apenas l - que cultua carros, dinheiro e grifes emnveis propositalmente exacerbados, representando a negao do papelpreviamente definido socialmente que versa sobre a pobreza comodestituio, ausncia e carncia. Como dizia um de nossos entrevistados, em2010, sobre a sua condio de consumidor eu no sou pobre, favelado, euestou podendo. O funk um discurso poltico que ocorre por meio daesttica criativa e positivada (ver MIZRAHI, 2011, 2012), forjando, assim,uma contradio profunda: os grupos mais baixos da sociedade apropriandoos smbolos maiores de status e de riqueza. Conforme declarou na televiso orapper Emicida um direito nosso cantar a felicidade. A sociedade ostenta,via propaganda, novela; mas quando a favela faz, acha que a favela quecriou o consumismo.

    Esse conjunto de prticas que compem a cosmologia juvenil do rolezinhoao funk - uma expresso cultural que emblematicamente produz rituais dedispndio, combinando elementos do capitalismo global e elementos dacultura local. O consumo, em uma perspectiva sociolgica e antropolgica,ocupa um lugar central na subjetividade moderna, uma vez em que norteia oself tanto por meio da demarcao de seus contornos individuais quanto pelapossibilidade de atuar como um elo de pertencimento social (BOURDIEU,1984; DOUGLAS AND ISHERWOOD, 1979; MILLER, 1987, 1995). Sendouma fonte de poder, agncia, imaginao e prazer (APPADURAI, 1996;CAMPBELL, 1987), consumir muito mais do que comprar: um ato queconcomitantemente aprisiona e liberta os indivduos das estruturas sociaisentre as quais esto transitando.

    GANGUES, CRIME E SOCIABILIDADE JUVENIL

    Em nosso estudo etnogrfico realizado na periferia de Porto Alegre,costumvamos acompanhar os jovens da periferia que pertenciam aoschamados bondes em seus momentos de sociabilidade, seja nos rolezinhosdados aos shoppings centers, seja na prpria periferia. Inicialmente o termobonde servia para designar os grupos de jovens - geralmente da mesmacomunidade ou bairro - que iam juntos a bailes funks e participavam depichaes, remetendo a um tipo de sociabilidade ligado a transgresses,

  • criminalidade e trfico de drogas, o que pode ser entendido como asconhecidas gangues juvenis. Porm, o termo bonde se popularizou e agoradesigna vrios tipos de turma de jovens, sem nenhuma relao direta com omundo do crime, ainda que sempre o tangenciando.

    A relao do consumo com o crime era bastante tnue. Geralmente, osjovens da mais baixa escalada do trfico de drogas ou com menos poder nasredes locais eram quem cometiam os crimes. Tambm era comum que cadabonde, gangue ou turma tivesse algum responsvel pelos assaltos. Estesrealizavam pequenos furtos ou at mesmo grandes crimes seguidos dehomicdio e faziam circular na periferia os objetos e o capital adquirido.

    Muitos dos jovens pesquisados, portanto, admitiam que uma fonteimportante de aquisio de bens era advinda do mundo do crime. Como elesno cometiam crimes diretamente, eles no se achavam parte desse universoque moralmente condenavam, mas que atuavam tecnicamente e legalmentecomo receptadores. No entanto, preciso distinguir o mbito moral e evitargeneralizaes exticas sobre o tema. Durante o fenmeno dos rolezinhos,uma das principais crticas endereadas a esses jovens eram de que se tratavade vagabundos (que deveriam trabalhar em vez de passear) e que spoderiam comprar uma vez que fossem assaltantes. No universo empricoobservado, esse tipo de acusao injusta. Muitos dos jovens trabalhavam efaziam isso justamente por causa do consumo. Explicava-nos Beto (18 anos):eu era um vagabundo, daqui comecei a ver que estar bonito importante,ento, eu devo s marcas o fato de ter comeado a trabalhar por podercomprar. evidente que, sem qualificao para ter um bom emprego, umsalrio mnimo no era suficiente sequer para pagar o bon que vestiam. Masuma das coisas que nossa pesquisa apontava era justamente a complexidade ea criatividade dos arranjos que eles faziam para conseguir comprar uma coisacara.

