057_literatura Marginal - Os Escritores Da Periferia Entram Em Cena

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL ÉRICA PEÇANHA DO NASCIMENTO “Literatura marginal”: os escritores da periferia entram em cena 2006

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL RICA PEANHA DO NASCIMENTO

    Literatura marginal:

    os escritores da periferia entram em cena

    2006

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL RICA PEANHA DO NASCIMENTO

    Literatura marginal:

    os escritores da periferia entram em cena

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.

    Orientador: Prof. Dr. Jlio Assis Simes.

    2006

  • Dedico este trabalho ao professor Jlio Simes e aos escritores que protagonizam a movimentao cultural aqui registrada.

  • AGRADECIMENTOS

    Este trabalho dedicado ao meu orientador, o Dr Jlio Assis Simes, como forma de retribuio seriedade e ateno que me dispensou nesses ltimos anos. A ele eu agradeo por todas as leituras atentas, sugestes, crticas e estmulos que me ajudaram a desenvolver esta pesquisa. E agradeo tambm por ser, desde a graduao, o grande incentivador da minha carreira.

    Agradeo a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, que me concedeu a bolsa sem a qual esta pesquisa no teria se viabilizado.

    As professoras Lilia Schwarcz e Marta Amoroso, pelo incentivo de sempre; e a Andrea Saad Hossne e ao Antonio Sergio Alfredo Guimares, pelas aulas estimulantes. Agradeo especialmente a professora Angela Alonso por todos os apoios dados, por ser exemplo de didtica e dedicao aos estudos, e pelas crticas essenciais feitas no meu exame de qualificao. E ao professor Heitor Frgoli, pela leitura atenta do meu relatrio de qualificao e pelas importantes sugestes tericas e jornalsticas que me foram dadas.

    Aos argidores camaradas, que leram a primeira verso desta dissertao e fizeram estimulantes comentrios: Daniela Amaral, Isadora Lins, Angelita Garcia e Kleber Valadares. A estes dois ltimos agradeo tambm por terem sido interlocutores em diferentes momentos da pesquisa. E ao Adriano Ropero, querido revisor do texto final.

    Aos amigos que so parceiros de longa data e que contriburam muito para o desenvolvimento desta pesquisa, emprestando livros, sugerindo reportagens jornalsticas e me acompanhando nas atividades de campo: Camila Silva, Clodoaldo Paiva, Geraldo Santos, Kleber Valadares, Mrcio Calixto e Ronaldo de Frana. Pelo carinho que vem de longe, mas sempre chega at o meu corao: Elaine Bulgarelli, Juliana Santana, Bruno Camargo e Gebert Aleixo. As amigas da ps-graduao, pelas valiosas cervejas, Isadora Lins Frana (minha querida irm de orientao) e Isabela Silva. Ao casal Isa e Dri, agradeo o apoio emocional dado na reta final do trabalho.

  • Ao meu pai, pelo computador providencial que me foi presenteado no primeiro ano da ps-graduao e por existir, e a minha irm, por ter me ensinado ingls e pelas caronas fundamentais. A minha priminha do corao Elizangela Maria, pela ajuda. E ao meu padrinho Alceu Bruno e ao amigo Jos Jlio Leite, pelo interesse e carinho.

    A Maria Jos, que no contente em ser minha tia, me deu seu filho para batizar e colocou a sua casa disposio para que eu pudesse redigir os captulos da dissertao com tranqilidade. Agradeo o abrigo, as risadas, os comentrios, os filhos e as comidinhas feitas especialmente para dar inspirao. Ao meu afilhado Cleiton S, por ser a estrela que ilumina a minha vida h treze anos, e ao seu irmo, Clvis S, pela amizade e por todas as ajudas sobre informtica.

    Ao Z, amigo de longa data que se tornou parceiro, assistente de pesquisa de todas as horas, fotgrafo dos eventos, travesseiro, colo e meu amor. Agradeo o apoio financeiro, a pacincia, as massagens e todos os cuidados que contriburam para que eu pudesse cumprir mais uma etapa da minha carreira.

    Aos livreiros Jos Ado e Marciano Loureno, pelos prazos generosos para pagamento dos livros, pelas conversas e poesias.

    As profissionais com as quais trabalhei nos ltimos cinco anos, agradeo as oportunidades que me permitiram continuar estudando e o tratamento fraternal que me ofereceram: Ana Paula Corti, Bel Santos, Denise Botelho, Regina Facchini e Vera Lion.

    Agradeo a todos os escritores com os quais tive contato ao longo do trabalho, sobretudo aos que me concederam entrevistas. Sou grata ao Ferrz, ao Sacolinha e ao Vaz, que me emprestaram suas histrias de vida e seus textos. Gostaria de deixar tambm registrada a minha gratido ao Allan, ao Buzo e ao Dugueto pela ateno que me deram, e ao casal Robson Canto e Neide, pela companhia nos eventos. E muito especialmente ao Sacolinha, sempre disponvel, sempre generoso.

  • preciso sugar da arte Um novo tipo de artista: o artista cidado. Aquele que na sua arte no revoluciona o mundo, mas tambm no compactua com a mediocridade que imbecializa um povo desprovido de oportunidades. Um artista a servio da comunidade, do pas. Que armado da verdade, por si s, exercita a revoluo. Srgio Vaz

  • Resumo: Este trabalho busca analisar a apropriao recente da expresso literatura marginal por escritores oriundos da periferia, tomando como ponto de partida o conjunto de autores que publicaram nas trs edies especiais Caros Amigos/ Literatura Marginal, nos anos de 2001, 2002 e 2004. A pista deixada por essas publicaes era que, mais do que o perfil sociolgico dos participantes ou um determinado tipo de literatura, a juno das categorias literatura e marginalidade por tais escritores encobria uma atuao cultural especfica que est relacionada a um conjunto de experincias e elaboraes compartilhadas sobre marginalidade e periferia, assim como a um vnculo estabelecido entre criao literria e realidade social. Por isso, alm de apresentar empiricamente essa nova gerao de escritores marginais, esta pesquisa visou articular a formao interna do grupo e seu significado mais geral, buscando demonstrar como um conjunto de idias e vivncias compartilhadas possibilitou que moradores da periferia, tradicionalmente excludos como sujeitos do processo simblico, pudessem entrar em cena para produzir sua prpria imagem, dando origem a uma intensa movimentao cultural em bairros da periferia paulistana. Palavras-chave: literatura marginal, escritores da periferia, cultura da periferia, movimento literrio, movimento cultural.

    Abstract: This work intends to analyze the recent appropriation of the expression marginal literature for deriving writers of the periphery, being taken as starting point the set of authors who had published in three special editions of Caros Amigos/ Literatura Marginal, in the years of 2001, 2002 and 2004. The hint left for these publications was that, more than the sociological profile of the participants or a stricted kind of literature, the junction of the categories literature and marginality for such writers hid a cultural specific performance, which is linked to a set of experiences and elaborations shared on marginality and periphery, as well as a link established between literary creation and social reality. Therefore, besides empirically to present this new generation of writers delinquents, this research aimed at to articulate the internal formation of the group and its meaning more general, searching to demonstrate as a set of ideas and shared experiences made possible that living of the periphery, traditionally excluded as citizens of the symbolic process, they could enter in scene to produce its own image, giving origin to an intense cultural movement in paulistana neighbourhoods of periphery. Key-words: marginal literature, writers of periphery, culture of periphery, literary movement, cultural movement.

  • SUMRIO

    Introduo pesquisa 1

    1 Como os escritores da periferia entraram em cena 11 1.1 Problematizaes em torno da expresso literatura marginal 11

    1.2 As edies especiais Caros Amigos/ Literatura marginal: a cultura da periferia

    20

    1.3 A literatura marginal dos escritores da periferia 34 1.4 As conexes extraliterrias mobilizadas para a ao coletiva dos

    escritores 41

    2 Por uma interpretao antropolgica do movimento de literatura marginal dos escritores da periferia

    54

    2.1 Literatura marginal no contexto cultural contemporneo 54

    2.2 Os discursos sobre marginalidade, periferia e a relao entre criao literria e realidade social

    70

    2.3 Os desdobramentos pedaggico, esttico e poltico da literatura marginal dos escritores da periferia

    83

    3 Experincia social e trajetria literria: consideraes sobre trs casos 93

    3.1 Srgio Vaz e A poesia dos deuses inferiores (2004) 94 3.2 Ferrz e o livro Capo Pecado (2000) 103 3.3 Sacolinha e o romance Graduado em marginalidade (2005) 113

    3.4 Srgio Vaz, Ferrz e Sacolinha: diferentes trajetrias, diferentes apropriaes da expresso literatura marginal

    123

    4 A atuao poltico-cultural dos escritores da periferia 132

    4.1 A Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa) 132 4.2 Somos Todos Um Pela Dignidade da Zona Sul (1daSul) 143 4.3 O projeto cultural Literatura no Brasil 152

    4.4 A movimentao cultural em torno da literatura marginal dos escritores da periferia

    163

    Consideraes finais 170

    Apndices 176

    Anexos 191

    Referncias Bibliogrficas 197

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    INTRODUO PESQUISA

    A associao do termo marginal literatura produziu diferentes empregos e significados, dando origem a uma rubrica ampla e de entendimento quase sempre problemtico. Isso porque a expresso literatura marginal serviu para classificar as obras literrias produzidas e veiculadas margem do corredor editorial; que no pertencem ou que se opem aos cnones estabelecidos; que so de autoria de escritores originrios de grupos sociais marginalizados; ou ainda, que tematizam o que peculiar aos sujeitos e espaos tidos como marginais.

    Frente a este terreno bastante nebuloso das definies, a pista seguida por esta pesquisa foi a atribuio do adjetivo marginal, por parte de alguns escritores oriundos da periferia, para caracterizar seus produtos literrios. Atribuio esta que ganhou conotao de ao coletiva com o lanamento das edies especiais de literatura marginal da revista Caros Amigos.

    Intituladas Caros Amigos/Literatura Marginal: a cultura da periferia, as edies especiais foram publicadas em 2001, 2002 e 2004, e aglutinaram quarenta e oito autores. A partir de ento, a expresso literatura marginal se disseminou, no cenrio cultural contemporneo, para caracterizar a produo dos autores que vivenciam situaes de marginalidade (social, editorial e jurdica) e esto trazendo para o campo literrio os termos, os temas e o linguajar igualmente marginais.

    Os editoriais, os textos e os minicurrculos dos autores veiculados pelas Caros Amigos/ Literatura Marginal sugeriam que estas edies especiais apresentavam como novidade um conjunto de escritores oriundos das periferias urbanas brasileiras para os quais a associao do termo marginal literatura remete, ao mesmo tempo, situao de marginalidade (social, editorial ou jurdica) vivenciada pelo autor e a uma produo literria que visa expressar o que peculiar aos espaos tidos como marginais, especialmente com relao periferia (os temas, os problemas, o linguajar, as grias, os valores, as prticas de certos segmentos, etc).

