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  • Carlos Guilherme Octaviano do ValleProfessor do Departamento de Antropologia-UFRN.

    Ph.D. University of London.

    ResumoA epidemia do HIV/AIDS tem desafiado tanto a biomedicina como a cincia de modo geral. Tecnologias vm sendo exploradas a fim de criar uma base teraputica consistente s pessoas infectadas. Se os tratamentos exigem o consumo dirio de medicamentos, os exames laboratoriais contemplam uma rotina a ser sempre mantida. Levam a um processo de mudana e adaptao pessoal junto de uma reorganizao intensiva das formas de cuidado do corpo. As prticas clnico-teraputicas devem ser entendidas, porm, como elementos particulares de processos culturais de grande alcance. Partindo de pesquisa etnogrfica no Rio de Janeiro, discuto os efeitos sociais da biomedicina como um saber e uma cultura global sobre prticas sociais locais.

    Palavras-chave: corpo, doena, biomedicina.

    AbstractThe HIV/AIDS epidemic has challenged either biomedicine as, generally, science. Technologies have been developed to obtain a consistent therapeutic basis for HIV infected people. Since therapies oblige everyday consumption of AIDS drugs, clinical exams involves a daily routine that should be maintained. All of these techniques cause personal changes and adaptations besides an intensive reorganization of the forms of body care. However, clinical and therapeutic practices have to be understood as particular aspects of a large scale global culture. From ethnographic research conducted in Rio de Janeiro, I discuss the social effects of biomedicine as both global culture and knowledge undertaken on local social practices.

    Keywords: body, illness, biomedicine.

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    CORPO, DOENA E BIOMEDICINA: uma anlise antropolgica de prticas corporais

    1e de tratamento entre pessoas com HIV/AIDS .

  • Como grave problema de sade pblica, a epidemia do HIV/Aids evidencia uma amplitude global desde sua ecloso no incio da dcada de 1980. Gerou desafios imediatos para a pesquisa cientfica e para os saberes e prticas biomdicas. Em diversos momentos da histria social da epidemia, mdicos, profissionais de sade e cientistas defrontaram-se com incertezas, dvidas e a falta de respostas para questes clnicas, que poderiam ser aparentemente banais no caso de outras doenas. Como um modo de lidar com tais incertezas e a efetiva vastido de males que podem afetar as pessoas portadoras do retro-vrus HIV, uma srie de tecnologias biomdicas vem sendo desenvolvidas e exploradas (tambm descartadas) com o objetivo de criar uma base teraputica consistente aos doentes. Desse modo, muitos exames e medicamentos foram testados, produzidos e passaram a ser utilizados por pessoas HIV positivas ou soropositivas (tal como usarei daqui por diante). A grande maioria dos tratamentos exige o consumo dirio de combinaes medicamentosas, que muitas vezes acarretam uma variedade de efeitos colaterais de difcil tolerncia. Os exames laboratoriais constituem-se numa rotina regular que deve ser mantida. Medicamentos e exames levam, assim, a um processo de mudana e gesto da vida cotidiana depois do incio dos tratamentos de controle do HIV/Aids e da preveno de doenas oportunistas junto de uma reorganizao intensiva das formas de cuidado com o corpo, acarretando o controle acentuado do tempo e da vida. No caso, as prticas clnicas e os exames laboratoriais tm buscado tornar a Aids como uma doena crnica nas mais diversas partes do mundo, apoiadas que esto por uma economia poltica global de recursos atravs da articulao de polticas pblicas nacionais, dos projetos de interveno, governamentais ou no, na presena de agentes diversos e na gerncia e oferta de tratamentos biomdicos.

    Seria sensato dizer que as prticas clnicas e as teraputicas biomdicas devem ser entendidas como a fazer parte de processos culturais de grande alcance. Assim, os saberes e prticas da biomedicina configuram-se como disposies e efeitos de uma cultura global sobre prticas sociais locais que se exercem diretamente sobre os corpos, considerando, porm, tanto a positividade como os limites objetivos dessa cultura global. Diversos cientistas sociais tm salientado a importncia de processos culturais globais e transnacionais para situaes contemporneas (Hannerz, 1992; Appadurai, 1999; Featherstone, 1999). Com fins de ultrapassar a viso simplista de unidades culturais fechadas, homogneas, circundadas por fronteiras nacionais, vem-se refletindo sobre as dinmicas de uma cultura global, ou seja, dos fluxos e processos culturais que ultrapassam o alcance das naes e embaralham a definio do que local, no-local e universal. No se trata de uma cultura global unificada, mas a existncia de processos de fuso, integrao e diferenciao cultural realizados tanto no plano (inter)nacional como igualmente no plano transnacional, que sugerem a permuta e o fluxo de mercadorias, de pessoas, de informaes, conhecimentos e imagens que do origem aos processos de comunicao que adquirem uma certa autonomia a nvel global (Featherstone, 1999, p. 7). Estamos considerando o que Arjun Appadurai (1999) denominou de tecnopanoramas, consistindo uma dimenso dos fluxos de cultura global, envolvendo inmeras tecnologias, que teriam insero, alcance e mobilidade para alm dos recortes estritamente nacionais e locais. O mesmo pode-se pensar no caso da sade e da biomedicina (Wright, 1994; Delvecchio-Good, 2001; Franklin et alli, 2000). H uma evidente relao multifacetada, composta por intermediaes, antagonismos e trocas, entre os contextos locais nos quais a medicina ensinada, praticada, organizada e consumida e os planos e dinmicas globais de produo de saber e conhecimento, normas clnicas, tecnologias e mercados (Delvecchio-Good, 2001). No caso da epidemia do HIV/Aids, esse fato parece ser muito mais claro (Bastos, 1996; Ariss, 1997).

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  • O presente trabalho baseia-se em pesquisa etnogrfica que foi realizada no mundo social da AIDS, constitudo na rea metropolitana do Rio de Janeiro nas ltimas duas dcadas. De perfil antropolgico, o estudo buscava o entendimento aprofundado da experincia da doena entre pessoas infectadas pelo HIV/Aids. Entre 1997 e 1998, realizei extensa etnografia e entrevistei formalmente 32 pessoas soropositivas de diversas origens sociais e de classe, variadas formaes culturais e laos institucionais. No entanto, meus informantes constituam certo segmento, alis bem significativo, do universo das pessoas infectadas pelo HIV. Esse segmento era mais diretamente envolvido com estruturas de sade e formas de medicalizao, ou seja, eram pessoas que tinham se inserido, com maior ou menor grau de incorporao, em instituies e organizaes que davam plena legitimidade ao conhecimento e s prticas biomdicas, inclusive as ONGs Aids. Portanto, era um segmento social, cujas fronteiras eram bastante ambguas e operativamente complexas, que reconhecia mais nitidamente o carter global da epidemia e os efeitos concretos da disperso transnacional da biomedicina, o que difere, em parte, mas no de todo, dos segmentos extremamente marginalizados

    2tratados por Biehl (2007) .

    Dentre os muitos fatores sociais, tive de tratar das diferenas de classe, de gnero e de orientao sexual. De fato, as diferenas de classe e de gnero implicam formas especficas de incorporao dos saberes e das prticas biomdicas (Guimares, 2001). No entanto, a presena de tais fatores no impede que certas formas de convergncia social e cultural sejam possveis, criando nveis de experincia que, ora seriam comuns e recorrentes ao lado das diferenciaes que estavam presentes socialmente. Uma das formas de convergncia possvel seriam as comunidades acidentais de memria (Malkki, 1997), quando existem planos e situaes de ordenao social a envolver pessoas cujas trajetrias variadas e singulares acabam por ser aproximadas, tanto por processos sociais como acontecimentos ou eventos que se tornam decisivos para suas biografias e sociabilidades, tal como no caso de uma epidemia. Assim, considero os aspectos organizacionais que conformam as estruturas de sade, tais como os hospitais, os centros de testagem e laboratrios, alm de organizaes civis, tais como as ONGs, todos eles possibilitando a formao de vnculos sociais entre pessoas que, por seu turno, no tinham nenhuma relao anterior. Alm disso, acredito existir, em outra dimenso social, um modelo normativo, mais abrangente que (de forma dominante) constitui e gere a positividade das prticas e saberes biomdicos e da tecnocincia na vida cotidiana. Por meio de estruturas, agncias e redes transnacionais, as cincias da vida e a biomedicina tm uma base global e conformam um ponto de vista universalizante e fisicalista (Duarte, 1998) que devem ser reconhecidos para se compreender os modos em que so apropriados particular e contextualmente pelas pessoas.