    Um das estratgias que mais nos chamava ateno era o mercado interno deroupas usadas que funcionava, ao mesmo tempo como um definidor daescala de poder interna. O patro do trfico era quem detinha as roupas maisnovas. Uma vez que mudava a estao ou deixava de ser novidade, vendia-separa algum abaixo. Nossos informantes, por exemplo, seguidamentecompravam dos patres do trfico e, assim que adquirissem uma pea nova,vendiam suas antigas para os imediatamente abaixo e assim o dinheirocirculava no mercado interno (PINHEIRO-MACHADO E SCALCO 2012).Outra pesquisa sobre consumo popular de modo mais amplo, realizada porns, apontava que esse consumo era estritamente baseado na aquisio decoisas consideradas boas de verdade e, portanto, originais. A positivao doself passava necessariamente pela negao da pirataria. Como disse uma

  • antiga informante, Carminha (37 anos em 2005): as pessoas acham que sporque eu sou pobre eu no posso gostar de coisa boa. (PINHEIRO-MACHADO E SCALCO, 2010). O rolezinho no shopping, portanto, temuma razo ao mesmo tempo prtica (de pesquisa e busca de informao demoda) e simblica (de uma vinculao com o territrio da economia formale da abundncia).

    Para alm da parte relacionada ao consumo em si, o rolezinho tambm seconstitua uma fonte de diverso. As periferias urbanas das grandes cidadesbrasileiras so destitudas de espaos com infraestrutura de lazer adequada.Todavia, pelas razes j expostas, no acreditamos que essa seja a motivaoprincipal da escolha pela diverso num centro comercial ao invs de umencontro nas praas pblicas, j que a chave da questo justamente ainsero na sociedade de consumo. Durante a semana, os jovenstrabalhavam, estudavam e ajudavam nas tarefas domsticas. Nos finais desemana davam um rolezinho no shopping e noite iam ao baile. Nessasociabilidade de trnsitos territoriais e sociais, havia um recorte de gnerobastante definido. Os rolezinhos so um fenmeno majoritariamentemasculino ou orientado pelo poder masculino. So os meninos os que maisse preocupam com marcas, que formam gangues e juntos desfilam para aatrao das minas (gria para meninas). Trata-se de um jogo de seduo quese estende do shopping s danas sensuais dos bailes funk. Segundo osentrevistados, quanto mais marcas usar, mais minas iro atrs dos grupos. Opoder dessas gangues medido, em ltima instncia, pela quantidade deseguidoras e fs que eles conseguem capitalizar. E segundo a viso dosmeninos, uma relao comoditizada j que quanto mais se ostenta, mais asmeninas seguem. Quando se estabelece uma relao aps o flerte, fundamental que os meninos consigam continuar a prover bens caros para asmulheres.

    A figura do homem poderoso e provedor se destaca nesses circuitos desociabilidade. Nesse sentido, retroalimenta-se o engajamento com o crime,seja ele direto ou indireto. Em pesquisa realizada entre jovens das classespopulares em Porto Alegre, em 2001, Soares (2004) apontava que e omodelo reinante entre esses jovens era o de macho violento, arrogante,poderoso e armado, instaurando um magnetismo perverso que enseja aemulao da prepotncia armada. (SOARES, 2004, p.152). No difcilentender o fascnio que o trfico, o consumo, as armas e o mundo do crimeexercem sobre os jovens. Importa lembrar ainda o que Fonseca (2000), aorealizar sua etnografia nos anos 80 na periferia de Porto Alegre, j apontavaem seus estudos que essa tendncia dos jovens a sublimar a aventura eressaltarem o herosmo existente na vida bandida, identificando-se com oslderes do trfico local. A arma, portanto, entre outras mercadorias ,

    JssicaRealceLembra muito o cotidiano dos jovens do Bsj que vo ao shopping nos finais de semana, principalmente aos sbados.

  • tambm, uma mercadoria de poder e instrumento extremo simblico dedistino.