    O objetivo desta pesquisa foi, ento, compreender a que se referia a apropriao recente da expresso literatura marginal por escritores da periferia, e buscou investig-la a partir de uma dupla perspectiva: (1) de acordo com os aspectos relacionados produo e circulao de alguns dos seus produtos

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    literrios; e (2) segundo os signos culturais e objetivos amplos, que dizem respeito construo e divulgao de uma cultura da periferia e formulao de identidades coletivas.

    Para entender a produo e circulao desses produtos no campo literrio1, tratou-se de delinear as conexes que foram mobilizadas para a construo das carreiras dos autores e de se fazer uma descrio crtica das edies especiais Caros Amigos/ Literatura Marginal e de trs obras de escritores focados pela pesquisa, ou seja, de analisar os seus enunciados e elementos gerais2. J a proposta de compreender os signos culturais e objetivos amplos foi orientada pelo trabalho de campo e por entrevistas, e est relacionada ao uso que os escritores estudados fazem das suas intervenes simblicas e pragmticas para expressar identidades coletivas e divulgar a idia de uma cultura da periferia. Esse duplo interesse, entretanto, no acarretou dois focos de anlise (as obras e os autores), pois o que esteve definido como objeto de pesquisa foram os escritores, isto , suas construes em torno do adjetivo marginal que se traduzem em produtos literrios e atuaes especficas.

    Uma referncia terica importante para o desenvolvimento da pesquisa foi o esquema de anlise de Raymond Williams (1980), que aponta que as investigaes sobre grupos de intelectuais, artistas ou escritores so significativas para o entendimento da histria da cultura moderna, uma vez que os produtos e aes gerados por esses grupos muito indicariam sobre outros fatores sociais e culturais. Do ponto de vista do autor, a investigao no deve se limitar aos produtos artsticos ou s declaraes formais de tais grupos, mas estender-se aos princpios e valores (codificados ou no) que os orientam, bem como ao corpo de prticas que os definem. Essa compreenso deve ser intermediada, ainda, pela percepo que o grupo tem de si, pelas idias e atividades manifestas e implcitas, assim como pela recepo do mundo exterior ao grupo.

    1 O conceito de campo literrio usado nesta pesquisa foi desenvolvido por Pierre Bourdieu e se define

    como um universo autnomo de relaes de produo, circulao e consumo de bens simblicos que obedece s suas prprias leis de funcionamento e de transformao, isto , a estrutura das relaes objetivas entre as posies que a ocupam os indivduos ou grupos colocados em situao de concorrncia pela legitimidade (1996, p.243). 2 Segundo Antonio Candido (2000), h dois tipos possveis de anlise literria: a descrio crtica e

    a reduo estrutural, que se dedica anlise dos cdigos significativos e aos princpios estruturais do texto.

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    Para Williams (1980), o ponto central a apreenso do significado do grupo para alm da autodefinio dos prprios membros e, para isso, o estudo deve, primeiramente, recuperar os termos que orientam o modo pelo qual os integrantes de um grupo se vem e querem ser apresentados, e depois, analisar a significao social e cultural desses termos.

    Seguindo essa orientao geral, o primeiro ponto problematizado por esta pesquisa foi a prpria definio de literatura marginal dos escritores estudados. A hiptese era que haveria um conjunto de elaboraes e experincias comuns sobre marginalidade e periferia, bem como um vnculo entre suas produes literrias e uma determinada realidade social, que dava suporte s suas intervenes simblicas e pragmticas. Ou seja, a existncia de um conjunto de idias e vivncias compartilhadas permitiu que o movimento de literatura marginal dos escritores da periferia se constitusse e que laos de amizade e colaborao mtua fossem desenvolvidos entre esses autores, desencadeando uma importante movimentao cultural nas periferias paulistanas.

    O recorte temporal da pesquisa so os anos de 1990 a 2006, perodo que abrange as primeiras publicaes de autores que, posteriormente, se autoclassificaram como marginais, e tambm os eventos culturais que orientaram o trabalho de campo; e que, por isso, permitiu historiar a emergncia de um novo movimento de literatura marginal em territrio brasileiro. O recorte espacial Regio Metropolitana de So Paulo, local de moradia da maior parte dos escritores veiculados pelas trs edies Caros Amigos/ Literatura Marginal e de concentrao das suas intervenes pragmticas.

    O material investigado inclui quinze livros3 publicados no perodo de 1992 a 2005 e as trs edies especiais de literatura marginal da Caros Amigos. esta produo, em conjunto, que contextualiza e orienta o entendimento das particularidades referentes literatura e ao perfil sociolgico dos escritores, mas dada a necessidade de refinamento de algumas questes, nfase ser dada produo literria, s aes e aos discursos de trs deles: Srgio Vaz, Ferrz e Ademiro Alves (Sacolinha).

    3 Refiro-me aos livros Fortaleza da desiluso, Capo Pecado, Manual prtico do dio e Amanhecer

    Esmeralda (Ferrz); O trem baseado em fatos reais, Suburbano convicto: o cotidiano do Itaim Paulista e O trem contestando a verso oficial (Alessandro Buzo); Vo (Allan Santos da Rosa), Graduado em marginalidade (Sacolinha); Subindo a ladeira mora a noite, margem do vento, Pensamentos vadios, O rastilho da plvora, A poesia dos deuses inferiores a biografia potica da periferia (Srgio Vaz); e Literatura marginal: talentos da escrita perifrica (livro que rene dez autores, organizado por Ferrz).

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    De um lado, buscou-se selecionar escritores que usufruem diferentes posies no campo literrio para problematizar como autores com trajetrias profissionais diferenciadas, e que se apropriam da expresso literatura marginal de maneiras particulares, protagonizam o movimento estudado. De outro, trata-se de escritores que esto conectados por projetos comuns de retratar o que peculiar periferia em seus textos e desenvolver intervenes que estimulam a produo e a circulao da literatura em bairros perifricos paulistanos.

    Srgio Vaz, 42 anos, cuja primeira obra data de 1992, tem quatro livros publicados em edies do autor e um dos criadores da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), que promove saraus semanais em um boteco localizado na Zona Sul paulistana e gerou como produtos um livro e um CD de poesias. Ferrz tem 30 anos, lanou seu primeiro livro em 1997, autor de outras trs obras, foi o organizador de todas as edies especiais Caros Amigos/ Literatura Marginal, faz parte do rol de autores de uma editora de prestgio e fundador do autodenominado movimento cultural 1daSul, que rene artistas e moradores do distrito paulistano do Capo Redondo e est voltado para a atuao cultural nesta regio. E Sacolinha, 22 anos, jovem escritor que estreou na literatura com a publicao de um conto na terceira edio da Caros Amigos/ Literatura Marginal, idealizador do projeto cultural Literatura no Brasil, cujos objetivos iniciais foram a divulgao dos textos de escritores da periferia e o incentivo leitura.

    Faz-se necessrio ressaltar que assim como as edies Caros Amigos/ Literatura Marginal e os livros dos escritores enfatizados so fundamentais para o entendimento dos aspectos pertinentes produo e circulao dos produtos literrios (a primeira perspectiva da anlise), em conjunto, os projetos pessoais de Vaz (a Cooperifa), de Ferrz (o 1daSul) e de Sacolinha (o Literatura no Brasil) atendem ao propsito de analisar os signos culturais e objetivos amplos dos escritores da periferia. E, assim como no se pretendeu analisar minuciosamente as quinze obras, mas centrar-se em um livro de cada escritor focalizado, no se ambicionou uma observao exaustiva dos projetos. O suposto que sustenta esta opo que a etnografia de alguns eventos, somada aos depoimentos dos escritores e ao monitoramento dos seus blogs4 pessoais, que regularmente comentam sobre tais projetos, responderiam as problematizaes desta pesquisa.

    4 O termo blog uma abreviao de "weblog" e denota um dirio de anotaes ou memrias on-line

    com blocos de textos e/ou imagens, que so apresentados de maneira cronolgica. Uma

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    Antes de iniciar a apresentao dos captulos desta Dissertao, no entanto, cabe recuperar o percurso de todo o trabalho o que j oferece alguns indcios sobre a atuao dos escritores estudados. O percurso da pesquisa teve incio com a minha participao em um ciclo de eventos sobre hip hop5 ocorrido em 2003, no qual tive o primeiro contato com o tema e os escritores a serem estudados. Sob o ttulo Escrito por ns: literatura marginal, um dos debates contava com a participao de trs colabores das duas edies Caros Amigos/ Literatura Marginal editadas at ento, Preto Ghez, Srgio Vaz e Ridson Dugueto. O assunto principal era a relao entre rap e literatura e, em virtude disso, discutiu-se tambm o acesso dos moradores da periferia aos bens culturais, os preos dos livros, a carncia de textos que expressassem a linguagem da periferia, a produo de fanzines, a formao de leitores, etc.

    Aps tal debate, dediquei-me a conhecer a produo literria dos escritores da periferia e a levantar as reportagens sobre o tema. Esse levantamento inicial revelou a notoriedade de Ferrz, por ter organizado as trs edies especiais Caros Amigos/ Literatura Marginal e por ter atrado a ateno da imprensa e do mercado editorial para seus produtos literrios; e de Srgio Vaz, escritor que despontava como idealizador de uma iniciativa voltada para a realizao de saraus de poesia na periferia paulistana. A minha estratgia de insero no campo foi, ento, aproximar-me de Ferrz e Srgio Vaz, at porque eram eles que estavam vinculados a dois projetos que divulgavam a cultura da periferia e formulavam novas identidades coletivas.

    Mas j na primeira conversa com Ferrz, em abril de 2004, aps um encontro literrio na XVIII Bienal do Livro de So Paulo, anunciava-se o misto de desconfiana e resistncia que eu encontraria em outras fases da pesquisa, afinal, questionou o escritor: qual era o interesse de uma estudante da USP em investigar a produo literria da periferia?, no que o meu trabalho poderia beneficiar os escritores?. Ferrz j havia despertado o interesse de outros pesquisadores de diferentes reas, mas resistia em colaborar porque mantinha certa averso pelo mundo acadmico. A resistncia minha pesquisa somente foi quebrada depois de uma palestra que o escritor realizou no CEU Pra-Marmelo, localizado no Jaragu

    caracterstica importante do blog a interatividade, j que outras pessoas podem incluir comentrios a partir dos contedos descritos (http//:www.blog.uol.com.br). 5 Refiro-me a Semana de Cultura Hip Hop, um ciclo de debates, exposies e shows que acontece

    anualmente em So Paulo desde 2001, organizado pela ONG Ao Educativa.

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    (bairro da periferia da Zona Oeste de So Paulo), onde moro. Por causa disso, Ferrz argumentou que me concederia uma entrevista e a concedeu, quinze meses depois do nosso primeiro encontro e me ajudaria a contatar outros autores, pois, assim como os escritores que pretendia estudar, eu estava fazendo parte de um meio a universidade pblica do qual os moradores da periferia esto tradicionalmente esto excludos.