    Nos relatos de meus informantes, havia bastante preocupao sobre os efeitos (reais e/ou simblicos) da manifestao de doenas em seus corpos. Por um lado, referiam-se a contextos que antecediam a testagem anti-HIV, sobretudo no caso de sintomas fsicos no esperados. Por outro lado, tratavam, sobretudo, do controle preventivo de doenas que poderiam atingi-los ou, concretamente, os atingiram. A biomedicina desempenha elemento crucial nas prticas e idias que as pessoas soropositivas tm de e sobre seus corpos. Espero discutir como se tem processado uma determinada forma de medicalizao, cujo fundamento central seria a biologizao do humano a partir do estudo de um caso particular, localizado. Analisei, assim, como idias e representaes de sade e doena tm sido operadas e, muitas vezes, contestadas a partir de prticas voltadas diretamente sobre o corpo das pessoas soropositivas. Foi necessrio, assim,

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  • desnaturalizar teoricamente o corpo e perceber os diferentes planos de corporalidade que a percepo da doena suscita diante do uso de tecnologias

    3biomdicas especficas .

    Dois ltimos pontos devem ser comentados antes de prosseguir. Primeiro, devo notar que, se h evidente positividade ideolgica e cultural da biomedicina na sociedade brasileira, no implica que sua determinao seja absoluta. Por um lado, a medicina e a cincia, de modo geral, no deixam de ser confrontadas ou rivalizadas pelas mais diversas religies na forma de se entender e explicar a vida e o mundo. Nesse caso, a biomedicina tem alcance circunscrito, tal como as religies tambm tm. Por seu turno, as pessoas soropositivas podem operar ou utilizar-se de concepes, sistemas e cdigos culturais variados, simultaneamente, inclusive os da religio e o da cincia. No havia, evidentemente, nenhum antagonismo entre a insero nas estruturas biomdicas de sade e a crena religiosa, muito menos a participao em igrejas e cultos. Mesmo soropositivos que levavam risca os tratamentos e prticas biomdicas, identificando-se plenamente com um modelo de medicalizao, apoiavam-se nas prticas e discursos religiosos, que nem os prprios mdicos podem concili-las (Menezes, 2004). Se esse ponto muito importante, no tratarei das nuances, impasses e associaes entre biomedicina e religio.

    O ltimo ponto a comentar seria o do funcionamento e da base estrutural dos sistemas de sade no Brasil. No caso do atendimento de sade, diversidade tanto regional como local existem. Por outro lado, a distino entre estruturas pblicas e privadas de sade tem se acentuado bastante, evidenciando desigualdade significativa no atendimento das classes e grupos sociais. Essa desigualdade tem afetado tambm as pessoas afetadas pela epidemia da Aids. No Brasil, a histria do Programa Nacional de DST/Aids mostra uma srie de antagonismos, descompassos e avanos. Cabe aqui somente lembrar que as tecnologias biomdicas no so completamente acessveis a todos os brasileiros, apesar da garantia de universalidade de tratamento para todos os brasileiros infectados. Testagem anti-HIV, assistncia hospitalar a pessoas soropositivas e distribuio de medicamentos no estiveram sempre disponveis. Por longo tempo, os medicamentos anti-retrovirais foram importados, caros e de difcil acesso. Alm disso, exames clnicos tm sido oferecidos de modo irregular e limitado na rede pblica de sade do pas, o que contradiz com a viso oficial da poltica pblica do Ministrio da Sade. No h nada de original nessa precariedade, que tem sido a marca da sade pblica no Brasil nas ltimas dcadas.

    Uma etnografia de pessoas e corpos em tratamento: quando o global encontra o local-pessoal.

    Minha pesquisa de campo foi sendo orientada a partir dos contatos e redes que estabelecia no mundo social da Aids no Rio de Janeiro. Iniciada no Grupo Pela Vidda, uma ONG carioca de extrema relevncia para se entender a organizao e mobilizao tanto social como poltica de pessoas afetadas e infectadas pelo HIV (Valle, 2000; 2002), passei a conhecer e freqentar outros espaos de insero e vinculao de pessoas soropositivas, especialmente atravs dos contatos que fazia na ONG. Conheci outras ONGs, grupos ativistas gays, Centros de Testagem Annima (CTA), laboratrios, hospitais e participei de eventos importantes do ativismo HIV/Aids, tais como os Encontros Nacionais de ONGs Aids, os Encontros Nacionais de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS, conhecidos tambm por Vivendo, alm de eventos de carter global, como duas International Aids Conferences (Vancouver, 1996 e Genebra, 1998). Realizei uma

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  • etnografia em movimento, multi-situada, que se afinava s estratgias que eu mesmo definia e s situaes em que me encontrava, muitas vezes enraizando-me em certos espaos, tal como a intensa pesquisa etnogrfica do dia a dia do Grupo Pela Vidda, mas orientando-me pelas dinmicas contextuais de eventos e dos fatos que envolviam meus interlocutores de pesquisa, mas tambm pragmaticamente afinada aos planos sociais que davam sentido existncia do mundo social da AIDS. Assim, foi necessrio freqentar CTAs, hospitais e postos de sade, espaos em que minha agncia etnogrfica era mais pontual e articulada aos movimentos de meus interlocutores, sejam eles pacientes ou, ento,

    4profissionais de sade que estabelecia contato .

    Essa etnografia trata de pessoas e corpos, entidades social e culturalmente inseparveis, mas cuja autonomizao especfica deriva dos prprios investimentos, efeitos e prticas gestadas pela biomedicina, tratando a pessoa soropositiva como paciente cujo corpo seria objeto de interveno eficaz. Como o interesse da Antropologia pelo corpo no realmente novo, tal como nota-se na obra de Mauss (2003), Mary Douglas (1973) e Bourdieu (1977), esse trabalho toma como premissa bsica que o corpo se constri de forma fulcral em termos culturais atravs de relaes estabelecidas entre pessoas, cuja agncia e intencionalidade se confrontam a partir dos efeitos singularizados de poder que essas mesmas pessoas igualmente agenciam entre si. Seria notvel, assim, a centralidade do corpo na teoria antropolgica atual (Lock, 1993; Csordas, 1994, 1999). De fato, a importncia do corpo torna-se bvia para os estudos da construo cultural da sade e da doena (Scheper-Hughes e Lock, 1987; Duarte, 1998). Tentarei aqui mostrar como os corpos podem ser usados, pensados e transformados por meio das intervenes prticas das tecnologias biomdicas, que devem ser consideradas como tcnicas e, portanto, so primordialmente

    5culturais e sociais .

    Com seu carter cultural global, as intervenes biomdicas eram apropriadas, a princpio, como saberes e prticas autorizadas colocadas em rede, cuja origem disseminada e heterognea devia-se aos mltiplos centros de sua produo e agenciamento (Paris, Harvard, Genebra, Braslia, So Paulo, etc). Profissionais de sade e pessoas soropositivas, alm de gestores de polticas pblicas, estabeleciam de modo recorrente redes de contato, insero e disputa entre os mais diversos centros e pontos de reproduo de conhecimento biomdico e cientfico (Bastos, 1996; Epstein, 1996). Saberes e prticas biomdicas globais seriam incorporadas medida que se esperava com razovel inquietao que as mais diversas dvidas e dificuldades de tratamento fossem debeladas ou, ao menos, administradas atravs de terapias bem sucedidas. O carter experimental que se apresentava por meio da disseminao de conhecimento tcnico biomdico, ajustado sua dimenso globalizada, seria reconhecida pelos ativistas e profissionais das ONGs que pesquisei e de seus voluntrios, muitas das vezes todos soropositivos, fato que se acentuava, sobretudo, pela sua participao regular em eventos locais, nacionais e globais de HIV/Aids. As expectativas geradas pela circulao global de saberes, prticas e teraputicas farmacolgicas no impedia que houvesse, muitas vezes, a criao de uma imagem peculiar e negativa, a de cobaia da Aids, que afinava-se gesto da vida regulada por critrios e aferies biomdicas, ao mesmo tempo valorizados de modo positivo e negativo. Ser isso que veremos a seguir.