    Todo esse conjunto de eventos da sociabilidade juvenil pode sercompreendido dentro de uma cosmologia performtica da periferia marcadapor rituais de devoo e sacrifcio (MILLER, 1998) e do desperdcio e daostentao (NEWELL, 2012). Os meninos vestem-se literalmente dos ps cabea com roupas de marca, sempre exibido os smbolos e as etiquetas:sapatos, meias, bermudas, camisetas, correntes de prata e ouro (ousimulacro), jaquetas e bons. Eles pagam at R$ 500,00 por um bon demarca por exemplo. Vestidos a rigor, os grupos vo para o shopping e doum rolezinho, que se assemelha a um desfile. Alm disso, muitos gruposrivais podem se encontrar para brigar em local previamente marcado atravsdo site de relacionamento social. Os confrontos se valem de arma de fogo,facas e luta corporal. No raro que essas gangues tivessem nomes de marcao grupo da Nike inimigo do grupo da Adidas e o grupo da Lacoste/jacarinimigo do grupo da Oklen/Rinoceronte. Outra expresso ritual dos bondes,que ocorre de forma pacfica, acontece nos bailes funk, nos quais, tambmvestidos a rigor, os jovens reunidos entram na festa, danam passosensaiados e proclamam palavras de ordem. A pichao e grafite tambm somarcas deixadas pelos jovens, como forma de desafio ordem e marcao deuma vida no limite da transgresso, que se vincula ao estilo de vida juvenil.

    A internet um espao de convergncia onde se marcam os encontrosdiurnos shoppings e brigas em praas pblicas e onde se publiciza aidentidade de grupo por meio do compartilhamento de imagens dos jovensbem vestidos e, muitas vezes, portando armas. Como pontua Newell (2012),andar em grupo um ritual pblico e performtico de exibio das redessociais, compondo o que a autora chama de espetculos da riqueza e dosucesso. A fora ritual emblemtica desses eventos de ostentao residejustamente no fato em que so realizados em contextos de pobreza, onde apriori se pressupe a carncia e no a abundncia.

    SEGREGAO, PRECONCEITO E CONSUMO COMO INCLUSO

    A democracia racial, atravs da qual se acredita que as diferentes raasconvivem em harmonia, um dos mitos fundadores da sociedade brasileira.Nas cincias sociais, essa ideia tem sido constantemente contestada,apontado para um modelo que, na prtica, camufla um processo desegregao perverso e profundo. Um dos pontos altos da midiatizao dos

    JssicaRealcejustamente traz a ideia de resistncia ao transpor os limites das classes.

    JssicaRealce

  • rolezinhos foi a sua capacidade de trazer tona o debate da segregao sociale espacial e da desigualdade, especialmente a partir do momento em que ocritrio para barrar a entrada de jovens nos shoppings centers passou a sercompletamente aleatrio, calcando-se na classe e na cor. A fora policial foiusada para que se cumprisse a ordem judicial de proibio dos rolezinhos eisso foi amplamente legitimado pela populao, conforme indica a pesquisamencionada no incio deste artigo. Em suma, os negros da periferia estavamsendo uma vez mais vtimas de um apartheid velado a la brasileira (nessecaso, nem to velado assim).

    No Brasil, os grupos populares brasileiros, desde a abolio da escravatura,sempre ocuparam espaos da cidade como forma de diverso investida depoltica. Abundam exemplos na histria da forma como esses trnsitosforam barrados por meio de polticas higienistas e repressivas, como porexemplo, a violncia usada pelo Estado para com os capoeiras no Rio deJaneiro no incio do sculo 20 (MURILO DE CARVALHO, 1987). Em PortoAlegre, na dcada de 1940 e 1950, a prestigiosa Revista do Globo traziafrequentes matrias sobre os grupos "marginais" que tiravam a paz dapopulao urbana que queria viver o sonho de uma cidade europeia, comoanalisa Pesavento (1992). A marginalidade tem assumido mltiplas faces nahistria do Brasil, mas h algo de estrutural: ela vista como algo fora dolugar, uma massa de vagabundos. Nos anos 1970, Durham (1987) e Oliveira(2003), j mostravam que, na histria do pas, criou-se a imagem de umBrasil moderno e desenvolvido, e de um outro, arcaico e subdesenvolvido. possvel ainda acrescentar: um, branco e de elite, outro, negro nas periferias.Esses "dois Brasis" no se tocam, mas, quando isso acontece, o primeiro ladousa de suas armas mais poderosas: a fora policial.