    Srgio Vaz, por sua vez, argumentou durante dezessete meses que o impedimento em conceder uma entrevista era a falta de espao em sua agenda, mas, aceitou em colaborar com este trabalho depois de vinte e dois meses do nosso primeiro contato, sensibilizado pelas minhas freqentes participaes nos saraus da Cooperifa ou que tinham o poeta como convidado. Vaz justificou seu posicionamento anterior com o argumento de que preciso que os intelectuais estabeleam contato com sujeitos perifricos e freqentem seus espaos sociais para terem legitimidade de escrever sobre eles.

    A entrada no universo da pesquisa via esses expoentes pressupunha a facilidade de acesso aos outros escritores, dado que estes no pertenciam ao rol de autores de nenhuma editora e faziam circular seus textos nas Caros Amigos/ Literatura Marginal (idealizada e editada por Ferrz) ou nos saraus da Cooperifa (criada e coordenada por Vaz). Entretanto, a resistncia de ambos em conceder entrevistas e liberar informaes sobre outros escritores, exigiu novas estratgias para viabilizar o desenvolvimento do trabalho. Assim, procurei fazer contato com outros escritores menos conhecidos, que disponibilizavam informaes pessoais em reportagens jornalsticas ou nos eventos de que participavam o que me ajudou a compreender como autores de menos destaque, at ento, estavam sendo inseridos no novo movimento literrio-cultural.

    Para a minha surpresa, outros dois autores, que tambm so rappers, manifestaram suas objees a uma pesquisa acadmica tambm no nosso primeiro contato, e apenas se dispuseram a conversar porque me reconheceram como negra, em um outro gesto de solidariedade entre iguais, desta vez relacionado pequena presena de estudantes negros na ps-graduao. Entendi, ento, que a resistncia aos trabalhos acadmicos no era prerrogativa de Ferrz ou de Srgio Vaz, tratava-se de uma desconfiana comum aos outros escritores, sobretudo porque eles temem que seus produtos e aes sejam interpretados sob o signo do extico e do inferior, ou apropriados por membros de grupos sociais privilegiados.

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    Esses argumentos, expressados em conversas informais durante todo o percurso da pesquisa, se apresentaram como dados reveladores de um posicionamento e de uma atuao dos escritores estudados muito prximas a de lderes do hip hop no incio do movimento, principalmente por parte dos rappers, que resistiam em aparecer na TV, em conceder entrevistas para determinadas mdias e a fazer parte de grandes gravadoras. Ainda que no constituam um grupo margem das editoras ou do investimento da imprensa, os escritores da periferia pareciam entender a pesquisa acadmica como expresso do interesse de outros grupos sociais em estabelecer relao com um movimento literrio-cultural protagonizado por sujeitos que vivenciam situaes de marginalidade.

    Outra estratgia bastante importante, e que no havia sido includa no plano inicial do trabalho, foi o monitoramento dos sites e blogs dos escritores. Refletir sobre o contedo dessas fontes foi de grande valia, porque alm de garantir o acesso s agendas dos escritores e s suas biografias, era uma forma de conhecer os outros grupos com os quais mantinham relaes, suas conexes, preferncias polticas e atuao cultural. Ao mesmo tempo, a leitura direcionada dos produtos literrios e o levantamento dos registros disponveis sobre a literatura marginal dos escritores da periferia completaram a etapa de acesso ao universo da pesquisa.

    As reflexes aqui apresentadas tambm foram produzidas a partir de entrevistas semi-estruturadas (com doze escritores6) e das etnografias de eventos culturais dos quais os escritores participaram no perodo de abril de 2004 a julho de 20067. As entrevistas foram realizadas individualmente, mas tiveram a mesma estrutura: havia um bloco de perguntas sobre o perfil social (dados socioeconmicos, ncleo familiar, formao escolar, participao poltica, etc) e outro sobre a trajetria literria (influncias para a carreira, regime de produo, identificao com a expresso literatura marginal, etc). Quanto aos trinta e dois eventos de que participei (entre palestras, lanamentos de livros, debates e saraus), alguns contavam com a participao de vrios escritores, o que permitia tanto perceber as relaes de

    6 As trs edies especiais Caros Amigos/ Literatura Marginal somam quarenta e oito participaes,

    dentre as quais no seria possvel coletar informaes de quatro autores: Plnio Marcos, Solano Trindade e Joo Antonio (j falecidos) e Subcomandante Marcos (lder do Exrcito Zapatista de Libertao Nacional, cujo paradeiro sigiloso). Os doze entrevistados representam, portanto, 27% dos autores passveis de contato ou 25% dos autores envolvidos. 7 A sntese dos eventos observados com o trabalho de campo e o roteiro das entrevistas esto nos

    apndices da Dissertao.

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    amizade entre eles e suas percepes sobre marginalidade, periferia, literatura e perspectivas profissionais futuras.

    Alm das questes que perpassaram toda a investigao, o produto final desta pesquisa buscou responder a outra pergunta que a acompanha desde o seu incio: o que faz desta uma pesquisa antropolgica? A resposta, creio, encontra-se no escopo do trabalho (a investigao das elaboraes nativas em torno do adjetivo marginal), no referencial terico sobre marginalidade, periferia e cultura e no mtodo selecionado (que privilegiou dados da observao de campo, das entrevistas e do monitoramento de sites e blogs), que visam oferecer como contribuio ao estudo do movimento de literatura marginal dos escritores da periferia o que mais caro aos antroplogos: os pontos de vista e as vivncias dos prprios protagonistas.

    Enfim, como produto da pesquisa Literatura marginal: os escritores da periferia entram em cena, desenvolvida entre os anos de 2004 e 2006, esta Dissertao tem o propsito de articular as relaes entre as especificidades das produes literrias e das atuaes dos escritores estudados. No primeiro captulo, Como os escritores da periferia entraram em cena, pretende-se caracterizar os diferentes usos e significados de literatura marginal, com destaque para os contrastes entre a gerao de poetas marginais dos anos 1970 e a nova gerao de escritores marginais, composta por escritores da periferia. Neste captulo sero apresentadas reflexes sobre as singularidades das Caros Amigos/ Literatura Marginal e sobre os contedos das entrevistas com os escritores que delas participaram, buscando traar o perfil dos autores e as especificidades dos textos produzidos, bem como as conexes que garantiram a entrada em cena de tais escritores.

    O objetivo deste captulo apresentar empiricamente o objeto de estudo desta pesquisa, demonstrando quais so as caractersticas mais gerais referentes literatura e aos escritores investigados, e quais foram as redes extraliterrias nas quais tais autores se movimentaram para organizar a sua produo e a sua atuao.

    Em Por uma interpretao antropolgica do movimento de literatura marginal dos escritores da periferia, segundo captulo da Dissertao, tem-se por objetivo construir uma interpretao antropolgica do movimento de literatura marginal dos escritores da periferia a partir da problematizao do uso do adjetivo marginal no

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    cenrio cultural contemporneo, da discusso sobre algumas elaboraes nativas e dos desdobramentos do movimento literrio-cultural investigado.

    A proposta recuperar como noes centrais dos textos e discursos dos escritores a saber: marginalidade, periferia e como uma determinada relao entre literatura e realidade social foram construdas por algumas linhas de interpretao das reas de Sociologia e Antropologia e apareceram no discurso dos escritores estudados, no intuito de compreender quais foram os elementos que conferiram singularidade produo e atuao desses autores e que, portanto, nos permite distingui-los de outros grupos de artistas.

    O terceiro captulo abordar os pontos de encontro e distanciamento entre as experincias sociais e as trajetrias literrias de trs escritores e suas respectivas obras enfatizadas na pesquisa: Srgio Vaz (A poesia dos deuses inferiores), Ferrz (Capo Pecado) e Sacolinha (Graduado em marginalidade). Com o ttulo de Experincia social e trajetria literria: consideraes sobre trs casos, o captulo reconstituir algumas das experincias sociais dos autores para refinar as discusses sobre a atribuio do adjetivo marginal aos seus produtos literrios.

    O que se espera que a reconstituio das experincias familiares, educacionais, profissionais e de militncia social permita refletir sobre as caractersticas biogrficas e sociolgicas que legitimaram alguns escritores originrios da periferia a se lanarem no campo literrio associando seus produtos e a si prprios ao adjetivo marginal.

    No quarto captulo, A atuao poltico-cultural dos escritores da periferia, os focos sero o 1daSul (de Ferrz), a Cooperifa (de Srgio Vaz) e o Literatura no Brasil (de Sacolinha): trs projetos de atuao poltico-cultural que revelam o engajamento dos escritores no nvel pragmtico, alm de apontar a movimentao cultural em torno da literatura marginal e da cultura da periferia que se seguiu ao lanamento das Caros Amigos/ Literatura Marginal.

    Com a apresentao do histrico de criao e as dinmicas da Cooperifa, do 1daSul e do Literatura no Brasil, tem-se o propsito de discutir como esses projetos foram importantes para a construo da imagem dos seus idealizadores e deram continuidade ao trabalho de divulgao da produo literria perifrica iniciado pelas Caros Amigos/ Literatura Marginal, tendo se tornado instncias de legitimao e circulao dos produtos literrios dos escritores da periferia por meio do incentivo produo, comercializao e divulgao de tais produtos.

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    Alm desses elementos textuais aqui apresentados, na Dissertao esto includos apndices contendo a sntese do trabalho de campo e o roteiro das entrevistas, e anexos com os editoriais das trs edies especiais Caros Amigos/ Literatura Marginal.

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    1 COMO OS ESCRITORES DA PERIFERIA ENTRARAM EM CENA

    1.1 Problematizaes em torno da expresso literatura marginal Retomando a referncia de Antonio Candido sobre literatura, possvel

    considerar que esta pode ser definida como a produo escrita de toque potico, pico ou dramtico da qual se origina um sistema simblico de obras ligadas por denominadores comuns, tais como: caractersticas internas (lngua, temas, imagens), um conjunto de escritores mais ou menos conscientes do seu papel, um conjunto de receptores e um mecanismo transmissor (1969).

    J marginal adjetiva aqueles que esto em condio de marginalidade em relao lei ou sociedade, possuindo, portanto, sentido ambivalente: assim como se refere, juridicamente, ao indivduo delinqente, indolente ou perigoso, ligado ao mundo do crime e da violncia; aplica-se, sociologicamente, aos sujeitos vitimados por processos de marginalizao social, como pobres, desempregados, migrantes ou membros de minorias tnicas e raciais, tendo como sinnimo, neste ltimo caso, o adjetivo marginalizado (Perlman, 1977).