    Estendendo para alm das fronteiras nacionais o sentido de comunidade imaginada (Anderson, 1991), essa cultura global da biomedicina e do HIV/Aids seria reproduzida como uma verdadeira tradio de conhecimento atravs de materiais impressos e textuais informativos, publicados por muitas agncias

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  • governamentais e ONGs. Seriam boletins, folders, manuais, revistas voltadas a pblicos variados, mas cujo elemento comum seria a epidemia do HIV/Aids. Seu contedo tem primado em oferecer subsdios tcnico-especializados, competentes sobre as aflies e estados corporais, objetivando a circulao e incorporao de conhecimento biomdico a ser operacional, portanto prtico, na vida da pessoa. Alm do carter informativo tanto preventivo como teraputico, os textos e publicaes seriam importantes para a produo de uma reflexividade soropositiva atravs dos depoimentos e testemunhos de pessoas infectadas que conseguiram produzir uma virada de re-estruturao subjetiva. Verdadeiras narrativas auto-reflexivas e autobiogrficas, esses textos iriam pouco a pouco conformar uma literatura especfica, no exatamente de 'auto-ajuda', mas destinada a reconstruir sujeitos em situaes de crise, cuja materialidade iria se apresentar pelo prprio corpo doente. Cada uma das tecnologias biomdicas que tratarei a seguir, essenciais para o aprendizado concreto de uma experincia, ao mesmo tempo social e subjetiva, refletindo uma dimenso identitria, convergem efeitos e vetores de uma cultura global em termos de apropriaes culturalmente localizadas.

    Testagem anti-HIV e Identidade:

    Tirando o caso de pessoas que sabiam de sua infeco pelo HIV quando tinham sido internados em hospitais, depois de acometidos por uma doena oportunista grave, a maioria das pessoas que entrevistei soube de seu status sorolgico por meio das tecnologias de testagem anti-HIV, realizadas tanto em hospitais, em Centros de Orientao e Apoio Sorolgico (COAS), conhecidos tambm por Centros de Testagem Annima (CTA), como em laboratrios privados. A confirmao do status sorolgico, como o prprio termo tcnico supe, biomdica e, portanto, tcnica. Isso evidente no caso da maioria das doenas

    6tratadas pela biomedicina .

    A coleta de sangue para a testagem anti-HIV, associada prtica de atendimento mdico (a consulta) e tambm s atividades respectivas que antecedem a testagem (o chamado aconselhamento), consiste somente em uma primeira etapa de um longo percurso de familiarizao, aprendizagem e insero social da pessoa infectada (e, de certa forma, a no infectada tambm) numa rotina de prticas e mudana de hbitos que tem fundamentalmente as estruturas clnicas de sade como base organizacional e o contexto social de participao. De fato, as prticas de testagem anti-HIV tm sido vistas como cruciais tanto para as polticas pblicas de sade como tm sido muito estudadas, inclusive, por cientistas sociais (Martin, 1994; Waldby, 1996; Ariss, 1997; Valle, 2000; 2002).

    Certamente, as polticas pblicas podem conformar o modo que indivduos constroem a si mesmos como sujeitos (Shore e Wright, 1997, p. 4). Categorias so definidas, usadas e circuladas a fim de que indivduos identifiquem a si mesmos. Este aspecto de identificao atravs de polticas institucionais atravessa muitos nveis da vida social nas sociedades contemporneas. A idia de governamentalidade (Foucault, 1991) nos faz perceber a microfsica de foras de influncia e imposio originando-se geralmente, embora no necessariamente, das agncias do Estado, sobretudo atravs de suas capilaridades, a operacionalidade local, cotidiana das prticas pblicas. Sistemas educacionais, programas econmicos e estruturas de sade pblica so muito influentes em determinar trajetrias, posies e decises nas vidas das pessoas. Alm disso, lugares pblicos de carter governamental, inclusive escolas e hospitais, tm um papel importante nessa determinao e nas formas de subordinao nas quais as pessoas so envolvidas.

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  • Certamente h uma singular positividade no desenvolvimento e manuteno de polticas pblicas, especialmente quando elas se referem ao controle de uma epidemia como a do HIV/Aids, cuja amplitude seria global, mas confirmada em termos eminentemente locais. Elas produzem efeitos sociais e culturais muito mais extensos do que os aspectos iniciais e mais visveis de sua manuteno real. De modo similar, as prticas e tecnologias biomdicas no so limitadas a definir doenas e tratamentos. Sua positividade seria tambm aparente num processo contnuo de insero individualizada de pessoas, s vezes mesmo insero coletiva, nas prticas clnicas institucionais atravs das quais sua fora dominante, seu poder em outras locaes e outras reas da vida so disseminados. O hospital, a clnica ou o centro de testagem so basicamente espaos institucionais que operam como foci para processos mais abrangentes, culturalmente globais, de medicalizao e subjetivao, que podem ser reproduzidos em contextos locais, tais como em casa, na escola e reas de vizinhana. Todos estes espaos sociais e institucionais esto normalmente conectados por uma rede de efeitos sociais e culturais nas vidas das pessoas.

    Prticas como a testagem anti-HIV precisam ser consideradas em termos dos processos histricos de formao social e individual. Seus efeitos tm sido simultaneamente gerados em esferas institucionais (hospitais, clnicas) como tambm em locaes de intimidade ou sociabilidade (casa, trabalho, contextos de interao social). Pode-se pensar nos efeitos sobre a definio de indivduos e pessoas em termos de identidade sexual, raa, status sorolgico, grupo sanguneo, etc. Sob o signo da racionalizao como um processo normativo, mais amplo, guiado pelos auspcios do Estado e de suas polticas, pessoas tm sido definidas e identificadas inmeras vezes durante suas trajetrias sociais e biogrficas. Estas formas de definio e identificao teriam importante implicao nos processos sociais e culturais relacionados epidemia da Aids.

    A testagem anti-HIV pode ser vista como um evento crucial ou um momento de ruptura no processo de formao identitria e mudana pessoal para pessoas afetadas pela epidemia da AIDS. Como Martin (1994, p. 163), percebo a testagem anti-HIV como parte importante de uma complexa mediao entre formas diferentes de entendimento cultural numa sociedade mais ampla e formas particulares de conhecimento sobre HIV/AIDS, inclusive vocabulrio cientfico, perspectivas clnicas sobre o corpo e a sexualidade, tcnicas de preveno do HIV, etc. A mediao social procede por meio da incorporao de conhecimento codificado sobre HIV/AIDS. Uma prtica como a testagem anti-HIV e uma instituio como um centro de testagem costumam produzir tal mediao de conhecimento codificado. Certamente, esta mediao implica que parte do conhecimento codificado tcnico-cientfico acaba por ser apreendido por um processo emprico de perda e ganho, ou seja, muito conhecimento perdido no processo confuso de incorporao e absorvido de forma diferente por aqueles envolvidos nesse mesmo processo. Assim, a mediao de conhecimento

    7codificado depende muito de sua simplificao .