    Apesar de terem aparecido muitos argumentos de que a populao era contraos rolezinhos simplesmente porque eles causavam tumulto e aglomerao noespao pblico, ficava evidente que tamanha raiva dirigida a esses grupos noresidia apenas no fato de eles estarem causando baguna. O grandedescontentamento vinha das camadas mdias e altas, que sentiam a sua pazameaada em um lugar at ento protegido da desigualdade. Entre essessetores, a verbalizao expressas nos comentrios das redes sociaisexplicitava o preconceito anteriormente implcito. Entre um universo demais de mil comentrios analisados em redes sociais e blogs, podemosdestacar duas categorias: o trabalho e a violncia.

    Sobre o trabalho, mesmo que os rolezinhos fossem uma prtica deadolescentes nos finais de semana, os principais comentrios diziam algocomo: vo trabalhar, seus vagabundos!/por que no pegam em umaenxada ao invs de passear?/por que no fazem rolezinho na agncia de

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  • emprego?/chega de rolezinho, vamos trabalhar negrada. A condio dapobreza nesses comentrios era atribuda a eles prprios e sua supostapreguia e a enxada, smbolo do trabalho escravo no Brasil, surge comoobjeto emblemtico. Outro tema recorrente era a violncia que essesmeninos deveriam sofrer pela represso policial: esses favelados vagabundostm mais que levar porrada da polcia para aprender a ter jeito na vida/essa negrada que apanhou da polcia foi pouco. Deveriam ter apanhadomais. O imaginrio escravagista est implcito nesses discursos,especialmente quando se refere necessidade de punio supostaindolncia dos negros.

    Os comentrios das redes sociais trouxeram tona os sentimentosescondidos no modelo da ideologia da harmonia e da cordial. Os rolezinhos,nesse sentido, foram um dos temas mais importantes dos ltimos anos paraidentificar o preconceito de classe e de cor da sociedade brasileira. Naverdade, o fenmeno condensou em um perodo muito curto as reaes daselites brancas brasileiras de verem seus espaos ameaados. Comomanifestou um colunista de uma das maiores revistas do Brasil, ao declararque o rolezinho delinquncia, fruto da inveja dos pobres, selvagens, queinvejam o consumo da civilizao. Em sua coluna acessada por milhares depessoas por dia, o colunista diz que os jovens dos rolezinhos so brbarosincapazes de reconhecer sua prpria inferioridade e tm inveja da juventuderica, da riqueza alheia e das pessoas educadas [4]

    Esse tipo de viso, na verdade, tem se manifestado desde a implementao dapoltica de cotas raciais nas universidades, bem como os programas sociaisdos governos Lula e Dilma Rousseff, como Bolsa Famlia (transfernciacondicional de renda) entre outros. Desde o incio das polticas de inclusosocial, os preconceitos anteriormente camuflados esto vindo tona para nacena pblica, deixando claro que o rompimento das barreiras da desigualdadesocial brasileira confunde uma nao acomodada em sua prpria segregao.Segundo Souza (2014, s/p):

    Esses fatos (a reao ao rolezinho) so mais um reflexo do apartheidbrasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, o espao desociabilidade dos brasileiros "europeizados", da classe mdia verdadeira, e osbrasileiros percebidos como "brbaros", das classes populares. Desde que abarbrie fique restrita ao mundo das classes populares, ela no umproblema real [5]

    No caso dos rolezinhos essa tenso evidenciada especialmente porque

  • emergem em um tempo de mudanas sociais que d visibilidade aos grupospopulares. At a dcada de 2000, o acesso a certos bens de consumo nomercado interno era restrito s classes privilegiadas, configurando umprocesso de estratificao social. A nova fase de crescimento da economiaatraiu investimentos estrangeiros para o pas. O Brasil, ento, juntou-se aogrupo de economias emergentes e participa das cpulas como o G20 e osBRICS. Neste contexto, o governo nacional comeou a investirmassivamente em polticas de incluso social e no acesso ao crdito. Segundodados oficiais, de 1999 a 2009, 31 milhes de pessoas deixaram a chamadaclasse D e entraram para a classe mdia do Brasil. Entre 2003 e 2009,cresceu 24 milhes de pessoas. Nessa nova sociedade, o consumodesempenha um papel central e legitimado de incluso e asceno social.