    Associado literatura, o termo marginal adquiriu diferentes usos e significados, variando de acordo com a atribuio dos escritores, ou mais freqentemente, com a definio conferida por estudiosos ou pela imprensa num dado contexto. Para Gonzaga (1981), tais usos e significados esto relacionados posio dos autores no mercado editorial, ao tipo de linguagem apresentada nos textos e escolha dos protagonistas, cenrios e situaes presentes nas obras literrias.

    O primeiro significado se refere s obras que estariam margem do corredor comercial oficial de produo e divulgao considerando-se que os livros se igualam a qualquer bem produzido e consumido nos moldes capitalistas , e circulariam em meios que se opem ou se apresentam como alternativa ao sistema editorial vigente. O segundo significado est associado aos textos com um tipo de escrita que recusaria a linguagem institucionalizada ou os valores literrios de uma poca, como nos casos das obras de vanguarda. Enquanto o terceiro significado encontra-se ligado ao projeto intelectual do escritor de reler o contexto de grupos oprimidos, buscando retrat-los nos textos.

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    Sob um outro ponto de vista, literatura marginal designaria os livros que no pertencem aos clssicos da literatura nacional ou universal e no esto nas listas de leituras obrigatrias de vestibulares (Caravita, s.d.). Ou ainda, como nos estudos mais recentes, o emprego da expresso denotaria as obras produzidas por autores pertencentes a minorias sociolgicas, como mulheres, homossexuais e negros8.

    Andra Hossne, em consonncia com esta ltima abordagem mencionada, e tomando como exemplos as obras dos escritores Luiz Alberto Mendes9 e Ferrz, cunhou a expresso literatura marginal do marginalizados para categorizar o tipo de literatura que no est excluda do mercado editorial, que no est se excluindo do cnone, mas que est sendo produzida por quem est excludo social, econmica e literariamente (2003, [sem paginao10]).

    importante considerar, diante dessas diferentes abordagens, que literatura marginal se tornou uma rubrica ampla que abrange a insero dos escritores no mercado editorial, as caractersticas dos produtos literrios, um tipo de atuao literria-cultural, ou ainda, a condio social do escritor. Entende-se, ento, que por forjar diferentes manifestaes, literatura marginal conformou-se numa categoria analtica que pode ser ajustada em estudos de biografias isoladas ou de grupos de escritores cujas trajetrias literrias esto organizadas em torno da expresso.

    A amplitude da expresso permite descrever a trajetria de diversos escritores brasileiros sob a rubrica marginal, mas cabe dar destaque a alguns autores que estiveram mais freqentemente associados a ela e que, posteriormente, se tornaram referncias para os escritores estudados pela pesquisa. Um deles Joo Antnio (1937-1996), que entre os anos 1960 e 1970 lanou obras (como Malagueta, Perus e Bacanao) que buscaram retratar as experincias e prticas de lazer (os jogos de sinuca, por exemplo) dos membros das classes populares, dos malandros, contraventores e trabalhadores. Outro Plnio Marcos (1935-1999), escritor e dramaturgo que se projetou no cenrio artstico nos anos 1960, e se dedicou a escrever sobre prostituio, problemas sociais (como a

    8 O livro Literatura e marginalidades (2000), organizado por Francisco Ribeiro, rene dezesseis

    trabalhos nessa perspectiva. 9 Autor de Memrias de um sobrevivente, livro que narra parte das experincias do escritor na

    criminalidade e na cadeia, publicado pela editora Companhia das Letras em 2001. 10

    Este argumento foi extrado do depoimento dado pela professora de Literatura Brasileira Contempornea ao programa O mundo da literatura, exibido pela TV Senac em 2003.

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    violncia, os meninos de rua, etc) e submundo urbano, alm de ter vendido seus livros nas ruas do eixo Rio-So Paulo durante alguns anos.

    Em territrio brasileiro, entretanto, o significado atribudo expresso literatura marginal mais difundido na imprensa e no senso comum est relacionado ao contexto da ditadura militar, na dcada de 1970. Segundo Hollanda (1981), uma das caractersticas desta poca foi a criao de circuitos de produo e divulgao alternativos ou marginais no teatro (com a formao de grupos no empresariais, como o Asdrbal Trouxe o Trombone), na msica (com a criao de grupos mambembes de rock), no cinema (com pequenas produes cinematogrficas) e na literatura (com a divulgao de textos em livrinhos mimeografados).

    Foi um grupo de poetas, seguido por escritores de outros gneros, que reinventou formas de divulgao ao expor seus textos em folhas mimeografadas, depois em muros, jornais e camisetas; e de circulao, ao vend-los em bares, cinemas, praias e outros espaos pblicos de sociabilidade. Foi, sobretudo, um movimento de poesia marginal, que aglutinou dois grupos de intelectuais: poetas que j publicavam nos anos 1960, mas no tinham sintonia com os movimentos de vanguarda da poca, como o concretismo, a poesia da prxis ou a poesia processo; e poetas que comearam a publicar nos anos 1970 (Hollanda, 1981; Mattoso, 1980).

    Os escritores desse movimento de literatura marginal foram assim classificados por estudiosos de suas obras com base nos circuitos de produo, atuao e circulao que se colocavam como alternativas aos padres tradicionais gerados por polticas culturais fomentadas pelo governo militar ou pelas empresas privadas, porm:

    Com referncia representao da categoria marginal que passa a ser consagrada para designar essa nova poesia, curioso observar que, ao contrrio dos ps-tropicalistas, nenhum dos poetas marginais atribui-se tal funo, chegando mesmo a ironiz-la. A classificao marginal adotada por analistas e assim mesmo com certo temor e hesitao. Fala-se mais freqentemente ditos marginais, chamados marginais evitando-se uma postura afirmativa do termo. Geralmente ele vem justificado pela condio alternativa, margem da produo e veiculao do mercado, mas no se afirma a partir dos textos propriamente ditos, isto , de seus aspectos propriamente literrios (Hollanda, 1981, p.98-99).

    O trabalho etnogrfico desenvolvido por Messeder Pereira (1981), por sua vez, revela outras nuanas do movimento de literatura marginal setentista e da gerao de escritores que dele fez parte. Incorporando na sua anlise os depoimentos dos poetas que estavam sendo classificados como marginais, o autor apreendeu como alguns escritores foram se apropriando da classificao atribuda

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    pelos crticos e pela imprensa, e ampliando seu sentido. Segundo o autor, a organizao dos escritores em grupos, a partir da condio comum de marginalidade institucional e material, produziu um fenmeno literrio com vnculos especficos com o campo cultural e intelectual, no bojo do debate sobre cultura e poltica brasileira no perodo ditatorial. Assim, grupos como o Frenesi, o Vida de Artista, o Nuvem Cigana e o Folha de Rosto que reuniam os poetas Francisco Alvim, Ronaldo Bastos, Ronaldo Santos, Chacal e Cacaso, entre outros no apenas garantiam a produo e circulao de colees, antologias, revistas literrias e livros artesanais, como tambm apontavam certa apropriao do rtulo marginal que designava: um modo particular de conceber literatura, um tipo de linguagem privilegiada nos textos, uma temtica recorrente, um tipo de acabamento grfico dos livros e, at mesmo, certo comportamento dos autores.

    A literatura produzida por esses poetas buscava subverter os padres de qualidade, ordem e bom gosto vigentes, desvinculando-se das produes tidas como engajadas, intelectualizadas ou populistas. Os textos eram marcados pelo tom irnico, pelo uso da linguagem coloquial e do palavro; e versavam sobre sexo, txicos e, principalmente, cotidiano das classes privilegiadas. Os livros produzidos nas cooperativas ligadas aos prprios grupos tinham, intencionalmente, caractersticas grficas precrias: eram impressos em papel de qualidade inferior e apresentavam borres e falhas nas impresses (Pereira, 1981).

    Esses poetas marginais eram oriundos da classe mdia (alguns das camadas altas), estudantes de universidades pblicas e ligados s atividades de cinema, teatro e msica. Da origem social dos escritores e do circuito de prticas culturais do qual faziam parte derivam tambm suas conexes sociolgicas para produzir e fazer circular seus produtos literrios, pois era atravs do patrocnio de amigos, artistas e familiares que os livros eram editados; e no circuito de universidades, bares e cinemas freqentados pela classe mdia (intelectualizada) que eram vendidos. Quanto aos consumidores das suas obras, estes eram tambm membros das classes privilegiadas:

    Essa produo no tinha, pelo menos imediata e diretamente, eco a nvel popular (...) na medida em que reflete com bastante clareza um conjunto de experincias sociais que caracterizam mais marcadamente os grupos mais privilegiados dentro da estrutura social (Pereira, 1981, p.99).

    As especificidades do movimento de literatura marginal dos anos 1970 so relevantes contrapontos s caractersticas de um outro conjunto de escritores que se apropriou da expresso literatura marginal para caracterizar seus produtos ou para

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    organizar sua atuao cultural. Em 2001, o escritor Ferrz idealizou, organizou e editou os textos de um projeto de literatura em revista intitulado Literatura Marginal: a cultura da periferia, que contou com a participao de dez autores em dezesseis textos. Nos anos de 2002 e 2004, outras duas edies de literatura marginal foram organizadas pelo escritor e veiculadas pela revista Caros Amigos, aglutinando textos de outros trinta e oito autores.

    Ferrz j havia se utilizado da expresso literatura marginal, poca do lanamento do seu segundo livro, Capo Pecado, em 2000, para referir-se ao tipo de literatura que produzia e a de uma srie de escritores com semelhante perfil sociolgico, que estavam publicando entre o final dos anos 1990 e o comeo do novo sculo, uma classificao representativa do contexto social nos quais estariam inseridos: margem da produo e do consumo de bens econmicos e culturais, do centro geogrfico das cidades e da participao poltico-social.

    Quando eu lancei o Capo Pecado me perguntavam de qual movimento eu era, se eu era do modernismo, de vanguarda... e eu no era nada, s era do hip hop. Nessa poca eu fui conhecendo reportagens sobre o Joo Antnio e o Plnio Marcos e conheci o termo marginal. Eu pensei que era adequado ao que eu fazia porque eu era da literatura que fica margem do rio e sempre me chamaram de marginal. Os outros escritores, pra mim, eram boyzinhos e eu passei a falar que era literatura marginal (Ferrz, em fala no dia 20/07/200411).

    Ferrz a alcunha de Reginaldo Ferreira da Silva, jovem escritor que estreou com uma edio independente em 1997 e se projetou com a obra Capo Pecado (lanado pela editora Labortexto): um romance baseado nas suas experincias sociais como morador de um dos bairros do distrito do Capo Redondo, localizado na Zona Sul de So Paulo. O romance no foi saudado como acontecimento literrio, tampouco foi lanado sob o aval de algum crtico renomado, mas movimentou o interesse da imprensa que buscou evidenciar mais os aspectos sociolgicos relacionados produo do que as caractersticas da prpria obra. Ferrz despontava, ento, como exceo cultural de um dos locais da cidade mais associado violncia. Das crticas referentes ao texto, trs eixos sintetizam a recepo dada obra: o tipo de escrita (linguagem coloquial, recheada de grias das periferias urbanas paulistanas), o realismo exacerbado e as comparaes com os produtos do hip hop12.