    As prticas de testagem so organizadas por idias de conhecimento tcnico pelo qual seu poder simblico gerado. Este poder aplicvel a partir do prprio contexto social no qual o conhecimento originado, um ambiente institucional especializado onde tecnicalidade racional e padres cientficos dominam. Contudo, a reproduo de categorias tcnicas na testagem anti-HIV pode induzir a um grau relativo de confuso entre profissionais de sade e seus clientes. De fato, as categorias tcnicas normalmente usadas em clnicas brasileiras, pblicas ou privadas, para testagem anti-HIV caracterizam-se por um vocabulrio tcnico que contrasta com aquele empregado por seus usurios,

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  • especialmente se de grupos de baixa renda ou das classes populares. Categorias presentes nos resultados de testagem anti-HIV entregues aos usurios dos servios, tais como reativo e no reativo, indicam sua origem laboratorial. Se elas expressam significados tcnicos, elas foram eclipsadas por outras categorias: soropositivo e soronegativo. Estas categorias iriam difundir-se em clnicas e em locais de testagem anti-HIV junto de outras, tais como paciente HIV ou portador, mas seriam tambm circuladas em outros locais e agncias, especialmente as ONGs AIDS, cujos membros preferiam seus significados tcnicos ao invs de categorias culturalmente carregadas como aidtico. Portanto, CTAs tornaram-se bastante relevantes para o uso e difuso de categorias e concepes baseadas num quadro tcnico-cientfico de modo que permitia as condies sociais necessrias para os processos de formao identitria. Certamente o uso social de categorias, como aidtico, era tambm comum em hospitais e clnicas, inclusive na forma de estigmatizao, mas eram socialmente mantidas e disputadas

    8simbolicamente com os termos definidos mais tecnicamente .

    Na pesquisa, foi interessante notar como a progressiva incorporao s estruturas clnicas devia ser articulada, em parte, aos processos de formao identitria. O COAS ou o hospital seriam somente alguns dos contextos cruciais para esses processos, evidentemente mltiplos e heterogneos, apesar da presena de certos elementos estruturais comuns. Assim, categorias identitrias do tipo portador, soropositivo ou HIVpositivo seriam incorporadas de modo progressivo a partir da insero da pessoa infectada nas estruturas de sade ou na assimilao de conhecimento codificado de origem biomdica, que podia tambm circular pela imprensa brasileira. Estas categorias passaram a ser empregadas e privilegiadas a fim de neutralizar os significados negativos de ordem moral que constituam a identidade e as imagens culturais do aidtico:

    Eu acho o termo pesado. Se voc disser para mim que eu sou portador, tudo bem! Agora, aidtico, eu no sou. Eu acho um termo muito pesado. ... como voc chamar um homossexual de bicha, de viado. ... Aidtico, eu acho uma coisa pesada. ... Como uma pessoa que est nas ltimas. Ele est na fase final. ... Eu sou um portador do HIV. Eu sou um soropositivo. (Marco, homossexual; sem vnculos com ONG; usurio de hospital pblico; RJ, zona norte).

    Categorias tcnicas, tais como soropositivo e soronegativo, tornaram-se logo identidades sociais por meio das quais pessoas e indivduos seriam associados, classificados e culturalmente representados. Com o pretexto de enfatizar sua originalidade, que se refere prticas e idias particulares sobre a pessoa e seu corpo, empregadas seja por profissionais de sade ou, ento, mantidas socialmente por pessoas infectadas, eu uso o termo identidades clnicas. Elas referem-se construo particular de categorias, imagens, representaes culturais e discursos sobre a soropositividade, que tm sido produzidos por meio de uma combinao de foras sociais e culturais de origens e formaes amplamente diferenciadas. Mas as prticas de profissionais de sade, de um lado, e as prticas de pessoas afetadas e infectadas pelo HIV/AIDS, consideradas em sua ampla diversidade social e cultural, de outro lado, tem de ser mutuamente consideradas se quisermos entender o surgimento e manuteno das identidades clnicas de soropositivo e soronegativo. Este domnio combinado de prticas, idias e relaes sociais tem constitudo o mundo social da AIDS no Rio de Janeiro.

    As categorias sorolgicas e identidades clnicas no eram usadas de modo isolado, mas associadas s prticas mdicas que requeriam outras formas de identificao. Como parte da rotina de entrevistas na testagem anti-HIV e na prtica clnica, o usurio era levado a explicar o modo de infeco pelo HIV, que

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  • normalmente implicava formas de narrativa em que eventos pessoais eram considerados como evidncia de formas de comportamento e de identificao social. Como diria Foucault (1977), as entrevistas clnicas operavam como um forum de revelao pessoal e narrativizao que permitia que profissionais de sade alcanassem a verdade mais profunda sobre o usurio. Alm do status sorolgico, a identificao do comportamento sexual e a forma particular de transmisso do vrus eram elementos centrais na definio das pessoas afetadas e infectadas pelo HIV (Guimares, 2001). Categorias sexuais (homossexual, bissexual, heterossexual) seriam empregadas de forma emblemtica nas prticas de entrevista clnica como uma forma de identificao tecnicamente racionalizada, que obscurecia a dimenso nitidamente cultural que tem a biomedicina. A emergncia de identidades clnicas foi configurada, portanto, ao mesmo tempo que houve uma circulao intensificada de identidades sexuais, que seriam supostamente reveladas, identificadas e codificadas como evidncia correta sobre a pessoa. A proximidade muito ntima entre o uso de identidades clnicas e sexuais, como sinal dos efeitos capilares da medicina e das polticas de sade pblica nos processos de identificao, , de fato, imensamente notvel nas prticas envolvendo testagem anti-HIV. Estas prticas consistem num dos pontos de partida dos processos de identificao operados por agentes institucionais por meio dos quais discursos sobre identidade sexual so associados aos discursos de identidade clnica. Em resumo, estes processos gerais de identificao definidos pelas polticas pblicas de sade e mantidos pelas prticas clnicas constituam parte das realidades discursivas por meio das quais meus informantes soropositivos dependiam a fim de explicar seus prprios processos de construo de identidades.

    Familiarizando-se com exames, aprendendo a ser soropositivo:

    Se a testagem anti-HIV deve ser tratada como uma tecnologia biomdica central para a construo da soropositividade, ela apenas uma primeira etapa de um processo contnuo de rotinizao e familiarizao das tcnicas clnicas pela pessoa infectada. Assim, outro importante conjunto de tecnologias biomdicas envolve diretamente a monitorizao do corpo. De fato, a prpria definio do corpo como doente ou saudvel pode tornar-se problemtica, como veremos mais adiante. Dentre as tecnologias, os muitos testes e exames a serem repetidos com freqncia seriam associados s prticas teraputicas que acarretam um controle detalhado das sensaes corporais, o que sobrecarrega significativamente o que entendo como o processo de tornar-se ou construir-se soropositivo. Essas tecnologias biomdicas so significativas ao longo de todo o processo de formao identitria por que passaram meus informantes, que eram extremamente receptivos qualquer nova informao sobre a teraputica do HIV/Aids:

    ... eu comeei a fazer exame de sangue toda semana. Para saber como estavam os leuccitos para no dar leucopenia. Como estava o hematcrito para no dar anemia. Durante quase 2 anos, eu fui fazendo exame quase toda semana. Na primeira, segunda e terceira semana era hemograma completo com plaqueta. Na ltima era a glicose, amilase, lipase, cido rico. A cada dois meses, CD4! Os exames mais elaborados. Nas trs primeiras semanas era o hemograma normal s para poder acompanhar, por causa da medicao que eu estava tomando. ... Eu levava furada segunda, quarta e sexta para tomar citovene e mais uma furada para fazer exame de sangue. A, as coisas, Graas a Deus, foram melhorando. Hoje, eu fao exame de sangue uma vez por ms. Completo. ... CD4 e CD8, eu fao uma vez a cada trs meses. (Jlio; sem vnculos com ONG AIDS; usurio de hospital pblico; Rio de Janeiro, zona norte)..