    O aumento do consumo popular se manifesta em vrios setores. O principal o de bens durveis, que englobando eletrodomsticos, eletrnicos e mveis, um dos que mais tem se expandido. Os novos membros da chamada ClasseC esto comprando mveis e eletrodomsticos em grande quantidade,sugerindo que havia uma demanda reprimida desses bens. Os bancossentem-se encorajados a ampliar o volume de dinheiro emprestado emfuno da crescente incluso das mais baixas no consumo e as altas taxas dejuros cobradas em vrias modalidades de crdito. Comprar a crdito tem sidohistoricamente a forma de adquirir produtos no Brasil. Com frequncia, osjuros cobrados so escorchantes, mas esta a nica maneira de obter osprodutos. Alm disso, diversos setores do comrcio e de servios agora estodisponibilizando atendimento especial para as camadas emergentes. notrio, por exemplo, que atualmente os grupos populares esto andando deavio, atividade que anteriormente representava status e exclusividade scamadas mais abastadas. (OLIVEN E PINHEIRO-MACHADO, 2012).

    O rolezinho um ritual que maximiza esses novos tempos da economianacional, representando a ostentao em uma sociedade em que a inclusopassa pelo consumo, atividade amplamente legitimada socialmente comoforma de ascenso. Simbolicamente, ele representa o rompimento dasbarreiras de classe e d visibilidade ao tema do consumo das classespopulares e ao acesso das mesmas a novos espaos e mercadorias. Opreconceito, nesse contexto, uma fora que reage mudana a noaceitao da invaso de espaos das elites - e procura sufoc-la emenosprez-la. Nesse ltimo aspecto, importante pontuar que alm doscomentrios sobre trabalho e violncia que apareciam na internet, aridicularizao dos jovens era constante.

    Assim, nos deparamos com uma contradio do modelo de crescimentobrasileiro baseado no consumo interno. Como alguns socilogos j vm

    JssicaRealce

  • pontuando (Souza, 2009 entre outros), a aquisio de bens no suficientepara mudana social, evidenciando que o modelo de distino bourdiano(BOURDIEU, 1984) ainda mantm-se pertinente: a ausncia de capitaissimblico e social, somado carncia de servios e bens pblicos (que oestado brasileiro continua negando diariamente s classes menosfavorecidas), faz com que essa classe emergente no consumo mantenha-secomo classe trabalhadora precria. Sem educao, trabalho e outros direitosfundamentais, o consumo passa a ser o nico ponto quase estereotipado de (auto) incluso social, o que pode ser rechaado e ridicularizado pelascamadas mais altas que, rapidamente, reorganizam seus marcadores de classee distino.

    DO ROLEZINHO AO ROLEZINHO: DIMENSES POLTICAS DOFENMENO

    Como no caso do encontro do colonizador e do colonizado, analisado porBhabha (1994), os grupos dominantes (aqui o mercado) criaram um sonho,um universo de glamour e distino e a sociedade cria mecanismos paraclassificar quem est fora desse modelo como um ser inferior. Quando veemseus espaos e smbolos de poder dentro de uma esttica singular popular, osgrupos dominantes sentem um desconforto perturbador, como no caso doencontro colonial. Ele olha o Outro vestido como ele e no se reconhece. ojogo de espelhos desconcertante do encontro de classes da sociedadebrasileira.

    Uma das questes mais discutidas nos ltimos tempos no Brasil e naimprensa internacional sobre os rolezinhos se esse ato poltico ou no.De certa maneira, existia uma presso muito grande para mostrar que no hreinvindicao social e que tampouco se configura um movimento social. Oargumento de que esses jovens apenas querem zoar foi amplamente usadopara discorrer sobre despolitizao. Por meio desse discurso, tem-se umaforma de deslegitimar ou menosprezar a riqueza de significados desse ato,como a manchete do The Economist: Kids just want to have fun[6]. NoBrasil, igualmente, os principais meios de comunicao do pas procuravamnoticiar o evento como uma brincadeira e no como um protesto.