    11 Extrada do evento 450 Anos de Paulicia Desvairada, realizado no CEU Pra Marmelo,

    localizado no bairro do Jaragu, Zona Oeste de So Paulo. 12

    As caractersticas do livro e da recepo dada a Capo Pecado, assim como da trajetria literria de Ferrz, sero melhor abordadas no terceiro captulo desta Dissertao.

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    A notoriedade alcanada com o Capo Pecado, no entanto, gabaritou Ferrz a impulsionar outros projetos. Em 2000, o escritor passou a colaborar mensalmente com a revista Caros Amigos, e esta foi uma importante conexo para que o escritor se tornasse conhecido nacionalmente e conseguisse patrocnio para lanar outros autores com semelhante perfil sociolgico (originrios das classes populares e moradores ou ex-moradores das periferias urbanas brasileiras) no projeto de literatura marginal em revista:

    Eu sempre fui chamado de marginal pela polcia e quis fazer como o pessoal do hip hop que se apropriou de termos que ningum queria usar. J que eu ia fazer a minha revista maloqueira, quis me autodenominar marginal. Eu fiz como os rappers, que para se defenderem da sociedade, aceitam e usam os termos preto e favelado como motivos de orgulho. Depois surgiu a revista, porque eu j colaborava com a Caros Amigos e fiz a proposta de trazer outros escritores em um nmero especial, mas tinha que ser da periferia, disso eu no abri mo. Eu ia para as palestras e as pessoas vinham conversar comigo e se identificavam com o que eu fazia e com a minha denominao marginal desde a Dona Laura, que uma lder comunitria de uma colnia de pescadores, at os rappers que eu j conhecia. A histria da literatura marginal comeou assim, eu nem bolei nada, s peguei a referncia do Plnio Marcos e do Joo Antnio (Ferrz em fala no dia 30/06/200413).

    De acordo com Ferrz, a idia de organizar a coletnea de textos produzidos por escritores da periferia surgiu no rastro da boa aceitao ao seu romance e obra de Paulo Lins, Cidade de Deus14, como uma possibilidade de desmistificar as imagens de ambos como excees surgidas de contextos sociais ligados violncia e pobreza. E sua contribuio no se restringiu a trazer a pblico, sob o aval de uma revista de prestgio e de circulao nacional, autores ainda inditos ou com produes independentes, mas se estendeu visibilidade dada equipe editorial das trs edies publicadas em 2001, 2002 e 2004: formada por rappers, escritores amadores e grafiteiros ligados ao movimento hip hop, todos moradores do Capo Redondo e membros do movimento cultural 1daSul15.

    Para a seleo dos participantes desse projeto, a equipe editorial se pautava em dois critrios: um referente ao autor (vivenciar alguma condio de marginalidade); e o outro, ao texto (ter caractersticas literrias, independente da

    13 Na Mostra Artstica do Frum Cultural Mundial, realizada no Sesc Consolao, localizado na regio

    central de So Paulo, sob o ttulo: Da periferia ao centro: diferentes olhares em torno da literatura marginal. O evento contou com as participaes dos escritores Ferrz, Fernando Bonassi, Maral Aquino e Paulo Lins, alm do jornalista Manuel da Costa Pinho, como mediador. 14

    Publicado pela editora Companhia das Letras em 1997. 15

    1daSul sintetiza a expresso somos todos um pela dignidade da Zona Sul e d nome ao movimento, criado em 1999, por moradores do Capo Redondo dentre eles, Ferrz voltado para a atuao cultural na regio sul paulistana. O histrico de criao e de desenvolvimento do 1daSul ser descrito no quarto captulo desta Dissertao.

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    forma e do tema apresentados). Mas para alm desses critrios que orientaram o trabalho dos editores, duas particularidades presentes na segunda e na terceira edio publicadas insinuavam a que se referia o adjetivo marginal anunciado no ttulo da publicao: os nomes dos bairros de residncia dos autores ou do presdio no qual cumpriam pena apareciam ao final de cada texto, indicando que se tratavam de habitantes das periferias urbanas ou detentos; e os textos abordavam, predominantemente, problemas (como a violncia e as carncias) e experincias sociais vinculadas ao espao da periferia.

    A pista deixada pelas trs edies especiais da revista Caros Amigos/ Literatura Marginal que alguns escritores, moradores das periferias brasileiras (ou ex-moradores, como o caso dos autores presidirios), estavam atribuindo o adjetivo marginal para classificar a sua prpria condio profissional ou os seus produtos literrios. O que sugeria a existncia de um novo movimento de literatura marginal e indicava um tipo de atuao diferenciada, por parte de tais escritores, no cenrio cultural contemporneo.

    Essa elaborao de uma literatura marginal, que traz tona certa realidade de espaos e sujeitos marginais16, embora produzindo controvrsias, agregou um conjunto de escritores que passou a se identificar com a expresso e a auto-atribuir aos seus produtos literrios esta marca. A idia de marca, aqui, funciona de maneira aproximada a uma considerao de Messeder Pereira (1981) que, partindo do ponto de vista de um de seus informantes, assinalou que o adjetivo marginal associado aos produtos literrios dos poetas setentistas operava mais como uma etiqueta de produto que ajudava a marcar a posio dos escritores no campo cultural da poca.

    Do mesmo modo, ter a literatura marginal como marca associada aos seus textos assegura aos autores que publicaram nas revistas Caros Amigos/ Literatura Marginal um lugar especfico na conjuntura cultural brasileira dos ltimos tempos um cenrio em que as produes cinematogrfica, de vdeo e de msica tambm se apropriam da esttica, das peculiaridades do cotidiano e dos assuntos pertinentes aos marginais. Esta conjuntura se refere, entre outros aspectos, expanso da msica rap, atingindo, inclusive, a classe mdia (com a vendagem expressiva dos discos do grupo Racionais MCs, ou com a presena de rappers representantes

    16 Todas as vezes que o emprego do adjetivo ou do substantivo marginal no for seguido de

    explicaes especficas, estaro sendo reportados os dois sentidos dos termos.

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    deste grupo social, como Gabriel, O Pensador) e passa pela produo de filmes como O invasor, Cidade de Deus e Carandiru. Mais recentemente, tambm a televiso passou a veicular programas com essa temtica, como foi o caso de Turma do Gueto, da TV Record ou Cidade dos Homens e Central da Periferia, da TV Globo.

    Por isso busco demarcar as diferenas entre os dois conjuntos de escritores associados ao termo marginal e, simultaneamente, especificar o objeto de estudo desta pesquisa, com o uso das expresses literatura marginal dos escritores da periferia e nova gerao de escritores marginais. A expresso literatura marginal dos escritores da periferia opera tanto para distinguir os textos produzidos por escritores da periferia dos demais textos publicados nos ltimos quinze anos que poderiam ser classificados como literatura marginal17; como para diferenci-los das obras dos ditos poetas marginais setentistas. J nova gerao de escritores marginais reporta ao conjunto de escritores da periferia que, no incio dos anos 2000, se apropriou de certos significados do termo marginal, desenvolveu uma conscincia comum e d respostas conjuntas aos problemas especficos do campo literrio desta poca (Braga, 2000)18.

    Levando em conta as observaes descritas at aqui, creio ser possvel nomear o grupo de escritores estudados como uma gerao e, dessa maneira, tentar demarcar comparativamente as especificidades do movimento de literatura marginal dos anos 1970 e o que surge no limiar deste novo sculo. E, neste sentido, tento sintetizar as caractersticas das duas geraes de escritores marginais no quadro a seguir:

    17 Como se demonstrar no segundo captulo da Dissertao.

    18 Ainda que Braga no explicite, seu conceito de gerao inspirado nas idias de Pierre Bourdieu,

    que assinala que as geraes intelectuais e culturais podem ser definidas a partir das questes comuns em torno das quais os protagonistas se organizam, mesmo que haja diferenas de outros tipos, como a idade ou o grau de escolaridade, por exemplo (2004 [1974]).

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    GERAO DE POETAS MARGINAIS DOS ANOS 1970

    NOVA GERAO DE ESCRITORES MARGINAIS

    Perfil dos escritores

    So representantes das camadas privilegiadas, ligados s atividades de cinema, teatro e msica e s universidades pblicas. Aglutina duas geraes de intelectuais: poetas que j publicavam nos anos 1960, mas no tinham sintonia com os movimentos de poesia concreta, poesia da prxis ou poesia-processo; e poetas que comearam a publicar nos anos 1970.

    Representantes das classes populares e moradores de bairros localizados nas periferias urbanas brasileiras. So, majoritariamente, residentes do estado de So Paulo e homens. Boa parte deles estreou no campo literrio com a publicao das edies especiais da revista Caros Amigos/ Literatura Marginal. Esto ligados ao movimento hip hop e/ ou evolvidos com projetos culturais ou sociais.

    Grupos que renem escritores marginais

    Frenesi, Nuvem Cigana, Folha de Rosto e Vida de Artista, entre outros.

    1daSul, Literatura no Brasil e Cooperifa.

    Caractersticas dos textos

    Linguagem coloquial; pequenos textos em prosa; poesia versada ou discursiva, apelo visual com a utilizao de desenhos, fotos e quadrinhos; tom irnico; uso do palavro; temas relacionados vida cotidiana e prtica social da classe mdia da poca.

    Linguagem coloquial; apelo visual com desenhos, fotos (nos livros) e grafites (nas revistas); recorrncia de grias do hip hop e das periferias; uso do palavro; utilizao da linguagem das periferias urbanas com construes escritas que destoam da norma culta.

    Formas privilegiadas

    Poemas (era, sobretudo, um movimento de poesia marginal).

    Poemas e contos.

    Temas recorrentes

    Sexo, txicos, cotidiano das camadas mdias e altas.

    Vida e prtica dos membros das classes populares; e problemas sociais, como: violncia, carncia de bens e equipamentos culturais, precariedade da infra-estrutura urbana, relaes de trabalho predominantemente associados ao espao social da periferia.

    Pblico consumidor

    Classes privilegiadas. No h dados sistematizados a respeito do pblico consumidor.

    Grupo afim Tropicalistas, sobretudo porque este grupo tambm subvertia os padres de qualidade e bom gosto da poca.

    Hip hoppers, por compartilharem os mesmos repertrios cultural e social.

    Conexes extraliterrias

    Universidades, artistas, circuito de bares e cinemas freqentados pela classe mdia, patrocnio das prprias famlias e amigos.

    Revista Caros Amigos, grupos e mdia ligada ao movimento hip hop (posses, sites e revistas) e terceiro setor.

    Tradio/ cnone literrio

    Rompimento com as vanguardas da poca, como o concretismo, a poesia-prxis e a poesia processo. Aproximaes, pela crtica literria, ao modernismo.