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    A manuteno do quadro clnico por meio de exames regulares, tais como os exames de carga viral e de contagem de clulas CD4 e CD8, por exemplo, implica uma srie de expectativas por partes das pessoas soropositivas. Emily Martin (1994) discutiu a importncia do monitoramento regular das funes imunes, tal como no caso dos exames citados, inclusive por parte de seus informantes soropositivos. H usualmente uma expectativa ambgua e tensa sobre tais marcadores imunolgicos. Eles podem ser vistos como tecnologias e instrumentos benficos para a administrao da doena ou para o monitoramento do corpo. Do mesmo modo, so considerados como uma rotina no desejada, regular, repleta de expectativas. Assim, como Martin sugere, estes testes podem ser apreendidos por uma necessidade opressiva (Martin, 1994, p. 204). H uma evidente ambivalncia entre o que se espera da biomedicina e igualmente as formas de desconfiana que despontam diante das prticas e equvocos de seus profissionais e especialistas. muito comum a existncia simultnea tanto de confiana como de desconfiana diante da medicina, evidenciando certa crise de credibilidade mais geral da cincia (Epstein, 1996).

    Valeria acrescentar que na introduo de novas tecnologias de controle e administrao do HIV, as definies de sade tem se mostrado muito mais moleculares e sistmicas do que antes. Nesse caso, as concepes do bem estar de uma pessoa soropositiva passam a se associar aos resultados dos exames de carga viral e do funcionamento imunolgico. Estas expectativas so compartilhadas a partir das relaes sociais estabelecidas entre soropositivos que esto sendo tratados em hospitais e participam simultaneamente de grupos de ajuda mtua, tais como em atividades do Grupo Pela Vidda. O compartilhamento de impresses e a incorporao de expectativas abarca a rotina dos exames, tal como se mostra no seguinte comentrio:

    O resultado de um exame de CD4 quase o mesmo impacto de um resultado de exame HIV. como ali fosse determinar a sua vida... (homem de identidade homossexual, 28 anos; participante de ONG AIDS; usurio de hospital pblico).

    Esse interlocutor de pesquisa evidencia a importncia determinante dos exames clnicos na rotinizao biomdica da vida da pessoa soropositiva. Uma elevao ou queda nas taxas de contagem imunolgicas so avaliadas tanto por mdicos como pelas pessoas infectadas, sobretudo porque os resultados podem determinar a eficcia ou no da combinao de certos medicamentos e, eventualmente, redefinir escolhas teraputicas. Os exames de genotipagem acentuam ainda mais essa molecularizao da sade e da doena, definida atravs de uma tecnologia biomdica que gera conhecimento clnico sobre a pessoa soropositiva. Nesse caso, profissionais de sade acabam por mediar diretamente a cultura global da biomedicina, afirmando sua autoridade atravs da legitimidade de um saber cientfico cujo valor seria hierarquicamente englobante frente s apreenses supostamente casuais da doente soropositivo, notoriamente leigo. Como uma reapropriao do conhecimento biomdico, os exames moleculares podem ser ainda ser usados como meio de diferenciao interna entre os prprios soropositivos, especialmente se freqentam ONGs e contextos de ajuda mtua. Seriam formas de distino de base imunolgica?

    H competio em termos da questo do estgio da doena. Do tipo assim: Quanto est seu CD4? Quanto est sua carga viral? Teve alguma infeco? No teve? Uma competitividade em relao a isso. Eu percebo no grupo [Pela Vidda] muitas vezes. Aquele tipo de informao no simples. Est preocupado com aquilo ali para fazer uma comparao com sua prpria carga viral, CD4. Eu, particularmente, nunca tive isso no, entendeu? Eu fico interessado s vezes para

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  • fazer uma comparao em relao do acompanhamento do tratamento, se est sendo bom. Se a pessoa est com aquela carga viral estabilizada, porque teve tratamento. Cada organismo um organismo. (Andr; voluntrio do Grupo Pela Vidda; classe mdia; Rio de Janeiro, Zona Sul).

    Biomedicina, HIV/AIDS e as terapias combinadas:

    O processo de construir-se como pessoa soropositiva implica incorporar e aprender prticas teraputicas de consumo sistemtico e controlado de remdios, de leitura dos sintomas da doena e dos tratamentos sobre o corpo, dos procedimentos clnicos e tecnolgicos de exames e terapias que devem ser efetuados regularmente. Pode-se at pensar numa histria social dos tratamentos anti-HIV, que tem mudado desde o incio da epidemia. Assim, o uso monoterpico ou combinado de medicamentos seria um exemplo dessa histria. Em certo momento da dcada de 1990, quando o uso das novas terapias combinadas se iniciou, o chamado coquetel, a prescrio de remdios variados, tais como os inibidores de protease, levava ao consumo s vezes de mais de vinte cpsulas de medicamentos ao longo do dia, que deveriam ser conhecidos e vivenciados diretamente. Apoiando-me em Howard Becker (1973), acredito que a construo de uma pessoa como soropositiva supe, portanto, um processo de aprendizado e educao dos sentidos e da experincia corporal, quando as mais diversas sensaes (da dor ao prazer), acabam por ser reconsideradas a partir de uma nova perspectiva sobre si mesmo:

    No incio, foi muito pesado. Eu, como falei mesmo, no aceitava. Hoje a coisa no est muito [pesada]. Tem hora que a coisa pesa. Tem hora que voc: Porra, tinha que ser? De repente, voc tem que estar preocupado com medicamento, com horrio. Tem que ficar preocupado se vai ter medicamento. Se voc vai viajar, voc tem que deixar tudo esquematizado. Se j fez exame ou se no fez. Se pegou remdio ou no pegou. Ento, a noite, por exemplo, se voc gosta de curtir a noite, voc j reduz isso. Se curtia quatro noites por ms, voc passa a curtir uma. Se voc gosta de beber e voc bebia 10 vezes por ms, voc vai passar a beber duas vezes por ms. Ento, voc se restringe em algumas coisas. (Eduardo; soropositivo, heterossexual; subrbio carioca; aposentado; acima de 40 anos).

    A disciplinarizao do corpo, que se pressupe por meio de uma vida que tornada mais regrada, no se concretiza por meio da participao do soropositivo em instituies fechadas ou totais, tal como estudaram Foucault (1987) e Goffman (1974). O controle calculado e meticuloso do tempo um objetivo a ser buscado na vida cotidiana e no espao domstico. Horrios cravados, sem atraso, no consumo de remdios, o uso de alarmes e despertadores, a perfeio do tempo correto de jejum, o tipo de dieta apropriada, combinam-se com o nmero acertado de cpsulas e comprimidos que devem ser absorvidos. Seria um controle tanto quantitativo como qualitativo do tempo, das tcnicas e de substncias ao longo do dia. O controle rigoroso e disciplinado que estou me referindo implica a aceitao do modelo teraputico de consumo dos remdios alopticos, mas pode ser tambm percebido entre pessoas soropositivas que recusam a biomedicina e optam por terapeutas alternativos, que defendem somente o uso de ervas para o tratamento do HIV/AIDS. Nesse caso, o rigor teraputico pode ser um objetivo a seguir tanto no caso dos soropositivos que tomam o modelo da biomedicina como entre aqueles que seguem outros modelos, sobretudo os das medicinas tradicionais. Pode-se supor que certos ideais de vida saudvel e de preveno de

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  • doenas apresentam-se e cruzam entre diversos modelos mdicos, s vezes antagnicos, mas exigindo prticas teraputicas muito similares, como se v nos seguintes depoimentos:

    Voc comprava as folhas e fazia o ch que tomava trs vezes por dia. Tinha um pozinho tambm, que era chamado p energtico. Tem um que para estimular a defesa imunolgica, que eram umas gotas. Esse eu ainda tomo. Ele dura muito. Que mais que eu tomava? Eu acho que eu tomava mais alguma coisa ainda! Alm das gotas! As gotas tem de tomar em jejum. S se alimentar duas horas depois. As gotinhas que ela d de graa. Voc toma com azeite. As gotas, depois bota 5 gotinhas de azeite e toma tudo. S pode comer duas horas depois. Eu levanto todo dia as cinco horas da manh, tomo as gotas. Durmo de novo. A, as sete da manh eu me levanto para tomar caf. (...) Olha, Guilherme, eu sou uma pessoa assim. Se eu tenho de fazer alguma coisa, eu vou fazer como manda o figurino. Fazer bem feito. Ou, ento, eu no fao. Desde esse dia que eu fui l na primeira vez que eu nunca deixei de tomar as gotas! Se eu for para a casa do meu irmo, ... eu arrumava aqueles remdios todos numa bolsa s para botar os remdios, entendeu? Com gelinho dentro, com tudo. Chegava l e botava na geladeira. (Raimundo; HIV+; 58 anos; classe mdia; RJ, Zona Sul; sem vnculo com ONG; no era usurio de hospital).