    Seria importante, nessa direo, distinguir o rolezinho o ato de ir aoshopping para consumir e se divertir realizado h muitos anos pelos jovensda periferia das grandes cidades do Brasil do Rolezinho, o fenmeno queganhou visibilidade nacional e internacional e acabou se transformando emoutra coisa, mas ainda em continuidade com as suas origens. A distino

  • entre esses dois momentos do ritual importante sociologicamente, masnada indica que o primeiro era apoltico. Ainda que ns tenhamosobservados que os jovens de nossa pesquisa no tinham nenhuma vontade derevolucionar o mundo estruturalmente, no sentido de uma contestao daordem estabelecida (e, ao contrrio, almejavam justamente a aliana com ossmbolos de poder e no a sua destruio) impossvel esvaziar a cargapoltica desses eventos.

    No era um movimento social no sentido de uma ao coletiva clssica. Maso conceito de poltica precisa ser minimamente contextualizado e alargado.A acepo poltica aristotlica versa sobre a participao engajada na vidapblica da polis. A cidadania o ato de se integrar plenamente vida dapolis. Os rolezinhos podem ser entendidos como uma demonstrao dodireito cidade: a liberdade de ir e vir, de criar e recriar os espaos e acidania. E ao fazer isso, modifica-se a realidade. Esses jovens vivem em umcontexto de violncia estrutural: burocracia, hospital e escolas que nofuncionam. Somado a isso, h um contexto brutal de discriminao. Eu mearrumo bem para poder ser aceito no shopping e no ser confundido combandido, preto e favelado. As pessoas tem que entender que na favela tambmtem gente que gosta de coisa bonita disse um menino da periferia de PortoAlegre, que est acostumado a ser seguido pelos guardas privados doshopping center. A negao da pobreza como carncia, a apropriao deespaos urbanos e smbolos da sociedade capitalista e o prprioreconhecimento do racismo sofrido so atos de constetao poltica.

    No entanto, isso ocorria ainda no plano da interao social diria, implcita einvisvel. Em dezembro de 2013, um grande rolezinho foi marcado nas redessociais em um shopping de So Paulo, tendo recebido at seis milconfirmaes de presena nas redes sociais. O evento atraiu a ateno damdia e a apreenso dos consumidores. Assim, o rolezinho se transformouem Rolezinho. O fato de isso ter acontecido no final de 2013 e incio de 2014 fundamental para compreender essa mudana, uma vez que os protestos deJunho ainda estavam vivos e mal resolvidos entre a populao.

    O ano de 2013 comeou tenso no Brasil. Diversos protestos vinham sendomarcados por todo o pas pelas mais diversas causas, mas principalmentetendo em comum a revolta com os custos humanos e sociais da Copa doMundo no Brasil em 2014. O anncio do aumento das passagens de nibusem Porto Alegre e, posteriormente, em So Paulo, foi a causa estopim para aexploso de um dos maiores movimentos populares da histria da nao. Avitria obtida nas ruas da pauta inicial contra o aumento foi suficiente parafazer com que os grupos organizadores dos protestos parassem asmanifestaes, especialmente quando elas comearam a se tornar difusas em

    JssicaRealce

  • sua pauta poltica. Os protestos acabaram, mas a angstia continuou. Emcerta medida, essa inquietao popular representa o esprito desse ano quecomeou em Junho de 2013 e termina com a Copa do Mundo em Julho de2014: um ano reflexivo especialmente sobre os rumos do desenvolvimentonacional, em que o megaevento esportivo deveria coroar a consagraobrasileira na economia mundial. Os protestos, que no se encerraram emjunho, deixam claro que esse sucesso alcanado na performance econmicainternacional no est bem resolvido internamente em termos dedesenvolvimento social.