    Os escritores no se filiam a nenhuma tradio especfica, mas os editoriais das revistas Caros Amigos/ Literatura Marginal invocam como referncia escritores dotados de semelhante perfil sociolgico (como Carolina de Jesus e Solano Trindade), ou que privilegiaram em seus textos temas afins, como Joo Antnio e Plnio Marcos. Aproximao, pela crtica literria, ao naturalismo e ao realismo.

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    Cabe acrescentar que esses dois movimentos brasileiros de literatura marginal se concentraram em espaos geogrficos diferentes. Os poetas marginais dos anos 1970 proliferaram em maior nmero no estado do Rio de Janeiro e a nova gerao de escritores marginais, constituda por escritores da periferia, predominantemente composta por moradores de So Paulo embora seja preciso considerar que os dois estados componham o eixo cultural dominante no pas.

    H dois outros dados que merecem destaque. O primeiro deles diz respeito relao que as duas geraes de escritores marginais estabeleceram com o mercado editorial, pois, enquanto os poetas dos anos 1970 se opunham ao circuito oficial de editorao, os escritores da periferia (tanto aqueles que ainda no lanaram nenhuma obra como os que j publicaram de maneira independente) anseiam fazer parte do rol de uma grande editora, at mesmo como uma forma de reconhecimento das suas expresses narrativas. O outro dado relevante est relacionado classificao externa, atribuda pelos estudiosos e imprensa da poca aos poetas marginais setentistas, em contraste com a auto-atribuio do termo marginal por parte de alguns escritores oriundos da periferia.

    Para melhor compreender essa atribuio, assim como os aspectos relacionados literatura produzida pelos escritores da periferia, cabe-nos enfatizar as caractersticas que envolveram a produo e circulao das edies especiais Caros Amigos/ Literatura Marginal, primeira conexo extraliterria importante que contribuiu para a projeo dos autores no cenrio cultural.

    1.2 As edies especiais Caros Amigos/ Literatura marginal: a cultura da periferia

    O significado do que colocamos em suas mos hoje nada mais do que a realizao de um sonho que infelizmente no foi vivido por centenas de escritores marginalizados deste pas. Ao contrrio do bandeirante que avanou com as mos sujas de sangue sobre nosso territrio e arrancou a f verdadeira, doutrinando os nossos antepassados ndios, e ao contrrio dos senhores das casas grandes que escravizaram nossos irmos africanos e tentaram dominar e apagar toda a cultura de um povo massacrado mas no derrotado. Uma coisa certa, queimaram nossos documentos, mentiram sobre nossa histria, mataram nossos antepassados. Outra coisa tambm certa: mentiro no futuro, escondero e queimaro tudo o que prove que um dia a periferia fez arte. (Ferrz)

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    A epgrafe que d mote para as consideraes a seguir foi extrada do editorial o Manifesto de Abertura da primeira edio de literatura marginal da revista Caros Amigos, o Ato I, lanada em 2001. Nos anos de 2002 e 2004 foram editados outros dois atos que, em conjunto, do o tom de ao coletiva dos escritores da periferia.

    As edies especiais de literatura marginal da revista Caros Amigos merecem destaque por diferentes aspectos. O primeiro que a reunio dos autores em edies especiais de literatura uma ao coletiva sustentada por um projeto intelectual comum, cujo desdobramento tambm esttico, poltico e pedaggico. Em segundo lugar, porque a partir da primeira edio da revista que se amplia o debate (e os discursos) em torno da expresso literatura marginal na produo cultural contempornea. O terceiro aspecto que essas revistas so os veculos de entrada de boa parte dos escritores no campo literrio; o quarto, que revista Caros Amigos uma conexo importante para fazer circular nacionalmente a produo desses escritores. E, por fim, porque o conjunto das edies especiais pode ser visto como uma das instncias de apropriao e legitimao dessa produo marginal. Por conta destes elementos todos, a revista Caros Amigos/ Literatura Marginal adotada, nesta pesquisa, como marco para a compreenso da entrada em cena dos escritores da periferia sob a rubrica literatura marginal.

    A revista Caros Amigos foi criada em 1997 pela Editora Casa Amarela, com a proposta de apresentar entrevistas com personalidades de opinies crticas e independentes sobre o meio em que se destacam. Os temas abordados so classificados como de interesse geral, mas privilegiam as reas poltica, econmica e artstica. Com circulao nacional e periodicidade mensal, a tiragem mdia produzida de cinqenta mil exemplares19.

    Ocupando o espao deixado pelos peridicos alternativos ou nanicos da dcada de 1970 (como o jornal Pasquim e a revista Realidade), a Caros Amigos se estabeleceu no mercado com diferenas editoriais em relao s demais publicaes (reportagens de flego, anlises formativas e emisso de opinies sobre outros meios de comunicao) e assumiu um discurso de crtica e repdio ao neoliberalismo mundial e nacional (em oposio ao governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso) (Zibordi, 2004a).

    19 Dados extrados do site www.carosamigos.terra.com.br.

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    A primeira edio especial publicada pela revista data de setembro de 1998 e teve como tema o movimento hip hop que voltou a ser matria de outra edio lanada em junho de 2005. A Caros Amigos seguiu publicando, com intervalos variados, outras edies especiais, totalizando, at dezembro de 2005, vinte e quatro edies sobre diversos assuntos: a corrupo entre os polticos brasileiros, o Golpe de 1964, as eleies presidenciais de 2002, a vida e a msica de Raul Seixas, a histria de Che Guevara, entre outros. Mas cabe registrar que, alm do movimento hip hop e da literatura marginal dos escritores da periferia, apenas outros dois temas foram explorados mais de uma vez nas edies especiais: o Frum Social Mundial (com trs edies dedicadas aos eventos ocorridos em 2001, 2002 e 2003); e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (um delas abordava especificamente o episdio que ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajs).

    Para Marcos Zibordi, que analisou as caractersticas das edies regulares publicadas entre 1997 e 1999, a revista d seqncia ao projeto das outras publicaes da Editora Casa Amarela, que, segundo o autor, procuram sintetizar e solidificar o conhecimento sobre determinados assuntos, fazendo dos exemplares um documento histrico (p. 126). Isso justificaria o interesse da Editora Casa Amarela em publicar edies especiais sobre temas que reforam o carter formativo e alternativo da revista Caros Amigos, bem como as sries de fascculos Rebeldes brasileiros (que divulga a histria de figuras como Antonio Conselheiro, Glauber Rocha e Olga Benrio) e os livros sobre o lder negro Zumbi dos Palmares e o guerrilheiro Carlos Marighella20 (2004a).

    Ainda segundo o autor, assim como a dos outros temas eleitos, as trs edies de literatura marginal publicadas pela revista podem ser entendidas como um adensamento dos assuntos que recorrentemente figuram nas pautas das edies regulares, fazendo parte do projeto alternativo da Caros Amigos de informar e formar seus leitores. Ento:

    Os vrios textos que apresentaram autores, produes e teorizaes configuram uma preferncia que tomou forma acabada nas duas edies especiais chamadas de Literatura Marginal. E entre os autores nacionais e estrangeiros, tanto nas edies mensais quanto nas especiais, pode-se apontar uma caracterstica bsica: a literatura presta servio causa do homem, preferindo falar dele imerso em problemas pessoais e sociais - geralmente os sociais incidindo nos pessoais - demonstrando maior

    20 Zibordi se refere aos livros A incrvel e fascinante histria do capito mouro, de Georges

    Bourdoukan, e Carlos Marighella o inimigo nmero um da ditadura militar, de Emiliano Jos, ambos redatores da Caros Amigos.

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    preocupao com os motivos do mundo terreno, real e concreto, do que com a inquietao estritamente estetizante (Zibordi, 2004a, p. 82-83).

    Quanto s trs edies especiais de literatura marginal, estas so resultados da parceria entre a Editora Casa Amarela e o escritor Ferrz. A co-edio foi viabilizada pela criao do selo Literatura Marginal, por Ferrz, e pela participao de membros do 1daSul na equipe editorial. Editora Casa Amarela coube o investimento de R$ 40.000,00, que garantiu a produo grfica, a distribuio nacional e o pagamento do cach de R$ 150,00 a cada um dos escritores. E equipe editorial, comandada por Ferrz, competiu a seleo dos autores e textos a serem publicados. O acordo entre ambos era que as edies especiais teriam um esquema diferenciado de circulao, sendo distribudas, primeiramente, em bancas de jornal localizadas em bairros da periferia.

    A primeira edio especial, lanada em agosto de 2001, reuniu dez autores convidados por Ferrz e veiculou dezesseis textos, entre poesias, contos e crnicas. E para mostrar, segundo o editorial, as vrias faces da caneta que se manifesta na favela, pra registrar o grito verdadeiro do povo brasileiro, a publicao contava com a participao de dois rappers (Atrs e Casco), de um autor indito (Garrett), de quatro autores que j haviam publicado livros de maneira independente (Alessandro Buzo, Erton Moraes, Edson Veca e Srgio Vaz) e dos j conhecidos Jocenir (autor do livro Dirio de um detento21 e do rap homnimo em parceria com Mano Brown, dos Racionais MCs), Ferrz (de Capo Pecado) e Paulo Lins (de Cidade de Deus).

    Nessa primeira edio, quase todos os escritores eram paulistas ou moradores de So Paulo, com exceo de Paulo Lins e Edson Veca, que representavam o Rio de Janeiro. A presena de Paulo Lins na publicao, entretanto, rendeu interpretaes diversas. Ferrz enfatiza freqentemente em seus depoimentos que convidou Paulo Lins para fazer parte da edio especial porque o romance Cidade de Deus foi sua inspirao para escrever Capo Pecado, e que a aceitao ao trabalho de Paulo Lins o encorajava a dar seqncia aos seus projetos. J Paulo Lins explicou a sua participao justificando que desconhecia a idia de Ferrz de veicular tal edio sob o ttulo Literatura Marginal: a cultura da periferia, e que apenas aceitou o convite do amigo para fazer parte de uma edio especial da revista Caros Amigos que reunia escritores originrios das periferias.