    Eu tenho regras com horrio de remdio. Se eu for para algum lugar e eu sei que eu no vou voltar, que eu vou dormir na casa de algum, eu levo os meus remdios. Se eu vou sair para jantar, eu sei que eu tenho que jantar at certa hora. Depois, eu tenho que tomar os meus remdios. A vida muito mais regrada. Tem muito mais horrios do que antigamente. (...) Crixivan com jejum de uma hora antes de comer alguma coisa. De manh cedo, eu tomo crixivan. Depois do almoo, faz duas. Duas horas e meia, eu tomo o remdio. Eu tento fazer, seguir a seqncia normal do remdio. De 8 em 8 horas. Respeitando esse lance do jejum. (Jlio; sem vnculos com ONG AIDS; usurio de hospital pblico; Rio de Janeiro, zona norte).

    Para Emily Martin (1994), seria possvel rastrear idias e imagens sobre o sistema imunolgico em diversos grupos e contextos sociais que, a princpio, no interagem entre si. Da mesma forma que usurios de hospitais pblicos, pessoas soropositivas que rejeitam a insero em estruturas de sade e a aceitao de terapias biomdicas podem manter regimes de dieta e um rigor temporal no consumo de remdios. Uma apreenso do funcionamento do organismo e da imunidade comum, mesmo se os modelos teraputicos so distintos.

    Evidentemente, essa aceitao de terapias biomdicas (ou no) deve ser encarada com cautela. H uma relativa incorporao das prticas de sade, mesmo se elas podem ser aceitas como vlidas. Foi muito comum ouvir conversas e debates sobre os modos de consumo de medicamentos, que eram vistos, na maioria das vezes, como um aborrecimento, mesmo se a pessoa no apresentasse nenhum efeito colateral. Pode-se pensar nos limites efetivos de incorporao das prticas biomdicas e, talvez, uma apropriao parcial de acordo com intenes e propsitos que deveriam se afinar com outras questes, mais particulares. Assim, foi possvel ouvir conversas em que as pessoas diziam e sugeriam que se tomassem os remdios apenas ao longo da semana, descansando nos sbados e domingos, quando se poderia beber mais, sair sem se preocupar com horrios rgidos, etc.

    Na verdade, o controle do tempo, o rigor no consumo dos remdios, o jejum, dentre outras estratgias de disciplinarizao teraputica, devem ser vistos

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  • como conformando um modelo ideal de comportamento, que as pessoas tem dificuldade de cumprir ou buscam contornar, permitindo-se certa maleabilidade. Assim, no seria lcito afirmar que toda pessoa soropositiva aceita ou acompanha os tratamentos e prticas biomdicas recomendadas pelas estruturas de sade e pelos discursos ativistas. Pode haver uma avaliao se o modelo biomdico deve ser realmente seguido ou no, se outro tipo de tratamento e modelo mdico seria mais proveitoso e (simbolicamente) eficaz. Acaba-se medindo as vantagens e desvantagens atravs da conduo das prticas concretas da vida cotidiana e do prazer, tal como, por exemplo, o cuidado nos hbitos de alimentao e no consumo de lcool. Do mesmo modo, a considerao dos efeitos colaterais dos medicamentos pode justificar o abandono de um tratamento e mesmo a completa recusa da prtica biomdica:

    .. eu estava aventando a possibilidade [de fazer terapia combinada], mas depois quando eu soube como que era. Foi uma gua fria na minha fervura. No vou tomar mesmo! No pode comer. No pode beber. Tem que tomar o remdio quinhentas vezes por dia. A, eu falei: Ah, nem morta que eu vou ficar me preocupando com isso! Eu falei pra voc. Se eu vou fazer, eu vou fazer direito. No ? Ento, tinha que tomar 3, o inibidor e o outro, anti-retroviral. A, um, dois deles no combinam entre si. Tem sempre um neutro, que voc pode tomar com os outros dois, mas tem dois que no se combinam. Ento, voc tinha de tomar em jejum. No pode comer. Voc tem que parar duas horas para tomar o outro. A, vai comer quando? So 6 vezes por dia! 6. Tinha um que era 3 vezes por dia. Um, dois e o outro, trs tambm. Quer dizer, isso d o qu? Oito vezes por dia. No se combinavam entre si. Voc no podia tomar dois juntos. A maioria deles no podia comer! Parece que era s o AZT que podia comer! Os outros no podiam. Ento, ia ficar o dia inteiro em jejum. Entendeu. A: Eu, no. Viver assim eu no quero! No pode beber. Eu adoro beber!(Raimundo).

    Alm do aprendizado e do manuseio correto do uso de medicamentos, a participao ativa de familiares, cnjuges ou parceiros no tratamento de pessoas soropositivas era uma questo muito interessante. Essa mobilizao de familiares podia ser vista de forma variada pelo doente, se ela era exagerada, protecionismo ou, ao contrrio, reticncia, mas sugeria, sobretudo, que o prprio modo de aquisio de conhecimento e das tcnicas de tratamento acaba envolvendo a pessoa infectada bem como a afetada, ampliando a problemtica da doena para uma esfera relacional bem mais ampla e sugerindo a complementaridade de esferas de apoio diversas, como a da famlia e a dos grupos de ajuda mtua.

    No caso dos usos do corpo, haveria um processo de aquisio de conhecimento sobre ele e sobre as novas formas de sua administrao e cuidado, que devem ser relacionadas ao fato, bastante reiterado entre meus interlocutores, da pessoa querer informar-se, a necessidade social e subjetivamente construda de conseguir informao. Tratar do prprio corpo seria, portanto, um modo de saber de si atravs da informao, de conhecimento codificado (Bourdieu, 1990), que seria circulado e apreendido tanto na visitas s estruturas de sade, na participao em contextos sociais como os das ONGs e atravs das relaes entre mdico e doente:

    A doutora me diz que muito bom comer gordura. Quando eu tomei invirase, eu tinha que comer muita gordura. A comida gordurosa boa para aceitao dos remdios. ... Mas o mdico que fala. A minha irm nutricionista. Ento, ela sabe. (...) Quando eu tive a retinite, eu tive que tirar o AZT porque o citovene e o AZT, parece, do anemia. Fiquei um ano com o

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  • videx. aquele que amassa. Parece pasta de dente. Agora, dizem, tem um sabor de tangerina. Mas eu tomava aqueles antigos, que eram umas cpsulas desse tamanho. Voc tem de amassar e dissolver com gua. Eu tomei esse videx. Eu tomei o DDC, o ivid, durante alguns meses, mas no serviu para nada. A, foi quando eu entrei com invirase, epivir e zeritavir. O invirase tambm no deu muito resultado e eu fui pro crixivan. Eu estou a um ano. Como eu te falei, eu sa de um CD4 de 3 para 403! (Jlio).