    O grande rolezinho marcado recebeu ateno da mdia e imediatamentetornou-se um fenmeno de discusso nacional. A politizao do movimentoocorreu de diversas maneiras. Em primeiro lugar, gerou solidariedade dosmovimentos sociais, que comearam a promover diversos tipos de rolezinhosem diversos lugares. Em segundo, isso gerou um profundo debate no pas,trazendo tona o tema da pobreza no Brasil. Milhares de crimes de racismoforam denunciados nas redes sociais, ao mesmo tempo em que eramrecriminados por outros grupos que se solidarizavam com a violnciaexplcita nas redes sociais. Houve, certamente, um processo de politizaoque ocorreu durante e depois do fenmeno, atingindo grupos neutros. Aqui, importante mencionar o papel dos intelectuais que estiveram amplamentepresentes na mdia denunciando e explicando o apartheid brasileira. Porfim, o prprio rolezinho original acabou se politizando em maior ou menormedida, dependendo do lugar. De um modo geral, se os jovensanteriormente s queriam brincar, a midiatizao os colocou comoprotagonistas sociais e, ao mesmo tempo, estampou o preconceito sofrido.Assim, muitos jovens comearam a mudar seu discurso, versando sobre apositivao da identidade de juventude da periferia e sobre a necessidade de asociedade reconhecer que, como manifestou um jovem da periferia de SoPaulo nas redes sociais, pobre tambm gosta de coisa boa, pobre tambmquer circular, pobre tambm quer existir.

    CONSIDERAES FINAIS

    Na introduo desse artigo, argumentamos que somente o encontro devariveis locais e internacionais, histricas e contemporneas, poderiaexplicar os rolezinhos. Por um lado, procuramos mostrar que o consumo demarcas de luxo por parte dos grupos menos favorecidos, seguido do ritual daexibio, um fenmeno das periferias globais. Isso nos indica que nopodemos analisar o caso em confinamento nas fronteiras dos problemasnacionais. As razes desse tipo de evento encontram-se nas contradies e a

  • ironias do capitalismo moderno que - ao reforar o imaginrio de poder,distino e sucesso obtido a partir da vinculao no mais a produtos, mas asmbolos - acaba por generalizar esse sonho a grupos bem distantes dopblico alvo das grandes corporaes. As marcas, assim, so vistas como umachave onrica que d acesso porta de sada de um mundo marcado pelaviolncia estrutural.

    No Brasil, as polticas recentes de incluso social e aumento de rendalegitimaram socialmente esse modelo de desenvolvimento baseado noconsumo, que, na verdade, sempre foi uma realidade entre as camadas maiselevadas, mas ausente nos setores desprovido de crdito e de dinheiro. Asoportunidades de aquisio de bens atualmente so muito maiores e, cadavez mais, os grupos populares conseguem comprar a custa de algumsacrifcio muitas das coisas que almejam. Os jovens, dentro de um estilo devida peculiar sua gerao, tendem a ter uma relao mais visceral,exacerbada e ritualizada com essa lgica operante. Ao mesmo tempo em queeles afirmam a positividade de seu self por meio das roupas exibidaspublicamente, despertam a apreenso e o preconceito das camadas maiselevadas que veem seus privilgios a bens e espaos ameaados. Opreconceito, assim, procura reordenar um estado de ordem das coisas emanter o pobre em seu lugar.

    H, de fato, uma nova realidade que aponta para a reduo da pobreza noBrasil, ainda que isso seja acompanhado de problemas estruturais profundos.E isso baguna a sociedade de classes. evidente que as elites possuemmecanismos de reproduo social, os quais os grupos populares estodesprovidos. Da mesma forma, notrio o fato de que as classes emergentesno consumo ainda sofrem de uma realidade social precria e que o consumo,por si s, no resolve as profundas tenses da histrica segregao social noBrasil. Por outro lado, preciso reconhecer que os protestos de junhoafloraram o envolvimento poltico da sociedade brasileira, que cada vez maisquestiona sobre seus prprios rumos do desenvolvimento, transformando,assim, os rolezinhos em Rolezinhos. A visibilidade do fenmeno, opreconceito desvelado, a solidariedade obtida, o engajamento de intelectuaise de movimentos sociais animaram as redes sociais e reverberaram nosjovens da periferia. Nenhum processo de transformao social imediato,mas o debate pblico o primeiro passo para tanto.

    notas de rodap

    Fonte: Pesquisa divulgada pelo Instituto Datafolha em 23/01/2014 Extrado de Nam, M. 2006, Illicit. New York, Archor Books

    [1][2]

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    [3][4]

    http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/o-rolezinho-da-inveja-ou-a-barbarie-se-protege-sob-o-manto-do-preconceito/

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