    21 Lanado pela editora Labortexto em 2001.

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    Paulo Lins rejeita a atribuio do termo marginal sua produo e a dos outros escritores que partilham do mesmo perfil sociolgico, e identifica em Ferrz o precursor do novo discurso sobre literatura marginal:

    Foi o Ferrz quem comeou com essa onda de literatura marginal, eu nunca tinha ouvido falar nisso, do jeito que est sendo apresentado atualmente. O Ferrz me ligou falando do projeto da revista e me perguntou se eu no tinha algum texto indito; eu mandei o texto para ele e de l para c no se parou mais de falar sobre isso. O que eu conhecia de escritores marginais tem a ver com a poesia marginal dos anos setenta e eu me lembro que o Leminski achava ruim esse movimento. Essa poesia foi esquecida pelos crticos por um bom tempo e agora o Roberto Schwarz e a Helosa Buarque esto resgatando alguns autores. Quando fiz o livro, eu no pensei que eu era marginal; e o livro saiu pela Companhia das Letras, que no tem nada de marginal. O meu livro no tinha nada de marginal, a no ser o tema, se bem que a misria e o urbano sempre apareceram na literatura o Jos Lins do Rego e o Graciliano Ramos j falavam sobre isso; sempre contrastaram o campo com a cidade. Eu penso que quem engajado vai discutir a pobreza e a criminalidade pra mim, a temtica que marginal. O Maral [Aquino], por exemplo, fez trabalho com matadores; o [Fernando] Bonassi com detentos. Eu no vejo nada de marginal nas nossas obras elas recebem o interesse da crtica, da universidade, da imprensa (Paulo Lins em fala no dia 30/06/200422).

    Foram publicados, na primeira edio, dezesseis textos inditos, dentre os quais h nove poemas, seis contos e uma crnica. Os poemas so longos e marcados pelo uso das rimas, e os versos aludem vida das crianas que moram nas favelas ou nas ruas, s chacinas cometidas em bairros da periferia, ao sofrimento dos negros, ao cotidiano de um trabalhador com pouca especializao e ao destino dos jovens pobres. Como neste exemplo:

    Queria ser homem de terno Deu teco a noite inteira e ainda estava a fim. No seu corao ribanceira, uma pedra a rolar tim-tim por tim-tim; Partiu pro trabalho e nem sequer dormiu, s se lembrava do brilho na favela do brilho reluzente daquele fuzil. Desde cedo, mo-de-obra desqualificada, tudo lhe desesperava. Aquele salrio raso, que no dava pra nada, no seu dio se fez engasgo. E se lembrava da educao garapa Que recebeu do Estado. Tudo lhe ardia: lmina e faca. Sacou da mochila, do trabalho partiu.

    22 Este argumento foi exposto por Paulo Lins em evento da Mostra Artstica do Frum Cultural

    Mundial, j mencionado em nota anterior.

  • 25

    Foi pro corao da favela Pra So Jorge, sua me, acendeu uma vela. No asfalto era o mau. Atirou, roubou, matou, traficou. Aos 15, seu conceito subiu. Aos 17, fuzilado na favela, na mala do Robocop saiu. Distante agora do mundo incolor, achou o fundo do valo como cama, e a lama o seu cobertor. (Edson Veca, Descaso, o cerol do gueto, p. 14).

    Nos contos, que so os textos que aparecem de maneira mais elaborada na revista, a crtica social continua presente, pois se tematiza principalmente o cotidiano de moradores de favelas e das periferias que passam por situaes de violncia e humilhao e que no usufruem servios pblicos de qualidade. Porm, nos contos que esses personagens sofredores aparecem como contestadores dessa realidade social, seja porque se tornam mais crticos por conta das informaes obtidas em livros (que apesar dos baixos salrios conseguem adquirir em sebos); seja porque buscam, de alguma forma, fazer justia social ou se vingar: improvisando um longo discurso ao pedir demisso do emprego no qual sofria humilhaes do patro, assassinando o estuprador da irm paraltica, denunciando a corrupo dos polticos brasileiros, ou ainda, com comportamentos que visam atingir o grupo social que consideram antagnico:

    T o maior calor, t at lembrando quando trabalhava no padro de lanches americanos que esses playboys consomem l do Shopping Ibirapuera, burguesia filha da puta, no podia nem encostar a mo nos pes, contaminava, o que diziam, e eu cuspindo no hambrguer, passando o queijo geladinho na testa antes de colocar na chapa, at na merda do milk shake eu cuspi, era satisfao maloqueira garantida (Ferrz, Os inimigos no levam flores, p.22).

    Os autores exploram as metforas nos contos, como acontece em Destino de artista, de Paulo Lins, A peregrinao da varejeira, de Erton Moraes e A lua e eu este ltimo, escrito pelo ento presidirio Jocenir, aborda a relao de amizade entre um detento e a Lua. Em primeira pessoa, o narrador relata a presso emocional que um detento sofre na cadeia (a saudade da famlia, a solido, a falta de contato com o mundo livre) e as situaes de risco as quais est submetido (alto consumo de drogas, convivncia com criminosos de grande periculosidade, extorses, brigas, traies, etc). Depois, o texto entremeado por dilogos nos quais a Lua lamenta ter tido uma bandeira fincada em seu solo por astronautas que reivindicam t-la conquistado e por ter deixado de ser a inspirao dos poetas e

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    apaixonados. No final do conto, um pacto de amizade estabelecido, unindo a Lua e o detento pela solido e angstia que ambos enfrentam.

    Nos contos h tambm espao para o uso do palavro e de grias da periferia, tal como em Sonhos de um menino de rua, de Garrett, e em Os inimigos no levam flores, de Ferrz. No entanto, a crnica A conscientizao, que tematiza o universo da msica rap, que oferece a linguagem mais distante do portugus culto. Este texto, marcado por um tom informativo, o que mais se aproxima do que seria a linguagem falada por membros de determinados segmentos que esto situados nas periferias urbanas brasileiras (os menos escolarizados ou ligados ao movimento hip hop), sobretudo por reproduzir palavras de maneira prxima expresso oral e apresentar neologismos: mor (morou), loka (louca), + um (mais um), oto (outro), si (se), di (de), m (maior), tir (tirar), truta. O autor do texto, o rapper Casco, MC23 do grupo Trilha Sonora do Gueto, volta a empreender os mesmos recursos na letra de rap Conscincia, que encerra a publicao:

    preciso conscincia Que somada a coerncia Faz voc v si compensa Ingressa na delinqncia

    Delinqncia qui desanda Quem brincava na infncia Pega-pega i ciranda Us filho de Aruanda

    Deus +, eu sou exemplo Pois j fui pro arrebento No pur fama, pu sustento S qui a, no recomendo

    Vida boa di viv E voc pode diz Pu coxinha si fud I si ele quere v Voc nu te D.V.C

    Fica a voc na luz No sou nada, fao juz I guerrero di verdade Segue exemplo di Jesus.

    Sempre eu... DJal Olivei Rios simplismente. (p. 31).

    23 MC a abreviao de mestre de cerimnia e designa os cantores de um grupo musical de rap.

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    A tiragem da primeira edio especial foi de trinta mil exemplares, dos quais foram vendidos quinze mil24 ao preo de R$ 4,90. O restante das revistas passou a ser distribudo, de acordo com Ferrz, em palestras realizadas em escolas da periferia, bem como em eventos promovidos em favelas e presdios. Essa primeira edio recebeu o Prmio da Associao Paulista dos Crticos de Arte (APCA) de Melhor Projeto de Literatura de 2001, fato que, para seu organizador, foi uma forma de legitimao do movimento.

    Em junho de 2002 foi lanado o Ato II que, ao contrrio do Ato I, trouxe propagandas de outras edies especiais da revista Caros Amigos sobre Che Guevara, Raul Seixas e movimento hip hop. Desta vez, a tiragem foi de vinte mil exemplares, dos quais cerca de nove mil foram vendidos ao preo de R$ 5,50.

    O Ato II contou com a participao de vinte e sete escritores em trinta e oito textos, e do cartunista Loureno Muttarelli, que contribuiu com uma ilustrao intitulada Viso perifrica, publicada na ltima pgina da revista. H, nessa segunda edio especial, textos no inditos de escritores conhecidos, como Plnio Marcos (Os soldados da minha rua), Joo Antnio (Convite vida) e Solano Trindade (Malungo e Poema para Maria Clia); de sete rappers (Gato Preto, Casco, Mano Brown, Dugueto Shabazz25, Preto Ghez, Oni e ROD); dois indgenas (Kli-Aruno e Maria Inzine); e dois presidirios (Almir Cutrim Costa Jr. e Geraldo Brasileiro). Completam, ainda, a segunda edio, textos de dez autores que nunca haviam publicado livros, alm dos escritos da presidente da Associao de Mes e Amigos de Crianas e Adolescentes em Risco (AMAR), Maria da Conceio Paganele, e do lder zapatista Subcomandante Marcos.

    A publicao dos textos de escritores j falecidos, mas dotados do mesmo perfil sociolgico, como Solano Trindade, ou que desenvolveram em suas trajetrias uma sensibilidade para captar temas afins, como Joo Antnio e Plnio Marcos, pode ser vista como uma referncia tradio literria a qual a nova gerao de escritores marginais est se filiando, ou ainda, como um esforo de constituio de um cnone particular de literatura marginal. Do mesmo modo pode ser interpretada a publicao de crnicas e letras de raps elaboradas por MCs ligados ao hip hop

    24 Todos os dados relativos vendagem das trs edies foram fornecidos por Ferrz, mas a Editora

    Casa Amarela no confirmou tais informaes. 25

    Dugueto Shabazz o pseudnimo de Ridson Mariano da Paixo, adotado aps sua reverso ao islamismo, ocorrida depois que seus textos foram publicados. Optei por utilizar-me do pseudnimo em respeito preferncia do rapper e escritor.

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    nacional. Como o rap Epidemia, de Dugueto Shabazz, do qual destaco o seguinte trecho:

    Jornal Nacional, a chamada anuncia a notcia: manifestantes entram em confronto com a polcia. Eles tinham faixas e palavras de ordem. Contra gs lacrimogneo, cacetetes, tropas de choque.

    S que a cmera filmou s a revolta e a reao. De quem no desespero atira pedra em vo. E no bloco seguinte o que se viu, ouviu: Pesquisa prova: desemprego diminui no Brasil.

    Guetofobia: o poder intimida. Chacinas na periferia cometidas pela polcia. Manifestaes pacficas reprimidas na Paulista. Difamaes, mentiras pela tev transmitidas. Terrorismo: crime considerado hediondo. Ato vlido somente quando atinge o povo. Promotor burgus censura a verdade. Porque a funo da televiso a produo de fugas da realidade.

    do meu olhar que voc tem medo. Bonito terno, onde vive se escondendo. Eu vi voc erguer o vidro, acelerando. Quase atropela o moleque trabalhando.

    A presso sobe, o corao acelera. Alergia a pobre, pavor da favela. Pesadelos, pnicos, inquietao, insnia. Guetofobia: estes so os teus sintomas (p. 15).