    Mas o uso de remdios, cuja quantidade costuma variar conforme o quadro clnico da pessoa, pode provocar efeitos colaterais difceis de aceitar, o que coloca em risco o prprio modelo prtico da teraputica biomdica. Do mesmo modo, exames mdicos vistos como mais invasivos e dolorosos podiam colocar os prprios significados culturais de cuidado com o corpo prova, sobretudo no que se refere s definies de risco de sade. Criavam obstculos de aceitao das prticas biomdicas. Alm disso, a adeso do tratamento biomdico era um problema comentado por mdicos e alertado por ativistas de ONGs, destacando os perigos de resistncia do HIV aos remdios. Esse problema acabava por envolver uma dimenso intelectual, a da 'falta de informao', do 'desconhecimento' e da 'ignorncia' de pessoas soropositivas que no seguiam risca o modelo mdico e as prticas teraputicas. Aqui est em questo certamente os limites da biomedicina como cultura global e tradio de conhecimento. Alm disso, criava-se uma diferenciao interna entre aquelas pessoas soropositivas realmente informadas ou conscientes e outras que no sabiam de fato se cuidar, uma falta de cuidado que seria tanto corporal como a caracterizar uma incapacidade cognitiva, 'ignorncia'. Na verdade, essas acusaes internas tinham um sentido moral, que articulava uma srie de outras questes, todas envolvendo falta de conhecimento e a no aceitao de regras bsicas do suposto cuidado com a vida e a preservao de uma vida saudvel, afigurando um conjunto de ambigidades presentes no mundo social da Aids, mas articuladas s contradies da biomedicina. Assim, comentrios velados consistiam um dos meios usuais de acusao entre pessoas soropositivas, envolvendo a falta de adeso, a falta de cuidado com a sade e, considerado mais grave, a irresponsabilidade diante das prticas sexuais, no seguindo risca a prtica de sexo seguro. Contudo, essas modalidades de falta mostram as ambigidades de um mundo social extremamente heterogneo, alm de evidenciar as limitaes da biomedicina e de seus profissionais para a sua reproduo cultural:

    Tomar o remdio? No! ... Eu no quero ter esse trabalho todo para depois acabar morrendo! Primeiro, morrer a gente vai morrer. De doena, de sade, de acidente, todo mundo morre um dia. Ento, eu no me incomodo. Eu sei que eu tenho de morrer! Eu no tenho medo disso. Na realidade, no assim a minha deciso de no tomar. porque eu no quero essa coisa de prolongar, entende, uma coisa desagradvel. J que eu tenho de morrer, ento no tomo coisa nenhuma, pronto! Que morra! o tal negcio que eu disse: T mais para Lauro Corona! (Raimundo).

    Corpo, Estigma e Medicamentos:

    Entre meus interlocutores, havia uma preocupao constante com a visibilidade da doena no corpo. As imagens culturais de debilidade corporal e de fraqueza fsica foram cruciais para a construo histrica do HIV/Aids. A imprensa brasileira tem sido muito importante para a construo cultural e simblica da epidemia e das imagens definidoras das pessoas infectadas e dos doentes.

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  • Ningum corporificou, materializou mais publicamente a representao cultural da doena, de decadncia fsica e de iminncia da morte do que o rock-star Cazuza. At 1990, o ano de sua morte, a imprensa reportou continuamente sobre sua tragdia de modo bastante negativo e estigmatizante. A revista Veja anunciou, por exemplo, em uma matria de capa: Cazuza, uma vtima da AIDS agoniza em praa pblica (1989). A cara de Cazuza definindo-se como a cara da AIDS tornou-se a mais conhecida imagem cultural corporificada de uma vtima da AIDS e, sobretudo, de um aidtico. O que mais caracterizava, portanto, o aidtico era seu contraste com as ideias e imagens de pessoas saudveis. A representao cultural e visual dessa diferena era constantemente afirmada e descrita, o que teria efeitos culturais, ao mesmo tempo, morais e estticos (Sontag, 1989).

    Uma pessoa soropositiva lida com experincias corporais significativas que envolvem um amplo conjunto de emoes que podem ser completamente diferentes das que tinham na reconstruo do seu passado biogrfico. Fludos corporais, o sangue, os rgos genitais, a pele podem ser reconsiderados por meio de novos significados, que no eram previamente considerados, envolvendo tanto idias de degradao fsico-biolgica e invalidez como de morte. Uma percepo segura e estvel do corpo passa a ser confrontada com a presena de disfunes corporais visveis ou notveis por meio, por exemplo, de doenas na pele. Sabe-se que os sinais visveis de doenas no corpo tem sido usados como formas culturais e sociais de estigma, acusaes e construo identitria (Goffman, 1990; Becker, 1973). Pessoas soropositivas buscavam lidar com tais sinais de visibilidade da doena a fim de estabelecer certas estratgias de controle de informao desacreditvel sobre si mesmas (Goffman, 1990), evitando, assim, possveis formas de acusao e rotulao (Becker, 1973), ou seja, buscando no se identificar com as imagens culturais estigmatizantes do HIV/AIDS. Portanto, a visibilidade e a invisibilidade dos sinais de doena no corpo constituem-se em importantes

    9elementos para se entender a construo cultural e histrica dos sintomas .

    O temor das disfunes fsicas e corporais causadas pelo consumo de medicamentos, tal como a lipodistrofia, quando h maior concentrao de gordura em certas partes do corpo em detrimento de outras, e mesmo a eventual mudana de colorao da pele (como, supostamente, pelo uso de AZT), pode igualmente levar busca de tecnologias clnicas de apagamento dos sinais de doena, tal como a aplicao de botox na face para evitar o rosto encovado e outras intervenes cirrgicas estticas. No caso, seria interessante pensar aqui a idia de passing, como sugere Goffman (1990), qual seja, o fato de algum que pode sofrer estigmatizao, mas passa por algum no desacreditvel, como um meio de explicitar ao ou um sentido de agncia provocado pela positividade que as tecnologias biomdicas acarretam para a pessoa diante do seu corpo. Trata-se novamente de uma ambgua situao de confiana e profunda dependncia frente biomedicina e suas tecnologias (Epstein, 1996). No entanto, o passing pode ser um verdadeiro problema quando preciso usar muitos remdios ao longo do dia. Os problemas de visibilidade da doena e do estigma mostram-se de modo emblemtico, realmente comunicativo:

    Eu no revelava no [que era HIV+], porque eu no tomava medicamento nesses anos. Eu passava despercebido. Quer dizer. Aquela coisa da AIDS no era visvel. Com o medicamento visvel. Voc pode estar assim aparentemente bem, mas a questo do medicamento no tem muito o que esconder. De 92, quando eu comecei a tomar medicamento, eu pensei: No tem como eu esconder para as pessoas. Pelo menos as que eu estou convivendo de uma forma. Se eu viajo, por exemplo, se eu estou num lugar um dia inteiro, no tem como esconder aquilo! (Andr).

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  • Nem todos optaram pelo passing ou por intervenes cirrgicas estticas e tomaram decises mais extremas, ao menos para aqueles mais fiis aos saberes e prticas biomdicas, a fim de evitar os efeitos dos usos de medicamentos e da lipodistrofia. Conheci alguns ativistas do Grupo Pela Vidda que resolveram parar o tratamento anti-retroviral, temendo mudanas corporais e estticas. Em alguns casos, essa deciso podia coincidir com uma crise e um questionamento mais amplo das concepes normativas da biomedicina e do prprio ativismo anti-AIDS, o que os levava a rejeitar at mesmo a atuao militante.

    Outra questo interessante envolve as idias e valores da vida privada e da esfera domstica. A casa despontava como um dos lugares mais importantes sobre isso. O uso regular, dirio e rigoroso de medicamentos implicava num clculo muito especfico da sua disposio na ordem do ambiente caseiro: onde colocar os frascos dos remdios (nos armrios da cozinha, do banheiro, do quarto)? Eles estariam dispostos vista de qualquer um? Onde coloc-los a fim de facilitar o prprio consumo dirio das cpsulas? Alguns remdios exigiam cuidados especiais como a conservao em ambiente refrigerado. Havia a preocupao de lidar com o espao domstico junto do controle visual da presena ou no de doena ou sade. Outro problema envolvia a facilidade do acesso aos remdios por parte de crianas pequenas e, em caso da classe mdia e alta, de empregadas domsticas. As idias de domesticidade envolvem tambm um interesse pela cultura material, qual seja, a aquisio de caixinhas ou porta-remdios que pudessem ser manipulados facilmente, sem o carter ostensivo de um frasco industrial de medicamento. Nos casos de pessoas que tinham de tomar muitos remdios, tratando-se tanto por terapia anti-retroviral combinada como das doenas especficas, os elementos de cultura material e da decorao caseira requeriam cuidados muito meticulosos.

    Consideraes Finais - A Imaginao Biomdica e as Prticas Locais:

    O que faz as pessoas acreditarem na biomedicina? Mesmo sem a certeza de que no foi descoberta nenhuma cura da AIDS, que talvez seja o principal objetivo buscado e pensado tanto por cientistas, profissionais de sade como pessoas leigas. Ou mesmo que as pessoas soropositivas saibam que tem de se submeter a um regime de prticas que mudou sua rotina cotidiana, o prprio uso de seus corpos; a um regime de substncias qumicas que pode causar efeitos colaterais de difcil tolerncia. Seria, ento, o que ouvi numa entrevista: a opo pela vida? Seria simples demais aceitar tal explicao? Meus interlocutores de pesquisa que rejeitaram prticas biomdicas buscaram igualmente uma melhor qualidade de vida, optavam, igualmente, pela vida. Por que, na falta de outra opo mais pragmtica, a medicina seria um modelo de prticas paliativo?

    O que mais me intrigou nas falas e conversas de meus interlocutores era uma estreita proximidade entre uma severa constatao das dificuldades que a infeco pelo HIV/Aids acarretava, todas as formas de administrao da doena (medicamentos, horrios, exames, jejuns, etc), e uma intensa expectativa nas possibilidades objetivas da biomedicina. Com certeza, alguns informantes rejeitavam as prticas e tecnologias biomdicas, privilegiando outras formas de teraputica, mais culturalmente localizadas. No entanto, suas idias sobre o corpo, a sade e a doena acabavam reiterando at mesmo imagens e concepes que sustentavam a imaginao biomdica. Raimundo chegou a dizer que se tratava com as gotinhas e chs da conhecida Dona Conceio de Niteri, porque elas poderiam estimular a defesa imunolgica. Sua viso da cincia era

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  • razoavelmente ambgua para supor ao mesmo tempo rejeio e aceitao. interessante notar uma viso compartilhada da cincia e da biomedicina por parte de informantes que passaram por distintos itinerrios teraputicos:

    ... todas doenas os homens acabaram descobrindo uma cura. Mas eu no acredito que a da AIDS esteja muito rpida. Segundo, eu acho que no adianta porra nenhuma porque eles descobriram doenas que estavam erradicadas e esto a de novo grassando. Acho que irrelevante descobrir, porque o homem escroto. ... Diz que tem doenas que os caras descobrem, mas como existe todo um esquema montado em cima de laboratrios. Eles dependem disso. Ento, mata uma porrada de gente para poder outras continuarem vivendo, vendendo os remdios. Existe a necessidade de vender os medicamentos fabricados pelos laboratrios, que so os grupos que mandam no mundo, que determinam o curso da vida. Eles precisam vender, precisam de dinheiro, inclusive voltando a falar da hipocrisia do americano, que eu acredito que o negcio tenha sido feito no laboratrio. . ... Ento, eu acredito que a cincia estuda e vai achar uma cura, mas no acredito que seja relevante ou importante, porque vai continuar essa mesma merda que est a. (Raimundo; HIV+; no era usurio de hospital e nem de ONG)

    A cincia est a, evoluindo. Nos grupos, a gente sempre ouvia falar que aquele tratamento aqui, acol, ia ser aprovado, que estava evoluindo cada vez mais. As vacinas esto por a. Foi depois que eu participei da Conferncia [Internacional de AIDS], que a cura no uma coisa assim rpida, luta prxima. As chances de voc viver mais com melhor qualidade de vida esto a. As coisas so carssimas, talvez o Brasil no consiga sustentar o tratamento gratuito por muito tempo. uma possibilidade. J que eu tenho essa possibilidade, eu vou continuar lutando por ela. Entrar com processo [na justia por remdio de graa]? Entro com processo. A questo da cura. A cura vai sair a qualquer momento! Eu no tenho essa fantasia, no. uma coisa que eu acho que est super longe ainda. (Andr; HIV+; participante de ONG AIDS).

    Delvecchio-Good (2001) destacou como a imaginao mdica tem sido investida de modo intenso na sociedade norte-americana, apesar de todos os rumores e idias de fracasso e conspirao que envolvem a medicina. No caso da epidemia do HIV/AIDS no Brasil, houve o mesmo tipo de inflexes e construo de ordem cultural, conotando valor efetivo cincia e biomedicina. Com certeza, as interpretaes tm sido variadas, se consideramos o tipo de insero das pessoas soropositivas nos sistemas mdicos que podem participar. Contudo, elas tm se apoiado por meio de idias, categorias e representaes que acabam constituindo uma imaginao biomdica que no pode ser entendida somente por sua apropriao localizada (nos contextos onde operante). Nesse caso, seria realmente interessante pensar a biomedicina e a cincia como uma cultura global, que reapropriada a partir das conexes e fluxos que se estabelecem tanto entre saberes e prticas globais como locais.

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  • NOTAS1 Este artigo baseia-se em trabalho apresentado no GT "Pessoa e Corpo: Novas Tecnologias Biolgicas e Novas Configuraes Ideolgicas". Coordenao: Profs. Jane Russo e Luiz F. Dias Duarte. XXVII Encontro Anual da Anpocs (Caxambu, MG. 21-25 de outubro de 2003). 2 Desenvolvida no departamento de Antropologia do University College London, a pesquisa resultou em tese de doutorado (Valle, 2000). Recebi apoio da CAPES atravs de bolsa de estudos. Ao todo, entrevistei formalmente 52 pessoas de status sorolgicos variados. 3 Ver Csordas (1990; 1999) que diferencia o modo que o corpo (body) entendido como uma entidade dada, biolgica, de carter universal, e a noao de embodiment, que supoe o corpo como fabricado ou formado de modo cultural e social. 4 Realizei o tipo de etnografia conhecida por multi-situada. 5 No espero realizar qualquer reviso terica e bibliogrfica do interesse das cincias sociais pelo corpo. Essa empreitada seria aqui muito precria. Vale pena, somente, reportar a influncia da obra de Michel Foucault (1977; 1987) no caso do referido interesse mais recente sobre o tema. 6 Em 1985, testagem laboratorial foi introduzida para diagnosticar a presena de anticorpos do HIV. Estas prticas e tecnologias passaram a ser amplamente aceitas no domnio da epidemia da AIDS. Elas comearam a ser implementadas como parte das polticas pblicas de sade. No Brasil, um sistema de testagem anti-HIV foi introduzido lentamente de modo muito irregular a depender dos servios e dos recursos laboratoriais, pblicos e privados que cada estado brasileiro possua. A testagem anti-HIV tornou-se mais sistemtica com as mudanas polticas ocorridas no Programa Nacional de DST/AIDS aps 1992.7 A codificao pode ser um dos modos em que conhecimento tcnico e cientfico, sustentado por diferentes estruturas de poder, dissemina-se na sociedade (Bourdieu, 1990). 8 Para meus informantes, o aidtico era uma identidade associada a outras identidades. Por um lado, algumas delas tinham uma doena ou um critrio mdico como seu referente bsico, tal como canceroso, tuberculoso ou leproso. Estas doenas eram social e culturalmente constitudas por meio de identidades que expressavam enfermidade, decadncia corporal e morte. Por outro lado, o aidtico foi associado historicamente homossexualidade e, portanto, s identidades sexuais de origem mdico-psiquitrica (homossexual) e tambm a outras categorias culturais, por exemplo a bicha e o viado que, para muitas pessoas, geravam preconceito e tambm estigmatizao.9 Seguindo Goffman (1990), creio que o estigma seja uma forma de informao social, um meio que as pessoas tem de expressar significados sobre os outros e sobre si. De um lado, as formas de estigmatizao tratam-se de prticas de reduo do outro, de quem considerado diferente. Assim, o estigma ilustra uma das formas que as relaes sociais podem ser conduzidas. Como diz Goffman, uma linguagem de relaes que pode ser expressada pelo corpo, o prprio ou o de outros. Como a sfilis e a lepra, as doenas de pele podem servir para estigmatizar pessoas, pois expressam informao corporalizada, tal como igualmente os sinais de raa.

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