    Alm desses autores que gozam de algum prestgio na historiografia da literatura brasileira ou no cenrio do rap nacional, o Ato II veicula diferentes vozes marginais, uma vez que se amplia a participao de moradores de outros estados brasileiros (Cear e Mato Grosso do Sul, com dois representantes; e Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Bahia com um representante cada) e de autores com outros perfis sociolgicos (quatro mulheres, uma delas como co-autora; dois ndios da etnia Terena; e uma ativista pelos direitos dos internos da Fundao Estadual do Bem-Estar do Menor de So Paulo a FEBEM).

    interessante notar que um dos autores inditos professor da rede estadual de ensino de So Paulo e se valeu do espao concedido na edio especial para veicular, alm de um poema de sua autoria, quatro poemas de alunos seus. Outro caso peculiar do poeta amador e ajudante de pedreiro Zeca, autor de dois dos poemas publicados e do texto que abre a segunda edio. Tal texto, endereado a Ferrz poca do lanamento da primeira Caros Amigos/ Literatura

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    Marginal, recebeu o ttulo de Uma carta em construo e jogou luz em algumas indagaes que o projeto coletivo dos escritores da periferia estava despertando na imprensa, na crtica especializada, no pblico leitor e nos prprios autores, como a dificuldade de produo e circulao dos textos, o preo dos livros, a dificuldade de formar leitores na periferia, etc:

    H algum tempo escrevo poemas com as mesmas mos com que trabalho de ajudante de pedreiro. Pra muita gente pode parecer extico, pode parecer surreal. Mas o que tem de estranho? Pobre no tem sensibilidade? No pode escrever, desenhar, pintar, interpretar? (...) Conheo muitas pessoas, muitas mesmo, que tm um potencial extraordinrio, mas que no o desenvolveram por falta de condies. E sei que produziriam muitas coisas belas se tivessem apoio, algum incentivo. Estou tentando publicar artesanalmente uns livros de poemas, feitos em xerox, mas o dinheiro nunca sobra, alis, sempre falta. Escrevi dois infantis e um com poemas abordando uma temtica social cujo ttulo, Voz incmoda, j diz tudo. Estou pesquisando lugares com preos de cpias mais baratos, para tentar vender depois apenas para cobrir os custos. Por aqui jamais conseguirei vender um livreto acima de 2 reais. Por isso, no almejo publicar um livro por uma grande editora, pois aqui ningum poderia comprar. No caso, no se trata apenas de um escritor marginal, mas tambm de leitores marginalizados. E, enquanto escrevo esta carta para vocs, me pergunto se vo publicar algum poema meu e qual a finalidade de escrever tambm. Qual o meu intuito, j que os leitores no podem pagar 5 reais pela revista? Na verdade, espero tentar unir foras com outros autores envolvidos no projeto. Quem sabe at tentar fazer uma publicao mais acessvel para aqueles que esto margem at do que produzimos to perto deles (p.4).

    Quanto aos textos, o Ato II mantm o mesmo padro da primeira edio especial: os poemas aparecem em maior nmero, a crtica social o pano de fundo predominante dos versos e das prosas, explorado o uso do palavro e das grias das periferias, h palavras grafadas segundo uma oralidade prpria dos sujeitos marginais e os textos so acompanhados por ilustraes. As diferenas em relao primeira edio so as publicaes de um excerto de uma pea de Solano Trindade, de um texto de cordel e da compilao de um mito Terena sobre o surgimento do namoro e do casamento no grupo que, inclusive, aparece em duas verses, uma em Portugus e outra em Terena.

    No editorial da segunda edio, o organizador, Ferrz, buscou elucidar do que se tratava a produo literria que o Ato II procurava afirmar: a Literatura Marginal, sempre bom frisar, uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconmicas. Literatura feita margem dos ncleos centrais do saber e da grande cultura nacional, ou seja, os de grande poder aquisitivo (2002 [sem paginao]). Esta afirmao tambm foi convertida em contedo de alguns textos, nos quais as especificidades do perfil sociolgico dos escritores ou do locus de suas produes apareceram como inspiraes para as criaes literrias:

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    Dou de presente uma navalha na carne Meu sangue de mulher, para os famintos de cultura Me masturbo perto dos gals e cuspo nos seus crebros vazios e vis... Cambaleio diante dos tribunais, maldizendo os rpteis que s enxergam bundas

    Dou de presente Mulheres negras de atitude e enalteo seus cabelos carapinhas Dou a admirao dos covardes A sintonia dos loucos E a magnitude dos poetas Grito palavras de desassossego, ss e loucas Infiltrarei um marginal em cada universidade para mostrar do que somos capazes

    Dou de presente Uma Lngua Portuguesa diferente, aprendida no gueto Poesia marginal e o Chico Buarque da periferia E haver um dia em que chegars perto do belo, Este mesmo que as estatsticas quiseram apontar como feio Aprenders o que anseio flor da pele

    Dou de presente Sem teto, sem po, sem ingls, sem francs, sem computador... Com dio, com sangue nos olhos, com armas, sede de vingana Marginais permanentemente enfurecidos, dispostos a morrer para mudar O rumo desta gotinha que cai da sua janela (Cludia Canto, Dou de presente, p.11).

    Em abril de 2004 chegou s bancas do pas o Ato III, com vinte e seis textos de dezenove autores, dentre os quais quatro eram rappers e seis eram escritores amadores com textos at ento inditos. Nesta edio foram veiculadas propagandas das obras da Prefeitura de So Paulo (gesto Marta Suplicy, 2001-2004), da Coleo Rebeldes Brasileiros, de livros da Editora Casa Amarela, da Feira de Rua do Livro de Florianpolis e dos produtos comercializados pelo autodenominado movimento cultural 1daSul.

    Dando seqncia ao seu projeto pessoal de permitir a projeo no campo literrio de outros escritores que partilham do mesmo perfil sociolgico, Ferrz buscou destacar, no editorial da terceira edio, as revistas Caros Amigos/ Literatura Marginal como um espao de divulgao de um novo movimento que agrega a literatura produzida por escritores oriundos das periferias brasileiras e que se volta para a afirmao cultural das manifestaes artsticas dos sujeitos marginais:

    Como sempre acontece a todo movimento feito por pessoas que esto margem as crticas vieram aos montes tambm, fomos taxados de bairristas, de preconceituosos, de limitados, e de vrias outras coisas, mas continuamos batendo o p, cultura da periferia feita por gente da periferia e ponto final, quem quiser que faa o seu, afinal quantas colees so montadas todos os meses e nenhum dos nossos includo? A misso que todo movimento tem no de excluir, mas sim de garantir nossa cultura, ento fica assim, aqui o espao dos ditos excludos, que na verdade somam quase toda a essncia do gueto (Ferrz, 2004 [sem paginao]).

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    Alguns autores que participaram das edies especiais anteriores voltaram a apresentar seus textos, como foi o caso dos escritores Alessandro Buzo (em Todo homem culpado pelo bem que no fez), Jonilson Montalvo (Realismo fantstico no submundo irreal) e Dona Laura (Vingana de brech), e dos tambm rappers Dugueto Shabazz (Plano Senzala), Gato Preto (Favelfrica) e Preto Ghez (A soma do que somos). Contudo, no Ato III foi privilegiada a publicao de novos autores e de textos ainda inditos, no havendo participao de escritores conhecidos ou consagrados. Houve apenas a participao de dois escritores que j haviam lanado livros de maneira independente: Santiago Dias, ator de teatro e autor de quatro livros de poesias; e Maurcio Marques, autor de um nico livro26.

    Dentre os autores estreantes na terceira Caros Amigos/ Literatura Marginal estava o jovem Sacolinha, que contribuiu com um conto intitulado Um dia comum. O texto tematiza a rotina de Trcio, um jovem negro, que no s tem o perfil como tambm morador de periferia, um guerreiro que acorda s trs horas da matina para trabalhar como cobrador de lotao, e que canta rap, gosta de ler e, principalmente, de escrever. O narrador conta, em terceira pessoa, um dia comum na vida de Trcio: o trabalho intenso das 4h30 s 14h, a refeio simples feita em casa (arroz, feijo e salada de alface), a conversa sobre livros com uma criana vizinha, o curso extra-escolar, o trajeto de volta para casa que interrompido pela humilhante batida policial, e a orao noturna na qual o jovem agradece o po, o trabalho, a famlia, a namorada, a sade, a escrita e a conscincia. O narrador descreve tambm os ambientes que o personagem principal freqenta e as situaes que o cercam:

    Dentro do vago a rotina de sempre, mulher falando de novela, homem de futebol, alguns jogam baralho, outros limpam os bancos sujos de p, serve qualquer coisa, papel higinico, guardanapo, flanela, toalha de rosto etc., e neste vago tambm funciona uma ADF (Academia da Fofoca), onde um grupo de homens e mulheres se rene para falar desde assuntos mesquinhos at assuntos polmicos, e para se associar nessa academia fcil, s ter uma estria por semana para contar, rodzio, entendeu? Neste momento Trcio est com os olhos fixados na vasta escurido fora do trem. Ele no olha pra dentro porque j est habituado a ver rostos que traduzem a pobreza, e cabeas pendendo de sono no ombro do passageiro ao lado (Sacolinha, 2004, p.28).

    26 Santiago Dias publicou os livros Caminho: poesias (1984), Estradar (1987), Canto ao amanh sem

    dor (1994) e Sagrada primavera (s.d.), todos editados pelo autor, conforme indicado em sua pgina pessoal na internet www.poetasantiago.cjb.net. Maurcio Marques lanou O leo sol e a abelha Lua de Mel, edio do autor, 2004.

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    Ainda com relao aos autores, novamente, predominou a participao de residentes em So Paulo e de homens, havendo apenas quatro representantes de outras unidades federativas (Rio Grande do Sul, Rondnia, Bahia e Distrito Federal) e quatro mulheres: Cernov, escritora e nica representante da regio norte do pas no conjunto das trs edies especiais, contribuiu com a crnica Nis; Dona Laura, uma senhora que se alfabetizou aos cinqenta anos e se tornou lder de uma colnia de pescadores no Rio Grande do Sul, apresentou o conto Vingana de Brech; Lutigarde Oliveira, moradora de Salvador, poetisa e atriz, colaborou com o poema Descanso; e Elizandra Souza, paulista, responsvel pelo fanzine MJIBA voltado para a divulgao da cultura negra, teve publicados os poemas Um feto, Suicdio, Lixo e Maria. Cabe comentar que, dentre as mulheres, somente a ltima autora citada explora experincias ligadas ao universo feminino em dois dos seus quatro poemas publicados, como em Maria:

    Crucificada est Maria Com a barriga habitada Morreram os sonhos e ainda Tem olhar clemente A religio j no a consola Pois sua vida sacrificada Usa chinelos havaianas Mas na verdade est descala Seu filho no ventre Se move angustiado Com medo de passar fome Quando sair do placentrio Muitas so marias macabias Que esto desconsoladas. (p. 30).

    Nesta terceira edio, os textos em prosa e verso aparecem de forma equilibrada, com apenas dez poemas e trs letras de rap. No apenas a quantidade de crnicas e contos aumentou, como houve uma maior variedade dos temas dos textos e de recursos literrios, ampliando-se o espao do lirismo e dos momentos em que a violncia (simblica ou no) aparece de forma indireta, como pano de fundo para histrias pessoais de superao das dificuldades ou casos de amor:

    Pela janela do corredor do hospital, eu observava os vitrai